Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-4430-374-0
Tradução: Artur Renzo
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
“Marx reconhecia que o valor da força de
trabalho variava de país para país, dependendo de “preço e volume das
necessidades vitais elementares, natural e historicamente desenvolvidas, custos
da educação do trabalhador, papel do trabalho feminino e infantil,
produtividade do trabalho, sua grandeza extensiva e intensiva”. Variações
geográficas na intensidade do trabalho são particularmente importantes. O
“trabalho nacional mais intensivo produz, em tempo igual, mais valor, que se
expressa em mais dinheiro”. A “lei do valor” é “modificada” pela “diversidade
nacional dos salários”3 e pelas variações geográficas em extensão,
intensidade, produtividade e porosidade da jornada de trabalho. Produtividades
diferentes de trabalho conforme as diferenças naturais (por exemplo, alimentos
mais baratos provenientes de terras férteis sob um clima favorável), diferentes
definições de vontades, necessidades e desejos conforme a situação natural e
cultural e dinâmicas de lutas de classes significam que a equalização da taxa
de lucro não virá acompanhada de uma equalização da taxa de exploração entre os
países4. Na eventualidade de uma transação comercial entre países, o
“país favorecido recebe mais trabalho em troca de menos trabalho, embora essa
diferença, esse excedente, tal como no intercâmbio entre o trabalho e o capital
em geral, seja embolsado por uma classe determinada”5. Não ganha
brinde quem adivinhar qual é a classe beneficiada. “Aqui”, diz Marx, “a lei do
valor sofre uma modificação essencial [...] o país mais rico explora o mais
pobre, mesmo quando o segundo ganha com a troca.”6 Isso evita
qualquer “nivelamento direto de valores por tempo de trabalho e ainda o
nivelamento de preços de custo por uma taxa geral de lucro entre os diferentes
países”7.
O trabalho social que realizamos para os
outros em determinada parte do mundo é diferente, tanto qualitativa quanto
quantitativamente, do trabalho social que realizamos para os outros em outra
parte do mundo. Na eventualidade de uma transação comercial entre diferentes
regimes de valor regionais, o trabalho social de uma região pode acabar
subsidiando e sustentando a economia e o estilo de vida de outra. Regimes de
alta produção de valor, como aqueles baseados em setores produtivos
trabalho-intensivos (por exemplo, México ou Bangladesh), podem estar
sustentando regimes capital-intensivos de alta produtividade (como os Estados
Unidos). E ainda mais grave: as usinas de engarrafamento de dívidas em Nova
York e Londres, que produzem antivalor, cobram o resgate desse valor nas
fábricas de Bangladesh e Shenzhen, e não nas quebradas de Manhattan ou Soho.
Esse argumento tem implicações de grande
alcance. No Livro I d’O capital, Marx se pergunta como a igualdade
pressuposta pelas relações concorrenciais de troca pode ser compatível com a
desigualdade da produção de mais-valor. A resposta repousa na transformação da
força de trabalho em mercadoria e na exploração do trabalho vivo na produção.
No Livro III, Marx resolve outra surpreendente charada. A equalização da taxa
de lucro por meio da concorrência força a troca das mercadorias não por seus
valores, mas por seus preços de produção8. Os capitalistas recebem
mais-valor de acordo com a força de trabalho que empregam. A redistribuição de
mais-valor a que isso leva em situações de comércio aberto no interior da
classe capitalista favorece produtores capital-intensivos em detrimento de
produtores trabalho-intensivos.
A lei da redistribuição capitalista, conforme
apresentada no Livro III, evoca alguns paralelos interessantes. O comitê do
Senado encarregado de investigar a crise de 2007-2008 perguntou a Lloyd
Blankfein, CEO da Goldman Sachs, como ele definiria o papel do banco. Ele
respondeu que a função do banco era “fazer o trabalho de Deus”9.
