Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-358-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 592
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Sinopse: Ver Parte
I
“Temos
declarado no decorrer de todo este livro que a circulação do capital tem de ser
considerada como um processo contínuo de expansão do valor. A circulação de
valores pelas infraestruturas sociais é apenas um momento nesse processo total.
Vamos agora descobrir a importância desse momento em relação ao processo geral.
Os
valores tributados do capital que flui para sustentar as infraestruturas
sociais retornam ao capital na forma de uma demanda efetiva para as mercadorias
que os capitalistas produzem. Nisso não há perda para o capital. Aqueles
empregados parecem então meras “classes consumidoras” e, como tal, podem
ocasionalmente desempenhar um papel na reação aos problemas de
desproporcionalidade etc. (ver capítulo 3). Mas o tempo absorvido pela
circulação do valor nas infraestruturas sociais é tempo perdido para a produção
de valor. O tempo de rotação do capital agregado é estendido mediante a
expansão dessa esfera de circulação em detrimento da expansão dos valores. Além
disso, todos os tipos de redistribuição geográfica são possíveis. O “imposto”
sobre o mais-valor produzido em um lugar pode reemergir como uma demanda efetiva
do outro lado do mundo – é o que acontece com organizações como a Igreja
Católica Romana e o Bank of America. Podem surgir centros de consumo que não
tenham base na produção local de mais-valor. Frequentados predominantemente
pelas “classes consumidoras”, esses centros podem se tornar identificados
principalmente com funções ideológicas, administrativas, de pesquisa e com
outras funções das infraestruturas sociais. Os princípios que governam essas
redistribuições geográficas do valor que flui entre as infraestruturas sociais
são difíceis de estabelecer. Aparte a restrição geral do tempo de rotação (ele
próprio maleável como a facilidade com que o movimento geográfico melhora), as
redistribuições geográficas parecem, na pior das hipóteses, arbitrárias e acidentais
e, na melhor das hipóteses, como o resultado das lutas de poder entre facções
da burguesia (incluindo as “classes consumidoras” que têm interesses próprios
específicos), algumas das quais podem também se definir geograficamente no nome
de uma cidade, região ou Estado-nação.
A
circulação do valor pelas infraestruturas sociais também pode ter impactos
diretos e indiretos sobre a produção de mais-valor. Embora seja difícil
localizar com precisão, o conceito da “produtividade” dos fluxos de valor nas
infraestruturas sociais não é de modo algum redundante (vem à mente
imediatamente o seu paralelo com os investimentos públicos em infraestruturas
físicas). As melhorias nas condições sociais para a produção de mais-valor
podem ter importantes efeitos de longo prazo. As melhorias na qualidade da
quantidade da força de trabalho por meio da atenção à saúde e à educação, assim
como uma série de meios intangíveis que afetam a disciplina, a ética no trabalho,
o respeito pelas autoridades, a consciência e assim por diante podem ter um
efeito salutar sobre a produção de mais-valor. E se os trabalhadores estiverem
recalcitrantes e indisciplinados, então por que não pregar para eles através da
imprensa ou do púlpito, ou intimidá-los por meio da aplicação de sanções morais
ou de força legal ou repressiva? Por isso, alguns dos fluxos para a
infraestrutura social podem ser encarados como investimentos destinados a
melhorar as condições sociais para a produção de mais-valor. O mesmo princípio
se aplica quando fluxos para a administração e a regulação ajudam a manter a
segurança e a tranquilidade de um processo acelerado de rotação do capital. Os
fluxos para apoiar a pesquisa científica e técnica, para citar mais uma
instância, podem também retornar diretamente para a esfera da produção como uma
força material (novas tecnologias). A enorme importância do “momento” de
infraestrutura social no processo total de circulação do capital não pode ser
negada.
