Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-438-4
Tradução: Silvia
de Bernardinis
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 400
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Sinopse: Ver Parte
I
“5.
Entre trade-unionismo e populismo
O que
torna mais grave a fragmentação das lutas de classes é a laceração que ocorreu
entre luta anticapitalista na metrópole, nos países industrialmente mais
desenvolvidos, e lutas que as ex-colônias são obrigadas a travar contra o
neocolonialismo e a política das canhoneiras ou de aberta agressão atuada pelas
grandes potências, hostis à ideia de abrir mão do domínio ou da hegemonia. É
uma laceração explicitamente teorizada por um ilustre filósofo, que não poupa
ironia em relação a uma tendência por ele considerada completamente equivocada:
a luta de classes não teria mais como protagonistas “os capitalistas e o
proletariado de todos os países”, mas se desenvolveria em um quadro
internacional, contrapondo os Estados mais do que as classes sociais; dessa
forma, a marxiana “crítica do capitalismo como tal” se reduz e se deforma em
“crítica do imperialismo”, que perde de vista o essencial, isto é, as relações
capitalistas de produção[52]. Essa ironia e essa polêmica são
realmente justificadas? Elas deveriam ter como alvo, em primeiro lugar, Marx: a
atenção por ele dada à questão nacional é constante e, sobretudo, dá o que
pensar a análise segundo a qual, em um país como a Irlanda, a “questão social”
se apresenta como “questão nacional”.
Aos olhos de Žižek, no século XX o rebelde por
excelência é Mao, que, porém, como vimos, mais clara e definidamente do que
qualquer outro, afirma “a identidade entra a luta nacional e a luta de
classes”. Com certeza é o momento em que a China é obrigada a enfrentar a
tentativa de escravização levada adiante pelo imperialismo japonês (e, na
Europa, pelo imperialismo alemão contra os eslavos e em particular contra a
União Soviética). Mas a afirmação que acabamos de ver não é absolutamente uma
astúcia tática, sugerida pelo fervor patriótico. Em 1963, em relação à luta dos
afro-americanos pelos direitos civis e políticos, o líder chinês realça: “Em
última análise, a luta nacional é uma questão de luta de classes”. É um ponto
de vista reafirmado cinco anos depois: “A discriminação racial nos Estados
Unidos é produto do sistema colonialista-imperialista. A contradição entre
amplas massas do povo negro e a camarilha dirigente dos Estados Unidos é uma
contradição de classe”[53]. Com certeza, ao falar de afro-americanos
ficamos no interior de um único país, mas a conclusão seria diferente se
analisássemos a opressão sofrida não por um povo de origem colonial, mas por um
povo colonial em sentido estreito?
Para esclarecer o problema em
questão, é útil refletir sobre um capítulo de história que também suscita o
apaixonado interesse do filósofo que citei. Refiro-me à grande revolução (e à
grande luta de classes) dos escravos negros de São Domingos-Haiti. Aos olhos de
Žižek[54], ela retrocede “a uma nova forma de domínio hierárquico”
só depois da morte de Jean-Jacques Dessalines, em 1806. Pois bem,
concentremo-nos no período precedente: os escravos negros de São Domingos
insurgem não contra o capitalismo como tal, mas contra o sistema escravista,
que a metrópole capitalista destina aos povos coloniais. Isto é, desde o
início, a revolução negra apresenta um componente de libertação nacional: a
insurreição liderada por Toussaint Louverture liberta dos grilhões da escravidão
não uma classe subalterna, mas o povo negro como um todo.
O componente de libertação
nacional torna-se ainda mais explícito na segunda etapa da revolução. O
poderoso Exército enviado por Napoleão sob o comando de Charles Leclerc (seu
cunhado) propõe-se restabelecer ao mesmo tempo o domínio colonial da França e a
escravidão negra, mas ele é derrotado pelos revolucionários que se apresentam
como “Exército dos incas”, ou o “Exército indígena”, e gritam: “Maldito seja o
nome da França! Ódio eterno à França!”[55]. A independência de
facto reivindica agora também o reconhecimento de iure, e São
Domingos é rebatizada de Haiti, com o significativo recurso a um nome que
remete à época pré-colombiana. Em outras palavras, os revolucionários negros
identificam-se com as primeiras vítimas do expansionismo colonial do Ocidente,
propõem “ligar sua luta pela liberdade da escravidão com as primeiras batalhas
dos povos indígenas contra os invasores espanhóis”[56].
