Editora: Boitempo
ISBN:
978-85-7559-398-1
Tradução: Amilton
Reis e Paulo Cézar Castanheira
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 486
“A natureza da crítica marxiana de Hegel é
muito diferente na sua teoria madura do que foi nas suas primeiras obras90.
Ele já não segue a maneira de Feuerbach de inverter sujeito e objeto como o fez
na Crítica da filosofia do
direito de Hegel (1843); também não trata trans-historicamente o trabalho como nos Manuscritos
econômico-filosóficos, em que ele argumenta que Hegel metaforizou o trabalho como o trabalho do
conceito. Em O capital (1847), Marx não se limita a inverter os
conceitos de Hegel de uma maneira “materialista”. Pelo contrário, num esforço
para apreender a natureza peculiar das relações sociais no capitalismo, Marx
analisa a validade social para a sociedade capitalista desses conceitos idealistas
de Hegel que antes ele tinha condenado como inversões mistificadas. Assim,
enquanto em A sagrada família (1845) Marx crítica o conceito filosófico de “substância”
e, em particular, o entendimento de Hegel da “substância” como “sujeito”91,
no início d’O capital ele faz uso da categoria de “substância”. Ele se refere
a valor como tendo uma “substância”, que ele identifica com o trabalho humano abstrato92.
Marx, então, já não considera “substância” uma simples hipostasia teórica; agora
a entende como um atributo das relações sociais mediadas pelo trabalho, como expressão
de um tipo determinado de realidade social. Em O capital ele investiga a
natureza dessa realidade social desenvolvendo logicamente as formas de
mercadoria e dinheiro a partir das suas categorias de valor de uso, valor e sua
“substância”. Sobre essa base, Marx começa a analisar a complexa estrutura de
relações sociais expressas pela sua categoria do capital. Inicialmente ele
determina capital em termos de valor que se autovaloriza. Nesse ponto da sua
exposição, Marx descreve o seu conceito de capital em termos que se relacionam
claramente com o conceito hegeliano de Geist.
O valor passa constantemente de uma forma a outra, sem se perder nesse
movimento, e, com isso, transforma-se no sujeito automático do processo.
[...] Na verdade, porém, o valor se torna, aqui, o sujeito de um
processo em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma, aparecendo
ora como dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria grandeza [...] [e
assim] valoriza a si mesmo. Pois o movimento em que ele adiciona mais-valor é
seu próprio movimento; sua valorização é, portanto, autovalorização. [...] [o
valor] se apresenta, de repente, como uma substância em processo, que
move a si mesma e para a qual mercadorias e dinheiro não são mais do que meras
formas.93
Marx caracteriza explicitamente o capital
como a substância em processo que é o sujeito. Ao fazê-lo, Marx sugere que um
sujeito histórico no sentido hegeliano existe realmente no capitalismo, mas
ainda assim ele não o identifica com nenhum grupamento social, como o
proletariado ou a humanidade. Pelo contrário, Marx o analisa em termos da
estrutura de relações sociais constituídas pelas formas de prática objetivante
e apreendidas pela categoria do capital (e, portanto, valor). Sua análise sugere
que as relações sociais que caracterizam o capitalismo são de um tipo muito peculiar
— elas possuem os atributos que Hegel atribuiu ao Geist. Então, é nesse
sentido que existe no capitalismo um sujeito histórico tal como concebido por
Hegel.