Os
fluxos de valor desse tipo não produzem em si mais-valor. Eles simplesmente
melhoram as condições da produção de mais-valor. O problema – que incomoda os capitalistas
e também a nós – é identificar as condições, os meios e as circunstâncias que
permitem que essa potencialidade seja realizada. Na medida em que os
capitalistas individuais lucram com o benefício, eles podem tentar fazer um
investimento limitado nas infraestruturas sociais e assim promover a pesquisa e
o desenvolvimento, a melhoria nas qualidades da força de trabalho (atenção à
saúde, treinamento no emprego etc.). Mas como muitos dos benefícios são tão
incertos quanto difusos, os capitalistas têm de se constituir como uma classe –
em geral por meio da ação do Estado – e assim encontrar meios coletivos para
satisfazer suas necessidades. Como o Estado é um campo geral de luta de
classes, fica impossível discernir diretamente quais fluxos de valor sob sua
égide representam as necessidades imediatas do capital e quais resultam das
pressões exercidas por outras classes. Muitos dos fluxos para as
infraestruturas sociais não têm relação com o aumento da produtividade de valor
e têm tudo a ver com a circulação das receitas. Os capitalistas podem ser
obrigados pelas “classes consumidoras” que de algum modo adquiriram o poder
político para tributar a contribuir com o mais-valor. As classes trabalhadoras
também podem obrigá-los a isso. O investimento no controle e na repressão
ideológica, por exemplo, está relacionado à ameaça de resistência da classe
trabalhadora organizada, enquanto a necessidade de integrar e cooptar os trabalhadores
por meio dos gastos sociais surge apenas quando os trabalhadores acumularam
poder suficiente para requerer a cooptação.
No
entanto, encarado do ponto de vista da acumulação, o investimento nas
infraestruturas sociais não é perda para o capital desde que o aumento na
produção de mais-valor em consequência de melhorias nas condições sociais
compense muito o aumento no tempo de rotação do capital. Isso proporciona uma
regra útil sobre a qual basear algumas avaliações do papel desse “momento”
particular na circulação geral do valor.
As
melhorias nas condições sociais em geral demoram um longo tempo para serem
realizadas. Elas absorvem valor durante um período de tempo e com frequência
geram benefícios muito mais tarde e por períodos estendidos (por exemplo,
demora muitos anos para socializar e educar um trabalhador). Isso torna o
investimento em infraestruturas sociais um campo ideal para a absorção de
mais-valor, capital superacumulado, evitando a desvalorização, pois durante o
período de investimento não há diminuição da demanda efetiva. Como diferentes
tipos de investimento social têm diferentes tempos de compensação, o manejo
fiscal apropriado por parte do Estado resiste diante da perspectiva de
estabilização do processo de acumulação durante períodos longos.
Mas
na análise final exatamente os mesmos dilemas surgem aqui com relação ao
investimento no ambiente construído. Na medida em que as condições sociais
melhoradas dão origem a uma produção aumentada de mais-valor, o problema básico
da superacumulação é exacerbado. Por outro lado, se as condições sociais
melhoradas não conduzem a tal aumento, então o investimento deve ser julgado
improdutivo e o valor nele absorvido fica efetivamente perdido. Por isso, a
desvalorização do capital mediante a circulação improdutiva pelas
infraestruturas sociais se torna uma perspectiva muito real. Entretanto, o fato
de os investimentos serem ou não produtivos não depende de suas qualidades
inerentes, mas da capacidade dos capitalistas de tirar proveito deles – a
educação de uma força de trabalho especializada é reduzida a zero se o processo
de trabalho se altera para a demanda de força de trabalho não especializada.
Por essa razão, o que de início parece ser um dispositivo fácil para a
estabilização se transforma em um atoleiro de incerteza, tornado
suficientemente real por crises fiscais periódicas nos gastos sociais do Estado[44].
Investimentos
desse tipo exibem uma peculiaridade adicional. Eles não se desgastam pelo uso
(como as máquinas), mas, como as melhorias na fertilidade do solo, podem ser
intensificados no decorrer do tempo mais como bens renováveis do que como bens
esgotáveis. Os ganhos em conhecimento científico não se desgastam, tampouco os
ganhos em sofisticação legal, táticas educacionais, expertise técnica em
gerenciamento e administração etc. As atitudes na força de trabalho também
podem evoluir de maneiras mais favoráveis à acumulação. A circulação do valor
pelas infraestruturas sociais pode produzir concentração geográfica de
condições de alta qualidade. Essas regiões então parecem “naturalmente”
favoráveis à acumulação em virtude dos “recursos humanos e sociais” que foram
aí incorporados. Com base nisso, o capital da produção provavelmente será
atraído para essas regiões.