Em
conclusão, a revolução antiescravista é ao mesmo tempo uma revolução anticolonialista
e acaba configurando-se como uma guerra de resistência e de libertação
nacional. Seria absurdo definir como luta revolucionária de classe a primeira
etapa desse processo e deixar de atribuir validade a essa caraterização em
relação à segunda etapa; seria bastante singular considerar a insurreição para
abolir a escravidão e o domínio colonial como luta revolucionária de classe e
deixar de considerar como tal a resistência armada para impedir a restauração
de uma e do outro. Em ambas as etapas, a questão nacional desenvolve um papel
essencial e ambas são vistas favoravelmente por Žižek mesmo que ele ironize
sobre a tendência de reduzir a luta de classes anticapitalista à luta
anticolonialista e anti-imperialista.
No
século XX, ocorre algo que pode ser comparado ao que acabamos de ver em São
Domingos-Haiti e que tem seu lugar simbólico em Stalingrado, na batalha que
inflige a derrota ao projeto hitleriano de colonizar e escravizar povos
inteiros na Europa oriental. Não casualmente, os dois eventos comparados
estimulam processos ideológicos parecidos. A contrarrevolução colonialista e
escravista tentada por Napoleão adverte a necessidade de liquidar o conceito
universal de homem ínsito na leitura feita pelos escravos de São Domingos da
Proclamação dos Direitos do Homem de 1789; a Toussaint Louverture, que, como
vimos, proclamou o princípio incondicionado de que, qualquer que seja a cor da
pele, em nenhum caso um homem “pode ser propriedade de seu semelhante”[57],
parece responder Napoleão: “Sou a favor dos brancos porque sou branco; não
existe outra razão além dessa, mas essa é a boa”[58]. Ao pathos
universalista ainda mais enfatizado que ressoa na Revolução de Outubro e no
chamado aos escravos das colônias a romper seus grilhões, responde a teorização
do UnderMan/Untermensch, do “sub-homem”: trata-se de uma categoria que,
depois de ser formulada pelo autor estadunidense Lothrop Stoddard, sobretudo em
função antinegra, preside à campanha hitleriana pela colonização da Europa
oriental e pela escravização dos eslavos, como também pelo extermínio dos
judeus, etiquetados junto com os bolcheviques como ideólogos e instigadores da desgraçada
revolta das “raças inferiores”[59].
Tornou-se
uma espécie de lugar-comum comparar a invasão napoleônica da Rússia com a invasão
hitleriana da União Soviética. No entanto, seria mais pertinente comparar esta
última com a expedição contra São domingos promovida por Napoleão – em ambos os
casos, está em jogo a sorte do sistema colonial e do instituto da escravidão
(mais ou menos camuflada); em ambos os casos, trata-se de uma luta de classes
que é ao mesmo tempo uma guerra de resistência e de libertação nacional.
Devemos
entender a simultânea presença da luta nacional como um elemento de
contaminação da luta de classes? Observando cuidadosamente, trata-se de um
problema e de um debate que percorrem em profundidade a história do movimento
de inspiração socialista e comunista. Marx e Engels lamentam o fato de que os
operários ingleses se empenham para melhorar suas condições de vida e para
conquistar direitos políticos, mas não prestam atenção na independência da
Irlanda, da Polônia ou da Índia. Mais tarde, ao polemizar contra o
trade-unionismo e ao erguer o apoio aos movimentos de libertação nacional,
considerados elemento essencial da consciência revolucionária de classe, Lenin
é por sua vez acusado de abandonar o ponto de vista classista, de afundar a
causa da emancipação do proletariado numa mixórdia indiferenciada e insípida[60].
Saltemos algumas décadas. Em 1963, evocando Lenin, o Partido Comunista Chinês
reafirma: “No mundo atual, a questão nacional é uma questão de luta de
classes”; o que exige uma “clara demarcação” entre “nações oprimidas” e
imperialismo é “o ponto de vista marxista-leninista de classe”[61].
É uma polêmica contra os comunistas soviéticos, os quais por sua vez acusam os
comunistas chineses de esquecer a luta de classes do proletariado na metrópole
capitalista.
O
perigo da fragmentação das lutas de classes está sempre à espreita. Com
certeza, em 1963 era difícil assumir a atitude etiquetada no seu tempo por
Lenin como trade-unionismo e considerar as revoluções anticoloniais que eclodem
no Vietnã, na Argélia, na América Latina – e que são combatidas pelo
imperialismo recorrendo a práticas genocidas – como estranhas à luta de
classes. O atual quadro mundial parece mais favorável à retomada do
trade-unionismo. Deve ser colocada nesse contexto a posição de Žižek? Na
realidade, numa situação de crise teórica do marxismo, faz-se perceber também a
tendência a fugir do desafio implícito na leitura árdua do entrelaçamento das
contradições, a tendência que se poderia definir populista ao recuar para a
leitura binária do conflito.”