Presume-se que tinha em mente a injunção bíblica do Evangelho de Mateus
(25:29): “porque a todo aquele que tem será dado e terá em abundância, mas
daquele que não tem, até o que tem será tirado”. É isso o que a equalização da
taxa de lucro faz. As consequências têm um alcance potencialmente longo, dada a
insistência de Marx (e de Ricardo) de que o trabalho é a fonte última do valor.
O comércio entre um regime capital-intensivo (tal como o da Alemanha) e regimes
trabalho-intensivos (tais como o de Bangladesh) resultará na transferência de
valor e mais-valor do segundo para o primeiro. Isso será realizado de maneira
“silenciosa” e “natural” através do próprio processo do mercado. Para tanto,
não são necessárias táticas imperialistas de dominação e extrativismo, mas a
simples promoção de práticas de livre-comércio. Essa é a maneira “silenciosa”
pela qual regiões ricas enriquecem à custa das regiões pobres, que vão ficando
cada vez mais para trás. Por esse motivo, muitos dos ditos países em
desenvolvimento recorrem ao protecionismo, particularmente no caso das chamadas
“indústrias nascentes”. Isso também ajuda a explicar por que tantos países em
desenvolvimento, a começar pelo Japão dos anos 1960, preferem organizar e
subsidiar formas de desenvolvimento capitalista capital-intensivas, em vez de
formas trabalho-intensivas10. Aquilo que se denomina “subir na
cadeia de valor” em direção a produções de maior valor agregado torna-se uma
ambição generalizada.”
2 Peter Haggett, Locational
Analysis in Human Geography (Londres, Edward Arnold, 1965).
3 Karl Marx, O capital, Livro I, cit., p. 631, 632, 633.
4 Os detalhes dos esparsos comentários de
Marx sobre esse tópico estão reunidos em David Harvey, Spaces of Capital. cit. cap. 12.
5 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 277.
6 Idem, Theories of Surplus Value,
Part 3, cit., p. 106.
7 Idem, Theories of Surplus Value,
Part 2, cit., p. 474-5.
8 Idem, O
capital, Livro III, cit., cap. 9.
9 Dealbook, “Blankfein Says Hes Just Doing ‘God’s Work’”, The New York
Times [coluna], 9 nov., 2009.
““Para os senhores economistas”, no entanto,
“é terrivelmente difícil avançar teoricamente da autoconservação do valor no
capital à sua multiplicação.”9 Nossa compreensão do mundo se torna
refém da insanidade de uma razão econômica burguesa que não apenas justifica
como promove a acumulação sem limites, enquanto simula uma infinidade virtuosa
de crescimento harmonioso e melhorias contínuas e alcançáveis no bem-estar
social. Os economistas jamais enfrentaram a “má infinidade” do crescimento
exponencial infindável, que só pode culminar em desvalorização e destruição. Ao
contrário, louvam as virtudes de uma burguesia que triunfantemente “capturou o
progresso histórico e o colocou a serviço da riqueza”10. Esquivam-se
sistematicamente de saber se as crises são inerentes a tal sistema. As crises,
dizem eles, devem-se a atos de Deus ou da natureza ou a equívocos humanos e
erros de cálculo (em especial aqueles que podem ser atribuídos a intervenções
estatais equivocadas). Todos ou qualquer um desses motivos pode provocar um
descarrilamento da máquina supostamente imaculada do infinito capitalismo de
livre mercado. Mas os economistas insistem que a máquina em si permanece o
epítome da perfeição. Quando se depararem com uma crise, os economistas só
poderão alegar que, “se a produção fosse realizada conforme os livros
didáticos, as crises jamais ocorreriam”.
Toda razão que eles [os economistas] levantam contra as crises é uma
contradição exorcizada e, portanto, uma contradição real. O desejo de convencer
a si mesmos da não existência de contradições e ao mesmo tempo a expressão de
um vão desejo de que as contradições, que estão efetivamente presentes, não
existissem.11
A ciência econômica contemporânea não tem
contradições.
