Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-358-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 592
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Sinopse: O geógrafo britânico David Harvey é um dos
pensadores mais influentes da atualidade, reconhecido por obras já consideradas
clássicas, como Os limites do capital, publicado pela primeira vez em português, em versão revista e
ampliada. Trata-se de uma análise profunda da história e da geografia do
desenvolvimento capitalista, a partir de uma perspectiva marxista.
Publicado pela primeira vez em
1982, o livro lançou as bases para o projeto intelectual de Harvey – autor de
vasta obra – e, como diz a economista Leda Paulani, no texto de orelha, é
premonitório, pois, aqui, o autor tratou de temas que, ‘uma década depois,
migrariam para o centro da arena, onde permanecem até hoje’.
Em Os limites do capital, Harvey une investigação sobre as dinâmicas espaciais do processo de
urbanização, interpretação ambiciosa do legado de Marx e sensibilidade aguda
para reestruturação econômica em curso. Na nova edição, o autor atualiza sua
releitura da crítica da economia política de Marx, com uma discussão
substancial em torno da conjuntura política global e da convulsão nos mercados
mundiais hoje.
Os limites do
capital constitui ‘leitura
obrigatória para aqueles que buscam uma compreensão menos superficial da etapa
avançada do capitalismo hoje em curso’, afirma Paulani. A obra é considerada
peça fundamental para compreender o instigante pensamento de Harvey, com
reflexões acerca de alguns de seus mais importantes conceitos como ‘ajuste
espacial’ e ‘acumulação por despossessão’. ‘A formação de geógrafo fez com que
Harvey voltasse sua atenção não apenas para as questões do tempo, cruciais
quando se entende que o capital é um movimento (o movimento de valorização),
mas também para as questões do espaço, às quais os economistas são, em geral,
cegos. Em síntese, Harvey iniciou, ainda no começo dos anos 1980, a
investigação sobre como se articulam e como funcionam conjuntamente os
diferentes modos de apropriação e de exploração, o sistema financeiro, o
comportamento rentista e os desenvolvimentos espaciais desiguais numa dinâmica
que, hoje, é o coração do processo de acumulação’, diz Paulani.
Para o crítico literário
Fredric Jameson, além ser uma das tentativas mais lúcidas e bem-sucedidas de
delinear o pensamento econômico de Marx, Os limites do capital é também o único livro a enfrentar o problema espinhoso da renda
fundiária em Marx, cuja própria análise foi interrompida por sua morte. ‘A
revisão e reteorização magistrais de Harvey nos oferecem uma versão plausível
do esquema mais complicado que Marx poderia ter elaborado, tivesse ele vivido’,
afirma, no texto de quarta capa.
A perspectiva geográfica de
Harvey joga luz em aspectos chaves pouco trabalhados no pensamento marxista
como o capital fixo, as finanças, o crédito, a renda, as relações de espaço e
os gastos estatais. Em sua análise do capital fictício e do desenvolvimento
geográfico desigual, o geógrafo britânico leva o leitor, passo a passo, pelas
camadas de formação de crise: do argumento controverso de Marx a respeito da
queda tendencial da taxa de lucro às crises de crédito e de finança.
Em termos de estilo, Harvey é
capaz de destrinchar conceitos de alta complexidade por meio de uma linguagem
clara e acessível, avessa aos jargões econômicos de gabinete. Para ele, é
impossível compreender o capital a partir de uma argumentação linear, que
empilha conceitos isolados como ‘blocos de construção’. Fiel à estrutura de
exposição de Marx, o método empregado por Harvey é dialético e processual, como
seu próprio objeto de estudo.
Escrito antes do fim da guerra
fria, antes da contrarrevolução neoliberal e antes do falatório sobre
globalização e financeirização econômica, Os limites do capital desenvolve essas questões através do desdobramento das próprias
contradições internas do capital. Como Harvey aponta na introdução à nova
edição, Os limites
do capital se revelou um
texto presciente. Em alguns aspectos, é até mais relevante agora porque
descreve uma maneira teórica de se enfrentar as contradições inerentes à
maneira como funciona o capitalismo neoliberal’.