Mas
as tendências contrárias estão também em ação. Benefícios às infraestruturas
sociais relativamente permanentes podem constituir uma base para a extração de
rendas locais. Mais importante, a manutenção das infraestruturas sociais impõem
custos – quer direta ou indiretamente porque a sua preservação depende das
formas de uso “restritas” pelo capital (o paralelo com a manutenção da
fertilidade do solo é evidente). Se os custos de manutenção sobem (em relação
às regiões concorrentes), então a vantagem da localização para os capitalistas
vai diminuir. Cansados de pagar altos tributos ou de conter sua sede de
exploração, os capitalistas podem se mover (com frequência com a ajuda de novos
processos de trabalho adaptados à mão de obra não especializada) para novos
ambientes sociais em que os “recursos humanos” são mais pobres, mas muito menos
dispendiosos de manter. Os bens acumulados nas regiões previamente
privilegiadas são assim destruídos e o valor absorvido na sua criação fica
desse modo perdido.
Isso
nos conduz mais diretamente aos aspectos geográficos do problema. O
desenvolvimento geográfico desigual das infraestruturas sociais é, na análise
final, reproduzido mediante a circulação do capital. O capital produz e
reproduz, embora através de todos os tipos de mediações e transformações sutis,
o seu ambiente social e também o seu ambiente físico. No fim, até mesmo os
elementos pré-capitalistas que persistem devem ser reproduzidos pela produção
de mais-valor. Contudo, a geografia social que se desenvolve não é um simples
reflexo no espelho das necessidades do capital, mas o local de contradições
poderosas e potencialmente destrutivas. A geografia social moldada às
necessidades do capital em um momento da história não é necessariamente
consistente com exigências posteriores. Como essa geografia é difícil de mudar
e com frequência o foco de pesado investimento de longo prazo, ela então se
torna a barreira a ser transposta. Novas geografias sociais têm de ser
produzidas, com frequência a um alto custo para o capital e em geral
acompanhadas por um sofrimento humano considerável. Por essa razão, a
reestruturação periódica da geografia das infraestruturas sociais em geral é
realizada no decorrer de uma crise. A desvalorização específica do lugar do
capital incorporado nas infraestruturas sociais, sem falar na destruição dos
modos de vida tradicionais e de todas as formas de localismo construído em
torno das instituições sociais e humanas, torna-se assim um dos elementos
centrais da formação e resolução da crise no capitalismo[45].
Esse
quadro geral deve ser modificado na medida em que vários aspectos da
infraestrutura, ou as vantagens que elas geram para a acumulação, sejam em si geograficamente
móveis. Por exemplo, as transferências de valor do tipo já comentado podem
colocar as funções de pesquisa e desenvolvimento em locais bem distantes da
produção. As vantagens da aglomeração e do acesso a uma força de trabalho
altamente especializada requerida com frequência pressiona muitas dessas
funções a se unirem em alguns centros importantes que, por sua vez, se tornam
os campos propícios para se iniciar linhas de produto totalmente novas (a
indústria de chips de silicone nos arredores de Palo Alto é um exemplo recente
disso). Os “produtos” desse investimento de infraestrutura social também podem
ser movidos. O conhecimento e a mão de obra altamente especializada, ambos
conseguidos a um alto custo, são geograficamente móveis, de forma que a
“transferência de tecnologia” e a “drenagem cerebral” são dois aspectos muito
importantes dentro do processo geral de redistribuição geográfica. As
contracorrentes do movimento são demasiado complicadas para produzir facilmente
uma análise teórica. E o significado desses movimentos para diferentes
indústrias com diferentes processos de trabalho varia muito. Entretanto, sua importância
tem de ser reconhecida em qualquer consideração da evolução das configurações
espaciais no capitalismo.