Foi nesse contexto que Marx decidiu dedicar
tanto de seu esforço teórico e de sua vida intelectual à crítica da
economia política e da loucura da razão econômica. Nesse processo, ele revela
irracionalidades e “formas insanas” cada vez mais profundas no pensamento
sistêmico e no programa político que supostamente nos conduziria a um utopismo
da vida cotidiana. As leis contraditórias do movimento que ele identifica
beneficiam unicamente a classe capitalista e seus acólitos, ao mesmo tempo que
reduzem populações inteiras a exploração de seu trabalho vivo na produção, a
escassas oportunidades em sua vida cotidiana e a servidão por dívida em suas
relações sociais.
Marx descobre que a loucura da razão
econômica burguesa é ainda mais exacerbada pelos crescentes antagonismos entre
o valor e suas representações monetárias. À medida que o dinheiro se desprende
necessariamente de qualquer lastro material (como as mercadorias-dinheiro ouro
e prata), suas construções idealistas (como números de dólares, euros, ienes
etc.) e, sobretudo, sua crescente manifestação na forma de dinheiro de crédito
tornam-se vulneráveis aos caprichos dos juízos humanos, suscetíveis a excessos
e manipulações de quem tem as rédeas do poder. “De sua figura de servo, na qual
se manifesta como simples meio de circulação, converte-se repentinamente em
senhor e deus no mundo das mercadorias”, cuja riqueza universal “pode ser
tangivelmente incorporada às posses de um indivíduo singular”. O dinheiro é uma
reivindicação individualizada sobre o trabalho social dos outros, exatamente da
mesma maneira que a dívida constitui uma reivindicação sobre o trabalho futuro
dos outros. O dinheiro confere a seu possuidor “o poder universal sobre a
sociedade, sobre o inteiro mundo dos prazeres, dos trabalhos etc.”12.
Do tempo de Marx para cá, ampliou-se enormemente o hiato entre a proliferação
dessas reivindicações e a base de valor na qual elas supostamente estão
lastreadas. Hoje, se todos se dirigissem aos bancos para sacar em espécie o
equivalente de seus depósitos, levaria meses, se não anos, até que se
conseguisse imprimir as notas necessárias. Todos os dias, 2 trilhões de dólares
trocam de mãos nos mercados de comércio exterior.”
5 Idem, O
capital, Livro III, p. 523.
6 Ibidem, p. 401.
7 Idem, Grundrisse,
cit., p. 338.
8 Idem, O
capital, Livro III, p. 442.
9 Idem, Grundrisse,
cit., p. 210.
10 Idem, cit., p. 490.
11 Idem, Theories of Surplus Value,
Part 2, cit., p. 468 e 549. Boa parte dos economistas
reconhece as imperfeições de mercado provenientes de efeitos de externalidade e
de imperfeições informacionais (e até as estudam enquanto “fracassos de
mercado”). Os que possuem uma orientação mais keynesiana chegam a admitir um
papel a ser desempenhado pelo Estado no sentido de garantir um gerenciamento
adequado da oferta e da demanda agregada, principalmente voltado para amortecer
as oscilações e os solavancos dos ciclos econômicos na esperança de eliminar
crises e depressões. Mas o objetivo deles é fundamentalmente o de corrigir
imperfeições e definir políticas otimizadas para balizar o envolvimento do
Estado a fim de restaurar ao seu devido lugar o conceito do equilíbrio
harmonioso. Nenhum deles, nem mesmo figuras como Paul Krugman, Joseph Stiglitz
e Jeffrey Sachs, que reivindicam posições políticas progressistas, possuem
qualquer concepção das contradições internas do capital ou dos perigos da má
infinidade do crescimento exponencial infinito.
“O valor em Marx é trabalho alienado
socialmente necessário. Na medida em que capital é valor em movimento, a
circulação de capital implica a circulação de formas alienadas. Até que ponto
essas alienações estão por trás das evidentes manifestações políticas de
descontentamento e desespero?
