quarta-feira, 30 de junho de 2021

Para entender O Capital: Livros II e III (Parte I), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-403-2

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 392

Sinopse: A atual crise econômica, sem precedentes desde a Grande Depressão, não mostra sinais de resolução e a obra de Marx permanece incontornável para compreender a natureza e a dinâmica das economias capitalistas. Por quase quarenta anos, David Harvey escreveu e lecionou sobre O capital, consolidando-se com uma das maiores autoridades acadêmicas no assunto. Condensando essa experiência e dando continuidade ao sucesso de seu Para entender O capital, Livro I, Harvey volta sua atenção agora ao famigerado Livro II – o livro, aliás, foi finalizado durante sua estadia no Brasil para o projeto Marx: a criação destruidora, onde lançou seu volume I.

Buscando tornar sua profundidade analítica acessível a um público maior, Harvey guia leitores com pouca ou nenhuma familiaridade com o pensamento de Marx por esta obra difícil e muito pouco lida. Enquanto o livro I foca na produção e o III, em crises, o Livro II examina de maneira mais abstrata a forma pela qual a noção de valor se dá a partir da compra e venda de mercadorias – a circulação. Conhecidamente mais complicado que o livro I, o volume II d’O capital é tratado de forma analítica por Harvey, que usa de sua experiência como professor para dissecá-lo. O autor ainda aborda diferentes questões presentes no original, como a forma de organização de uma sociedade verdadeiramente comunista e os estudos de Marx sobre Adam Smith. Da recente crise econômica pela qual passou o capitalismo até sua resposta neoliberal, Harvey provê, neste livro, exemplos concretos para a teoria de Marx. Harvey introduz ainda elementos do Livro III sobre crédito e finança para elucidar certos aspectos da crise contemporânea.

Leitura obrigatória para quem deseja uma compreensão mais completa do pensamento econômico de Marx através de sua obra central: O capital. Com o estilo provocador marcante do geógrafo, este volume do livro mostra insights de Harvey sobre a teoria de Marx e dá assistência a quem deseja entender as contradições e crises do sistema vigente por meio de teorias escritas há mais de 150 anos.



(Referente ao Livro II de O Capital)

 

 

A produção que “se estende” no modo de produção capitalista é a produção de mais-valor, e o mais-valor é uma relação material social, e não física. Acima de tudo, a produção de mais-valor é o foco fundamental do Livro I de O capital. A mobilização de processos de trabalho material pelo capital é realizada para a produção de mais-valor. O que Marx tem em mente quando diz que a produção se estende para além de si mesma na “determinação antitética da produção” é que o que importa são os processos de trabalho materiais concretos que produzem mais-valor. Os processos de produção material que não produzem mais-valor são sem valor. No esquema mais geral de Marx, é claro, isso significa que as possibilidades emancipatórias que se apresentam aos seres humanos por meio da fisicalidade do processo de trabalho são pervertidas e dominadas pela necessidade social de produzir mais-valor para outrem. O resultado é a alienação universal dos seres humanos de seus próprios poderes criativos e capacidades potenciais. Algumas das mais poderosas passagens dos Grundrisse e de O capital insistem nesse ponto.

A produção de mais-valor por meio da circulação do capital é, em suma, o pivô em torno do qual gira o caráter de lei necessária do modo de produção capitalista: sem mais-valor, não há capital. Essa foi a ruptura fundamental que Marx realizou com a economia política clássica. Marx continua:

É autoevidente que a troca e o consumo não podem ser predominantes. Da mesma forma que a distribuição como distribuição dos produtos. No entanto, como distribuição dos agentes da produção, ela própria é um momento da produção. Uma produção determinada, portanto, determina um consumo, uma troca e uma distribuição determinados, bem como relações determinadas desses diferentes momentos entre si. A produção, por sua vez, certamente é também determinada, em sua forma unilateral, pelos outros momentos. (Grundrisse, 53)

“Unilateral” refere-se mais ao processo de trabalho material do que à produção social de mais-valor. Portanto, o que significa “determinar” nesse caso?

