domingo, 17 de maio de 2020

Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx (Parte II) – Moishe Postone

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-398-1
Tradução: Amilton Reis e Paulo Cézar Castanheira
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 486



“A natureza da crítica marxiana de Hegel é muito diferente na sua teoria madura do que foi nas suas primeiras obras90. Ele já não segue a maneira de Feuerbach de inverter sujeito e objeto como o fez na Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843); também não trata trans-historicamente o trabalho como nos Manuscritos econômico-filosóficos, em que ele argumenta que Hegel metaforizou o trabalho como o trabalho do conceito. Em O capital (1847), Marx não se limita a inverter os conceitos de Hegel de uma maneira “materialista”. Pelo contrário, num esforço para apreender a natureza peculiar das relações sociais no capitalismo, Marx analisa a validade social para a sociedade capitalista desses conceitos idealistas de Hegel que antes ele tinha condenado como inversões mistificadas. Assim, enquanto em A sagrada família (1845) Marx crítica o conceito filosófico de “substância” e, em particular, o entendimento de Hegel da “substância” como “sujeito”91, no início d’O capital ele faz uso da categoria de “substância”. Ele se refere a valor como tendo uma “substância”, que ele identifica com o trabalho humano abstrato92. Marx, então, já não considera “substância” uma simples hipostasia teórica; agora a entende como um atributo das relações sociais mediadas pelo trabalho, como expressão de um tipo determinado de realidade social. Em O capital ele investiga a natureza dessa realidade social desenvolvendo logicamente as formas de mercadoria e dinheiro a partir das suas categorias de valor de uso, valor e sua “substância”. Sobre essa base, Marx começa a analisar a complexa estrutura de relações sociais expressas pela sua categoria do capital. Inicialmente ele determina capital em termos de valor que se autovaloriza. Nesse ponto da sua exposição, Marx descreve o seu conceito de capital em termos que se relacionam claramente com o conceito hegeliano de Geist.
O valor passa constantemente de uma forma a outra, sem se perder nesse movimento, e, com isso, transforma-se no sujeito automático do processo. [...] Na verdade, porém, o valor se torna, aqui, o sujeito de um processo em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma, aparecendo ora como dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria grandeza [...] [e assim] valoriza a si mesmo. Pois o movimento em que ele adiciona mais-valor é seu próprio movimento; sua valorização é, portanto, autovalorização. [...] [o valor] se apresenta, de repente, como uma substância em processo, que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinheiro não são mais do que meras formas.93
Marx caracteriza explicitamente o capital como a substância em processo que é o sujeito. Ao fazê-lo, Marx sugere que um sujeito histórico no sentido hegeliano existe realmente no capitalismo, mas ainda assim ele não o identifica com nenhum grupamento social, como o proletariado ou a humanidade. Pelo contrário, Marx o analisa em termos da estrutura de relações sociais constituídas pelas formas de prática objetivante e apreendidas pela categoria do capital (e, portanto, valor). Sua análise sugere que as relações sociais que caracterizam o capitalismo são de um tipo muito peculiar — elas possuem os atributos que Hegel atribuiu ao Geist. Então, é nesse sentido que existe no capitalismo um sujeito histórico tal como concebido por Hegel.
Já deveria estar claro nas determinações preliminares do conceito marxiano de capital que ele não pode ser entendido adequadamente em termos físicos e materiais, ou seja, em termos de estoque de edifícios, materiais, máquinas e dinheiro possuídos pelos capitalistas; pelo contrário, ele se refere a uma forma de relações sociais. Ainda assim, mesmo entendido em termos sociais, o trecho citado indica que a categoria marxiana do capital não pode ser completamente entendida em termos de propriedade privada, da exploração e dominação do proletariado pela burguesia. Ao sugerir que o que Hegel tentava conceituar com seu conceito de Geist devia ser entendido em termos das relações sociais expressas pela categoria do capital, Marx deduz que as relações sociais que caracterizam o capitalismo tem um caráter dialético e histórico peculiar, que não pode ser conceituado adequadamente em termos apenas de classe. Ele também sugere que essas relações constituem a base social do próprio conceito de Hegel. Os dois momentos indicam uma mudança na natureza da teoria crítica de Marx — e, portanto, na natureza da sua crítica materialista de Hegel — com importantes implicações para o seu tratamento do problema epistemológico da relação entre sujeito e objeto, a questão do sujeito histórico, e a noção de totalidade.