A alienação inerente à valorização é bem
conhecida e de longa data. O trabalhador que cria valor é afastado (alienado)
dos meios de produção, do comando do processo de trabalho, do seu produto e do
mais-valor. O capital faz com que pareça que muitos dos poderes inerentes (e
dádivas gratuitas) do trabalho e da natureza pertencem a ele e se originam
dele, porque é o capital que lhes confere significado. Até mesmo a mente e as
funções corporais do trabalhador, assim como todas as forças naturais
livremente investidas na produção, aparecem como poderes contingentes do
capital, porque é ele que as mobiliza. A alienação da relação com a natureza é
com a natureza humana e, portanto, uma precondição para a afirmação da
produtividade e dos poderes do capital. Além disso, a produtividade do trabalho
é conduzida por tecnologias escolhidas pelo capital não apenas para confirmar
seu controle sobre o trabalhador mas também para minar a dignidade e os
supostos poderes do trabalho tanto na produção quanto no mercado. A não ser que
alguma resistência seja efetivamente mobilizada, o destino dos trabalhadores
será o trabalho desprovido de sentido, empregos contingentes, desemprego e
salários cada vez mais baixos. Não há dúvida de que em muitas partes do globo a
alienação do trabalho vem se intensificando e aprofundando com as
transformações tecnológicas, a supressão do poder organizado dos movimentos da
classe trabalhadora e a mobilização da concorrência global por meio da
reorganização dos regimes territoriais de valor no mundo. O desemprego e, não
menos importante, o subemprego e a perda de sentido são subprodutos das fortes
correntes de transformação tecnológica e organizacional. Os discursos utópicos
sobre as novas configurações tecnológicas baseadas em inteligência artificial
que estão nos conduzindo ao limiar de um admirável mundo novo de consumismo
emancipatório e tempo livre para todos ignoram completamente a alienação
desumanizante dos processos de trabalho residuais e dispensáveis que decorrem
desse processo. É impossível ignorar os efeitos coletivos traumáticos e
destrutivos do fechamento de indústrias manufatureiras sobre os laços sociais
que uniam as pessoas em determinado tempo e espaço. Marx, por sua vez,
considerava que era preciso traçar uma importante distinção entre trabalhadores
que eram objetificados e explorados pelo capital, mas ainda sentiam que eram
necessários (portanto mantinham certo orgulho e dignidade), e os trabalhadores
que eram alienados, despossuídos e se sentiam descartáveis38. As
condições de emprego decorrentes da mecanização e da automação tendiam para
esse segundo tipo de trabalho. A perda da dignidade e do respeito é sentida
quase tão duramente quanto a perda do emprego.
Mas há outras dimensões nesse problema.
Trabalhadores são contratados individualmente e competem entre si por
oportunidades de emprego. Eles precisam se vender ao capital como portadores de
força de trabalho alardeando suas qualidades e ao mesmo tempo diminuindo e
depreciando as de seus concorrentes. A concorrência entre trabalhadores frustra
a cooperação e impede a construção de solidariedades de classe. Introduz toda sorte
de fragmentações. Os trabalhadores passam a estranhar uns aos outros. Isso se
torna ainda mais repulsivo quando se mistura ao racismo, as discriminações de
gênero e de orientação sexual, as hostilidades religiosas, étnicas ou sexuais
no mercado de trabalho (divisões que, historicamente, o capital promove com
avidez). A concorrência aguda (sob condições de desemprego disseminado e maior
integração espacial das forças de trabalho do mundo) está intensificando essas
divisões e tensões no interior da força de trabalho, com consequências
políticas previsíveis, particularmente em situações em que as solidariedades
sociais anteriores se dissolveram por causa da desindustrialização. Foram
esses, por exemplo, os sentimentos que Donald Trump soube explorar tão bem em
2016, em sua campanha à presidência dos Estados Unidos.
A alienação no processo de realização toma
diversas formas e muitas vezes é uma faca de dois gumes. O estado das vontades,
necessidades e desejos está sempre na origem da demanda. Marx considerava, sem
ironia, que a criação de novas vontades e necessidades era parte da missão
civilizatória do capital39. É difícil contestar essa opinião quando
consideramos, por exemplo, todos os valores de uso que agora podem ser
mobilizados para prolongar a expectativa de vida das pessoas, que nos
primórdios do capitalismo era de 35 anos em média e hoje, em muitas regiões do
mundo, é de setenta anos ou mais. O capital produz uma cornucópia de valores de
uso a partir da qual as pessoas podem criar relações sociais e formas não
alienadas de estar na natureza e umas com as outras. A potencialidade está lá.