A “lei” de um modo de produção capitalista assume sempre a seguinte forma: todos os tipos de estruturas contingentes e acidentais de distribuição e troca e uma grande diversidade de regimes de consumo são possíveis em princípio, desde que não restrinjam ou destruam indevidamente a capacidade de produzir mais-valor em escala sempre crescente. Uma estrutura de distribuição socialdemocrata, relativamente igualitária, como, por exemplo, a da Escandinávia, pode coexistir com um regime brutal, desigual e autoritário de distribuição neoliberal como, por exemplo, o do Chile nos anos 1980, desde que esse mais-valor seja produzido em ambos os países. Não há um padrão único de distribuição, sistema de troca ou regime cultural específico de consumo que possa ser derivado das leis gerais para a produção de mais-valor. Porém – e esse é um grande “porém” –, as possibilidades não são infinitas. Se qualquer um dos momentos, inclusive a relação com a natureza, assumir uma configuração que restrinja ou solape a capacidade de produzir mais-valor, então ou o capital cessará de existir, ou serão necessárias amplas adaptações dentro da totalidade das relações. Esse é, aqui, o significado de “determinar”.

Essas adaptações podem ocorrer como um incremento – na maior parte das vezes mediante concorrência, intervenções estatais ou desenvolvimentos geográficos irregulares, nos quais configurações conquistadas num espaço único da economia global superam outros competidores na produção de mais-valor (muito do que os chineses estão fazendo, e os japoneses e alemães fizeram nos anos 1980). Mudanças também podem ocorrer mediante abalos violentos: daí a importância tanto das crises localizadas como das crises globais, e mesmo das guerras (mas atenção: não estou dizendo que todas as guerras e lutas armadas ocorrem unicamente por essa razão).

Distribuição, troca e consumo afetam reciprocamente uns aos outros. Mas também afetam a produção de mais-valor. Isso acontece, diz Marx, por uma simples razão: “na distribuição figuram renda da terra, salário, juros e lucro, enquanto na produção terra, trabalho e capital figuram como agentes da produção”. O próprio capital, afirma Marx:

é posto duplamente, 1) como agente da produção, 2) como fonte de renda; como determinadas formas de distribuição que são determinantes. [...]

Da mesma maneira, o salário é exatamente igual ao trabalho assalariado considerado sob uma outra rubrica; a determinabilidade que o trabalho possui aqui como agente da produção aparece como determinação da distribuição. (Grundrisse, 49)

Assim, se Marx deixa em segundo plano os aspectos distributivos (as particularidades do salário e das taxas de lucro reais, assim como das taxas de juros, rendas, impostos, lucros sobre o capital comercial) como contingentes e acidentais, e, portanto, desprovidos do caráter de leis necessárias (embora isso não exclua generalizações empíricas ou históricas), ele coloca em primeiro plano o papel crucial da terra, do trabalho assalariado, do capital, do dinheiro e da troca na produção – como leis necessárias – do mais-valor. Como resultado, os fatores de produção ganham importância, enquanto os agentes e os retornos obtidos por eles são excluídos (como é mais obviamente o caso no Livro II). Isso leva muitos estudantes a perguntar: onde entra a atividade [agency] em toda essa teoria econômico-política? A resposta é que Marx apenas segue a economia política clássica. Em seus escritos históricos, ele não precisa fazer isso.”

 

 

O primeiro elo (metamorfose) na cadeia de trocas que forma a circulação do capital é o uso de dinheiro para a compra de força de trabalho e meios de produção. O capital monetário “aparece [...] como a forma em que o capital é adiantado” (110). A palavra “aparece” sugere, como muitas vezes é o caso, que nem tudo é exatamente como parece.

Como capital monetário, ele [o dinheiro] está numa condição em que pode cumprir funções próprias do dinheiro, como, no caso presente, as funções de meio universal de compra e meio universal de pagamento. [...] Essa propriedade não deriva do fato de o capital monetário ser capital, mas sim de ele ser dinheiro. (110)

Nem todo dinheiro é capital, nem toda compra e venda, mesmo de força de trabalho (como no caso de serviços pessoais ou trabalhos doméstico), faz parte da circulação e acumulação de capital. O que converte as funções do dinheiro em capital monetário é “seu papel determinado no movimento do capital”, e isso depende do “nexo entre a fase em que elas aparecem e as outras fases de seu ciclo” (110). O dinheiro só funciona como capital quando é absorvido no processo total de circulação do capital. Então, e somente então, o dinheiro se torna uma “forma de manifestação do capital” (111). Portanto, existe dinheiro, e existe dinheiro que funciona como capital. Os dois não são a mesma coisa.

