domingo, 17 de janeiro de 2021

Os limites do capital (Parte III), de David Harvey

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-358-5

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 592

Sinopse: Ver Parte I


“A luta em relação a quem deve suportar o ônus da carga da desvalorização, da depreciação e da destruição do capital provavelmente será amarga e intensa. O rompimento dos vínculos fraternais dentro da classe capitalista tem suas reverberações com respeito às parcelas distributivas quando os proprietários de terra, os financistas, os capitalistas industriais e mercantis, e os interesses do Estado competem para preservar suas respectivas parcelas de mais-valor. Mas o que acontece aqui não é simplesmente um reflexo do poder faccional. A existência do capital excedente na forma de dinheiro – que, lembre-se, é “a forma mais adequada de capital” – significa que, invariavelmente, “o interesse do capital monetário é se enriquecer à custa do capital industrial durante a crise”[30]. A própria estrutura e a maneira com que as crises ocorrem ditam alguns efeitos distributivos distintos.

E o mesmo acontece na relação entre o capital e o trabalho. Tirando os trabalhadores do trabalho, os capitalistas na verdade descartam o capital variável e, desse modo, transformam o problema endêmico da crise para o exército industrial de reserva em uma condição de desajuste crônico e colapso social. Os trabalhadores suficientemente afortunados para preservar seus empregos quase certamente sofrerão uma diminuição nos salários que recebem, o que significa pelo menos uma depreciação temporária no valor da força de trabalho que pode, nas circunstâncias certas, ser traduzida em uma redução permanente nesse valor. A competição entre os trabalhos será exacerbada, assim como o antagonismo geral entre o trabalho e o capital.

Entretanto, as perdas são distribuídas e, qualquer que seja a luta de poder que as acompanhe, a exigência geral para retornar o sistema a algum tipo de ponto de equilíbrio é a destruição do valor de certa porção do capital em circulação de modo a equilibrar o capital circulante total com a capacidade potencial para produzir e realizar mais-valor nas relações de produção capitalistas. Uma vez realizada a necessária desvalorização, a superacumulação é eliminada e a acumulação pode renovar o seu curso, com frequência em uma nova base social e tecnológica. E assim o ciclo vai percorrer mais uma vez o seu destino[31].

[30] Karl Marx, Theories of Surplus Value, cit., parte 2, p. 496.

[31] Idem, Capital, Livro III, cit., p. 255.

 

 

“Uma mercadoria, podemos recordar, é uma coisa material que incorpora tanto um valor de uso quanto um valor de troca. Essa dualidade é a fonte da qual fluem todas as contradições dentro da forma do dinheiro. Considere como essa dualidade de valor de uso e de valor de troca é expressa na troca. A forma relativa do valor surge porque o valor de troca de uma mercadoria não pode ser medido em seus próprios termos, devendo sempre ser expresso em outros termos (a ideia de que 20 metros de linho = 20 metros de linho não nos diz nada, mas 20 metros de linho = 1 casaco nos diz muito). A troca de duas mercadorias também pressupõe uma relação de equivalência entre elas e indica a existência de uma forma equivalente de valor que Marx atribui ao tempo de trabalho socialmente necessário ou ao próprio valor. Essa forma equivalente de valor tem de encontrar um material representativo “concebível” para a troca dos valores de uso se tornar geral. A proliferação da troca garante que uma mercadoria se torne o equivalente universal, a encarnação socialmente reconhecida do trabalho humano no abstrato. Essa mercadoria é chamada de mercadoria-dinheiro. Os valores relativos de todas as outras mercadorias podem então ser representados pelos preços, as taxas de acordo com as quais eles trocam essa mercadoria-dinheiro. Mas podemos imediatamente localizar uma contradição – o trabalho, no sentido abstrato, está sendo representado por uma mercadoria produzida em condições específicas de trabalho humano concreto. Essa contradição sempre estará conosco no que se segue, embora, como veremos, ela usualmente assuma formas mais mistificadas.

A mercadoria-dinheiro, como qualquer outra mercadoria, tem um valor, um valor de uso e um valor de troca. Seu valor é fixado pelo tempo de trabalho socialmente necessário nela incorporado (embora mediante o trabalho concreto). Como o equivalente universal, o dinheiro funciona como uma medida de valores e proporciona um padrão de preço contra o qual o valor de todas as outras mercadorias pode ser avaliado. Mas a realização desses preços depende de um processo de troca e, por isso, envolve valores de troca. A intervenção da troca converte uma relação necessária entre as proporções de valor em “relação de troca entre uma mercadoria e a mercadoria-dinheiro existente fora dela”. Como resultado, os preços do mercado se desviam dos valores. “Isso não é nenhum defeito dessa forma”, insiste Marx, porque o “desregramento” da produção e da troca de mercadorias, as eternas oscilações entre a demanda e a oferta, possivelmente não podem ser equilibradas exceto permitindo que os preços flutuem em torno dos valores[4].