O mundo é repleto de brechas com espaços heterotópicos em que grupos buscam, em
meio a um mar de alienação, construir modos não alienados de viver e de ser. As
alienações experimentadas na produção podem ser recuperadas por meio do consumo
compensatório de valores de uso que melhoram a qualidade da vida cotidiana40.
Por outro lado, as vontades, necessidades e desejos do complexo
militar-industrial, do lobby armamentista ou da indústria automobilística foram
e continuam a ser fontes poderosas de demanda agregada, projetada pela
influência corporativa sobre o aparato estatal e pelas escolhas impostas de
estilo de vida. Suas contribuições ao bem-estar social são no mínimo dúbias. A
base econômica de uma cidade como São Paulo é uma indústria automobilística que
produz veículos que ficam horas parados em engarrafamentos, entupindo ruas,
cuspindo poluentes e isolando indivíduos uns dos outros. Quão saudável é essa
economia?”
36 David Harvey, 17 contradições e o fim do capitalismo (trad. Rogerio Bettoni, São
Paulo, Boitempo, 2016).
37 Bertell Ollman, Alienation,
cit.
38 Karl Marx, Grundrisse, cit.
39 Ibidem, p. 283-4.
40 Andre Gorz, Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica (trad. Ana
Montoia, Sao Paulo, Annablume, 2003); sobre os limites do consumismo
compensatório, ver Karl Marx, Grundrisse.
cit., p. 207 e seg.
“A relação entre o processo de realização e a
história do consumismo se sobrepõe à evolução histórica dos distintos estilos
de vida. A construção dos subúrbios e dos condomínios fechados nos Estados
Unidos pode ter salvado o capitalismo global das condições de retorno à
depressão econômica, mas também confinou as escolhas de habitação, de maneira que
estejam ligadas não apenas a exigências materiais (por exemplo, ter carro e
casa própria) mas também sejam acompanhadas de justificativas políticas e
ideológicas de certo modo de vida (o chamado “american dream”) que
limita e aprisiona, em vez de ampliar os horizontes da realização pessoal. A
ascensão do “consumismo compensatório” nas classes trabalhadoras é
complementada pelo consumismo conspícuo de “bens hedonistas” em todas as
classes sociais, que não remontam a nada além de um desperdício conspícuo. A busca
infindável de satisfação de vontades, necessidades e desejos — que não podem
nunca ser realmente satisfeitos — vem necessariamente acompanhada do
crescimento exponencial infindável da produção. Embora seja errado considerar a
reconfiguração de todas as novas vontades, necessidades e desejos como
“alienada”, não é difícil enxergar que as alienações estão proliferando na
sociedade consumista que o capital necessariamente constrói e vem se
intensificando em muitos lugares e em certas classes marginalizadas. O abismo
entre a promessa e a realização vem se alargando.
Se a circulação de capital está sob imensa
pressão competitiva para se acelerar, isso exige que haja também um aumento na
velocidade do consumo. Eu ainda uso os talheres que eram dos meus avós. Se o
capital produzisse apenas itens desse tipo, já teria afundado há muito tempo
numa crise permanente. O capital desenvolve toda uma gama de táticas — da
obsolescência programada à mobilização de pressões de propaganda e a moda como
ferramentas de persuasão — para acelerar o tempo de rotação no consumo.