[52]
Slavoj Žižek, “Mao Tse-Tung, the Marxist Lord of Misrule”, introdução a Mao
Tse-Tung, On Practice and Contradiction (Londres, Verso, 2007), p. 2 e
5.
[53] Mao
Tse-Tung, On Diplomacy, cit., p. 379 e 439.
[54] Slavoj Žižek, Dalla
tragedia alla farsa (2009) (Florença, Ponte alle Grazie, 2010), p. 159.
[55]
Laurent Dubois, Avengers of the New World (Cambridge/Londres, The
Belknap Press of Harvard University Press, 2004), p. 299.
[56] Ibidem, p. 292; idem, Haiti. The Aftershock of History (Nova
York, Metropolitan, 2012), p. 18.
[57]
Ver, neste volume, cap. 3, seção 2.
[58] Laurent Dubois, Avengers of the New World, cit., p. 261.
[59]
Sobre a história da categoria de Under Man/Untermensch, cf. Domenico
Losurdo, Nietzsche, il ribelle aristocratico. Biografia intellettuale e bilancio
critico (Turim, Bollati Boringhieri, 2002), cap. 27, seção 7; Il
linguaggio dell’Impero. Lessico dell’ideologia americana (Roma/Bari,
Laterza, 2007), cap. 3, seção 5.
[60]
Ver, neste volume, cap. 4, seção 2.
[61]
PCC (Partido Comunista Chinês), Die Polemik über die Generallinie der
internationalen kommunistischen Bewegung (Berlim, Oberbaum, 1970), p. 238.
“Não
só decisivas lutas de classes da história contemporânea acabaram
configurando-se como lutas nacionais, como também elas foram e são travadas no
plano econômico, além do militar.
O
caso mais clamoroso é mais uma vez o da revolução dos escravos negros de São
Domingos. Ela consegue infligir uma derrota ao Exército mais poderoso da época,
o napoleônico. O país independente que surge dessa revolução, o Haiti,
desenvolve uma função revolucionária que vai além de seus confins: impulsiona
Simón Bolívar a abolir a escravidão na América Latina hispânica, ajudando-o na
luta pela independência; inspira a revolta dos escravos negros em Demerara
(atual Guiana) e na Jamaica; e estabelece relações com os abolicionistas
britânicos. O primeiro país que aboliu o instituto da escravidão apresenta-se
orgulhosamente como a terra da liberdade, e efetivamente a ele olham com
esperança os escravos de Cuba ou do Sul dos Estados Unidos.
Justamente
por isso, a luta do poder colonialista e escravista, cuja força é intata em
nível mundial e que almeja neutralizar e liquidar o exemplo potencialmente
incendiário do país governado por ex-escravos, não se esgota com a derrota do
Exército enviado por Napoleão. Só que agora a cruzada para reestabelecer a
incontestada supremacia branca recorre a novos métodos. Segundo Thomas
Jefferson, é necessário – depois de isolá-los diplomaticamente – condenar à
“inanição” os que ousaram desafiar e perturbar a ordem internacional. Ao
rejeitar o reconhecimento da independência do Haiti, a França também deixa
vislumbrar a ameaça de uma retomada da intervenção militar. Isso induz os
dirigentes do país caribenho a aceitar, em 1825, um acordo que se revela
catastrófico: em troca do reconhecimento da independência por parte do governo
de Paris, eles se empenham a indenizar os colonos expropriados e privados de
seu gado humano (os escravos negros). Haiti acaba endividando-se cada vez mais
pesadamente – em 1898, metade do orçamento estatal é empregado para pagar o
país credor e, em 1914, essa porcentagem sobe para 80%[62]. A
espiral da crescente dependência econômica anula cada vez mais a formal
independência política. Não há dúvidas: vitoriosa no plano militar, a revolução
de São Domingos-Haiti sofre uma derrota no plano econômico; o povo e o país que
haviam derrotado o Exército de Napoleão não conseguem pôr em discussão a
divisão internacional do trabalho imposta pelo sistema colonialista. As
consequências são graves, e não só pelo fato de que no interior do país pioram
as condições de vida das massas populares; no plano internacional, o colapso do
prestígio do país surgido com a revolução dos escravos negros deixa mais
tranquilo o regime de white supremacy vigente no Sul dos Estados Unidos
e, em última análise, o contexto mundial.