Quando o dinheiro é usado para comprar força de trabalho (D-T), ele sai da circulação do capital, mesmo que os trabalhadores usem seu salário em dinheiro para comprar mercadorias produzidas por eles sob o controle dos capitalistas. Os trabalhadores cedem sua mercadoria (força de trabalho) para obter o dinheiro com o qual compram as mercadorias de que necessitam para viver e, com isso, devolvem o dinheiro à circulação do capital. Eles vivem num ciclo do tipo M-D-M (ou, como Marx prefere dizer, um ciclo T-D-M), oposto ao ciclo D-M-D’ do capital. Nesse movimento T-D-M, observa Marx, “seu caráter de capital desaparece e seu caráter de dinheiro permanece constante” (111). Mais tarde ele se estende sobre esse tema:

O trabalhador assalariado vive apenas da venda da força de trabalho. Sua subsistência – sua autossubsistência – requer o consumo diário. Seu pagamento, portanto, tem de ser repetido constantemente em prazos relativamente curtos [...]. Diante do trabalhador, o capitalista tem de atuar constantemente como capitalista monetário, e seu capital tem de confrontá-lo como capital monetário. Por outro lado, porém, para que a massa dos produtores diretos, os trabalhadores assalariados, possam realizar a operação T-D-M [na qual T é a venda de sua força de trabalho], é preciso que eles encontrem constantemente os meios de subsistência em forma comprável, isto é, em forma de mercadorias. Essa situação requer já um alto grau de circulação dos produtos como mercadorias e, portanto, do desenvolvimento da produção mercantil. (118)

O movimento D-T é visto com frequência – e, segundo Marx, erroneamente – como “o momento característico da transformação de capital monetário em capital produtivo” e, portanto, como “característico do modo de produção capitalista” (111). Mas “o dinheiro já aparece desde muito cedo como comprador dos assim chamados serviços, sem que D tenha se convertido em capital monetário ou sem que o caráter geral da economia tenha sido revolucionado” (112). Para que a circulação de capital comece realmente é necessário primeiro que a força de trabalho apareça no mercado como mercadoria. “O característico não é que a mercadoria força de trabalho seja comprável, mas que a força de trabalho apareça como mercadoria” (112). O dinheiro só pode ser gasto como capital “porque a força de trabalho encontra-se separada de seus meios de produção” e porque:

essa separação só é superada com a venda da força de trabalho ao detentor dos meios de produção; e que, portanto, ao comprador também pertence o emprego da força de trabalho, cujos limites não coincidem em absoluto com os limites da massa de trabalho necessária à reprodução de seu próprio preço. A relação de capital durante o processo de produção só surge porque ela já existe, em si mesma, no ato de circulação, nas diferentes condições econômicas fundamentais em que o comprador e o vendedor se defrontam um com o outro, em sua relação de classe. Não é o dinheiro que engendra, por sua própria natureza, essa relação, mas, antes, é a existência dessa relação que pode transformar uma simples função do dinheiro numa função do capital. (114)

Aqui se encontra, portanto, a primeira precondição fundamental para a circulação do capital: “a relação de classe entre capitalista e assalariado já está dada” (113; grifos meus). Esse foi um tema fundamental no Livro I, em particular nas seções sobre a acumulação primitiva. Aqui, Marx reitera que a existência da força de trabalho como uma mercadoria “pressupõe processos históricos que dissolvam a conexão originária entre os meios de produção e a força de trabalho” (114).