Considere o caso de uma produção original da Netflix. O fato de eu a consumir
não impede que outros também a consumam, e o tempo de consumo é de, digamos,
cerca de uma hora — em comparação com os meus talheres, que já duram mais de
cem anos. O valor implicado na produção e na transmissão do filme por meio de
complexas infraestruturas de comunicação é recuperado pelos milhões de usuários
que assinam a Netflix. Não é à toa que o capital tem cultivado uma “sociedade do espetáculo” a fim de garantir uma forma de crescimento do mercado de produtos
efêmeros para consumo instantâneo41. As consequências sociais são
amplas, e muitas delas são facas de dois gumes. A rapidez na transformação de
estilos de vida, tecnologias e expectativas sociais faz com que se multipliquem
as inseguranças sociais e aumentem as tensões sociais entre gerações, assim
como entre grupos sociais cada vez mais diversificados. Todos parecem mais
interessados em consultar seus smartphones ou tablets do que em
conversar uns com os outros. O enraizamento dos significados culturais torna-se
mais precário e aberto as reconstruções casuais, conforme as fantasias
contemporâneas. Identidades flutuam em um mar de vínculos transitórios e
efêmeros. Pessoas e produtos que correspondam a isso são necessários para que o
capital cumpra a exigência de crescimento exponencial infindável. Da
perspectiva da acumulação infindável de capital, é com isso que se parece o
“consumo racional”.”
41 Guy Debord, A
sociedade do espetáculo (trad. Estela
dos Santos Abreu, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997).
“Convido os leitores a comparar essa
sequência as linhas gerais do que ocorreu na crise financeira de 2007-2008
(substituindo “hipotecas” por “letras de câmbio”):
Num sistema de produção em que toda a rede de conexões do processo de
reprodução se baseia no crédito, quando este cessa de repente e só se admitem
pagamentos à vista, tem de se produzir evidentemente uma crise, uma demanda
violenta de meios de pagamento. À primeira vista, a crise se apresenta como uma
simples crise de crédito e crise monetária. E, com efeito, trata-se apenas da
conversibilidade das letras de câmbio [hipotecas] em dinheiro. Mas a maioria
dessas letras [hipotecas] representa compras e vendas reais, cuja extensão, que
vai muito além das necessidades sociais e acaba servindo de base a toda a
crise. Ao mesmo tempo, há uma massa enorme dessas letras [hipotecas] que
representa apenas negócios fraudulentos, que agora vem à luz e estouram como
bolhas de sabão; além disso, há especulações feitas com capital alheio, porém
malogradas; e, por fim, capitais-mercadorias [casas] desvalorizados, ou até
mesmo invendáveis [...]. Esse sistema artificial inteiro de expansão forçada do
processo de reprodução não pode naturalmente ser remediado fazendo com que um
banco, por exemplo, o Banco da Inglaterra [o Federal Reserve], conceda a todos
os especuladores, com suas cédulas, o capital que lhes falta e compre todas as
mercadorias depreciadas [casas] a seus antigos valores nominais. Além disso,
aqui tudo aparece distorcido, pois nesse mundo de papel jamais se manifestam o
preço real e seus fatores reais [...]. Principalmente nos centros em que se
concentra todo o negócio monetário do país, como Londres, nota-se claramente
essa distorção; todo o processo se torna incompreensível, mas em menor medida
nos centros de produção.49
Isso nos leva a considerar o poder e a
importância daquele aspecto da distribuição que opera como uma câmara de
compensação para a conversão de dinheiro ocioso em circulação de capital
portador de juros. É aqui, pela criação de antivalor e pela promoção de
servidão por dívida, que a loucura da razão econômica assume o controle. Em um
mundo com excesso de liquidez (denominação frequentemente usada pelo FMI em
seus relatórios), esse dinheiro precisa ser mobilizado, centralizado e
emprestado com a garantia e a certeza de uma produção futura de valor. A
conversão de dinheiro excedente em uma forma de anticapital que demanda seu
quinhão futuro é realizada nas instituições financeiras. O credor retém o
direito de propriedade referente ao dinheiro ao longo do processo todo e espera
receber de volta esse valor monetário em um prazo estipulado, acrescido de um
excedente, que é o juro, e de um ganho de capital, que também pode ser
alcançado com um aumento das valorações dos ativos da empresa na bolsa.