Uma
réplica desse acontecimento se desenvolve no século XX, em duas etapas. Vejamos
a primeira. Logo depois de outubro de 1917, Herbert Hoover, naquele momento
alto representante da administração Wilson e mais tarde presidente dos Estados
Unidos, agita de forma explícita a ameaça da “fome absoluta” e da “morte por
inanição”, não só contra a Rússia soviética, mas contra os povos propensos a se
contagiarem pela revolução bolchevique. Todos estão colocados diante de uma
rude alternativa assim sintetizada por Gramsci já num artigo no Avanti!
de 16 de dezembro de 1918: “Ou a bolsa ou a vida, ou a ordem burguesa ou a
fome”. Olhemos para a segunda etapa. Saído extenuado pelo segundo conflito
mundial, em maio de 1947, o país que até então era aliado dos Estados Unidos é
colocado, pelo plano Marshall, diante de uma alternativa assim sintetizada por
um estudioso estadunidense: se não querem renunciar aos créditos e às trocas
comerciais dos quais necessitam com urgência, “os sovietes [devem] abrir sua
economia aos investimentos ocidentais, seus mercados aos produtos ocidentais,
suas cadernetas de poupança aos administradores ocidentais”, devem “aceitar a
penetração econômica e mediática” dos países que se aprontam a constituir a
Otan[63]. É a chantagem que já conhecemos: “Ou a bolsa ou a vida, ou
a ordem burguesa ou a fome”. Com toda evidência, a luta econômica exerceu um
papel não negligenciável na derrota final sofrida na Europa oriental pela
Revolução de Outubro.
Mesmo
a Revolução Chinesa, depois de enfrentar uma intervenção militar dos Estados
Unidos, ainda que limitada, na guerra civil que se alastra no grande país
asiático, deve confrontar-se com uma ofensiva desencadeada sobretudo pela
frente econômica. Os expoentes da administração Truman são às vezes explícitos:
é necessário criar as condições para que a China “sofra a chaga” de “um padrão
de vida geral próximo ou abaixo do nível de subsistência”, do “atraso
econômico” e de um “atraso cultural”; é necessário infligir “um custo pesado e
bastante prolongado a toda a estrutura social” e criar, em última análise, “um
estado de caos”, uma “situação econômica catastrófica” que estimule o
“desastre” e o “colapso”. Sucedem-se os presidentes na Casa Branca, mas o
embargo fica e inclui remédios, tratores e fertilizantes. No início dos anos
1960, um colaborador da administração Kennedy, Walt W. Rostow, faz notar que,
através dessa política, o desenvolvimento econômico da China atrasou pelo menos
“dezenas de anos”. Se não a guerra econômica, a ameaça de guerra econômica não
cessou nem na véspera do ingresso da China na Organização Mundial do Comércio.
Ilustre cientista político estadunidense, Edwar Luttwak observou com
satisfação: “Com uma metáfora, poder-se-ia afirmar que o bloqueio das importações
chinesas é a arma nuclear que a América apontou contra a China”[64].”
[62] Laurent Dubois, Haiti. The Aftershock of History, cit., p.
7-8.
[63] S. F. Ambrose, “When the Americans Came Back to Europe”, International
Herald Tribune, 20 maio 1997, p. 10.
[64]
Sobre Bolívar e Jefferson, cf. Domenico Losurdo, Controstoria del
liberalismo (Roma/Bari, Laterza, 2005), cap. 5, seção 8; sobre a guerra
econômica contra a Rússia soviética e a República Popular Chinesa, cf. idem, Stalin.
Storia e critica di una leggenda nera (Roma/Bari, Laterza, 2005), p. 196-7
e 288-9.
“Para
conseguir uma genuína independência política, um país deve se livrar da pobreza.”
(Deng Xiaoping70)
[70] Selected
Works, cit., v. 3, p. 202.
“Contudo,
com o perigo do chauvinismo sempre à espreita, é lícito ainda falar de questão
nacional e, em determinadas circunstâncias, ligá-la e até mesmo identificá-la
com a luta de classes? Em 1916, enquanto se alastrava uma carnificina
imperialista travada em nome da “defesa da pátria”, sem hesitar, Lenin
afirmava: “Em uma guerra efetivamente nacional, as palavras ‘defesa da pátria’
não são, de modo algum, um engano, e nós não somos contrários a essa guerra”[78].
Tratava-se de uma indicação preciosa, destinada a desenvolver um papel essencial
nas lutas de resistência e de libertação nacional contra o Terceiro Reich e
contra o domínio colonial em geral. Do lado oposto, os que, por analogia à
Primeira Guerra Mundial, ridiculizavam a “defesa da pátria” e apelavam ao
derrotismo acabavam de fato fazendo o jogo do Terceiro Reich ou do Império do
Sol Nascente. É a confirmação de que substituir o fácil jogo das analogias à
árdua “análise concreta da situação concreta” é só fonte de desastres.