O valor de uso da mercadoria-dinheiro é o fato de ele facilitar a circulação das mercadorias. Por isso, funciona como um meio de circulação. O valor da mercadoria-dinheiro é, nesse caso, fixado como um reflexo das trocas que ela ajuda a produzir – “basta ler de trás para frente as cotações numa lista de preços para encontrar a grandeza de valor do dinheiro, expressa em todas as mercadorias possíveis”[5]. Desse ponto de vista, o dinheiro assume a forma relativa de valor. O antagonismo entre as formas relativa e equivalente de valor é preservado dentro da própria forma do dinheiro porque a mercadoria-dinheiro agora incorpora duas medidas de valor: o tempo de trabalho socialmente necessário que ela incorpora, e o tempo de trabalho socialmente necessário pelo qual ela pode, em média, ser trocada. É claro que em um mundo perfeito as duas representações de valor devem coincidir. Mas o “desregramento” da produção e da troca de mercadorias sempre impossibilita o alcance dessa perfeição.”

[4] Karl Marx, O capital, Livro I, cit., p. 176-7.

[5] Ibidem, p. 170.

 

 

O dinheiro creditício é, em outros aspectos, um tanto peculiar. Não importa a que distância uma letra de câmbio privadamente negociada possa circular, ela deve sempre voltar ao seu local de origem para ser resgatada. As outras formas de dinheiro não circulam dessa maneira. Uma barra de ouro pode passar de mão e mão e sempre permanece em circulação, sem jamais retornar ao seu ponto de origem. Essas formas de dinheiro são sociais desde os seus primórdios, apesar de utilizadas para o uso privado. O dinheiro creditício, em contraste, é o dinheiro privadamente criado que pode servir a um propósito social quando colocado em circulação. Quando a dívida original é saldada, no entanto, o dinheiro creditício desaparece da circulação. O dinheiro creditício está sendo perpetuamente criado e destruído através das atividades de indivíduos privados. Essa é uma concepção de vital importância. Por um lado, ela depende da capacidade dos indivíduos privados e de instituições (como bancos) para ajustar instantaneamente a quantidade de dinheiro ao volume das transações de mercadorias – o dinheiro creditício (diferentemente do ouro) pode ser expandido e contraído à vontade. Por outro lado, aqueles que emitem o crédito devem estar sujeitos a alguma disciplina, e a qualidade do dinheiro creditício deve ser garantida para que este último circule com segurança.

No primeiro momento, o dinheiro creditício está vinculado a um conjunto particular de transações de mercadorias empregadas por indivíduos particulares. Se as transações de mercadoria não forem completadas ao preço acordado, ou se os indivíduos falharem, a “destruição” do dinheiro creditício assume uma feição mais sinistra. O dinheiro creditício é diretamente “desvalorizado” ou “depreciado” porque a dívida não pode ser paga. O dinheiro creditício não pode ser convertido em outras formas de dinheiro (exceto, talvez, com um grande desconto por alguém disposto a correr o risco de comprar o que pode ser uma letra de câmbio sem valor). A destruição “normal” do dinheiro creditício é aqui expressa como uma anormalidade, característica das crises comerciais e monetárias. Entretanto, a “desvalorização” do dinheiro creditício é uma questão privada que pode ter consequências sociais. A “desvalorização” dos papéis-moedas emitidos pelo Estado (mediante mudanças na convertibilidade ou simplesmente acompanhando as impressões de prorrogação) é uma questão fundamentalmente social (com consequências privadas e redistributivas distintas).”