“As
dificuldades são em parte ideológicas. A aceitação disseminada dos benefícios a
serem atingidos pelo individualismo e as liberdades que um livre mercado
supostamente confere, assim como a aceitação da responsabilidade pessoal pelo
próprio bem-estar, constituem, em conjunto, uma séria barreira ideológica para
a criação de solidariedades nas lutas. Elas apontam para modos de oposição
baseados nos direitos humanos e em associações voluntárias (como as ONGs), em
detrimento de solidariedades sociais, partidos políticos e a tomada do poder
estatal. Por isso, há uma percepção de que todos temos de ser neoliberais. Mas
as formas mais tradicionais de luta são difíceis de articular, dada a incrível
volatilidade do capitalismo contemporâneo, a evidente diminuição da soberania
dos Estados individuais sobre suas questões econômicas e a redefinição da ação
do Estado em torno da necessidade de cultivar um bom clima de negócios para
atrair o investimento. Por isso, é cada vez mais difícil identificar o inimigo
e onde ele está.”
“Mas a neoliberalização é um enorme sucesso do
ponto de vista das classes mais altas. Ela devolveu o poder de classe às elites
governantes (como nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha), criou condições para a
consolidação da classe capitalista (como no México, na Índia e na África do Sul)
ou abriu caminho para a formação da classe capitalista (como na China e na
Rússia). Com a mídia dominada pelos interesses da classe alta, foi possível
propagar o mito de que os estados fracassaram economicamente porque não foram
competitivos, ou seja, não foram suficientemente neoliberais. A desigualdade
social aumentada dentro de um território foi construída como necessária para
encorajar o risco e a inovação empresariais, que conferiam poder competitivo e
estimularam o crescimento. Ao que consta, se as condições entre as classes
inferiores se deterioraram foi porque elas falharam, em geral por razões
pessoais ou culturais, em melhorar seu próprio capital humano (por meio da
dedicação à educação, à ética de trabalho protestante, à submissão à disciplina
do trabalho). Seguindo o raciocínio, os problemas que surgiram na Indonésia, na
Argentina ou em qualquer outro lugar foram específicos, devidos à falta de
força competitiva ou a falhas pessoais, culturais ou políticas. Num mundo
neoliberal darwiniano só os mais aptos poderão e irão sobreviver.”
“A
teoria da queda da taxa de lucro se baseia na ideia de que a busca competitiva
por inovações para a economia de mão de obra desloca a mão de obra ativa (a
fonte de todo o valor e do mais-valor na teoria marxiana) da produção. Outras
coisas (como o grau de exploração da força de trabalho) permanecendo iguais,
isso produz uma tendência secular para uma queda da taxa do lucro. O próprio
Marx anexou tantas advertências, condicionalidades e circunstâncias mitigadoras
a essa teoria (ver o capítulo 6) que é difícil sustentá-la como uma teoria
geral da crise, mesmo que se concentre na questão crucial dos efeitos
potencialmente desestabilizadores das mudanças tecnológicas sobre a dinâmica
capitalista. Concluí que cada teoria revela algo importante sobre a dinâmica
contraditória do capitalismo, mas que todas são manifestações superficiais de
alguma outra coisa.
No capítulo 7, declaro que o problema mais profundo
é a tendência à superacumulação. As crises surgem quando as quantidades sempre
crescentes de mais-valor que os capitalistas produzem não podem ser
lucrativamente absorvidas. A palavra importante aqui é “lucrativamente” (e devo
deixar claro que esta não guarda nenhuma relação direta com a suposta lei da
queda da taxa de lucro). Considero esmagadora a evidência dessa linha de argumentação
de “excedente de capital”. O capitalismo surgiu de excedentes acumulados por
grupos localizados de negociantes e comerciantes que pilhavam à vontade o resto
do mundo desde o século XVI. A forma industrial de capitalismo surgida no final
do século XVIII na Grã-Bretanha absorveu com sucesso esses excedentes, ao mesmo
tempo que os expandiu. Tendo por base a mão de obra assalariada e a produção fabril,
a capacidade de absorção e produção de mais-valor foi internalizada,
sistematizada e aumentada, em parte, pela estruturação do mundo capitalista,
mais clara e expansivamente em torno das relações sociais capital-trabalho.
Isso envolveu a internalização bem-sucedida das forças da mudança tecnológica e
da produtividade crescente para gerar excedentes sempre maiores. Onde esses
excedentes poderiam ser lucrativamente distribuídos? “Crise” é o nome que se dá
às fases de desvalorização e destruição dos excedentes de capital que não podem
ser lucrativamente absorvidos.
O capital excedente pode assumir muitas formas.