Uma
característica impressionante clama por atenção especial. O Estado proporciona
o canal isolado mais importante para os fluxos de valor entrarem nas
infraestruturas sociais. Nisso está a importância dos impostos como uma forma
de receita alocada à manutenção e à melhoria das infraestruturas sociais. E, na
medida em que a dívida do Estado é o veículo para o investimento em
infraestruturas sociais, os poderes de coordenação e monitoramento dos mercados
de capital e da taxa de juros são aplicados. O envolvimento do Estado surge em
parte porque têm de ser encontrados os meios coletivos para fazer o que os
capitalistas individuais não podem razoavelmente fazer e, em parte, porque a
luta de classes requer as mediações do aparato do Estado para qualquer tipo de
investimento ser feito em áreas socialmente sensíveis. O envolvimento assume
uma nova forma quando é reconhecido que esses investimentos podem ser tanto
produtivos (no sentido de melhorarem as condições sociais para a criação de
mais-valor) quanto estabilizadores (no sentido do manejo da demanda efetiva
durante um longo período). Desse modo, a política fiscal do Estado torna-se uma
ferramenta vital no arsenal da burguesia para gerenciar o processo de
acumulação (o uso dos gastos militares dessa maneira é um bom exemplo). Os
limites para essas práticas de gerenciamento são a essa altura óbvios.
A
importância do envolvimento do Estado do ponto de vista do nosso presente
tópico merece uma breve elucidação. Na medida em que o Estado assume o papel de
gerente geral da produção e reprodução das infraestruturas sociais (incluindo
ele próprio), a forma de organização hierárquica do Estado é posicionada para
discriminar entre os aspectos local, regional, nacional e supranacional dos
fluxos de valor. A organização territorial do Estado – e os limites do
Estado-nação são de longe os mais importantes – torna-se então a
configuração geográfica dentro da qual a dinâmica do processo do investimento é
elaborada. É claro que essa organização territorial não é imutável e de tempos
em tempos reorganizações radicais são requeridas em prol da melhoria da
eficiência da administração etc.[46]. Não obstante, em qualquer
momento particular a organização territorial dos poderes do Estado constitui o ambiente
geográfico fixo dentro do qual os processos de investimento operam. Os Estados
são então obrigados a competir um com o outro pela provisão de condições às
infraestruturas sociais, que são atrativas para o capital. Também são obrigados
a competir por capital financeiro para consolidar a sua dívida. Em consequência
disso, o Estado perde o seu poder para dominar politicamente o capital e é
pressionado para assumir uma postura subserviente, competitiva. E, na medida em
que a desvalorização e a destruição dos complexos recursos humanos se tornam
necessárias no decorrer de uma crise, os Estados são colocados uns contra os
outros em uma vigorosa competição em relação a qual deles deve arcar com o
custo dessa desvalorização e dessa destruição social. O princípio geral da
desvalorização específica do lugar é então convertido, pelo menos nessa esfera
particular, na questão das desvalorizações e da destruição social específicas
do Estado.”
[44] James O’Connor, The Fiscal Crisis of the State (Nova York,
St. Martin’s Press, 1973), apresenta uma análise estimulante.
[45]
O trauma da “crise fiscal” da cidade de Nova York na década de 1970 é um
excelente exemplo disso.
[46]
A reorganização dos governos locais e regionais, o esforço para criar mercados
comuns etc. são exemplos desse tipo de processo em ação.
“O dinheiro é o poder social encarnado.”
“Quando
a “dialética interna” em ação dentro de uma região a direciona para buscar
soluções externas para seus problemas, ela precisa sair à procura de novos
mercados, de novas oportunidades para a exportação de capital, matérias-primas
baratas, mão de obra de baixo custo etc. Todas essas medidas, para serem algo
além de um paliativo temporário, ou colocam a responsabilidade sobre o trabalho
futuro ou envolvem diretamente uma expansão do proletariado. Essa expansão pode
ser realizada por meio do crescimento da população, da mobilização de setores
latentes do exército de reserva ou da acumulação primitiva.
A
insaciável sede do capitalismo por ofertas novas de trabalho é responsável pelo
vigor com que ele tem buscado a acumulação primitiva, destruindo, transformando
e absorvendo as populações pré-capitalistas onde quer que as encontre. Quando
os excedentes de trabalho estão disponíveis para serem tomados, e os
capitalistas, por meio da competição, não confinaram seus destinos a uma
combinação tecnológica que não pode absorver essa força de trabalho, então as
crises são tipicamente de curta duração, meros contratempos em uma trajetória
geral de acumulação global sustentada, e em geral se manifestam como leves
crises cíclicas dentro de uma estrutura em evolução do desenvolvimento
geográfico desigual. Esse era o preço padrão para o capitalismo do século XIX.
