Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-438-4
Tradução: Silvia
de Bernardinis
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 400
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Sinopse: Ver Parte
I
“2. Guerra e retomada do idealismo da práxis
O que
tornou ainda mais difícil a construção de uma ontologia do ser social foi um
acontecimento que teve papel decisivo na história da fortuna de Marx e Engels.
No curso da Primeira Guerra Mundial, os diversos Estados em luta, mesmo aqueles
de mais consolidada tradição liberal, apresentaram-se como Moloch
sangrentos, decididos a sacrificar milhões de homens no altar da defesa da
pátria e na realidade da competição imperialista pela hegemonia mundial.
Tamanho horror não poderia deixar de levantar e radicalizar ulteriormente a
tese, aliás, a espera mais ou menos messiânica, da extinção do Estado; parecia
completamente insatisfatório qualquer programa político que se detivesse aquém
da reivindicação de uma ordem social desprovida de aparato estatal e militar.
É um
clima espiritual que, junto com os grandes intelectuais, atinge por algum tempo
também personalidades políticas de primeiro plano. Ao publicar Estado e
revolução enquanto se alastra a carnificina bélica e na véspera da revolução
chamada a pôr fim à mesma, Lenin formula a tese de que o proletariado vitorioso
“precisa unicamente de um Estado em via de extinção”[8].
Três anos depois, em um momento em que é forte a esperança de um alastrar-se da
revolução no Ocidente, o líder revolucionário, que habitualmente se distingue
por um realismo e uma lucidez fora do comum, abandona-se a uma previsão
bastante próxima da ficção política: “A geração, cujos representantes têm hoje
cerca de cinquenta anos, não pode pensar em ver a sociedade comunista. Até lá,
terá desaparecido. Mas a geração que hoje tem quinze anos verá a sociedade
comunista e construirá ela mesma essa sociedade”[9].
Do futuro comunista, que aqui parece de fácil alcance, faz parte também a extinção
do Estado como tal.
A
retórica patriótica e os ódios nacionais, em parte “espontâneos”, em parte sabiamente
atiçados, desbocaram em um horror sem precedentes. Era imperiosa a exigência de
acabar com tudo isso; eis, então, a emergência em certos setores do movimento
comunista a um internacionalismo irrealista orientado a liquidar as diversas
identidades nacionais como simples preconceitos.
O que
provocou a catástrofe foram a competição pela conquista das colônias, dos
mercados e das matérias-primas, a busca ao lucro e, em última análise a auri
sacra fames. Em 1918, o jovem Bloch[10]
assim sintetizava as expectativas messiânicas do tempo: os sovietes realizariam
a “transformação do poder em amor” e edificariam um mundo liberado de vez de
“toda economia privada”, de toda “economia do dinheiro” e, com ela, da “moral
mercantil que consagra tudo que de mais malvado há no homem”. Em pouco tempo, a
trágica experiência do primeiro conflito mundial reforçava ulteriormente e de
forma bastante definida a tendência ao idealismo da práxis; agora era a mesma
consciência moral que impunha a negação do caráter de ser social ao Estado, à
nação, ao mercado, às estruturas e às relações consideradas responsáveis pela
infâmia que se consumou entre 1914 e 1918 e que ameaçava repetir-se (e que de
fato se repetiu) em breve.
À luz
de tudo isso, a advertência já observada no último Lukács de não perder de
vista a objetividade do ser social contém um tom autocrítico. Nos anos da
juventude, em 1922, ele mesmo não o havia levado em conta, quando escreveu: “O
núcleo do ser é visto como devir social, o ser pode aparecer como produto da
atividade humana, até agora com certeza inconsciente, e esta última pode por
sua vez aparecer como o elemento determinante da transformação do ser”[11]. Nesse caso também transparece o idealismo da
práxis, embora a luta de classes do proletariado tenha tomado o lugar do
empenho a liquidar os “vínculos das coisas em si”.
O
idealismo da práxis é pertinaz. Ainda em 1936-1937, Trotski retoma e reafirma a
previsão de ficção política que já observamos em Lenin: “A geração que
conquistou o poder, a velha guarda, inicia a liquidação do Estado; a geração
seguinte completará essa tarefa”. No horizonte da Rússia soviética, porém, não
se vislumbra nada que torne crível essa perspectiva. Mesmo em relação ao
dinheiro, não há traço de sua “progressiva deterioração”; ao contrário, ele não
perdeu de forma alguma “sua potência mágica”; nem a “constrição estatal” e
tampouco a “constrição monetária” apresentam rachaduras. Permanecem, portanto,
firmemente de pé as características centrais de uma “sociedade dividida em
classes, que não pode determinar as relações entre os homens, a não ser pela
ajuda de fetiches religiosos ou laicos, pondo-os sob a proteção do mais
temível, o Estado, com um grande punhal entre os dentes”[12].