Por
outro lado, não existe categoria e não existe palavra de ordem que não sofra com
as contaminações das lutas políticas e sociais. Ficou talvez imaculado o termo
“democracia”? “Democrático” era o nome do partido que por longo tempo nos
Estados Unidos lutou em defesa do instituto da escravidão e depois da white supremacy.
É análogo o destino de palavras que, à primeira vista, pareceriam ser
patrimônio incontestado da esquerda: revolução, socialismo, classe operária. E
eis em 1933 a “revolução” do “Partido Nacional-Socialista dos trabalhadores
alemães” dirigido por Hitler! As afinidades linguísticas podem também denotar o
antagonismo, a luta cerrada que se desenvolve para interpretar em uma ou outra
direção as palavras de ordem que, em determinada situação histórica, se
impuseram à consciência comum ou à atenção geral.”
[78]
LO, v. 23, p. 28.
“Existe uma ofensiva político-ideológica que pretende demonizar Mao a
partir da absolutização e da descontextualização de seus anos de governo mais
infelizes. De um líder político que, morto em 1976, governou a China inteira a
partir de 1948 e áreas mais ou menos extensas do imenso país a partir de 1928,
só se consideram os anos do Grande Salto para Frente e da Revolução Cultural.
Remove-se, assim, o essencial: “as conquistas sociais da era de Mao”
consideradas num todo foram “extraordinárias”: elas implicaram a nítida melhora
das condições econômicas, sociais e culturais e uma forte elevação da
“expectativa de vida” do povo chinês. Sem esses pressupostos, não se pode
compreender o prodigioso desenvolvimento econômico que sucessivamente libertou
centenas de milhões de pessoas da fome e até mesmo da morte por inanição[94].
Em
segundo lugar, os ideólogos do Ocidente calam o fato de que o Grande Salto é
por diversos aspectos a tentativa desesperada de enfrentar um embargo
devastador. Isso vale também em parte para a Revolução Cultural, ela mesma
caraterizada pela ilusão de promover um rapidíssimo desenvolvimento econômico
chamando à mobilização de massa e aos métodos adotados com sucesso na luta
militar. Tudo isso sempre na esperança de pôr fim de vez às devastações da
“guerra econômica”, atrás da qual se vislumbra a ameaça de uma guerra ainda
maior. Em virtude dessas duas distorções, os corresponsáveis por uma tragédia,
ou talvez seus principais responsáveis, assumem a atitude de juízes e emitem a
sentença: Mao, o protagonista de uma épica luta de libertação nacional que
derrota o projeto colonialista e escravista posto em marcha pelos imitadores
asiáticos do Terceiro Reich, é colocado no mesmo plano de Hitler! É uma
operação que visa a minar a autoestima tanto dos membros do Partido Comunista
como dos cidadãos da República Popular Chinesa, no contexto de uma cruzada que
deseja impor também em Pequim o poder da grande riqueza para liquidar uma
anomalia considerada intolerável. É a combinação de pressão econômica e pressão
político-ideológica que constitui a principal luta de classes que se desenvolve
na China e em torno dela.
Para
perceber esse fato é suficiente uma consideração elementar: o grande
desenvolvimento industrial e tecnológico e a saída da “miséria” de “mais de 600
milhões de pessoas”[95], ou (segundo outros
cálculos) de “660 milhões de pessoas”[96], não
teriam sido possíveis se o projeto de regime change cultivado pelos
Estados Unidos não tivesse sido derrotado; e o eventual sucesso desse projeto
travaria agora o caminho aos ulteriores passos que se impõem no caminho da luta
contra as duas desigualdades e, além disso, colocaria em perigo os resultados
já conseguidos.
Certamente,
não se pode ignorar a burguesia interna, em rápido crescimento, contra a qual,
muitas vezes, entram em conflito os trabalhadores em luta por salários mais
altos e melhores condições de trabalho e de vida, que conseguiram e estão
conseguindo importantes resultados. Mas essas lutas não visam a derrubar ou pôr
em discussão o poder político, aliás, muitas vezes, solicitam seu apoio a fim
de vergar a arrogância e a resistência deste ou daquele patrão, deste ou
daquele chefe local.