Os verdadeiros problemas têm início quando os capitalistas, enfrentando escassez
de oferta de mão de obra e como sempre estimulados pela competição, induzem o
desemprego mediante inovações tecnológicas que perturbam o equilíbrio entre a
produção e a realização, entre as forças produtivas e as relações sociais que
as acompanham. O fechamento das fronteiras para a acumulação primitiva, devido
ao puro esgotamento das possibilidades, aumentando a resistência por parte das
populações pré-capitalistas ou a monopolização por parte de algum poder
dominante, tem, por isso, uma enorme importância para a estabilidade em longo
prazo do capitalismo. Essa foi a grande mudança que começou a ser cada vez mais
sentida enquanto o capitalismo ingressava no século XX. Foi a grande mudança
que, muito mais que ascensão das formas monopolista ou financeira do
capitalismo, desempenhou o papel crucial empurrando o capitalismo cada vez mais
fundo no lodo das crises globais e conduziu, inexoravelmente, aos tipos de
acumulação primitiva e desvalorização conjuntamente forjados por meio das
guerras intercapitalistas.
Como
sempre, os mecanismos são intrincados em seus detalhes e extremamente confusos
nas conjunturas históricas reais devido a inúmeras contracorrentes de forças
conflitantes. Mas podemos construir uma linha de argumentação simples para
ilustrar os pontos importantes. Para que o processo da acumulação continue,
qualquer aliança regional deve manter o acesso às reservas de trabalho e também
àquelas “forças da natureza” (como recursos minerais importantes) que, do
contrário, estão sujeitas à monopolização. Poucos problemas surgem se existem
reservas de ambas na região em que circula a maior parte do capital local.
Quando as fronteiras internas se fecham, o capital tem de procurar outro lugar
ou correr o risco de desvalorização. A aliança regional sente o estresse entre
o capital incorporado no local e o capital que se move para criar centros novos
e permanentes de acumulação em outro lugar. O conflito entre diferentes
capitais regionais e nacionais sobre o acesso às reservas de trabalho e aos
recursos naturais começa a ser sentido. Os temas de internacionalismo e
multilateralismo se acumulam duramente contra o desejo de autossuficiência como
o meio para preservar a posição de alguma região particular diante das
contradições internas e pressões externas – autossuficiência do tipo que
prevalecia na década de 1930, quando a Grã-Bretanha se amparou em seu comércio
do Commonwealth e o Japão se expandiu para a Manchúria e a Ásia Continental, a
Alemanha para o Leste Europeu e a Itália para a África, colocando diferentes
regiões uma contra a outra, cada uma buscando o seu próprio “ajuste espacial”.
Somente os Estados Unidos acharam apropriado buscar uma política de “porta
aberta” fundamentada no internacionalismo e no comércio multilateral. No fim, a
guerra foi travada para conter a autossuficiência e abrir o mundo todo para as
potencialidades da expansão geográfica e para o desenvolvimento desigual
ilimitado. Essa solução, buscada unilateralmente sob a hegemonia dos Estados
Unidos após 1945, tinha a vantagem de ser sobreposta a um dos mais selvagens
episódios de desvalorização e destruição jamais registrados na violenta
história do capitalismo. E os extraordinários benefícios resultaram não apenas
da imensa destruição do capital, mas também da distribuição geográfica desigual
dessa destruição. O mundo foi salvo dos terrores da grande depressão, não por
algum glorioso “new deal” ou pelo toque mágico da economia keynesiana
nos cofres mundiais, mas pela destruição e morte da guerra mundial.
Para
o observador externo, o internacionalismo e o multilateralismo do mundo
pós-guerra parecem ser muito diferentes. A liberdade global para o movimento do
capital (em todas as suas formas) permitiu um acesso imediato ao “ajuste
espacial” mediante a expansão geográfica dentro de uma estrutura de destruição
geográfica desigual. A rápida acumulação do capital nessa base conduziu à
criação e, em alguns casos, à recriação de centros de acumulação regionais
independentes – Alemanha, Japão, Brasil, México, Sudeste da Ásia etc. Alianças
regionais são mais uma vez formadas e competem para a contração das
oportunidades de lucro. A ameaça da autossuficiência se agiganta novamente. E
com ela surge a ameaça renovada da guerra mundial, dessa vez travada com armas
de imenso e insano poder destrutivo, e direcionada para a acumulação primitiva
à custa do bloco socialista.