Pode haver uma abundância de mercadorias no mercado (daí o surgimento do
subconsumo). Isso pode às vezes aparecer como um excedente de dinheiro ou como
um excesso de crédito (daí o surgimento das crises financeiras e monetárias e
da inflação). Ou pode aparecer como um excesso de capacidade produtiva
(fábricas e maquinário ociosos característicos das fases deflacionárias de
desvalorização). Pode aparecer como um excesso de capital investido em áreas
construídas (crashes no mercado imobiliário), em outros bens (ondas de
especulação e crashes em ações e títulos, futuros de mercadorias ou
futuros de moedas etc.) ou como uma crise fiscal do Estado (gastos excessivos
em infraestruturas sociais e funções da previdência social – talvez exigidos
pela força de trabalho sindicalizada). A forma que o excedente de capital
assume não é previamente determinante, mas cada uma confere um caráter
específico à crise. Entretanto, mudar de uma forma para outra às vezes alivia
as pressões (um excesso de crédito pode ser transferido aos consumidores, o que
alivia os problemas de subconsumo e provoca o retorno à operação de fábricas
pressionadas). Além disso, é claro, há o fato de que, para todas essas teorias,
o onde e o quando se realizam os excedentes de capital estão especificados de
maneira temporal, porém não espacial. As duas grandes inovações de Os
limites do capital foram introduzir a ideia dos deslocamentos temporais dos
excedentes (orquestrados mediante o sistema de crédito e os gastos com
financiamento da dívida pública) para os investimentos de capital de longo
prazo (como, digamos, o túnel sob o Canal da Mancha) e a ideia dos
deslocamentos espaciais realizados através de expansões geográficas – a criação
do mercado mundial, o investimento direto e o investimento em carteira, as
exportações de capital e mercadorias e, mais brutalmente, o aprofundamento e a
ampliação do colonialismo, do imperialismo e do neocolonialismo. A associação
dos deslocamentos temporais e espaciais (por exemplo, investimento estrangeiro
direto para financiamento do crédito) oferece mecanismos para respostas de base
amplos e extremamente importantes, embora muito temporários a longo prazo, para
o problema da absorção do excedente de capital. Segue-se então a integração do
desenvolvimento geográfico desigual no nosso entendimento da geografia
histórica do capitalismo. O efeito disso é abrir a possibilidade de crises
localizadas, de desvalorizações de capital altamente localizadas e baseadas na
localidade (aqui uma desindustrialização, lá uma crise financeira) como uma
maneira de neutralizar o problema global da absorção/desvalorização do excedente.
Ocorre também que grande parte do que vemos na maneira da produção de estresses
e degradações ambientais é uma manifestação da busca de soluções para o
problema de absorção do excedente de capital.
A absorção do excedente é, portanto, o principal problema.
As crises de desvalorização acontecem quando a capacidade para essa absorção
entra em colapso. Em O
neoliberalismo: história e implicações, apresento a história de como
esses mecanismos têm operado na economia global a partir da década de 1970. Deixe-me
reformular o argumento em termos de excedente de capital. A década de 1970 foi
uma fase de excedente crônico de capital, grande parte dele transferido para os
Estados produtores de petróleo após 1973 e depois reciclado como capital
monetário por meio dos bancos de investimento de Nova York. Usos lucrativos
para o excedente eram difíceis de encontrar porque as saídas existentes –
especulação nos mercados imobiliários, ondas de gastos estatais com a guerra,
gastos crescentes com a previdência social – estavam saturadas ou organizadas
de modo a dificultar o lucro. Instalou-se, então, uma crise crônica de
estagflação.
A virada subsequente para a neoliberalização
incluiu derrubar toda possível barreira ao desdobramento lucrativo do
excedente. Se a classe trabalhadora era forte o bastante para constituir uma
barreira à lucratividade, então ela tinha de ser disciplinada, seus salários e
benefícios reduzidos, eliminando-se inteiramente sua capacidade para exercer um
esmagamento do lucro. Esse objetivo foi alcançado por meio da violência no
Chile, pelas falências em Nova York, e, politicamente, por Reagan e Thatcher em
nome do combate à inflação. Como se tudo isso não fosse suficiente, as
corporações podiam resolver as coisas por conta própria e se transferir fisicamente
para o estrangeiro, para qualquer lugar onde a mão de obra fosse mais barata e
mais dócil. Mas, para isso acontecer, todas as barreiras ao comércio exterior
precisariam ser derrubadas. As tarifas tinham de ser reduzidas, acordos
comerciais antiprotecionistas criados e uma ordem internacional aberta que
permitisse o fluxo relativamente livre do capital no mundo todo. Se isso não
pudesse ser realizado de maneira pacífica, seriam empregadas a coerção
financeira (orquestrada pelo FMI) ou operações secretas (organizadas pela CIA).