“A conversão de capital monetário em capital produtivo” ocorre quando “o capitalista opera a conexão dos fatores objetivos e pessoais da produção, na medida em que esses fatores consistem em mercadorias”. Para pôr o trabalhador para trabalhar, o capitalista “tem primeiramente de comprar os meios de produção, as oficinas de trabalho, as máquinas etc., antes de comprar a força de trabalho” (112). Mas isso requer que tais mercadorias – os meios de produção – também já estejam disponíveis no mercado. “Para que o capital possa se formar e se apoderar da produção, pressupõe-se certo grau de desenvolvimento do comércio e, portanto, também da circulação e da produção de mercadorias” (115). Apenas dessa maneira os fatores objetivos (meios de produção) podem ser conjugados com o poder subjetivo do trabalho na produção.

A segunda precondição fundamental para a circulação do capital é esta: é preciso que já exista a produção geral de mercadorias para o mercado. Somente então o capitalista encontrará os meios de produção disponíveis no mercado, e os assalariados encontrarão os bens de consumo requeridos para sua autorreprodução. Se essas condições prévias não são satisfeitas, o dinheiro não pode funcionar como capital.

Aqui, Marx está nos advertindo do erro de considerar que o capital deva ser primariamente entendido em termos monetários, e estende-se consideravelmente ao explicar por que isso é assim (115). Mas uma vez que existe a classe dos assalariados e esta é capaz de reproduzir a si mesma, uma dinâmica transformativa é posta em movimento:

as mesmas circunstâncias que produzem as condições fundamentais da produção capitalista – a existência de uma classe de trabalhadores assalariados – exigem que toda produção de mercadorias se transforme em produção capitalista de mercadorias. À medida que esta última se desenvolve, ela exerce um efeito destrutivo e dissolvente sobre todas as formas anteriores de produção, que, voltadas preferencialmente à satisfação das necessidades imediatas do produtor, só convertem em mercadoria as sobras do que foi produzido. Ela faz da venda do produto o interesse primordial, sem que, de início, isso pareça afetar o próprio modo de produção, o que, por exemplo, constituiu o primeiro efeito do comércio capitalista mundial sobre povos como o chinês, o indiano, o árabe etc. Em segundo lugar, porém, onde lança raízes, ela destrói todas as formas da produção de mercadorias baseadas seja no trabalho dos próprios produtores, seja meramente na venda dos produtos excedentes como mercadorias. Primeiramente ela universaliza a produção de mercadorias e, então, transforma gradualmente toda a produção de mercadorias em produção capitalista. (118)”

 

 

Em minha análise dos três primeiros capítulos do Livro II, olhei para o processo de circulação do capital através de janelas distintas: a do dinheiro, a da produção e a da mercadoria. No capítulo 4, Marx volta a reunir os ciclos para analisar sua unidade. A linguagem é um pouco confusa, mas penso que o argumento é claro: os diferentes ciclos são intricados, mutuamente entrelaçados e estão em constante movimento uns em relação aos outros. O movimento de cada um é uma condição para o movimento de todos. A “valorização do valor” (com o que Marx entende a produção e a realização de mais-valor) é o “escopo determinado”, o “motivo propulsor”. Considerado em seu conjunto:

todos os pressupostos do processo aparecem como seu resultado, como um pressuposto produzido por ele mesmo. Cada momento aparece como ponto de partida, ponto de transição e ponto de retorno. O processo inteiro apresenta-se como unidade do processo de produção e do processo de circulação; o processo de produção torna-se mediador do processo de circulação e vice-versa. (179)

Marx compara esse todo a:

[um] círculo em constante rotação, [no qual] cada ponto é simultaneamente ponto de partida e ponto de retorno. [...] A reprodução do capital em cada uma de suas formas e cada um de seus estágios é tão contínua quanto a metamorfose dessas formas e a passagem sucessiva pelos três estágios. Aqui, portanto, o ciclo inteiro é a unidade efetiva de suas três formas. (180)