Os “grilhões das coisas em si” de Fichte permanecem consistentes e resistentes.
Só resta visar, através da luta de classe, à “burocracia” que está no poder e
que obstaculiza a realização do programa originário.
3. A difícil passagem da práxis à
teoria
Sim,
o idealismo da práxis é pertinaz; todavia, ele é pontualmente desmentido pela
prática de governos, pela práxis em andamento. O novo poder soviético agita a
bandeira da extinção do Estado. Entretanto, em junho de 1919, Gramsci atribui
àquela “aristocracia de estadistas” representada pelos bolcheviques o mérito de
ter salvado o Estado russo da dissolução à qual parecia condenado pela
catástrofe da guerra mundial, da guerra civil e das ambições e das manobras do
imperialismo[13]. O Estado russo salvo pelos
defensores da extinção do Estado! A reação de um leitor anarquista de L’Ordine
Nuovo é de escândalo, ele observa que é a própria Constituição soviética
que empenha-se para a instauração de uma ordem em cujo âmbito “não haverá mais
divisões de classe nem poder do Estado”[14].
Efetivamente, é clara aos bolcheviques a divergência da práxis em relação à
teoria, mas é a práxis que demonstra maior lucidez. A práxis, a luta de classes
revolucionária, impede um país já prostrado de se precipitar em uma guerra de
todos contra todos, em um ciclo interminável de balcanização e fragmentação
anárquica, de violências e vinganças privadas; por consequência, impede a
permanência de um poder mais ou menos feudal nesta ou naquela área de um país
de dimensões continentais e o impasse ou o fracasso da edificação da nova
ordem.
Em
uma importante intervenção (“melhor menos, mas melhor”), que confirma sua
grandeza como homem de Estado, publicada na Pravda de 4 de março de
1923, Lenin lança palavras de ordem bastante significativas: “melhorar nosso
aparato estatal”, empenhar-se na “edificação do Estado”, “construir um aparato
[estatal] realmente novo, que realmente mereça o nome de socialista, de
soviético” (enfrentando uma tarefa desafiadora que requer “muitos, muitíssimos
anos”), aperfeiçoar o “trabalho administrativo”, fazendo tudo isso sem
deixar de aprender com “os melhores modelos da Europa ocidental”[15].
De novo, a práxis
invocada e parcialmente atuada está mais do que nunca em contradição com a teoria,
sendo muito mais madura que ela. Talvez emergissem os primeiros, vagos
elementos de reconsideração mesmo na teoria: não só é silenciado ou projetado
em um futuro remoto o fim da extinção do Estado, como também emerge a
consciência de que negligenciar a tarefa da edificação de um Estado novo
significa, em última análise, prolongar a sobrevivência do velho aparato
estatal czarista: “Devemos apagar qualquer indício daquilo que a Rússia
czarista e seu aparato burocrático e capitalista deixaram em tão ampla medida
como herança para nosso aparato”[16]. Todavia,
a teoria da extinção do Estado como objetivo remoto da luta de classes
revolucionária não é posta em discussão.
Contudo,
em A
ideologia alemã (e em outros textos de Marx e Engels) podemos ler que o
Estado é também a “forma de organização” com que os indivíduos da classe dominante
garantem a si próprios[17]. E não se compreende
por que essa função deveria se tornar desnecessária no âmbito de uma “classe
dominante” diferente, ou de uma sociedade diferente, que afinal de contas é
sempre constituída por indivíduos entre os quais continuam obviamente a existir
a possibilidade e a realidade de desacordos, tensões e conflitos. As primeiras
dúvidas sobre a extinção do Estado são formuladas enquanto a guerra civil entre
os bolcheviques (em parte latente, em parte manifesta) e o grande terror fazem
sentir tragicamente a ausência de uma “forma de organização”, através da qual
os membros do partido e da sociedade podem garantir a si próprios.