É uma
atitude que muitas vezes surpreende o marxista ocidental. Ele chama os
operários chineses a rejeitar todo compromisso com o poder estatal em sua luta
sindical e acredita, assim, ser radical e até mesmo revolucionário. Na
realidade, ele lembra o operário belga, Lazareviċ, que na Rússia soviética
devastada pela guerra mundial e pela guerra civil estava pronto para denunciar
como sinônimo de exploração toda tentativa do poder soviético de reorganizar o
aparato industrial e econômico[97]. Obviamente a
situação da China é bastante diferente. Contudo, os operários chineses – que
muitas vezes são filiados ao Partido Comunista e que nessa qualidade
preocupam-se, além de receber um salário mais alto, também em promover o
desenvolvimento tecnológico das empresas nas quais trabalham e da nação da qual
são membros – talvez tenham aprendido algo, de modo direto ou indireto, com o Que
fazer?. Do corporativo “secretário de uma qualquer trade-union”, Lenin
critica o fato de ele perder de vista a luta de emancipação em seus diversos
aspectos nacionais e internacionais, tornando-se assim às vezes suporte de “uma
nação que explora todo o mundo” (naquela época, a Inglaterra). Bastante
diferente é a atitude do revolucionário “tribuno popular”, que deve saber olhar
para o conjunto das relações políticas e sociais em âmbito nacional e
internacional. O operário chinês, ainda que vagamente consciente do fato de que
o desenvolvimento tecnológico de seu país torna mais difícil a “anexação
econômica” (Lenin), isto é, a “agressão econômica” e o “jugo econômico” (Che
Guevara) impostos pelo imperialismo aos países rebeldes, é muito mais próximo
do “tribuno popular” (protagonista da luta de classes revolucionária) do que o
marxista ocidental, preocupado só com o salário. Diversamente de seu suposto
defensor, aquele operário, de alguma maneira, intui o fato de que os principais
antagonistas da luta de classes na China e arredores são, de um lado, a
burguesia estadunidense e ocidental e, do outro, um estrato político
revolucionário que se autonomizou, mas que, diversamente do que ocorreu na
Europa oriental, continua a desfrutar de grande prestígio pelo fato de encarnar
com coerência a causa da emancipação nacional.
Ninguém
pode prever qual será o resultado dessa luta. Não podem prevê-lo os
capitalistas chineses, obrigados a confrontar-se com a política descrita então
por Mao como total “expropriação política”, mas só parcial “expropriação
econômica” da burguesia. A expropriação política de que se fala não é só a
impossibilidade de transformar o poder econômico em poder político. Na
realidade, é o próprio poder econômico da burguesia que sofre fortes
condicionamentos políticos. É suficiente entrar numa empresa chinesa de
propriedade privada para perceber o peso que mesmo em seu interior exercem o
Partido Comunista e os trabalhadores comunistas organizados: eles estimulam a
propriedade a reinvestir uma parte consistente dos lucros no desenvolvimento
tecnológico da empresa, de modo a acelerar o desenvolvimento das forças
produtivas e a modernização do país e a reduzir ou apagar o primeiro tipo de
desigualdade; ou a propriedade é estimulada a usar uma parte dos lucros para
intervenções de caráter social. Se ademais considerarmos o fato de que as
empresas privadas dependem amplamente do crédito fornecido por um sistema
bancário controlado pelo Estado, uma conclusão emerge: nas próprias empresas
privadas o poder da propriedade privada é balançado e limitado por uma espécie
de contrapoder. Os capitalistas chineses que não se adaptam a essa situação
abandonam o país, mas têm dificuldade para transferir sua riqueza.
O
resultado da luta em curso não pode ser previsto nem pelo Partido Comunista.
Ele é consciente da necessidade de avançar na via da democratização, apesar da
persistência e, por certos aspectos, do agravamento do cerco e da ameaça
militar. Mas, apesar da imprecisão de seus traços, a democracia perseguida por
Pequim não é aquela invocada pelo Ocidente, que por democracia entende, em
última análise, a possibilidade para a burguesia chinesa de transformar
finalmente o poder econômico em poder político. Por outro lado, é necessário
considerar que no interior do Partido Comunista Chinês parecem enfrentar-se uma
corrente puramente nacional, que considera concluído o processo revolucionário
com a conquista dos objetivos nacionais (modernização, recuperação da
integridade territorial e renascimento da China), e uma corrente com objetivos
muito mais ambiciosos, que remetem à história e ao patrimônio ideal do
movimento comunista.
Existe,
de qualquer forma, uma questão que não pode ser posta em discussão. Com seu
desenvolvimento – que continua sendo amplamente dirigido pelo poder político e
que ainda hoje busca subordinar aos fins gerais a habitual caça ao lucro dos
setores privados da economia –, a China é o país que mais do que qualquer outro
põe em discussão a divisão internacional do trabalho imposta pelo colonialismo
e pelo imperialismo e que promove o fim da época colombiana, um fato de alcance
histórico enorme e progressivo.”