Os marxistas, desde a primeira vez que Rosa Luxemburgo escreveu sobre o assunto, há muito vinham sendo atraídos pela ideia dos gastos militares como um meio conveniente para absorver os excedentes de capital e da força de trabalho. A obsolescência instantânea dos equipamentos militares e a fácil manipulação das tensões internacionais em uma demanda política pelo aumento nos gastos da defesa adicionam brilho à ideia. Acredita-se por vezes que o capitalismo é estabilizado mediante o orçamento da defesa, embora privando a sociedade de programas mais humanos e socialmente meritórios. Infelizmente, essa linha de pensamento é traçada segundo o molde subconsumista. Eu digo “infelizmente”, não tanto porque essa interpretação esteja errada, mas porque a presente teoria sugere uma interpretação mais sinistra e aterrorizante dos gastos militares: as armas não apenas devem ser compradas e pagas pelos excedentes de capital e trabalho, mas devem ser postas em uso. Pois esse é o único meio que o capitalismo tem à sua disposição para conseguir os níveis de desvalorização agora requeridos. A ideia é apavorante em suas implicações. Que melhor razão poderia haver para se declarar que chegou a hora de o capitalismo desaparecer para abrir caminho a algum modo de produção mais saudável?”
“O
principal canal em que as funções coordenadoras e mutuamente restritivas podem
ser exercidas são as variadas instituições do Estado moderno. Não considerei a
teoria do Estado capitalista marxista no presente trabalho, em parte porque
achei que um tratamento completo desse tema controvertido deveria aguardar uma
análise cuidadosa dos processos de reprodução do trabalhador e da força de
trabalho. Mas o Estado capitalista não foi totalmente negligenciado nas páginas
precedentes. Na verdade, ele esteve onipresente como o responsável pelos
contratos e pelas liberdades dos indivíduos jurídicos, e como o poder
repressivo que ambos criam e que mantém a força de trabalho como uma
mercadoria. O Estado coloca uma base sob a competição intercapitalista e regula
as condições de emprego. Ele pode facilitar a centralização do capital, mas
também desempenha um papel na busca do equilíbrio entre a centralização e a
descentralização que preserva a estabilidade da composição de valor do capital.
Realiza a produção das mercadorias (principalmente no ambiente construído) que
os capitalistas individuais são incapazes de produzir ou não estão dispostos a
fornecer, por mais vitais que elas sejam como condições de mais acumulação. Ele
usa seus poderes de planejamento para moldar a economia de espaço do
capitalismo diretamente e, desse modo, pode regular até mesmo a tensão invasiva
entre a concentração e a dispersão geográfica. Por meio da égide de um banco
central, desempenha um papel hegemônico na oferta de dinheiro de certa
qualidade. A consideração das funções fiscais e monetárias do Estado indica a
ampla latitude de sua potencial intervenção na dinâmica temporal e espacial da
acumulação dentro do território sob sua jurisdição. Desse modo, o Estado se
torna uma parte essencial dessa série de organizações hierarquicamente
ordenadas que vinculam os trabalhadores individuais à totalidade expressada
como trabalho abstrato. Ocupando essa posição estratégica, e abençoado como ele
é com as armas fundamentais do poder político e militar, o Estado se torna a
instituição central em torno da qual se formam as alianças. Os poderes fiscal e
monetário podem então ser pressionados para ficar a serviço dessa aliança.
Arranjos distribucionais podem ser modificados, o investimento na apropriação,
controlado, capitais fictícios, criados e as tendências para a desvalorização
desse modo, convertidas em inflação. O Estado se torna a instituição central
por meio da qual os conflitos inter-regionais são elaborados, e a base a partir
da qual cada aliança regional busca o seu “ajuste espacial”.