Expressando-se com prudência e com a consciência de andar num campo minado, ao
enumerar as funções do Estado socialista, além das tradicionais de defesa do
inimigo de classe no plano interno e internacional, em 1938, Stalin teoriza uma
“terceira função, isto é, o trabalho de organização econômica e o trabalho
cultural e educativo dos órgãos de nosso Estado”, um trabalho finalizado com o
“objetivo de desenvolver os embriões da economia nova, socialista, e de
reeducar os homens no espírito do socialismo”. Tem razão o grande jurista Hans
Kelsen quando realça imediatamente a “mudança radical da doutrina desenvolvida
por Marx e Engels”[18]. Trata-se, todavia, de
uma mudança que de alguma forma esconde a si mesma e que, portanto, não produz
uma virada real. Não sendo a tese da extinção do Estado explicitamente posta em
discussão, continua eludida a questão relativa aos mecanismos jurídicos e institucionais
capazes de dar certeza da garantia recíproca entre os indivíduos. Na história
do “socialismo real”, o problema do governo da lei, da rule of law,
emerge muito mais tarde, com Deng Xiaoping[19]
na direção da China, depois de uma Revolução Cultural, também animada pela
convicção do caráter “formal” e escassamente significativo de uma norma
jurídica destinada, de qualquer forma, a desaparecer junto com o Estado.
Em
segundo lugar, a Revolução de Outubro e a luta de classes do proletariado russo
e mundial deveriam pôr em movimento um processo que terminaria não dando espaço
às identidades e às fronteiras nacionais. Sobre esse ponto, a contradição entre
teoria e práxis é anterior à conquista do poder por parte dos bolcheviques. “Os
operários não têm pátria”, proclama o Manifesto
Comunista[20];
mas depois os próprios autores identificam-se com as lutas nacionais dos povos
oprimidos, pondo-as no centro da agitação da Associação Internacional dos
Trabalhadores. No plano mais propriamente teórico, é Marx quem realça o fato de
que em um país como a Irlanda, a “questão social” se configura como “questão
nacional”. Depois de outubro de 1917, em um momento em que a onda
revolucionária parece a ponto de espalhar-se na Europa (e no mundo inteiro), ao
assumir o cargo de comissário do povo para os Negócios Estrangeiros, Trotski
resume com precisão a perspectiva que parece vislumbrar-se no horizonte:
“Emitirei alguns decretos revolucionários aos povos do mundo e depois fecharei as
portas”[21]. Com uma humanidade unificada em
âmbito planetário, o primeiro ministério que resultaria desnecessário seria
aquele que normalmente preside às relações entre os diversos Estados. Não é
diversa a atitude de Lenin, que, concluindo o I Congresso da Internacional
Comunista, declara: “A vitória da revolução proletária em todo o mundo é
garantida. Está próxima a hora da fundação da república mundial dos sovietes”[22]. Alguns meses depois, em 4 de janeiro de
1920, o líder soviético realça que o problema de “estabelecer a fronteira entre
os Estados hoje” deve com certeza ser enfrentado, mas “provisoriamente – já que
nós almejamos sua abolição completa”; travada até o fim, a luta de classes
revolucionária resultaria na fundação da “República federativa soviética
mundial”[23].
Entretanto,
Lenin é impelido pelas necessidades concretas da luta de classes, pela defesa
da Rússia soviética e pela edificação da nova sociedade a usar o tom patriótico.
Rejeitando indiretamente as acusações de traição nacional dirigidas aos
bolcheviques pelos defensores da continuação a qualquer preço da guerra, em
outubro de 1921 ele observa que com Brest-Litowsk “a Rússia, embora mutilada,
pôde sair da guerra imperialista e saiu menos mutilada do que sairia se tivesse
continuado”[24]. Alguns meses depois (março de
1922), o líder soviético convida nestes termos seus colaboradores e seus
seguidores a demonstrar concretude: “O camponês dirá: ‘Sois bravíssima gente,
têm defendido a nossa pátria, por isso obedecemos; mas, se não sabem
administrar, vão embora’”[25]. No que diz
respeito a Stalin, ele já trava sua luta pela paz imediata e pela revolução
bolchevique agitando palavras de ordem nacional, isto é, denunciando como
expressão de arrogância imperial e neocolonial a pretensão da Entente de
obrigar a Rússia a continuar a guerra. Contudo, é com certa surpresa que em
1929 Stalin[26] aponta um fenômeno em grande
parte inesperado pelos protagonistas da Revolução de Outubro: “A estabilidade
das nações é de tamanho colossal!”.
Mais
importante ainda do que esses indiretos reconhecimentos teóricos à ideia de
nação e de pátria são os resultados efetivamente originados pela ação de
governo. Em 1927, Benjamin[27] põe em evidência
“o forte senso nacional que o bolchevismo desenvolveu em todos os russos, sem
distinção”. A conclusão a que chega Trotski, dez anos depois, é ainda mais
eloquente[28]: na URSS difunde-se um “novo
patriotismo soviético”, um sentimento “certamente muito profundo, sincero e
dinâmico” pelo fato de que ele não implica a opressão das “nacionalidades
atrasadas” não russas, mas seu respeito e sua participação nos “benefícios” do
total desenvolvimento econômico e cultural.