A busca por múltiplos ajustes espaciais teve início e explodiu o
desenvolvimento geográfico desigual. O fim da Guerra Fria acrescentou ainda
mais oportunidades para empreendimentos e expansões estrangeiros lucrativos.
Mas o capital tinha de encontrar um regime facilitador e também oportunidades
adequadas para aplicar seus excedentes nos países em que penetrava. Ondas de
privatização abriram novos setores para a aplicação lucrativa de capital da
Grã-Bretanha para México, Rússia, Índia e China. Regimes de baixas taxas
corporativas (estabelecidos para atrair o investimento estrangeiro),
infraestruturas financiadas pelo Estado, fácil acesso aos recursos naturais, um
ambiente regulatório facilitador, um bom clima para os negócios, todos esses
elementos tinham de ser fornecidos para os excedentes de capital serem
lucrativamente absorvidos. Se tudo isso significasse que as pessoas tinham de
ser despojadas de seus bens e de seu patrimônio, que assim fosse. E foi o que a
neoliberalização realizou. Por trás disso, arranjos institucionais tiveram de
ser feitos para facilitar as transações financeiras globais e para garantir sua
segurança. Isso requereu a aplicação de poderes estatais hegemônicos apoiados
pelos militares, pelos políticos e pela força coerciva econômica para garantir
o regime financeiro internacional. O imperialismo dos Estados Unidos apoiou –
em conluio com a Europa e o Japão – os poderes do FMI, da OMC, do Banco
Mundial, do Banco de Compensações Internacionais e de uma série de outras
instituições que iriam regulamentar o sistema global para garantir um terreno
em constante expansão para a absorção lucrativa das quantidades sempre
crescentes de capital excedente produzido.
Nos últimos trinta anos, a neoliberalização
promoveu, de modo surpreendente, a derrubada de inúmeras barreiras no mundo
todo para a absorção dos excedentes de capital. Também inventou todas as
maneiras de novas formas de especulação em valores patrimoniais que
similarmente absorvem quantidades maciças de excedentes de capital, embora a um
risco considerável. O que é igualmente surpreendente é a sua capacidade para
organizar e orquestrar gigantescas desvalorizações do capital no mundo todo sem
explodir – pelo menos até agora –todo o sistema. Quando os excedentes não
puderem mais ser absorvidos, eles terão de ser desvalorizados ou destruídos. As
desvalorizações têm sido desenfreadas desde meados da década de 1970. As crises
fiscais, raras antes de 1970, disseminaram-se por todo o mundo, com efeitos
frequentemente devastadores (o México, em 1982 e 1995; a Indonésia, a Rússia e
a Coreia do Sul, em 1998; a Argentina, em 2001). Nem os Estados Unidos
escaparam de sérios episódios de desvalorização. A Crise das Instituições de
Poupança e Empréstimo, em 1987, custou cerca de 200 bilhões de dólares para ser
retificada e as imensas falências do Long Term Capital Management e de Orange
County, em meados da década de 1990, seguidas de uma quebra no mercado de ações
que eliminou 7 trilhões de dólares do mercado de capitais dos Estados Unidos em
2000, foram eventos sérios. Embora alguns capitalistas tenham sido atingidos, o
talento da estrutura atual das instituições não está apenas em disseminar os
riscos, mas também em disseminá-los assimetricamente, de maneira a garantir que
os custos da desvalorização recaiam em sua maior parte sobre aqueles menos
capazes de arcar com eles. Quando o México foi à falência em 1982, o Tesouro
dos Estados Unidos e o FMI garantiram que os banqueiros de investimento de Nova
York sofreriam muito pouco, enquanto as pessoas comuns do México foram
obrigadas a arcar sozinhas com uma grande perda. Na verdade, as crises
financeiras tornaram-se o meio preferido para acelerar a concentração do poder
econômico e político nas mãos da elite.