[94] Giovanni Arrighi, Adam
Smith a Pechino. Genealogie del XXI secolo, cit., p. 406-7.
[95] Andrea Goldstein, BRIC.
Brasile, Russia, India e Cina ala guida dell’economia globale (Bolonha, Il
Mulino, 2011), p. 31.
[96] S.
Roach, “Transforming Economic Structure Risky but Vital Task of Nation’s
Future”, Global Times, 15 nov. 2012.
[97] Ver, neste volume,
cap. 7, seção 1.
“Na
realidade, observamos que Marx configurou a luta de classes como luta pelo
reconhecimento, conduzida contra um sistema político-social que desumaniza e
reifica uma massa infinita de indivíduos concretos, e denunciou a produção
capitalista como “dilapidadora de homens”, responsável por um
“‘desperdício’ de vida humana, digno de Timur-Tamerlão”, ou melhor, por
um “ininterrupto rito sacrifical contra a classe operária”[29].
Desde que existe o capitalismo, “todos os métodos para aumentar a força
produtiva social do trabalho aplicam-se à custa do trabalhador individual;
todos os meios para o desenvolvimento da produção se convertem em meios de
dominação e exploração do produtor” mais uma vez individual[30].
O que foge a Weil é o fato de que, em consequência da unidade entre homem e
natureza e do papel decisivo desenvolvido pelo conhecimento no desenvolvimento
das forças produtivas, a dilapidação e o desperdício de vidas humanas são ao
mesmo tempo a dilapidação e o desperdício de riqueza material. Destruição
capitalista das forças produtivas e destruição capitalista dos recursos humanos
estão estritamente entrelaçadas, aliás, tornam-se uma única coisa. “A maior
força produtiva” é o proletariado, a “própria classe revolucionária”[31]; obrigar os operários a uma morte precoce em
consequência da sobrecarga de trabalho e de uma vida de pobreza significa
também desgastar a riqueza social. Para dispor de “material humano sempre
pronto para ser explorado”, o capitalismo condena “uma parte da classe operária
a um ócio forçado”. É o exército industrial de reserva que, com sua
concorrência, permite forçar a parte ocupada da classe operária a uma
sobrecarga de trabalho[32]. E, mais uma vez,
por um lado tanto o “ócio forçado” como a sobrecarga de trabalho comportam a
humilhação e a degradação dos indivíduos concretos, dos homens de carne e osso,
por outro lado constituem uma dissipação e uma destruição de recursos
materiais. Trata-se de um processo que se manifesta em escala ainda mais ampla
em ocasião das recorrentes crises de superprodução.”
[29] Ver, neste volume,
cap. 3, seção 3 e cap. 1, seção 12.
[30] MEW, v. 23, p. 674 [ed.
bras.: Karl Marx, O capital, Livro I, cit., p. 720].
[31] Ibidem, v. 4, p.
181.
[32] Ibidem, v. 23, p.
661 e 665 [ed. bras.: ibidem, p. 707].
“9.
Para além do populismo
Quando
observamos estudiosos que são leitores e prestigiosos intérpretes de Marx e
Engels deslizarem no populismo, somos obrigados a colocar-nos uma pergunta: os
dois autores do Manifesto
Comunista são em absoluto estranhos ao modo de ver e de sentir aqui
criticado? Em relação à primeira forma do populismo, não há dúvidas: a Marx se
deve a crítica mais pungente da nostalgia por uma mítica “plenitude original”.
Se analisarmos a segunda forma de populismo, chegamos a conclusões mais
articuladas. Nesse caso, é necessário distinguir entre as diferentes variáveis
do populismo de transfiguração dos oprimidos. Comecemos pela segunda: mesmo
denunciando o martírio infligido ao povo irlandês pelo colonialismo britânico,
bem longe de abandonar-se à celebração de uma essencialista alma “irlandesa”,
os dois filósofos e militantes revolucionários realçam ao mesmo tempo o papel
reacionário e antiabolicionista desenvolvido nos Estados Unidos, em ocasião da
Guerra de Secessão, pelos migrantes de origem irlandesa.