O
“patriotismo soviético” (e, na realidade, sobretudo russo) desenvolve, além do
mais, um papel decisivo na derrota infligida pela URSS ao projeto hitleriano de
colonizar e escravizar os povos da Europa oriental. Em síntese, a luta de
classes revolucionária que, a partir da conquista do poder, deveria inaugurar
um processo destinado a resultar no desaparecimento do Estado e da nação marca,
na realidade, a emergência de uma “aristocracia de estadistas” e de um
patriotismo que salvam o Estado e a nação de uma catástrofe de dimensões
monstruosas.
Isso
não é tudo. Junto com as identidades nacionais, as identidades linguísticas
também estavam destinadas a desaparecer na onda da formação de uma comunidade
mundial unificada até mesmo no plano linguístico, em seguida à superação das
velhas culturas e das velhas línguas, que tinham imprimido sobre si o estigma
de uma sociedade dividida em classes e que, portanto, não poderiam sobreviver
por muito tempo ao colapso do capitalismo – não eram poucos aqueles que assim
argumentavam na Rússia soviética. Nesse caso, a contraposição entre teoria e
práxis era particularmente clamorosa. Assim que conquistaram o poder, os
bolcheviques empenhavam-se em um programa de alfabetização maciça que implicava
a difusão do russo entre amplas massas até então incapazes de ler e escrever.
Aquilo que acontecia em relação às minorias nacionais era de particular
importância. Em 1936-1937, Trotski traçava um balanço eloquente.
A instrução é dada atualmente na URSS em pelo
menos oitenta línguas. Para a maioria desses idiomas, foi necessário criar o
alfabeto ou substituir alfabetos asiáticos demasiado aristocráticos por
alfabetos latinizados, mais acessíveis para as massas. Aparecem jornais em
igual número, permitindo aos pastores nômades e aos cultivadores primitivos
conhecer os elementos da cultura.[29]
Contudo,
é tão tenaz a visão de tipo milagroso de uma luta de classes capaz de gerar um
mundo totalmente novo que, um ano antes de sua morte, em 1952, Stalin ainda se
sente obrigado a intervir polemicamente. Não, é necessário reconhecer os
limites da luta de classes. A língua “não é criada por uma classe qualquer, mas
por toda a sociedade, por todas as classes da sociedade, através dos esforços de
centenas de gerações. É criada para satisfazer as necessidades não de uma
classe qualquer, mas de toda a sociedade, de todas as classes da sociedade”.
Afirmar que a língua não está acima do conflito social pode parecer mais
“classista” e mais revolucionário. Na realidade, é veleidade perder de vista o
fato de que a língua “constitui o produto de uma série inteira de épocas” e que
a pretensão de inventar uma língua proletária ex novo, esquecendo mais
uma vez a marxiana “atividade anterior” da língua, perde de vista o fato de que
ela é “meio de comunicação entre os homens”[30].
A indevida dilatação do âmbito da luta de classe compromete a comunicação intersubjetiva
e liquida a dimensão da universalidade, que é constitutiva da marxiana luta de
classes como luta pelo reconhecimento.
Sim,
em tempos bastante rápidos, a práxis consegue lucidez, mas a necessária
operação de adaptar a teoria à práxis revela-se de extrema dificuldade e
carregada de contradições e lacerações muitas vezes trágicas.
4. A dura descoberta do mercado
Mesmo
em relação ao mercado, podemos notar a habitual discrepância entre teoria e
práxis. Mas neste último caso o quadro é mais complexo. Por um lado,
reapresenta-se a dialética já analisada. Relançando o aparato econômico e
produtivo de um país em colapso e onde às vezes a única forma de troca é
constituída pelo escambo, de fato o poder soviético amplia o mercado – e
amplia-o ulteriormente quando promove uma campanha em vasta escala para a
industrialização e a urbanização. Pode-se fazer uma consideração de caráter
geral: nas sociedades prevalentemente atrasadas e semifeudais em que os
partidos comunistas chegaram ao poder, o desenvolvimento da economia e das
forças produtivas implicou também a extensão das relações mercantilistas, e, de
qualquer forma, o advento de um autêntico mercado nacional. Mas tudo isso no
plano teórico correspondeu à demonização do mercado, particularmente viva nos
países entre os quais continua a advertir-se o choque da Primeira Guerra
Mundial. Ainda na véspera de sua morte, Stalin[31]
é obrigado a empenhar-se em uma difícil batalha ideológica: “Não se pode
identificar a produção mercantil com a produção capitalista. São duas coisas
diferentes”. Mais de trinta anos depois, Deng Xiaoping[32]
realça: “Não existe uma fundamental contradição entre socialismo e economia de
mercado. O problema é como desenvolver da forma mais eficaz as forças
produtivas”. Aquilo que diferencia o socialismo não é a planificação como tal,
que é um instrumento usado às vezes pelos mesmos países capitalistas; o mercado
também é um instrumento a que um país de orientação socialista pode recorrer.