Já deveria estar claro nas determinações
preliminares do conceito marxiano de capital que ele não pode ser entendido
adequadamente em termos físicos e materiais, ou seja, em termos de estoque de
edifícios, materiais, máquinas e dinheiro possuídos pelos capitalistas; pelo
contrário, ele se refere a uma forma de relações sociais. Ainda assim, mesmo
entendido em termos sociais, o trecho citado indica que a categoria marxiana do
capital não pode ser completamente entendida em termos de propriedade privada,
da exploração e dominação do proletariado pela burguesia. Ao sugerir que o que
Hegel tentava conceituar com seu conceito de Geist devia ser entendido em
termos das relações sociais expressas pela categoria do capital, Marx deduz que
as relações sociais que caracterizam o capitalismo tem um caráter dialético e
histórico peculiar, que não pode ser conceituado adequadamente em termos apenas
de classe. Ele também sugere que essas relações constituem a base social do
próprio conceito de Hegel. Os dois momentos indicam uma mudança na natureza da
teoria crítica de Marx — e, portanto, na natureza da sua crítica materialista
de Hegel — com importantes implicações para o seu tratamento do problema
epistemológico da relação entre sujeito e objeto, a questão do sujeito
histórico, e a noção de totalidade.
A interpretação de Marx sobre o sujeito
histórico com referência a categoria do capital indica uma mudança de uma
teoria de relações sociais entendidas apenas em termos de classes sociais para
uma teoria de formas de mediação social expressas por categorias como valor e
capital. Essa diferença está relacionada a que existe entre as duas formas de
crítica social que discuti neste capítulo, ou seja, a diferença entre, de um
lado, entender o capitalismo como um sistema de exploração e dominação de
classe na sociedade moderna e, de outro, o que constitui o próprio tecido da
sociedade moderna. O “sujeito”, para Marx, é uma determinação conceitual desse
tecido. Como já vimos, a diferença entre o conceito idealista hegeliano do
sujeito e o que Marx apresenta como o “núcleo racional” materialista daquele
conceito não é o fato de o primeiro ser abstrato e supra-humano, enquanto o
segundo é concreto e humano. De tato, até o ponto em que a noção de Hegel do sujeito
tem validade social e histórica, de acordo com Marx, esse sujeito não é
um agente social concreto e humano, coletivo ou individual. Pelo contrário, o
sujeito histórico analisado por Marx é composto por relações objetivadas, as
formas categoriais subjetivo-objetivas características do capitalismo, cuja “substância”
é o trabalho abstrato, ou seja, o caráter específico do trabalho como atividade
socialmente mediadora no capitalismo. O sujeito de Marx, tal como o de Hegel,
então, é abstrato e não pode ser identificado com nenhum ator social. Ademais,
os dois se desenvolvem no tempo de uma forma que é independente da vontade
individual.
Em O capital, Marx tenta analisar o
capitalismo diante de um desenvolvimento dialético que é de fato independente
da vontade individual e que, portanto, se apresenta como uma lógica. Ele
investiga o desenvolvimento da lógica dialética como expressão real de relações
sociais alienadas que são constituídas pela prática e, ainda assim, existem
quase independentemente. Não trata essa lógica como uma ilusão ou simplesmente
como consequência do conhecimento insuficiente da parte do povo. Como ele
afirma, o conhecimento por si só não muda o caráter dessas relações94.
Veremos que, dentro da estrutura da sua análise, essa lógica de desenvolvimento
é, em última análise, uma função das formas sociais do capitalismo, e não é
característico da história humana como tal95.
Como o sujeito, o capital é um “sujeito”
notável. Enquanto o sujeito de Hegel é trans-histórico e conhecedor, na análise
de Marx ele é historicamente determinado e cego. O capital, como estrutura
constituída por formas determinadas de prática, pode, por sua vez, ser
constituinte de formas de prática social e subjetividade; ainda assim, como
sujeito, ele não tem ego. É autorreflexivo e, como forma social, pode induzir autoconsciência,
mas, diferentemente do Geist de Hegel, ele não possui autoconsciência. É
necessário distinguir subjetividade e sujeito socio-histórico na análise de
Marx.