Os desequilíbrios globais atualmente existentes são
de proporções impressionantes. Os excedentes de capital estão em toda parte,
mas agora particularmente concentrados no leste e no sudeste da Ásia. Por outro
lado, os Estados Unidos estão administrando uma economia devedora em escala
inédita. A capacidade para contornar essa situação, como declaro em O
neoliberalismo: história e implicações, está sobre o fio da navalha. A
retificação dos desequilíbrios globais atualmente relacionados provavelmente
será dolorosa, senão catastrófica. Mas, além de tudo isso, temos de reconhecer
que quase todas as nossas aflições ambientais, políticas, sociais e culturais
são produto de um sistema que busca o mais-valor para produzir mais mais-valor,
o que requer, portanto, uma absorção lucrativa. As desastrosas consequências
sociais, políticas e ambientais da infinita “acumulação pela acumulação e
produção pela produção” estão aí, diante de nossos olhos. No meio do que Marx,
nos Grundrisse, chama de “contradições agudas, crises, convulsões”[11], talvez devêssemos prestar atenção à sua
conclusão de que “a destruição violenta de capital, não por circunstâncias
externas a ele, mas como condição de sua autoconservação, é a forma mais contundente
em que o capital é aconselhado a se retirar e ceder espaço a um estado superior
de produção social”.”
[11] Karl
Marx, Grundrisse, cit., p. 627.
“Marx
trata a simples forma da mercadoria como o “germe” da forma do dinheiro. Uma
análise do escambo direto mostra que as mercadorias podem assumir o que ele
chama de formas “equivalentes” e “relativas” do valor. Quando uma comunidade
mensura o valor dos bens que estão sendo adquiridos em contraposição ao valor
isolado de um bem que está sendo descartado, então este último funciona como
sua forma de equivalente. Em um estado inicial, cada comunidade ou agente de
barganha possuirá mercadorias que operam como a forma de equivalente. Com a
proliferação da troca, uma mercadoria (ou um conjunto de mercadorias)
provavelmente vai emergir como o “equivalente universal” – uma
mercadoria-dinheiro básica, como o ouro. Os valores relativos de todas as
outras mercadorias podem então ser expressos em termos da mercadoria-dinheiro.
O “valor”, consequentemente, adquire uma medida claramente reconhecível, única
e socialmente aceita. O deslocamento de muitas determinações diferentes
(subjetivas e, com frequência, acidentais) do valor de troca para uma medida
padrão de dinheiro é produzido por uma proliferação de relações de troca até o
ponto em que a produção de bens para troca se torna “um ato social normal”.
Mas, por outro lado, também podemos ver que um sistema geral de troca de
mercadoria seria impossível sem o dinheiro para facilitá-lo. Por isso, o
aumento da troca e a emergência de uma mercadoria-dinheiro necessariamente
andam juntos.
A mercadoria que veste “a capa do dinheiro”
torna-se distinta de todas as outras. E a análise de suas características
especiais mostra-se esclarecedora, uma vez que “o enigma do fetiche do dinheiro
não é mais do que o enigma do fetiche da mercadoria, que agora se torna visível
e ofusca a visão”[20].
A mercadoria-dinheiro, como qualquer outra
mercadoria, tem um valor, um valor de troca e um valor de uso. Seu valor é
determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário em sua produção e
reflete as condições sociais e físicas específicas do processo de trabalho sob
o qual ele é produzido. Os valores de troca de todas as outras mercadorias são
mensurados em relação ao parâmetro formado por essas condições de produção
específicas da mercadoria-dinheiro. Desse ponto de vista, o dinheiro funciona
como uma medida de valor, e o seu valor de troca deve presumivelmente
refletir esse fato. O valor de uso do dinheiro é o fato de ele facilitar a circulação
de todas as outras mercadorias. Assim, ele atua como um meio de circulação.
Porém, no curso de sua atuação como meio de troca, o dinheiro adquire um valor
de troca derivado da “ação social de todas as outras mercadorias”, que excluem
“uma mercadoria determinada, na qual todas elas expressam universalmente seu
valor”[21]. O dinheiro se torna o valor do que ele
vai comprar. Resultado: a mercadoria-dinheiro adquire um valor de troca duplo –
ditado por suas próprias condições de produção (seu valor de troca “inerente”)
e pelo que ele vai comprar (seu valor “reflexo”).
Marx explica que tal dualidade surge porque o valor
de troca, que inicialmente concebíamos como um atributo internalizado de todas
as mercadorias, é agora representado por um padrão de medida que é externo e
totalmente separado das próprias mercadorias[22].
O problema de como representar e medir os valores fica desse modo resolvido.