Até
aqui estamos tratando do já conhecido problema da adaptação da teoria à
prática. Mas agora se apresenta também o problema inverso, Marx conhece muito
profundamente o mundo da economia para ignorar o fato de que sem competição não
é possível promover o desenvolvimento das forças produtivas. A Crítica do
Programa de Gotha esclarece que o socialismo é fundado na retribuição em
base ao trabalho fornecido, que, porém, é por definição “desigual”[33]. Mas na Rússia soviética a práxis não consegue
conformar-se à teoria – o horror da Primeira Guerra Mundial e o colapso da
economia ulteriormente acentuado pela guerra civil criaram um terreno favorável
para a difusão de uma visão populista do socialismo (criticada pelo Manifesto
Comunista) em nome de um “rude igualitarismo” fundado no “ascetismo
universal” e coato.
Lenin
logo percebe a necessidade de uma virada, mas não chega a um acerto de contas
no plano teórico. Com certeza, a reflexão autocrítica contida em uma
intervenção, Para o quarto aniversário da revolução, é significativa.
Transportados pelo entusiasmo e tendo despertado
o entusiasmo popular – antes genericamente político e depois militar –, nós
esperávamos, diretamente na base desse entusiasmo, executar também as tarefas
econômicas não menos importantes do que as políticas e militares [...]. Não
diretamente através do entusiasmo, mas com a ajuda do entusiasmo nascido da
grande revolução, baseando nisso o estímulo pessoal, o interesse pessoal, o
cálculo econômico, construam primeiro uma sólida ponte que, em um país de
pequenos camponeses, através do capitalismo de Estado, leve ao socialismo.[34]
Em
todo caso, no campo econômico, não há como confiar por um longo período no
entusiasmo de massas organizadas militarmente, é necessário, mais cedo ou mais
tarde, tocar no “interesse pessoal”. Infelizmente, essa importante aquisição
teórica é neutralizada pelo persistente uso da linguagem militar: é necessário
abrir mão do “sistema do ataque”, da “ofensiva”, para “retirar-se”, e, no
conjunto, parece como se essa retirada fosse um remédio tático de breve duração[35].
Por
muito – talvez demasiado – tempo, os países de orientação socialista
continuaram confiando seu desenvolvimento econômico no entusiasmo
revolucionário e no ardor patriótico. Mas se trata de disposições de espírito
que implicam uma particular intensidade emotiva e que, portanto, por definição,
não podem ser permanentes. O apelo ao espírito de sacrifício e até mesmo ao
heroísmo pode constituir a exceção, certamente não a regra. Poder-se-ia dizer,
citando Bertolt Brecht: “Triste de um povo que ainda precisa de heróis”. Os
heróis são necessários para a passagem do estado de exceção à normalidade e são
heróis só na medida em que conseguem garantir a passagem à normalidade; isto é,
os heróis são tais à medida que conseguem se tornar desnecessários a si próprios.
É um “comunismo” bastante estranho aquele que pressupõe uma continuidade ao
infinito, ou quase, do espírito de sacrifício e de renúncia.
Historicamente
aconteceu que, com o embaçamento no passar do tempo do entusiasmo
revolucionário e do ardor patriótico, volvem, em formas cada vez mais graves,
os problemas que emergiram nos dias seguintes à Revolução de Outubro. Perdura
também a anarquia nos locais de trabalho, tranquilamente desertados por seus
dependentes, os quais, mesmo quando estão fisicamente presentes, parecem
todavia empenhados em uma espécie de greve branca, que, aliás, é tolerada; essa
é a impressão, entre desorientação e admiração, das delegações operárias e
sindicais em visita à URSS dos últimos anos.