O gerenciamento geral dessa operação de
conversão (ou metamorfose, como Marx preferiria se referir a ela) do dinheiro
em antivalor está localizado em larga medida naquilo que chamei em outro lugar
de “nexo Estado-finanças”50. Nos Estados Unidos (assim como na maior
parte das democracias ocidentais), isso é constituído de um departamento do
Tesouro (que tem sempre um estatuto especial no interior do aparato estatal) e
de um Banco Central, que é o ápice do sistema bancário privado. A primeira
estrutura desse tipo surgiu com a fundação do Banco da Inglaterra, em 1694. Uma
carta régia de Guilherme e Maria concedeu monopólio bancário e garantiu amplos
poderes a um grupo de comerciantes ricos em troca de crédito e financiamento a
um Estado que havia sido quebrado pelo desregramento dos reis da Casa de
Stuart. O equilíbrio de poder entre o Estado e as finanças se deslocou com o
tempo. Desde que Bill Clinton admitiu, nos primeiros anos de sua presidência,
que seu programa econômico dependia do consentimento dos credores, o posto de
secretário do Tesouro dos Estados Unidos tem sido ocupado por alguém da Goldman
Sachs.
Esse nexo Estado-finanças não é sujeito a
controle democrático ou popular. Sua função é garantir a regulação e o controle
do sistema bancário privado, em benefício do capital como um todo. A natureza
das finanças, sugere Marx, é garantir o gerenciamento do “capital comum de uma
classe”51. Da perspectiva do todo, o nexo Estado-finanças é análogo
ao sistema nervoso central de qualquer totalidade orgânica. Ele sanciona e
garante práticas de alavancagem que pegam dinheiro ocioso em depósitos e o
convertem em anticapital. O papel do anticapital, como vimos anteriormente, é
comprometer o futuro do maior número possível de agentes econômicos e condenar
todos — consumidores, produtores, comerciantes, proprietários e até os próprios
financistas — à servidão por dívida.
“O capital, como mercadoria de tipo
específico” sempre teve “um modo peculiar de alienação”:
toda a enorme expansão do sistema de crédito, todo o crédito em geral, é
explorada por eles como se fosse seu capital privado. Esses sujeitos possuem o
capital e a receita sempre em forma de dinheiro ou de direitos que versam
diretamente sobre o dinheiro. A acumulação da fortuna dessa classe pode ter
lugar de maneira muito distinta da acumulação real, mas, em todo caso,
demonstra que essa classe embolsa uma parcela considerável desta última.52
O problema é que a finança normalmente:
estabelece o monopólio [em certas esferas] e, com isso, provoca a
ingerência estatal. Produz uma nova aristocracia financeira, uma nova classe de
parasitas sob a forma de projetistas, fundadores e diretores meramente
nominais; todo um sistema de especulação e de fraude no que diz respeito à
fundação de sociedades por ações e ao lançamento e comércio de ações.53
Ademais, “se o mais-valor é concebido sob a
forma sem conceito dos juros, o limite é apenas quantitativo” e a consequência
disso, acrescenta Marx, “desafia toda a fantasia”54. A má infinidade
mostra sua cara. O bônus que os operadores de Wall Street deram a si mesmos no
período de crise “desafia toda a fantasia”. Foi isso o que causou indignação no
movimento Occupy, que surgiu de repente no Zuccotti Park de Wall Street, em
2011.
O efeito disciplinador do ônus da dívida é
vital para a reprodução da forma contemporânea do capital. Dívida significa que
não somos mais “livres para escolher”, como supõe Milton Friedman em seu elogio
do capitalismo. O capital não perdoa nossas dívidas, conforme pede a Bíblia,
ele insiste que nós as quitemos com produção futura de valor. O futuro já foi
anunciado e encerrado (pergunte a qualquer estudante que tenha 100 mil dólares
de empréstimo universitário para pagar). A dívida nos aprisiona em certas
estruturas de produção futura de valor. A dívida é o meio predileto do capital
de impor sua forma particular de escravidão. Isso se torna duplamente perigoso
quando o poder dos credores subverte e tenta aprisionar a soberania do Estado.