A identificação do sujeito-objeto idêntico com
estruturas determinadas de relações sociais tem importantes implicações para
uma teoria da subjetividade. Ela indica que Marx se afastou do paradigma e da
epistemologia do sujeito-objeto por uma teoria social da consciência. Ou seja,
na medida em que ele não se limita a identificar o conceito de sujeito-objeto
idêntico (a tentativa de Hegel de superar a dicotomia sujeito-objeto da epistemologia
clássica) com um agente social, Marx altera os termos do problema
epistemológico. Ele desvia a atenção do problema do conhecimento do sujeito
individual (ou supraindividual) cognoscente e sua relação com um mundo exterior
(ou externalizado) para as formas de relações sociais, vistas como determinações
de subjetividade bem como de objetividade sociais. O problema do conhecimento
torna-se agora uma questão da relação entre formas de mediação social e formas
de pensamento. De fato, como vou discutir adiante, a análise marxiana da
formação social capitalista implica a possibilidade de analisar social e
historicamente a questão epistemológica propriamente dita predicada que é na
noção de um sujeito autônomo em nítida contradição com um universo objetivo96.
Essa espécie de crítica da dicotomia sujeito-objeto clássica é característica
da abordagem que Marx desenvolveu implicitamente na sua teoria crítica madura.
Ela é diferente de outros tipos de crítica — por exemplo, as que têm raízes na tradição
fenomenológica —, que refutam a noção clássica do sujeito descorporificado e descontextualizado
argumentando que “na realidade” as pessoas estão sempre inseridas em contextos
determinados. Em vez de simplesmente desconsiderar posições como o dualismo
sujeito-objeto clássico como resultado de um pensamento errôneo (que deixa sem
resposta a fonte da ideia “superior” da posição que refuta), a abordagem de Marx
tenta explicá-las historicamente, tornando-as plausíveis em relação a natureza
do seu contexto — ou seja, analisando-as como formas de pensamento ligadas às
formas estruturadas e estruturantes constitutivas da sociedade capitalista.
A crítica de Marx em relação a Hegel é,
portanto, diferente da apropriação materialista que Lukács faz de Hegel, na
medida em que não identifica um sujeito social concreto e consciente (por
exemplo, o proletariado) que se desenvolve historicamente, alcançando uma
autoconsciência plena por um processo de objetivação autorreflexiva. Se o
fizesse, estaria implicitamente sugerindo que o “trabalho” é a substância
constitutiva do sujeito, que as relações capitalistas impedem de se realizar.
Como supus em minha discussão do “Marxismo ricardiano”, o sujeito histórico
nesse caso seria uma versão coletiva do sujeito burguês, constituindo-se e
constituindo o mundo por meio do “trabalho”. Os conceitos de “trabalho” e
sujeito burguês (interpretado como indivíduo ou classe) estão intrinsecamente
relacionados: expressam uma realidade social historicamente específica na forma
ontológica.
A crítica marxiana de Hegel rompe com os
pressupostos dessa posição (que, entretanto, se tornou dominante na tradição
socialista). Em vez de encarar as relações capitalistas como extrínsecas ao
sujeito, como o que impede sua realização completa, Marx analisa essas mesmas
relações como constituintes do sujeito. Essa diferença fundamental está
associada com a que foi delineada anteriormente: as estruturas quase objetivas
apreendidas pelas categorias da crítica da economia política não velam as
relações sociais “reais” do capitalismo (relações de classe) nem o sujeito
histórico “real” (o proletariado). Pelo contrário, essas estruturas são as
relações fundamentais da sociedade capitalista que, dadas as suas propriedades
peculiares, constituem o que Hegel apreende como sujeito histórico. Esse
desvio teórico significa que a teoria marxiana não postula nem está presa à
noção de um metassujeito histórico, como o proletariado, que vai se realizar
numa sociedade futura. De fato, o movimento de uma teoria do sujeito coletivo (burguês)
para uma teoria de relações sociais alienadas implica uma crítica dessa noção. É
o aspecto de uma mudança importante de perspectiva crítica a partir de uma
crítica social com base no “trabalho” para uma crítica social da natureza peculiar
do trabalho no capitalismo, pela qual o ponto de vista da primeira passa a ser o
objeto de crítica da segunda.