A interpretação de Marx sobre o sujeito histórico com referência a categoria do capital indica uma mudança de uma teoria de relações sociais entendidas apenas em termos de classes sociais para uma teoria de formas de mediação social expressas por categorias como valor e capital. Essa diferença está relacionada a que existe entre as duas formas de crítica social que discuti neste capítulo, ou seja, a diferença entre, de um lado, entender o capitalismo como um sistema de exploração e dominação de classe na sociedade moderna e, de outro, o que constitui o próprio tecido da sociedade moderna. O “sujeito”, para Marx, é uma determinação conceitual desse tecido. Como já vimos, a diferença entre o conceito idealista hegeliano do sujeito e o que Marx apresenta como o “núcleo racional” materialista daquele conceito não é o fato de o primeiro ser abstrato e supra-humano, enquanto o segundo é concreto e humano. De tato, até o ponto em que a noção de Hegel do sujeito tem validade social e histórica, de acordo com Marx, esse sujeito não é um agente social concreto e humano, coletivo ou individual. Pelo contrário, o sujeito histórico analisado por Marx é composto por relações objetivadas, as formas categoriais subjetivo-objetivas características do capitalismo, cuja “substância” é o trabalho abstrato, ou seja, o caráter específico do trabalho como atividade socialmente mediadora no capitalismo. O sujeito de Marx, tal como o de Hegel, então, é abstrato e não pode ser identificado com nenhum ator social. Ademais, os dois se desenvolvem no tempo de uma forma que é independente da vontade individual.
Em O capital, Marx tenta analisar o capitalismo diante de um desenvolvimento dialético que é de fato independente da vontade individual e que, portanto, se apresenta como uma lógica. Ele investiga o desenvolvimento da lógica dialética como expressão real de relações sociais alienadas que são constituídas pela prática e, ainda assim, existem quase independentemente. Não trata essa lógica como uma ilusão ou simplesmente como consequência do conhecimento insuficiente da parte do povo. Como ele afirma, o conhecimento por si só não muda o caráter dessas relações94. Veremos que, dentro da estrutura da sua análise, essa lógica de desenvolvimento é, em última análise, uma função das formas sociais do capitalismo, e não é característico da história humana como tal95.
Como o sujeito, o capital é um “sujeito” notável. Enquanto o sujeito de Hegel é trans-histórico e conhecedor, na análise de Marx ele é historicamente determinado e cego. O capital, como estrutura constituída por formas determinadas de prática, pode, por sua vez, ser constituinte de formas de prática social e subjetividade; ainda assim, como sujeito, ele não tem ego. É autorreflexivo e, como forma social, pode induzir autoconsciência, mas, diferentemente do Geist de Hegel, ele não possui autoconsciência. É necessário distinguir subjetividade e sujeito socio-histórico na análise de Marx.
A identificação do sujeito-objeto idêntico com estruturas determinadas de relações sociais tem importantes implicações para uma teoria da subjetividade. Ela indica que Marx se afastou do paradigma e da epistemologia do sujeito-objeto por uma teoria social da consciência. Ou seja, na medida em que ele não se limita a identificar o conceito de sujeito-objeto idêntico (a tentativa de Hegel de superar a dicotomia sujeito-objeto da epistemologia clássica) com um agente social, Marx altera os termos do problema epistemológico. Ele desvia a atenção do problema do conhecimento do sujeito individual (ou supraindividual) cognoscente e sua relação com um mundo exterior (ou externalizado) para as formas de relações sociais, vistas como determinações de subjetividade bem como de objetividade sociais. O problema do conhecimento torna-se agora uma questão da relação entre formas de mediação social e formas de pensamento. De fato, como vou discutir adiante, a análise marxiana da formação social capitalista implica a possibilidade de analisar social e historicamente a questão epistemológica propriamente dita predicada que é na noção de um sujeito autônomo em nítida contradição com um universo objetivo96. Essa espécie de crítica da dicotomia sujeito-objeto clássica é característica da abordagem que Marx desenvolveu implicitamente na sua teoria crítica madura. Ela é diferente de outros tipos de crítica — por exemplo, as que têm raízes na tradição fenomenológica —, que refutam a noção clássica do sujeito descorporificado e descontextualizado argumentando que “na realidade” as pessoas estão sempre inseridas em contextos determinados. Em vez de simplesmente desconsiderar posições como o dualismo sujeito-objeto clássico como resultado de um pensamento errôneo (que deixa sem resposta a fonte da ideia “superior” da posição que refuta), a abordagem de Marx tenta explicá-las historicamente, tornando-as plausíveis em relação a natureza do seu contexto — ou seja, analisando-as como formas de pensamento ligadas às formas estruturadas e estruturantes constitutivas da sociedade capitalista.