É um
problema que atinge a história do “campo socialista” como um todo. Ainda na
China, que começa a deixar para trás o maoísmo, no setor público continuam
vigorando hábitos que assim foram relatados por um jornalista ocidental: “Até o
último auxiliar [...], se quiser, pode decidir não fazer absolutamente nada,
ficar em casa por um, dois anos e continuar recebendo o salário no fim do mês”[36]. Vamos, então, a Cuba. Em outubro de 1964,
Che Guevara[37] é obrigado a constatar: “Vejamos
ainda o problema do absenteísmo”. Essa formulação é errônea ou ilusória, faz
pensar que o problema está a ponto de ser solucionado. Na realidade, com o
passar dos anos, o apelo à consciência revolucionária encontra um eco cada vez
mais flébil. Cuba procurou com tenacidade evitar o recurso ao mercado e aos
incentivos materiais por causa dos elementos de desigualdade que isso implica
na retribuição do trabalho, mas no final teve de aceitar a realidade. Raul
Castro, então, dirige a seus compatriotas o apelo a “eliminar para sempre a
noção de que Cuba é o único país no mundo onde se pode viver sem trabalhar”[38].
A
verdadeira virada acontece com a chegada de Deng Xiaoping à direção da China;
ele traça um balanço ponderado: “A iniciativa não pode ser estimulada sem
instrumentos econômicos. Um pequeno número de pessoas avançadas pode responder
à chamada moral, mas uma abordagem desse tipo só pode ser utilizada por breve
tempo”[39]. Na história do socialismo, é a
partir desse momento que se toma consciência da apreciação pela Ideologia
alemã do mercado (e da competição) como motor do desenvolvimento das
forças produtivas – “por meio da concorrência universal” e do mercado, a grande
indústria “obrigou todo indivíduo à mais extrema aplicação de suas energias”[40].
Em
termos filosóficos, a descoberta da objetividade do ser social resultou
particularmente árdua no campo econômico. Por demasiado tempo, trincheirando-se
atrás de uma atitude idealista, o movimento comunista resistiu antes de
render-se à evidência de que, por mais vitoriosa que seja a luta
revolucionária, ele nada tem a ver com a criação ex nihilo do “homem
novo”, movido apenas por nobres ideais, completamente indiferente ao interesse
material.”
[8] LO, v. 25, p. 380.
[9] Ibidem, v. 21, p. 284.
[10]
Ernst Bloch, Geist der Utopie (1918) (Frankfurt, Suhrkamp, 1971), p.
298.
[11] György Lukács, Storia
e coscienza di classe (1922) (7. ed. Milão, Sugarco, 1988), p. 26.
[12] Leon
Trotski, Schriften. Sowjetgesellschaft und stalinistische Diktatur
(orgs. H. Dahmer et al., Hamburgo, Rasch und Röhring, 1988), p. 853 e 757-8 [ed.
it.: La rivoluzione tradita, Roma, Samonà e Savelli, 1968, p. 148 e 61].
[13] Ver, neste volume,
cap. 7, seção 4.
[14] Antonio Gramsci, L’Ordine
Nuovo: 1919-1920 (orgs. V. Gerratana e A. Santucci, Turim, Einaudi, 1987),
p. 56-7. A carta do anarquista pode ser lida no n. 8 de L’Ordine Nuovo.
[15] LO, v. 33, p.
445-50.
[16] Ibidem, v. 33, p.
458.
[17] MEW, v. 3, p. 62
[ed. bras.: Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, cit., p. 75].
[18] Domenico Losurdo, Stalin.
Storia e critica di una leggenda nera (Roma, Carocci, 2008), p. 68 e 122.
[19] Deng
Xiaoping, Selected Works (Pequim, Foreign Language Press, 1992-1995), v.
3, p. 166-7.
[20] MEW, v. 4, p. 479
[ed. bras.: Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, cit., p.
56].
[21] Eduard H. Carr, La
rivoluzione bolscevica (1950) (4. ed., Turim, Einaudi, 1964), p. 814.
[22] LO, v. 28, p. 479.
[23] Ibidem, v. 30, p.
261 e 265.
[24] Ibidem, v. 33, p.
47.
[25] Ibidem, v. 33, p.
264.
[26]
Joseph Stalin, Werke (Hamburgo, Roter Morgen, 1971-1973), v. 11, p. 38.
[27]
Walter Benjamin, Immagini di città (Turim, Einaudi, 2007), p. 44.
[28] Leon
Trotski, Schriften. Sowjetgesellschaft und stalinistische Diktatur,
cit., p. 856 e 862-3 [ed. it.: La rivoluzione tradita, cit., p. 151 e
156].
[29] Ibidem, p. 863 [ed.
it.: ibidem, p. 157].
[30] Joseph Stalin, Il
marxismo e la linguistica (1950) (Milão, Feltrinelli, 1968), p. 21 e 23.
[31] Idem, Problemi
economici del socialismo nell’URSS (1952) (Milão, Cooperativa Editrice
Distributrice Proletaria, 1973), p. 23.
[32] Deng
Xiaoping, Selected Works, cit., v. 3, p. 151 e 203.