Esse desvio se torna ainda mais claro quando
se considera o conceito de totalidade. Este não deve ser simplesmente pensado
indeterminadamente como referente ao “todo” em geral. Para Hegel, o Geist constitui
uma totalidade substancialmente homogênea que não é somente o Ser do início do
processo histórico, mas, desenvolvido, é o resultado do seu próprio
desenvolvimento. O desenvolvimento completo e a autorrecuperação do Geist é o
ponto final do seu desenvolvimento. já vimos que as premissas tradicionais relativas
ao trabalho e as relações sociais no capitalismo levam ao conceito hegeliano da
totalidade a ser adotado e traduzido assim em termos “materialistas”: a
totalidade social é constituída pelo “trabalho”, mas é velada, aparentemente
fragmentada e impedida de se realizar pelas relações capitalistas. Ela
representa o ponto de vista da crítica do presente capitalista e se realizará
no socialismo.
Mas a determinação categorial marxiana do
capital como o sujeito histórico indica que a totalidade tornou-se o objeto da
crítica de Marx. Como será discutido mais adiante, a totalidade social, na
análise de Marx, é uma característica essencial da formação capitalista e uma
expressão de alienação. A formação social capitalista, de acordo com Marx, é
única na medida em que é constituída de uma “substância” social homogênea;
portanto, ela existe como totalidade social. Outras formações sociais não são tão
totalizadas: suas relações sociais fundamentais não são qualitativamente
homogêneas. Não podem ser apreendidas pelo conceito de “substância”, não podem ser
desenvolvidas a partir de um único princípio estruturante e não exibem uma
lógica histórica imanente, necessária.
A afirmação de Marx de que o capital, e não o
proletariado ou a espécie, é o sujeito total implica claramente que a negação
histórica do capitalismo envolveria não a realização, mas a abolição da
totalidade. Segue-se que a contradição que aciona o desenvolvimento dessa
totalidade também tem de ser concebida de modo muito diferente –
presumivelmente, ela dirige a totalidade não em direção à sua completa realização,
mas em direção à possibilidade de sua abolição histórica. Ou seja, a contradição
expressa a finitude temporal da totalidade ao apontar além dela. A concepção de
Marx da negação histórica do capitalismo em termos da abolição, e não da
realização, da totalidade está relacionada à sua noção de que o socialismo
representa o início, e não o fim, da história humana e a ideia de que a negação
do capitalismo resulta na superação de uma forma de mediação social, e não na
superação da mediação per se. Considerada em outro nível, ela indica que
a compreensão madura de Marx de história não pode ser adequadamente apreendida como
uma concepção essencialmente escatológica em forma secular.
Finalmente, a noção de que o capital
constitui o sujeito histórico também sugere que o reino da política numa
sociedade pós-capitalista não deve ser visto em termos de uma totalidade que no
capitalismo é impedida de emergir integralmente. Na verdade, ela implica o
contrário – que uma forma institucionalmente totalizante de política deva ser
interpretada como expressão da coordenação política do capital tido como a totalidade,
sujeita às suas restrições e imperativos, e não como a superação do capital. A
abolição da totalidade permitiria a possível constituição de formas muito
diferentes, não totalizantes, de coordenação política e regulação da sociedade.”
91 Karl Marx, A sagrada família ou A
crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e seus consortes (trad. Marcelo Backes, são Paulo, Boitempo,
2003), p. 72-6.
92 Idem, O capital, cit., Livro I, p.
113.
93 Ibidem, p. 229-30 (grifos meus).
94 Ibidem, p. 80.
95 Sob esse aspecto, a posição de Louis
Althusser pode ser considerada o oposto unilateral da de Lukács. Enquanto
Lukács identificou subjetivamente o Geist com o proletariado, Althusser
afirmou que Marx devia a Hegel a ideia de que história e um processo sem
sujeito. Em outras palavras, Althusser hipostasiou trans-historicamente como
história, de maneira objetivista, o que Marx analisou em O capital como
estrutura constituída, historicamente específica de relações sociais. Nem a
posição de Lukács, nem a de Althusser são capazes de apreender adequadamente a
categoria de capital. Ver Louis Althusser, “Lenin before Hegel”, em Lenin and Philosophy (trad.