Mas a solução só é alcançada à custa da internalização da dualidade do valor de
uso e do valor interno ao valor de troca do próprio dinheiro. O dinheiro, em
suma, “só resolve as contradições tanto da troca direta como do valor de troca
na medida em que as põe universais”[23].”
[20] Karl Marx, O
capital, Livro I, cit., p. 167.
[21] Ibidem, p. 161.
[22] Idem, Grundrisse,
cit., p. 95.
[23] Ibidem, p. 147.
“O
capital, insiste Marx, deve ser definido mais como um processo do que como uma
coisa. A manifestação material desse processo existe como uma transformação do
dinheiro em mercadorias e de volta ao dinheiro mais o lucro: D-M-(D+ΔD). Já que
definimos o dinheiro como a representação material do valor, podemos também
dizer que o capital é um processo de expansão do valor. Marx chama isso de
produção de mais-valor.”
“A
competição pela acumulação requer que o capitalista inflija uma violência
diária sobre a classe trabalhadora no local de trabalho. A intensidade dessa
violência não está sob o controle dos capitalistas individuais, particularmente
se a competição for desregulada. A busca incessante pelo mais-valor relativo
aumenta a produtividade do trabalho ao mesmo tempo que desvaloriza e deprecia a
força de trabalho, sem falar na perda da dignidade, da sensação de controle
sobre o processo do trabalho, do assédio constante por parte dos supervisores e
da necessidade de se adaptar aos ditames da máquina. Como indivíduos, os
trabalhadores mal estão em posição de resistir, mais particularmente porque uma
produtividade crescente tem o hábito de “liberar” certo número deles para as
fileiras dos desempregados. Os trabalhadores só conseguem desenvolver o poder
de resistir por meio de algum tipo de ação de classe – sejam atos espontâneos
de violência (quebra das máquinas, incêndios e a fúria da massa de épocas
anteriores, que de modo algum desapareceram) ou a criação de organizações (como
os sindicatos) capazes de travar uma luta de classes coletiva. A compulsão dos
capitalistas para captar um mais-valor ainda mais relativo não passa
incontestada. A batalha ocorre mais uma vez e as principais linhas da luta de
classes se formam em torno de questões como a aplicação das máquinas, a
velocidade e intensidade do processo de trabalho, o emprego de mulheres e
crianças, as condições de trabalho e os direitos do trabalhador no local de trabalho.
O fato de as lutas sobre essas questões serem uma parte da vida diária na
sociedade capitalista atesta para o fato de que a busca pelo mais-valor
relativo é onipresente e que a necessária violência implicada nessa busca pode
provocar algum tipo de reação de classe por parte dos trabalhadores.”
“Antes de tudo, lembre-se de que Marx define o capital como um processo[9].
A expansão do valor ocorre mediante a produção de mais-valor pelos capitalistas
que empregam um tipo específico de trabalho – o trabalho assalariado.
Este, por sua vez, pressupõe a existência de uma relação de classe entre o
capital e o trabalho. Quando submetemos essa relação a um cuidadoso escrutínio
vemos imediatamente que o salário não pode de modo algum ser concebido como uma
“receita” ou como uma “parcela distributiva” no sentido comum. O trabalhador
não reivindica uma parte do produto em virtude da sua contribuição para o valor
do produto. A essência da transação é algo totalmente diferente. O trabalhador
desiste dos direitos de controle sobre o processo de produção, o produto e o
valor incorporado no produto, em troca do valor da força de trabalho. E esta última
não tem diretamente nada a ver com a contribuição do trabalho para o valor do
produto.
O
trabalhador recebe, então, o valor da força de trabalho, e pronto. Tudo o mais
é apropriado como mais-valor pela classe capitalista como um todo. A maneira na
qual o mais-valor é então dividida nas diferentes formas de lucro no capital
industrial, na renda sobre a terra, no juro sobre o capital monetário, no lucro
sobre o capital de negociação etc., é apresentada por meio de considerações
totalmente diferentes. A relação de classe entre o capital e o trabalho é de um
tipo completamente diferente em comparação com as relações sociais mantidas
entre diferentes segmentos da classe capitalista (industriais, negociantes,
rentistas e capitalistas monetários, proprietários de terras etc.). Quando Marx
insiste que nos concentremos na produção para descobrir os segredos da
distribuição, ele o faz porque é lá que a relação fundamental entre o capital e
o trabalho se torna muito clara.”
[9]
Cf. neste volume p. 66-7.
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