A linguagem dominante é de continuidade, sucessão, coexistência e fluidez do movimento do capital através dos três ciclos. Essa linguagem é contraposta a outra: a das interrupções e possíveis rupturas. “O processo cíclico do capital é de contínua interrupção, abandono de um estágio, entrada no próximo; descarte de uma forma, existência em outra; cada um desses estágios não apenas condiciona, mas, ao mesmo tempo, exclui o outro” (181). As interrupções, como aquelas no ciclo vital da borboleta, são onipresentes e inevitáveis. Elas ameaçam a continuidade do movimento do capital, mas não necessariamente geram crises. Estudando-as, podemos esperar entender por que as crises podem assumir formas particulares – por que, por exemplo, uma crise pode aparecer num momento como um excedente de capital-mercadoria que não pode ser descartado, em outro momento como um entesouramento excessivo de capital monetário desprovido de oportunidades de investimento ou, ainda, como uma escassez de meios de produção ou força de trabalho para a expansão ulterior da acumulação. O fluxo do capital pode ser bloqueado em qualquer um de diferentes pontos de transição.

Marx contrapõe essas interrupções à “continuidade”, que é “o traço característico da produção capitalista, condicionado por sua base técnica, embora nem sempre incondicionalmente exequível” (181). A necessidade técnica e social para a continuidade do fluxo de capital é muito mais importante aqui do que o era no Livro I.

[Que] cada uma das distintas partes do capital possa percorrer sucessivamente as distintas fases do ciclo, passando de uma fase, de uma forma funcional a outra, e que o capital industrial, como a totalidade dessas partes, encontre-se simultaneamente nas diferentes fases e funções, percorrendo, assim, todos os três ciclos ao mesmo tempo. (182)

Assim, temos de lidar com quatro termos: capital monetário, capital produtivo, capital-mercadoria e “capital industrial” – este último entendido como a unidade dos três ciclos. Todo capital industrial individual terá diferentes frações de seu capital em cada um dos diferentes ciclos em cada momento. Uma parte dele será absorvida na produção, outra parte estará em forma-dinheiro e outra, em forma-mercadoria. Mas essa “justaposição”, diz Marx, “é, ela mesma, apenas o resultado da sucessão”. A necessidade do movimento contínuo através dos diferentes ciclos supera todo o resto. A consequência imediata é:

[se] não se consegue vender a mercadoria, o ciclo dessa parte é interrompido e a reposição pelo seu meio de produção não é realizada; as sucessivas partes que resultam do processo de produção como M’ têm sua mudança de função bloqueada pelas partes anteriores. [...] Cada estancamento da sucessão provoca uma desorganização da justaposição; cada estancamento num estágio causa um estancamento maior ou menor em todo o ciclo, não apenas da parte do capital paralisado, mas também do capital individual em sua totalidade. (182)

Embora Marx não explore essa questão aqui, potencialmente a situação fortalece os trabalhadores. Interrupções do trabalho e greves afetam não só o capital produtivo, mas todos os outros momentos da circulação e, no caso do capital-mercadoria, pode perturbar o fluxo dos meios de produção necessários aos outros capitais:

Como totalidade, o capital se encontra, então, simultaneamente e em justaposição espacial em suas diferentes fases. Mas cada parte passa constantemente, por turnos, de uma forma funcional a outra, e assim funciona sucessivamente em todas as formas. As formas são, assim, formas fluídas, cuja simultaneidade é mediada por sua sucessão. Cada forma segue a outra e a antecede, de modo que o retorno de uma parte do capital a uma forma é condicionado pelo retorno de uma outra parte a outra forma. [...] Esses percursos especiais formam apenas momentos simultâneos e sucessivos do percurso total.

É apenas na unidade dos três ciclos que se realiza a continuidade do processo total, e não na interrupção exposta anteriormente. O capital social total possui sempre essa continuidade e seu processo possui sempre a unidade dos três ciclos. (183)

Marx faz, então, um comentário crítico de extrema relevância. Mas o faz de um modo tão prosaico (como é tão típico no Livro II) que o leitor dificilmente percebe sua importância. A linha introdutória é absolutamente atordoante por suas implicações: “O capital, como valor que valoriza a si mesmo, não encerra apenas relações de classes, um caráter social determinado, que repousa sobre a existência do trabalho como trabalho assalariado” (grifos meus). Com essa afirmação, Marx abre o caminho para dizer que as contradições e as crises podem surgir no processo de circulação, fora da luta de classes entre capital e trabalho que constitui o centro do Livro I. A relação capital-trabalho não é o único locus de contradição no interior das leis de movimento do capital. Contradições podem surgir dentro do próprio processo de circulação e valorização. Há algo inerentemente frágil e vulnerável no interior da circulação do capital industrial. A tarefa é revelar em que consiste esse algo.