 

 

“Em virtude do seu controle sobre os meios de produção, os capitalistas também podem apropriar o poder social inerente ao dinheiro e colocá-lo para trabalhar como capital monetário, e assim produzir mais-valor mediante a produção. A lógica da circulação geral do capital os obriga a criar novos instrumentos financeiros e um sistema de crédito sofisticado que impulsiona o dinheiro e o capital que rende juros para um papel proeminente em relação à acumulação. Mas o poder coercivo da competição obriga os capitalistas, como agentes econômicos individuais, a abusar desse sistema e desse modo corroer o poder social do próprio dinheiro: a moeda pode ser desvalorizada, ocorre inflação crônica, crises monetárias são criadas etc. Constata-se que o seu uso do dinheiro como um meio de circulação através da ação do sistema de crédito solapa a utilidade do dinheiro como uma medida e uma reserva de valor. Então devem ser tomadas medidas para preservar a qualidade do dinheiro. Tornam-se necessários controles monetários rígidos e severos. Esses controles surgem no decorrer de uma crise quando os capitalistas se apressam em segurar a mercadoria-dinheiro (o ouro, por exemplo) como a única representação legítima do valor, ou então são impostos como parte de uma política consciente por parte de uma autoridade monetária poderosa que opera como um braço do Estado. Nas últimas circunstâncias, a política da estratégia monetária, como é seguida pelo Estado, torna-se crucial para o entendimento da dinâmica da acumulação do capital[29]. Entretanto, sejam quais forem as circunstâncias, a tendência para o excesso no reino das finanças é fundamentalmente assinalada por um retorno às eternas verdades da base monetária.”

[29] Ver Suzanne De Brunhoff, Marx on Money, cit., para uma discussão das relações entre o Estado, as finanças e a acumulação.

 

 

“Marx se concentrou no papel dos bancos em vez de em outros tipos de intermediários financeiros precisamente porque eles combinavam tanto funções monetárias quanto funções financeiras. Como conclui corretamente De Brunhoff, “o sistema bancário é o setor estratégico do sistema de crédito” porque os bancos são “as únicas instituições que combinam tanto o manejo dos meios de pagamento quanto o capital monetário”[82]. Esses dois papéis gerenciais complementam primorosamente um ao outro, ao passo que o progresso da acumulação requer a criação de valores fictícios na forma de dinheiro antes de qualquer produção real. Mas já observamos (ver p. 330-3) que a capacidade dos bancos de criar dinheiros de crédito sem restrição cria uma eterna ameaça à qualidade do dinheiro como uma medida de valor. Essa ameaça é duplicada e triplicada quando a criação dos valores fictícios se torna uma necessidade, em vez de apenas uma tentação constante.

A potencialidade para a superespeculação em tais circunstâncias é enorme. Os valores fictícios (dinheiros de crédito) são lançados em circulação como capital e convertidos em formas fictícias de capital. Como resultado, “a maior parte do capital do banqueiro é puramente fictícia e consiste de obrigações (letras de câmbio), títulos do governo (que representam o capital gasto) e ações (saques sobre receita futura)”[83]. Marx passa páginas citando com júbilo exemplos de como a “altura da distorção” ocorre dentro do setor bancário do sistema de crédito. A gravidade da ameaça à qualidade do dinheiro é óbvia.

A resposta, como vimos na seção 1, é criar uma hierarquia de instituições com o propósito expresso de proteger a qualidade do dinheiro. Dentro de qualquer país, um banco central tipicamente se coloca no ápice dessa hierarquia (nós no momento deixamos de lado os aspectos internacionais do problema). Se o banco central for bem-sucedido em sua tarefa, ele deve impedir que os valores fictícios saiam muito do limite dos valores reais da mercadoria. Ele não pode impor uma identidade rígida – mesmo supondo que tivesse o poder para fazê-lo – porque isso negaria a produção de capital monetário livre para impor novas formas de acumulação. Também não pode deixar que a criação de dinheiros de crédito corra solta. Aí está o que até mesmo os economistas burgueses admitem que seja a “arte”, mais que a “ciência”, do banco central[84].

Entretanto, o resultado é que “o banco central é o eixo do sistema de crédito” e “a reserva de metal, por sua vez, é o eixo do banco”[85]. Despojado do seu vínculo direto com uma mercadoria-dinheiro indicada pela expressão “reserva de metal”, isso significa que o banco central necessariamente regula o fluxo de crédito procurando preservar a qualidade do dinheiro. Então, existe uma tensão entre a necessidade de manter a acumulação por meio da criação de crédito e a necessidade de preservar a qualidade do dinheiro. Se a primeira for inibida, terminamos com uma superacumulação de mercadorias e uma desvalorização específica. Se for permitido que a qualidade do dinheiro se destrua, generalizamos a desvalorização mediante uma inflação crônica. Assim são apresentados impecavelmente os dilemas dos tempos modernos.