Ben Brewster, Londres, New Left Books, 1971), p. 120-5.
96 Apesar de o afastamento de Marx do
paradigma sujeito-objeto ser crucial, ele foi esquecido. Assim, Habermas
justificou a adoção de uma teoria de ação comunicativa como uma tentativa de
lançar a base para uma teoria crítica com intenção emancipadora que não se liga
as implicações objetivistas e cognitivo-instrumentais do paradigma
sujeito-objeto clássico – um paradigma que, na sua opinião, mutilou o marxismo
(ver Jurgen Habermas, The Theory of Communicative Action, cit., v. 1, p.
xi). Como argumentarei a seguir, Marx, entretanto, ofereceu uma crítica do paradigma
sujeito-objeto – com uma teoria historicamente específica das formas de
mediação social que, para mim, oferece um ponto de partida para uma teoria
social crítica mais satisfatório que a adoção por Habermas de teoria evolutiva
trans-histórica.
“A estrutura do desenvolvimento dialético do
argumento de Marx em O capital deveria ser lida como um metacomentário
sobre Hegel. Marx não “aplicou” Hegel à economia política clássica, mas
contextualizou os conceitos hegelianos em termos das formas sociais da
sociedade capitalista. Ou seja, a crítica marxiana madura de Hegel é imanente ao
desenvolvimento das categorias em O capital – que, traçando um paralelo
a maneira como Hegel desenvolve esses conceitos, sugere implicitamente o
contexto socio-histórico determinado de que eles são expressão. Em termos da
análise de Marx, os conceitos hegelianos de dialética, contradição e
sujeito-objeto idêntico expressam aspectos fundamentais da realidade
capitalista, mas não os apreendem adequadamente99. As categorias de
Hegel não elucidam o capital como sujeito de um modo alienado de produção nem
analisam a dinâmica historicamente específica das formas impelidas pelas suas
contradições imanentes particulares. Em vez disso, Hegel postula o Geist como
o sujeito e a dialética como a lei universal do movimento. Em outras palavras,
Marx argumenta implicitamente que Hegel captou as formas sociais abstratas e
contraditórias do capitalismo, mas não na sua especificidade histórica. Ele
as hipostasiou e expressou de uma forma idealista. O idealismo de Hegel,
entretanto, expressa essas formas, ainda que inadequadamente: ele as apresenta por
meio de categorias que são a identidade de sujeito e objeto, e parecem ter vida
própria. Essa análise crítica é muito diferente do tipo de materialismo que
simplesmente inverteria antropologicamente essas categorias idealistas; essa
abordagem não permite uma análise adequada dessas estruturas sociais alienadas
características do capitalismo que de fato dominam as pessoas e são independentes
da vontade delas.
A crítica madura de Marx, portanto, não exige
uma inversão “materialista” antropológica da dialética idealista mas, em certo
sentido, é a sua “justificação” materialista. Marx pretende implicitamente
mostrar que o “núcleo racional” da dialética de Hegel é exatamente o seu
caráter idealista100: é a expressão de um modo de dominação social constituído
por estruturas de relações sociais que, por serem alienadas, adquirem uma existência
quase independente em relação aos indivíduos e que, dada a sua natureza dualística
típica, tem caráter dialético. O sujeito histórico, de acordo com Marx, é a estrutura
alienada de mediação social que constitui a formação de capital.
O capital é então
uma crítica de Hegel e de Ricardo – dois autores que, para Marx, representaram
o desenvolvimento máximo do pensamento que continua preso na formação social
existente. Marx não se limitou a “radicalizar” Ricardo e a “materializar” Hegel.