O
Estado, em resumo, é protagonista em quase todos os aspectos da reprodução do
capital. Além disso, quando o governo intervém para estabilizar a acumulação em
face de múltiplas contradições, isso só acontece à custa da internalização
dessas contradições. Ele adquire a dúbia tarefa de administrar as doses
necessárias de desvalorização. Mas tem escolha em relação a como e onde faz
isso. Ele pode localizar os custos dentro do seu território mediante uma
legislação trabalhista rígida e restrições fiscais e monetárias. Ou pode buscar
alívio externo por meio de guerras comerciais, políticas fiscais e monetárias
combativas no cenário mundial, apoiadas no fim pelo apelo à força militar. A forma
de desvalorização fundamental é a confrontação militar e a guerra mundial.
No
texto precedente consideramos todos esses aspectos do Estado moderno. Mas eles
não constituem uma base adequada para uma teoria abrangente do Estado. Muitos elementos
são deixados de fora. A reprodução do trabalhador e da força de trabalho, e a
produção e o uso do conhecimento, tanto como uma força material na produção
quanto como uma arma para a dominação e o controle ideológico, devem estar
integradas no argumento. E enquanto nos esforçamos para cumprir essa tarefa,
duas coisas ficam aparentes. Em primeiro lugar, as instituições fundamentais
para a reprodução do capital (como o banco central) devem até certo ponto ficar
mantidas bem separadas daquelas que tratam da reprodução do trabalhador e da
força de trabalho. Mas, em segundo lugar, algum tipo de unidade tem de
prevalecer entre as diversas instituições, algum equilíbrio tem de ser
encontrado para que a sociedade como um todo seja reproduzida. Isso suscita questões
de alocação dos poderes, de legitimidade, de democracia e de ideologia, que os
marxistas têm enfrentado diretamente em uma literatura imensa e controvertida.
Acima de tudo, nossa atenção deve então se concentrar na luta política pelo
controle do aparato do Estado e dos poderes que ali residem. A luta de classes
é deslocada do local da produção para a arena política.
Mas
surge então um problema adicional. A relação entre o capital e o trabalho
transformou-se agora em configurações múltiplas e conflitantes. Já
identificamos alguns aspectos nesse processo, como o capital e o trabalho se
dividem em facções diferentes e às vezes se reconstituem em torno de alguma
aliança regional. E, assim que levamos em conta outros aspectos da vida
capitalista – a formação de uma elite científica e técnica, o crescimento das
funções de gerenciamento, da burocracia etc. –, com frequência fica quase
impossível discernir sob ela a relação separada entre o capital e o trabalho.
Nesse aspecto, acho simbólico que o último capítulo do terceiro livro d’O
capital trate do problema das classes no capitalismo. A posição do capítulo
é importante, embora seu conteúdo não possa ser levado tão a sério. Ele sugere
que as configurações de classe que realmente existem no capitalismo têm de ser
interpretadas como o produto de forças que se estendem em apoio à acumulação do
capital e à reprodução do trabalhador como o portador da mercadoria força de
trabalho. Por isso, as configurações de classe não podem ser assumidas a
priori. Elas são ativamente produzidas. A relação de classe entre o capital
e o trabalho – uma relação que simplesmente reconhece a centralidade de comprar
e vender força de trabalho para a vida econômica no capitalismo – é apenas um
ponto de partida no qual se pode analisar a produção de configurações de classe
bem mais complicadas, específicas do capitalismo. O fluxo de forças em ação
dentro da dinâmica da história capitalista – um fluxo que procuramos pelo menos
parcialmente captar nas páginas precedentes – cria pressões para a formação de
novas estruturas e alianças de classe (inclusive aquelas baseadas no
território). Mas as lealdades, a identidade e a consciência de classe não são
de modo algum instantaneamente maleáveis. A tensão resultante merece o maior
escrutínio possível. Afinal, a luta de classes não pode ser adequadamente
entendida sem que se entenda, antes de tudo, como as configurações e as
alianças de classe são forjadas e mantidas.