Análogas
considerações podem ser feitas em relação à terceira variável que pode assumir
o populismo de transfiguração dos oprimidos. Denunciando a condição da mulher
como “primeira opressão de classe”, não há dúvidas de que Marx e Engels deram
forte impulso ao movimento feminista. O Manifesto
Comunista condena fortemente não só a opressão, como também o processo
de reificação que pesa sobre a mulher; ao mesmo tempo, porém, o texto não tem
dificuldade em falar de “a exploração das crianças pelos seus próprios pais”,
sem excluir a mãe[82]. Não existe lugar para o essencialismo: assim
como para os povos oprimidos, para as mulheres também não faz sentido explicar
sua condição remetendo a uma presumida natureza longamente vilipendiada, mas da
qual agora, invertendo o tradicional juízo de valor, é necessário reconhecer e
celebrar a superioridade moral. Trata-se de analisar e de pôr em discussão uma
divisão do trabalho historicamente determinada que envolva respectivamente a
submissão colonial ou semicolonial e a escravidão ou a segregação doméstica.
Convém
fazer mais algumas observações em relação à primeira variação do populismo de
transfiguração dos oprimidos, a variável orientada a transfigurar as classes
subalternas. Em seus escritos juvenis, contrapondo-se aos que tocam o alarme
para a nova invasão dos bárbaros, Marx e Engels tendem a atribuir ao
proletariado a capacidade de adquirir facilmente uma consciência revolucionária
madura, uma espécie de imunidade dos “preconceitos nacionais”, da tacanhez de
espírito e do ódio chauvinista, além de uma nobreza de espírito completamente
ausente nas classes proprietárias. Todavia, desde o início prevalece
marcadamente a atenção reservada à concreta análise histórica e social: fala-se
de “nobreza de espírito” mesmo para a nobreza polonesa, que sacrifica seus
interesses de classe ou de estrato por causa da libertação nacional; assim como
do lado oposto não se esconde a depravação do lumpemproletariado, de uma classe
na qual o sistema capitalista ameaça continuamente impelir indivíduos e camadas
da classe operária.
Pelo
contrário, pode-se colher um resíduo de populismo na visão segundo a qual, na
sociedade comunista, o Estado seria destinado a extinguir-se. Já realcei o
caráter completamente irrealista dessa espera. Pode-se agora acrescentar uma
ulterior consideração: não se compreende por que a absorção do Estado na
sociedade civil deveria constituir um progresso. Historicamente, medidas entre
si tão diferentes, como a introdução da escolaridade obrigatória no Ocidente, a
proibição do sati (o suicídio “voluntário” das viúvas) na Índia, o fim da
segregação das escolas no Sul dos Estados Unidos, foram todas resultado de uma
imposição do Estado sobre a sociedade civil. Hoje, em certos países islâmicos a
emancipação das mulheres é mais fácil de ser promovida pelo Estado do que pela
sociedade civil. É verdade que, quando Marx e Engels auspiciam a absorção do
Estado na sociedade civil, pensam numa sociedade civil liberada do antagonismo
de classe. Contudo, no discurso deles está presente certa idealização da
sociedade civil (pensada em contraposição ao poder) e, nesse sentido, um
resíduo de populismo.
É
esse resíduo de populismo que explica os deslizamentos na leitura binária do
conflito, na qual às vezes caem os dois filósofos e militantes revolucionários.
Sim, quando analisam um acontecimento histórico concreto (por exemplo, a luta
pela redução da carga horária de trabalho ou a Guerra de Secessão), Marx e
Engels repetidamente chamam atenção para as múltiplas contradições e para o
papel às vezes progressivo desenvolvido pelo Estado e até mesmo pelo Estado
burguês. Isto é, estamos nos antípodas do populismo. Todavia, em ocasião da
Comuna de Paris, Marx vê a contraposição entre “contraorganização internacional
do trabalho” e “conspiração cosmopolita do capital”. Sobretudo, o Manifesto
reduz “em breve” a luta de classes à luta entre “opressores e oprimidos”. Se
tomarmos essa fórmula agitadora ao pé da letra, é claro que não estamos muito
distantes da visão (populista) tão cara a Weil da história como “luta dos que
obedecem contra os que comandam”. Na realidade, considerando o pano de fundo e
a elaboração mais geral de Marx e Engels, persuade mais uma interpretação
diferente. Podemos com certeza dizer que as épicas lutas de classes
desenvolvidas em Valmy, Porto Príncipe, Paris (em junho de 1848), Gettysburg e
Stalingrado viram a contraposição de oprimidos e opressores. Mas isso é
verdadeiro só em última análise; ou seja, levando em conta a absoluta
centralidade e urgência daquilo que, cada vez, está em jogo (os destinos
respetivamente do Antigo Regime, da escravidão negra nos Estados Unidos, da
nova escravidão colonial que o Terceiro Reich estava decidido a impor contra os
eslavos), todas as outras contradições, todas as outras relações de coerção
tornavam-se (naquele determinado momento histórico) absolutamente secundárias.”
[82]
MEW, v. 4, p. 478 [ed. bras.: Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto
Comunista, cit., p. 55].