[33] MEW, v. 19, p. 20-1
[ed. bras.: Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha, cit., p. 30-1].
[34] LO, v. 33, p. 43-4.
[35] Ibidem, v. 33, p. 76
e 254-5.
[36] Em Francesco Sisci, La
differenza tra la Cina e il mondo. La rivoluzione degli anni Ottanta
(Milão, Feltrinelli, 1994), p. 102.
[37] Ernesto Guevara, Scritti,
discorsi e diari di guerriglia. 1959-1967 (org. L. Gonsalez, Turim, Einaudi,
1969), p. 1.364.
[38] Roberto Livi, “La
riforma di Raul”, Il Manifesto, 3 ago. 2010, p. 8.
[39] Em
Ezra F. Vogel, Deng Xiaoping and the transformation of China
(Cambridge-MA/Londres, Harvard University Press, 2011), p. 243.
[40] MEW, v. 3, p. 60 [ed.
bras.: Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, cit., p. 60].
“Se
esse era o quadro do país na liderança (em declínio), vejamos agora o quadro do
país na liderança (em ascensão) do mundo capitalista. Nesse mesmo período, no
Sul dos Estados Unidos, desapareceu o instituto da escravidão, mas os “velhos
senhores dos Sul”, os “senhores barões” dos quais falava Marx[44],
continuavam exercendo um poder absoluto sobre os negros. Estes últimos não só
resultam privados dos direitos políticos, como também dos direitos civis: estão
expostos a um regime de terrorista white supremacy que às vezes os
condena ao linchamento, a uma lenta e interminável tortura e agonia, que
constitui, ao mesmo tempo, um espetáculo para uma multidão (de homens, mulheres,
crianças da comunidade branca) em festa e exultante.
Esse
é o mundo posto em discussão pela Revolução de Outubro. O que colapsa entre
1989 e 1991 não é, então, o “Antigo Regime” ou a “antiga ordem”; os derrubados
são os herdeiros ou os epígonos do novo regime, isto é, da nova ordem
revolucionária que, entretanto, nunca superou o estado de precariedade. Pode-se
considerar estavelmente vitoriosa uma revolução só quando a classe
protagonista, depois de atravessar um período mais ou menos longo de conflitos e
contradições, de tentativas e erros, consegue expressar a forma política
duradoura de seu domínio. É um processo de aprendizagem que para a burguesia
francesa vai de 1789 até 1871; somente depois dessa data – realça Gramsci –, ao
realizar a república parlamentar baseada no sufrágio universal (masculino), ela
encontra a forma política de seu domínio. Em uma sociedade moderna, o domínio
se revela duradouro desde que se saiba combinar hegemonia e coerção, que se
saiba trazer claramente à tona o momento da coerção e da ditadura só em
situações de crise aguda.
Por
circunstâncias objetivas e responsabilidades subjetivas, a revolução iniciada
em 1917 não foi capaz de produzir esse resultado. Em um país como a Rússia, ao
quebrar os grilhões do Antigo Regime, a nova ordem realizou uma gigantesca
difusão da instrução e da cultura e uma extraordinária mobilidade social, pondo
as bases para uma sociedade civil que se tornou cada vez mais exigente até que
não pôde mais se reconhecer em uma ordem fossilizada. Nesse sentido, aquilo que
ocorreu entre 1989 e 1991 é resultado do sucesso e, ao mesmo tempo, da derrota
do projeto comunista.”
[44] MEW, v. 31, p. 128.
“Não é a presumida mudança de paradigma que caracteriza a situação que se
configurou a partir da crise e do colapso do “campo socialista”. Aliás, a
contraposição entre paradigma da redistribuição (cujo intérprete seria o
movimento operário) e paradigma do reconhecimento (que encontraria sua
encarnação em primeiro lugar no movimento feminista) é, ao contrário, o sintoma
da real mudança ocorrida. Para compreender essa transformação é necessário não
perder de vista uma questão sobre a qual chamei atenção diversas vezes. Vários
são os sujeitos da luta de classes e multíplices são as lutas pelo
reconhecimento e pela emancipação. Não existe uma preestabelecida harmonia
entre eles: por razões objetivas e subjetivas, podem intervir incompreensões e
lacerações. Os momentos mais altos da história que se originou a partir do Manifesto Comunista foram aqueles nos quais se fugiu
da fragmentação, de modo que as diversas lutas confluíram em uma única poderosa
onda emancipadora.