Os sistemas monetário e financeiro estão unidos dentro do sistema bancário e, dentro do Estado-nação, o banco central se torna o supremo poder regulatório. Na verdade, o que ocorre é o seguinte: o sistema de crédito proporciona um meio para disciplinar os capitalistas individuais e até facções inteiras do capital para as exigências de classe. Mas alguém tem de regular os reguladores. O banco central se esforça para desempenhar essa função. Entretanto, na medida em que esses poderes reguladores estão nas mãos de uma facção específica do capital, eles são quase obrigados a ser pervertidos e destruídos. Isso nos leva diretamente a toda a questão do envolvimento do Estado nas questões monetárias e financeiras.

[82] Suzanne De Brunhoff, The State, Capital and Economic Policy, cit., p. 78.

[83] Karl Marx, Capital, Livro III, cit., p. 469.

[84] Ver Jürg Niehans, The Theory of Money, cit., cap. 12.

[85] Karl Marx, Capital, Livro III, cit., p. 572.

 

 

A luta de classes muda de maneira dramática com a inflação. Os cortes salariais são difíceis de serem impostos diretamente e, caracteristicamente, provocam uma reação direta e concreta por parte da classe trabalhadora. Com a inflação generalizada, os empregadores podem conceder aumentos aos salários monetários nominais e, desse modo, reduzir a intensidade da oposição direta do trabalhador. O que acontece com os salários reais depende inteiramente da taxa de inflação, que os capitalistas individuais podem declarar não ser de sua responsabilidade pessoal. A desvalorização da força de trabalho é então atingida por meio da inflação. Se essa estratégia for bem-sucedida, ela vai permitir que os problemas da superacumulação sejam enfrentados mediante uma taxa de exploração crescente atingida através de uma diminuição dos salários reais. Os mecanismos do ajuste salarial que Marx descreve na “lei geral da acumulação capitalista” (ver capítulo 6) são fundamentalmente alterados. Pode até ser possível administrar os ajustes salariais por meio da inflação, sem a ajuda de um exército industrial de reserva maciço. A importância da chamada “Curva de Phillips” – que descrevia uma permuta entre a inflação e o desemprego – era o fato de ela parecer oferecer aos formuladores de políticas um alvo imediato para a política fiscal e monetária[58].

A luta com relação ao salário nominal é, como resultado, gradualmente convertida em uma luta com relação ao salário real. Os trabalhadores então se veem lutando em duas frentes. Eles buscam cláusulas rígidas do custo de vida nos contratos salariais para impedir que os custos da desvalorização lhes sejam impostos via inflação. Daí deriva uma teoria da inflação impulsionada pelo salário, que responsabiliza os sindicatos insaciáveis pela elevação dos preços. Essa teoria é correta, no contexto teórico que estamos aqui considerando, apenas no sentido de que os trabalhadores impedem que a superacumulação seja curada mediante uma desvalorização maciça da força de trabalho devida à inflação. Mas os trabalhadores também têm de enfrentar as políticas fiscais e monetárias que permitem, em primeiro lugar, que a desvalorização seja transformada em inflação. A atenção da luta de classes pode se deslocar da confrontação direta entre o capital e o trabalho para a confrontação entre os trabalhadores e o Estado. Este último torna-se um escudo de proteção para os interesses da classe capitalista. Pode até parecer, com uma ajuda não tão sutil da propaganda burguesa, que a inflação tem suas origens no governo ineficiente e ineficaz, em políticas fiscais e monetárias equivocadas. Essa atribuição é correta com respeito à causa imediata. O que ela ignora é a estrutura fundamental das relações de classe que geram, antes de qualquer coisa, crises de superacumulação e desvalorização.

A conversão da desvalorização em inflação parece ter efeitos tanto positivos quanto negativos do ponto de vista do capital. Por um lado, ela pode facilitar a pressão de formas diretas de conflito com relação aos salários e até reduzir o tamanho do exército industrial de reserva necessário para equilibrar a taxa salarial. Também socializa os custos da desvalorização para todas as classes por trás do escudo da política fiscal e monetária realizada pelo Estado. Por outro lado, ela estimula a formação de alianças de classe direcionadas para assumir o poder estatal. A inflação neutraliza o conflito ampliando-o e reconcentrando-o no Estado.

Mas a inflação não pode curar a tendência de superacumulação. Ela até exacerba o problema, atenuando e adiando os impactos. As políticas estatais permitem que uma enorme pressão inflacionária seja exercida, a ponto de se tornar potencialmente explosiva. O peso morto do capital fictício improdutivo é cada vez mais sentido, a posição cambial do banco central progressivamente se enfraquece (provocando a desvalorização da moeda nacional em relação ao dinheiro mundial) e as estruturas de preço tornam-se tão instáveis que perdem sua coerência como um poder coordenador. A racionalização da produção, que é a única solução para a superacumulação, não pode ser adequadamente acionada. Em resumo, o problema da superacumulação não pode ser eliminado pela socialização da desvalorização por meio da inflação.