É por esse motivo que a única maneira de o capital sobreviver é por meio da
coerência e da fusão obtidas pelo nexo Estado-finanças. Com isso, completa-se o
processo de alienação de populações inteiras de qualquer influência e poder
reais. Nem o Estado nem o capital oferecem alívio às privações e aos
desempoderamentos. Atenas é tradicionalmente celebrada como o berço da
democracia. Hoje é apenas o berço da servidão por dívida, a total e completa
demolição de qualquer democracia.
O poder corruptor e alienante do dinheiro —
que, quando assume a forma de juro, age “como se tivesse amor no corpo”55
— é parte do problema. Não foi só Marx que reconheceu as alienações envolvidas.
Até mesmo Keynes, um profundo defensor da ordem burguesa, mas ocasionalmente um
afiado crítico, opinou sobre o tema:
Quando a acumulação da riqueza não for mais de grande importância
social, haverá grandes mudanças nos códigos morais. Seremos capazes de nos
libertar de muitos dos princípios pseudomorais que nos atormentam há duzentos
anos, pelos quais elevamos algumas das mais repugnantes qualidades humanas a
posição das mais altas virtudes. Seremos capazes de nos dar ao luxo de ousar
avaliar o imperativo do dinheiro pelo que ele realmente vale. Amar o dinheiro
enquanto posse — em contraposição a amar o dinheiro como meio para os gozos e
as realidades da vida — será reconhecido
por aquilo que é, uma morbidez um tanto asquerosa, uma daquelas propensões
semicriminosas, semipatológicas, que se deve encaminhar com um estremecimento
aos especialistas em doenças mentais. Seremos finalmente livres para nos
desfazer de todos os tipos de costumes sociais e práticas econômicas que afetam
a distribuição de riqueza e de recompensas e penalidades econômicas, e que hoje
conservamos a todo custo, por mais repugnantes e injustas que sejam, porque são
tremendamente úteis à promoção da acumulação do capital.56
O fato de a riqueza humana, que deveria ter
toda sorte de significados sociais, estar cada vez mais aprisionada na métrica
única do poder monetário é por si só problemático.
De fato, porém, se despojada da estreita forma burguesa, o que é a
riqueza senão a universalidade das necessidades, capacidades, fruições, forças
produtivas etc. dos indivíduos, gerada pela troca universal? [...] [O que é
senão a] elaboração absoluta de seus talentos criativos, sem qualquer outro
pressuposto além do desenvolvimento histórico precedente [...]? [O que é senão
um desenvolvimento] em que o ser humano não se reproduz em uma
determinabilidade, mas produz sua totalidade? Em que não procura permanecer
como alguma coisa que deveio, mas é no movimento absoluto do devir? Na economia
burguesa — e na época de produção que lhe corresponde —, essa exteriorização
total do conteúdo humano aparece como completo esvaziamento; essa objetivação
universal, como estranhamento total, e a desintegração de todas as finalidades
unilaterais determinadas, como sacrifício do fim em si mesmo a um fim
totalmente exterior.57
É isso o que “desafia toda fantasia”. Esse é
o mundo insano e profundamente preocupante em que vivemos.”
46 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 500.
47 Costas Lapavitsas e Heiner Flassbeck, Against the Troika: Crisis and Austerity in the Eurozone (Londres,
Verso, 2015).
48 David Harvey, Para entender O Capital: Livros II e III cit.
49 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 547.
50 David Harvey, 17 contradições e o fim do capitalismo, cit.
51 Karl Marx, O capital, Livro III, cit., p. 416.
52 Ibidem, p. 396 e 535.
53 Ibidem, d. 496.
54 Ibidem, p. 449.
55 Johan Wolfgang von Goethe, Fausto, citado em Karl Marx. Grundrisse,
cit., p. 587.
56 John Maynard Keynes, Essays in Persuasion (Nova York, Classic House Books, 2009), p. 199.
57 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 399-400.