Sua crítica – que se origina no “duplo caráter” historicamente específico do trabalho
no capitalismo – é essencialmente histórica. Ele argumenta que, com suas respectivas
concepções de “trabalho” e Geist, Ricardo e Hegel postularam como
trans-histórico e, portanto, não tiveram condições de apreender integralmente o
caráter historicamente específico dos objetos que investigavam. A forma de
exposição da análise madura de Marx não é uma “aplicação” da dialética de Hegel
a problemática do capital, assim como sua investigação crítica da mercadoria
não indica que ele tenha “tomado” a teoria do valor de Ricardo. Pelo contrário,
seu argumento é uma exposição imanentemente crítica que pretende basear e
tornar plausíveis as teorias de Hegel e Ricardo com relação ao caráter peculiar
das formas sociais do seu contexto.
Paradoxalmente, a análise do próprio Marx,
pretende ir além dos limites da totalidade atual limitando-se historicamente.
Como discutirei a seguir, sua crítica imanente do capitalismo é tal que a
indicação da especificidade histórica do objeto do pensamento implica
reflexivamente a especificidade histórica da sua teoria, ou seja, o próprio
pensamento que apreende o objeto.
Resumindo, o que denominei de “marxismo
tradicional” pode ser considerado uma síntese crítica “materialista” de Ricardo
e Hegel. Uma afirmação em teoria social do conceito hegeliano da totalidade
(por exemplo, tal como desenvolvido por Lukács) pode oferecer uma crítica
eficaz de um aspecto da sociedade capitalista, bem como das tendências
evolucionistas, fatalistas e deterministas do marxismo da Segunda Internacional.
Entretanto, ela não deve ser vista, de forma alguma, como um delineamento de
uma crítica do capitalismo do ponto de vista de sua negação histórica. A identificação
do proletariado (ou da espécie) com o sujeito histórico se apoia na mesma noção
historicamente indiferenciada de “trabalho” na qual se apoia o “marxismo
ricardiano”. “Trabalho” é postulado como a fonte trans-histórica de riqueza
social e, como a substância do sujeito, é considerado aquilo que constitui a
sociedade. As relações sociais do capitalismo são vistas como o que impede que
o sujeito se realize. O ponto de vista da crítica se torna a totalidade, tal
como é constituída pelo “trabalho”, e a dialética de Marx se transforma de um
movimento historicamente específico autoimpelido das formas sociais da
sociedade capitalista na expressão da prática criadora de história da humanidade.
Qualquer teoria que postule o proletariado ou a espécie como sujeito implica
que a atividade que o constitui deve ser cumprida e não superada. Portanto, a atividade
em si não pode ser vista como alienada. Na crítica baseada no “trabalho”, a alienação
está enraizada fora do trabalho, no seu controle pelo Outro concreto, a classe capitalista.
O socialismo envolve a realização de si próprio pelo sujeito e a reapropriação da
mesma riqueza que, no capitalismo, tinha sido privadamente expropriada. Resulta
na recuperação do “trabalho”.
Dentro dessa interpretação geral, o caráter
da crítica marxiana é essencialmente de “desmascaramento”. Supostamente, ela
prova que, apesar das aparências, o “trabalho” é a fonte da riqueza e o
proletariado representa o sujeito histórico, ou seja, a humanidade autoconstituinte.
Essa posição é intimamente relacionada a noção de que o socialismo leva a
realização dos ideais universalistas das revoluções burguesas que foram traídos
pelos interesses particularistas da burguesia.
Mais adiante, tentarei mostrar como a crítica
marxiana inclui esse desmascaramento, mas como um momento de uma teoria mais
fundamental da constituição social e histórica dos ideais e realidade da
sociedade capitalista. Marx analisa a constituição pelo trabalho das relações
sociais e de uma dialética histórica como característica da estrutura profunda
do capitalismo — e não como a base ontológica da sociedade humana que se
realizará integralmente no socialismo. Então, qualquer crítica que argumente trans-historicamente
que o trabalho gera riqueza e constitui a sociedade de maneira única, que opõe
positivamente os ideais da sociedade burguesa a sua realidade e que formula uma
crítica do modo de distribuição do ponto de vista do “trabalho” mantem-se
necessariamente dentro dos limites da totalidade. A contradição postulada por
essa crítica entre, de um lado, o mercado e a propriedade privada e, de outro,
a produção industrial de base proletária, aponta para a abolição da classe
burguesa – mas não para além da totalidade social. Pelo contrário, ela aponta
para a superação histórica das primeiras relações burguesas de distribuição por
outra forma talvez mais adequada em nível nacional as relações capitalistas
avançadas de produção. Ou seja, ela delineia a superação de uma forma anterior,
aparentemente mais abstrata de totalidade por uma forma aparentemente mais
concreta. Se a própria totalidade é entendida como capital, essa crítica se
revela como uma crítica que, inconscientemente, aponta para a plena realização
do capital como uma totalidade quase concreta, e não para a sua abolição.”