Marx examina, então, algumas das maneiras como as contradições no interior desse processo de circulação – “que aparece apenas como um movimento parcial” – se manifestam na prática. “Aqueles que consideram a autonomização do valor uma mera abstração esquecem que o movimento do capital industrial é essa mesma abstração in actu [em ato].” A palavra “autonomização” sinaliza um tipo particular de problema. O valor pode ser uma abstração, mas tem consequências reais (ou, na linguagem do Livro I, o valor é “imaterial, porém objetivo”). Contradições no interior do processo da circulação acontecem de maneira autônoma, e com isso Marx quer dizer de maneira autônoma em relação à contradição capital-trabalho. “O valor percorre aqui diferentes formas, diferentes movimentos, nos quais ele se conserva e, ao mesmo tempo, se valoriza, aumenta de tamanho” (184). O momento da valorização (realização de mais-valor) é tão importante quanto o da produção. Para fins de ilustração, Marx abandona seu pressuposto de nenhuma mudança tecnológica e organizacional e considera:

as revoluções que o valor de capital pode experimentar em seu processo cíclico; mas é claro que, apesar de todas as revoluções do valor, a produção capitalista só pode existir e continuar a existir enquanto valor de capital se valoriza, isto é, enquanto percorre seu processo cíclico como valor autonomizado e, portanto, enquanto as revoluções do valor são de algum modo dominadas e niveladas. (184)

Da perspectiva do capital industrial individual, a esperança é que os impactos do impulso pelo mais-valor relativo através da mudança tecnológica e organizacional descrita no Livro I possam “de algum modo” ser absorvidos, “dominados e nivelados”. Mas note a linguagem de autonomia e independência.

Vejamos o processo de circulação do ponto de vista do ciclo da mercadoria, que desempenha um papel tão importante ao longo do Livro II.

Se o valor de capital experimenta uma revolução de valor, pode ocorrer que seu capital individual seja afetado por ela e pereça, por não poder satisfazer as condições desse movimento de valor. Quanto mais agudas e frequentes se tornam as revoluções do valor, mais se impõe o movimento automático do valor autonomizado, com a força de um processo natural elementar, diante das previsões e dos cálculos do capitalista individual, mais o curso da produção normal é submetida à especulação anormal, maior é o perigo para a existência dos capitais individuais. Essas revoluções periódicas do valor confirmam, portanto, o que supostamente deveriam contradizer: a autonomização que o valor experimenta como capital e que ele conserva e intensifica por meio de seu movimento. (184)

Isso não é nada menos do que uma evocação teórica dos perigos da desvalorização dos capitais por meio daquilo que hoje chamamos de desindustrialização. A partir dos anos 1980, uma onda de fechamentos de fábricas atingiu velhas cidades industriais, como Detroit, Pitsburgo, Baltimore, Sheffield, Manchester, Essen, Lille, Turim etc. E esse fenômeno não ficou confinado aos países capitalistas avançados, pois as perdas da indústria têxtil tradicional de Mumbai e a decadência de antigas áreas industriais no norte da China foram igualmente violentas. Comunidades inteiras, historicamente focadas no trabalho industrial, foram destruídas quase da noite para o dia. Por exemplo, na década de 1980, cerca de 60 mil postos de trabalho na indústria do aço foram perdidos em Sheffield num período de três anos. A desolação que isso provocou era visível por toda parte. Quando se buscava uma explicação, ouvia-se que aquilo tudo era resultado de uma misteriosa força chamada “globalização”. Quando os sindicatos e os movimentos sociais protestaram e tentaram estancar a hemorragia no trabalho e na subsistência, foram informados de que tal força misteriosa era inevitável e irrefreável. (...)

A transferência de postos de trabalho e a destruição de comunidades foi por muito tempo o modo de existência do mundo capitalista.