Entretanto, mais do que a regra,
isso representa a exceção. Não existe luta de classes, por mais progressiva que
seja, que não possa ser instrumentalizada pelo poder dominante e que, portanto,
não possa ser inserida no âmbito de um projeto global de cunho conservador ou
reacionário. Não se trata de um fenômeno novo, mas ele ganhou ênfase e adquiriu
um novo valor qualitativo com o desencantamento dos êxitos das revoluções do
século XX e com a desorientação teórica que isso originou.”
“Essas múltiplas contradições,
que refletem uma complexa situação objetiva, ainda antes de ser o resultado das
manobras do poder dominante, se recompõem e são levadas à unidade só em
ocasiões privilegiadas, em presença de válidas sínteses teóricas ou pela
influência de grandes revoluções ou de maduros projetos revolucionários e,
mesmo nesse caso, não deixam de sofrer oscilações e dificuldades de diferente
natureza. Enquanto se alastra o primeiro conflito mundial, se por um lado Lenin
chama o proletariado do Ocidente a insurgir contra a burguesia e a transformar
a guerra imperialista em guerra civil revolucionária, por outro lado ele saúda
as lutas e as guerras de libertação nacional travadas pelos “povos coloniais” e
pelos “países oprimidos” em geral e chama atenção para a permanente condição de
“escrava doméstica” a que é submetida a mulher[47], não por acaso
excluída dos direitos políticos junto com os “pobres” e com o “estrato
inferior propriamente proletário”[48]. As três frentes da luta
de classes nesse caso convergem.
Em um intervalo de
aproximadamente uma década, a partir das áreas rurais Mao[49]
promove uma revolução que, no âmbito da radical renovação nacional e social da
China, entende pôr em discussão também o “poder marital”, o ulterior “pesado
grilhão” que prende as mulheres junto com os outros que estrangulam o conjunto
do povo chinês.
Outras vezes, a unificação das
diversas frentes de luta de classes é mais difícil. Com certeza, mesmo por
Frantz Fanon, “a liberdade do povo argelino se identifica [...] com a
libertação da mulher, com seu ingresso na história”. Não se trata só de uma
declaração de princípio. Já a participação ativa na guerra partisan faz
com que a mulher não seja mais uma “menor”, ainda mais que tal participação põe
em discussão a segregação sexual e a “virgindade-tabu”; em todo caso, “o velho
medo da desonra se torna completamente absurdo em face da tragédia vivida pelo
povo”[50]. É necessário, todavia, não perder de vista outro aspecto
da questão:
Os responsáveis pela
administração francesa na Argélia, prepostos a destruir a originalidade do povo
e encarregados pelas autoridades de desagregar a qualquer custa as formas de
existência que podem evocar qualquer realidade nacional, concentram seu maior
esforço sobre o uso do véu, concebido nesse caso como símbolo da mulher
argelina [...]. A agressividade do ocupante, e, portanto, suas esperanças,
decuplicam-se a cada rosto descoberto [...]. A sociedade argelina, a cada véu
tirado, parece aceitar a submissão à escola do patrão e decidir de mudar seus
hábitos, sob a direção e a proteção do ocupante.[51]
Nesse objetivo e determinado
contexto, pelo menos no imediato, a luta de libertação pode entrar em conflito
com a emancipação da mulher. E esse risco se tornou claramente mais saliente
hoje, quando, no Oriente Médio, após a crise do comunismo e do marxismo, os
partidos de orientação religiosa exercem a direção dos movimentos de libertação
e de resistência nacional. No passado, as potências coloniais (e a própria
Itália de Mussolini) promoveram sua expansão em nome da emancipação da
escravidão ainda vigente na África, salvo impor depois o trabalho coato em
formas ainda mais odiosas, e não mais contra uma determinada classe, mas contra
a população indígena como um todo. Nos nossos dias, o projeto colonialista
agita às vezes, sem sucesso, a bandeira da emancipação da mulher, mas tendo
como alvo não países como a Arábia Saudita – onde a segregação e a escravidão
doméstica da mulher persistem em sua forma mais rígida e mais obtusa –, mas
países que se rebelam em relação ao Ocidente, como o Irã, onde a discriminação
contra as mulheres ainda é dura e odiosa, mas onde, de qualquer forma, foi
corroída em medida considerável (as moças constituem a maioria da população
universitária e desfrutam de uma acentuada mobilidade social).”
[47] LO, v. 23, p. 31 e 70.
[48] Ibidem, v. 25, p. 433 e v.
22, p. 282.
[49] Mao Tse-Tung, Opere
scelte, cit., v. 1, p. 41-3.
[50] Frantz Fanon, Scritti
politici. L’anno V della rivoluzione algerina (2001) (Roma, DeriveApprodi,
2007), v. 2, p. 94-6.
[51] Ibidem, p. 40 e 44-5.
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