98 Para um argumento semelhante, ver Iring
Fetscher, “Vier Thesen zur Gesichtsauffassung bei Hegel und Marx”, em Hans
Georg Gadamer (org.), Stuttgarter Hegel-Tage 1970 (Bonn, Bouvier, 1974),
p. 481-8.
99 Esse argumento também foi defendido por
Alfred Schmidt e Iring Fetscher. Cf. seus comentários em W. Euchner e A.
Schmidt (eds.), Kritik der politischen Ökonomie heute: 100 Jahre Kapital (Frankfurt,
Europaische Verlagsanstalt, 1968), p. 26-57. Também cf. Hiroshi Uchida, Marx’s
Grundrisse andHegel’s Lógic (Londres e Boston, Routledge, 1988).
100 Cf. Moishe Postone e Helmut Reinicke, “On
Nicolaus”, Telos, n. 22, 1974-1975, p. 139.
“A maior ameaça à forma totalitária é a paz.”
(Friedrich Pollock)
“Em outras palavras, é um erro ver a
diferença entre a crítica da economia política e a crítica da razão
instrumental (e das outras) como simplesmente uma questão da importância relativa
atribuída a esferas particulares da vida social. O trabalho é fundamental para a
análise de Marx não porque pressupõe ser a produção material como tal o aspecto
mais importante da vida social ou a essência da sociedade humana, mas porque
ele considera ser o caráter peculiarmente abstrato e direcionalmente dinâmico
da sociedade capitalista sua marca central e afirma que essas características
básicas podem ser apreendidas e elucidadas em termos da natureza historicamente
específica do trabalho naquela sociedade. Por sua análise daquela natureza
específica, Marx pretende esclarecer e basear socialmente uma forma abstrata
das relações e de dominação sociais como característica do capitalismo. Sua
crítica o faz de maneira que mostra ser o capitalismo uma totalidade
intrinsecamente contraditória e, portanto, imanentemente dinâmica. Sob esse
aspecto, uma crítica das instituições políticas ou da razão instrumental
poderia ser vista como a que substitui (não amplia ou suplementa) a crítica de
Marx da economia política, se fosse também capaz de explicar o dinamismo histórico
da formação social – ao indicar, por exemplo, uma contradição intrínseca a natureza
do seu objeto de investigação. Para mim, esta é uma proposição incrivelmente improvável.
Ademais, o desvio de enfoque da teoria crítica delineado anteriormente foi relacionado
exatamente com a premissa de que, visto que a totalidade social pós-liberal tinha
se tornado não contraditória, ela não tinha nenhuma dinâmica histórica. Essa
análise não somente resultou numa posição fundamentalmente pessimista, mas
também solapou a possibilidade de a teoria crítica ser consistentemente
autorreflexiva como crítica imanente. Além disso, em retrospectiva ela se
mostrou historicamente questionável.”
“Um dos aspectos mais poderosos da crítica de
Marx à economia política é a forma como ela se localiza como um aspecto
historicamente determinado daquilo que examina, e não como uma ciência positiva
trans-historicamente válida que constitui uma exceção historicamente única
(portanto, espúria) colocada acima da interação entre formas sociais e formas
de consciência que analisa. Essa crítica não adota um ponto de vista fora do
seu objeto e, portanto, é autorreflexiva e epistemologicamente consistente.”
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