Marx nos oferece aqui uma maneira de lançar uma luz teórica particular sobre tudo isso. Quando elaborada, a teoria mostra como e por que no sistema capitalista são inevitáveis crises desse tipo, que não são crises sistêmicas totais, mas destruições localizadas. Capitais industriais em concorrência entre si promovem revoluções em tecnologias e formas organizacionais, que, por sua vez, produzem revoluções de valores. Essa é a força supostamente misteriosa (que se manifesta como uma força da natureza e, portanto, supostamente fora do controle humano) que desindustrializa regiões industriais inteiras.

Dito mais formalmente: os capitalistas individuais organizam sua produção de valor em busca de mais-valor relativo, mas, ao fazer isso, produzem novas relações de valor que podem destruí-los. O capital produz não só os meios de sua própria dominação, mas também os de sua destruição. Isso explica a fúria edípica com que os capitalistas frequentemente respondem às crises do capitalismo que os des­troem. Não jogaram o jogo como se deve, calculando e planejando a produção de ­mais-valor? Não atuaram de acordo com o manual da virtude burguesa? Como se explica, então, que não tenham recebido sua justa recompensa e, pior, como podem ser jogados nas trevas da falência? Mas em vez de se revoltar contra o capitalismo – o sistema –, eles se revoltam contra os produtores estrangeiros, os imigrantes, os especuladores e todos aqueles que, na verdade, são apenas os agentes secretos e ocultos das leis internas de movimento do capital.

Muitas pessoas, quando leem Marx, têm dificuldade em entender o conceito de valor como uma abstração, uma relação social que é imaterial, porém objetiva em suas consequências. O “valor” não é mais abstrato e misterioso do que aquela força popularmente aceita, chamada “globalização”. O que é estranho é que tantas pes­soas aceitem facilmente esta última (porque nos habituamos a ela?) e frequentemente rejeitem a primeira, por considerá-la abstrata demais. Mas a virtude do conceito superior de Marx é que podemos ver claramente como essa abstração é criada, e como atuam as forças que ele mobiliza – como nos tornamos, como afirma Marx, vítimas das abstrações do capital. Desde o começo de O capital, aprendemos que o valor é constituído do trabalho socialmente necessário despendido no interior do “movimento do capital industrial” por intermédio da produção e da circulação. A abstração de valor (e sua representação em forma-dinheiro) torna-se uma força regulatória pela ação da mão invisível da concorrência do mercado.

Lembre-se, no entanto, de que, se o trabalho não produz um valor de uso que alguém demande, necessite ou deseje, ele não é trabalho socialmente necessário: a unidade de produção e circulação já está pressuposta na primeira seção do Livro I. O valor é, portanto, uma relação social abstrata, coletivamente produzida pelos capitais industriais individuais. Mas estes últimos têm de se submeter às leis que eles mesmos criaram coletivamente e, com isso, muitos acabam sucumbindo às mesmas revoluções de valor que eles não cessam de criar, ou são destruídos por elas. Com efeito, o que vemos são esses capitais industriais individuais cavando a própria cova. Em vez de uma força misteriosa chamada “globalização”, que parece descer do éter com tamanha força destrutiva e irresistível, temos uma teoria que internaliza a dinâmica autodestrutiva pela qual os capitalistas produzem as condições de sua própria destruição. Para aceitar essa teoria, temos apenas de reconhecer “a autonomização que o valor experimenta como capital, e que ele conserva e intensifica por meio de seu movimento”. Por que é mais difícil aceitar isso do que um termo vazio como “globalização”?”

 

 

“A narrativa que emerge da argumentação de Marx é a seguinte: todos esses elementos – dinheiro, mercadorias, compra e venda de serviços e uma dada capacidade física e técnica para a produção – preexistiam ao advento do capital. Juntos, eles constituíam as precondições necessárias para a emergência daquela relação de classe entre capital e trabalho que facilita a produção e a apropriação sistemática de mais-valor. No entanto, esse último traço é que constitui a especificidade definidora do capital. Se, portanto, queremos falar sobre “a hipótese comunista” ou uma política anticapitalista, o escopo central tem de ser a abolição dessa relação de classe na esfera da produção.”

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