Nessa visão, é interessante examinar a série de curas propostas para a inflação, as quais apelam para algum tipo de mudança básica no envolvimento do Estado.

Em primeiro lugar, o Estado pode reconstituir uma base monetária rígida para a economia. Embora essa necessidade não esteja ligada a uma mercadoria monetária, ela implica políticas monetárias muito restritivas (que forçam a elevação das taxas de juros), intervendo na estimulação da demanda efetiva por parte do governo e permitindo que as forças brutas do mercado que desvalorizam as mercadorias e a força de trabalho tomem conta da situação. Uma depressão convencional, administrada pelo Estado, realiza o seu trabalho de reestruturação do aparato produtivo, de eliminação dos capitais fictícios excessivos, de disciplina da mão de obra e assim por diante.

Em segundo lugar, o Estado pode ou impor controles salariais e dos preços ou buscar amainar a inflação mediante algum tipo de política de rendas, um “contrato social” com o trabalhador (que em geral significa algum tipo de desvalorização negociada da força de trabalho) e uma estratégia de investimento para a indústria. As intervenções desse tipo, para terem chances de funcionar, devem ser acompanhadas de restrição monetária e fiscal. Os monetaristas argumentam que políticas como esta apenas distorcem os sinais de preço e, assim, destroem qualquer base apropriada para a retomada da acumulação. A teoria marxiana concorda com esse julgamento, exceto na improvável circunstância de que a estrutura de preço seja imperativa e que as estratégias de investimento criadas estabilizem a composição de valor do capital. Isso envolveria uma desvalorização paulatina e organizada do capital e da força de trabalho através da ação das políticas estatais.

Em terceiro lugar, o Estado, unido ao capital, pode procurar acelerar o desenvolvimento das forças produtivas e, desse modo, esperar baixar os preços para compensar a onda inflacionária. Às vezes argumenta-se que o fracasso em aumentar a produtividade está na raiz da inflação. A teoria que adotamos aqui indica que, antes de tudo, é o desenvolvimento descontrolado e desequilibrado das forças produtivas no contexto das relações de classe do capitalismo que provoca a superacumulação. Na medida em que a inflação é uma transformação da desvalorização, ela não pode ser sanada por um programa indiscriminado de aumento da produtividade. O Estado pode tentar mudar a combinação tecnológica (fusões compulsórias, incentivos de impostos especiais para alguns setores, patrocínios à pesquisa e ao desenvolvimento). Mas, para sanar o problema da superacumulação, ele não pode escapar de investigar os custos da desvalorização para alguns segmentos do capital e do trabalho. E soluções desse tipo, na medida em que envolvem a administração direta ou indireta do aparato produtivo por parte do Estado, embora não sejam socialistas, também dificilmente pressagiam um bom futuro para o capitalismo.

Ainda que seja verdade que a desvalorização das mercadorias (incluindo a força do trabalho) possa ser evitada pela inflação no curto prazo, é igualmente verdade que seus problemas não podem ser sanados sem a desvalorização das mercadorias. A teoria marxiana nos diz que, em resposta à superacumulação, o capital pode desvalorizar o dinheiro ou as mercadorias (ou alguma combinação de ambos). Mas só a desvalorização das mercadorias, incluindo a força de trabalho, pode forçar a reestruturação que vai permitir a retomada da acumulação equilibrada.

Talvez não haja melhor testemunho para a irracionalidade básica e fundamental do capitalismo do que aquele de que as escolhas econômicas existentes dentro dos confins de suas relações de classe dominantes são de uma variedade muito restrita e deplorável. A maior e mais ampla escolha é entre preservar essas relações de classes ou eliminá-las, com as contradições às quais elas dão origem.”

[58] A “Curva de Phillips” se refere à observação empírica de que, durante pelo menos alguns anos, existiu um relacionamento inverso entre os aumentos da taxa salarial e o nível de desemprego. Este foi então explorado na proposição teórica geral de que há um acordo entre o nível de desemprego e a inflação. As circunstâncias da década de 1970, quando o desemprego e a inflação aumentaram juntos, questionaram todo o argumento, ver Ben Fine, “World Economic Crisis and Inflation”, cit.

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