Tal
abordagem pode ajudar a unir aquilo que com frequência parece uma disjunção mais
séria entre os teóricos de um modo de produção puramente capitalista e aqueles
que buscam reconstruir as geografias históricas reais das formações sociais
capitalistas em toda a sua rica complexidade. Os teóricos podem procurar torcer
e tecer seus argumentos de modo a “localizar e descrever as formas concretas
que crescem dos movimentos do capital como um todo” e assim “se aproximam passo
a passo” das formas concretas que o capital “assume na superfície da sociedade”[1]. Dessa maneira, “a vida da matéria” pode ser
“refletida idealmente”[2]. Mas o aparato
conceitual incorporado nessa reconstrução teórica não é de modo algum uma
abstração idealista. Ele é construído a partir de categorias e
relacionamentos, como força de trabalho, mais-valor (absoluto e relativo) e o
capital como processo, forjado mediante transformações históricas reais – por
meio da acumulação primitiva, da ascensão de formas de dinheiro e do
intercâmbio no mercado, da luta feroz pelo controle capitalista dentro do reino
da produção. As próprias categorias nascem de uma experiência histórica real.
A
teoria começa quando colocamos essas categorias historicamente fundamentadas
para trabalhar e gerar novas interpretações. Não podemos, por esse meio,
esperar explicar tudo o que existe nem buscar um pleno entendimento de eventos
singulares. Essas não são as tarefas com as quais a teoria deve lidar. Ao
contrário, seu objetivo é criar estruturas para o entendimento, um aparato
conceitual elaborado com o qual captar os relacionamentos mais importantes em
ação dentro da dinâmica complexa da transformação social. Podemos explicar por
que a mudança tecnológica e organizacional e as reorganizações geográficas
dentro da divisão espacial do trabalho são socialmente necessárias para a
sobrevivência do capitalismo. Podemos entender as contradições incorporadas
nesses processos e mostrar como as contradições estão manifestadas na geografia
histórica propensa à crise do desenvolvimento capitalista. Podemos entender
como novas configurações e alianças de classe são formadas, como podem ser
expressas como configurações territoriais e degenerar em rivalidades
interimperialistas. Esses são os tipos de discussões que a teoria pode
produzir.
Mas
uma teoria que não consegue lançar luz sobre a história ou sobre a prática
política é certamente redundante. Pior ainda: a teorização errônea – de modo algum
uma prerrogativa exclusiva da burguesia – pode induzir a equívocos e
mistificar. E nenhum teórico pode reivindicar onisciência. Em algum ponto ou
outro conexões tangíveis devem ser feitas entre a trama da teoria e a textura
da geografia histórica. O poder persuasivo do primeiro livro d’O capital
deriva precisamente da maneira como o aparato conceitual da teorização apoia e
é apoiado por evidências históricas. Este é o tipo de unidade que devemos
continuamente nos esforçar para manter e melhorar.
No
entanto, a separação dentro dessa unidade, adequadamente construída, tem o seu
lugar. Ela pode ser o local de uma tensão criativa, um ponto de alavancagem
para a construção de novas ideias e entendimentos. A insistência prematura na
unidade da teoria e da prática histórica pode conduzir à paralisia e à estase,
e às vezes a formulações totalmente equivocadas. Ou nos esforçamos para entulhar
uma geografia histórica recalcitrante em uma dinâmica descrita por algumas
categorias simplistas, ou criamos novas categorias historicamente fundamentadas
nesses eventos particulares dos quais elas só podem captar a aparência
superficial, nunca o significado social interno.
Há,
então, certa virtude em aceitar e até mesmo buscar em seus mais extremos
limites a separação entre a teoria e a prática histórica, ainda que apenas
porque o seu desenvolvimento desigual abre novas perspectivas na unidade que necessariamente
deve prevalecer entre elas. Correr com as duas pernas ainda é mais rápido que
pular com as duas pernas amarradas.
Mas,
na análise final, o importante é a unidade. O desenvolvimento mútuo da teoria e
da reconstrução histórica e geográfica, todas projetadas nos entusiasmos da
prática política, constitui o cadinho intelectual do qual podem emergir novas
estratégias para a reconstrução saudável da sociedade. A urgência dessa tarefa,
em um mundo assaltado por todos os tipos de perigos insanos – incluindo a
ameaça de guerra nuclear total (uma forma inglória de desvalorização) –,
certamente não necessita de demonstração. Se o capitalismo atingiu tais
limites, então cabe a nós encontrar maneiras para transcender os limites do
próprio capital.”
[1] Karl Marx, Capital,
Livro III, cit., p. 25.
[2] Ibidem, Livro I, p.
90.
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