A crítica de Marx em relação a Hegel é, portanto, diferente da apropriação materialista que Lukács faz de Hegel, na medida em que não identifica um sujeito social concreto e consciente (por exemplo, o proletariado) que se desenvolve historicamente, alcançando uma autoconsciência plena por um processo de objetivação autorreflexiva. Se o fizesse, estaria implicitamente sugerindo que o “trabalho” é a substância constitutiva do sujeito, que as relações capitalistas impedem de se realizar. Como supus em minha discussão do “Marxismo ricardiano”, o sujeito histórico nesse caso seria uma versão coletiva do sujeito burguês, constituindo-se e constituindo o mundo por meio do “trabalho”. Os conceitos de “trabalho” e sujeito burguês (interpretado como indivíduo ou classe) estão intrinsecamente relacionados: expressam uma realidade social historicamente específica na forma ontológica.
A crítica marxiana de Hegel rompe com os pressupostos dessa posição (que, entretanto, se tornou dominante na tradição socialista). Em vez de encarar as relações capitalistas como extrínsecas ao sujeito, como o que impede sua realização completa, Marx analisa essas mesmas relações como constituintes do sujeito. Essa diferença fundamental está associada com a que foi delineada anteriormente: as estruturas quase objetivas apreendidas pelas categorias da crítica da economia política não velam as relações sociais “reais” do capitalismo (relações de classe) nem o sujeito histórico “real” (o proletariado). Pelo contrário, essas estruturas são as relações fundamentais da sociedade capitalista que, dadas as suas propriedades peculiares, constituem o que Hegel apreende como sujeito histórico. Esse desvio teórico significa que a teoria marxiana não postula nem está presa à noção de um metassujeito histórico, como o proletariado, que vai se realizar numa sociedade futura. De fato, o movimento de uma teoria do sujeito coletivo (burguês) para uma teoria de relações sociais alienadas implica uma crítica dessa noção. É o aspecto de uma mudança importante de perspectiva crítica a partir de uma crítica social com base no “trabalho” para uma crítica social da natureza peculiar do trabalho no capitalismo, pela qual o ponto de vista da primeira passa a ser o objeto de crítica da segunda.
Esse desvio se torna ainda mais claro quando se considera o conceito de totalidade. Este não deve ser simplesmente pensado indeterminadamente como referente ao “todo” em geral. Para Hegel, o Geist constitui uma totalidade substancialmente homogênea que não é somente o Ser do início do processo histórico, mas, desenvolvido, é o resultado do seu próprio desenvolvimento. O desenvolvimento completo e a autorrecuperação do Geist é o ponto final do seu desenvolvimento. já vimos que as premissas tradicionais relativas ao trabalho e as relações sociais no capitalismo levam ao conceito hegeliano da totalidade a ser adotado e traduzido assim em termos “materialistas”: a totalidade social é constituída pelo “trabalho”, mas é velada, aparentemente fragmentada e impedida de se realizar pelas relações capitalistas. Ela representa o ponto de vista da crítica do presente capitalista e se realizará no socialismo.
Mas a determinação categorial marxiana do capital como o sujeito histórico indica que a totalidade tornou-se o objeto da crítica de Marx. Como será discutido mais adiante, a totalidade social, na análise de Marx, é uma característica essencial da formação capitalista e uma expressão de alienação. A formação social capitalista, de acordo com Marx, é única na medida em que é constituída de uma “substância” social homogênea; portanto, ela existe como totalidade social. Outras formações sociais não são tão totalizadas: suas relações sociais fundamentais não são qualitativamente homogêneas. Não podem ser apreendidas pelo conceito de “substância”, não podem ser desenvolvidas a partir de um único princípio estruturante e não exibem uma lógica histórica imanente, necessária.
A afirmação de Marx de que o capital, e não o proletariado ou a espécie, é o sujeito total implica claramente que a negação histórica do capitalismo envolveria não a realização, mas a abolição da totalidade. Segue-se que a contradição que aciona o desenvolvimento dessa totalidade também tem de ser concebida de modo muito diferente – presumivelmente, ela dirige a totalidade não em direção à sua completa realização, mas em direção à possibilidade de sua abolição histórica. Ou seja, a contradição expressa a finitude temporal da totalidade ao apontar além dela. A concepção de Marx da negação histórica do capitalismo em termos da abolição, e não da realização, da totalidade está relacionada à sua noção de que o socialismo representa o início, e não o fim, da história humana e a ideia de que a negação do capitalismo resulta na superação de uma forma de mediação social, e não na superação da mediação per se. Considerada em outro nível, ela indica que a compreensão madura de Marx de história não pode ser adequadamente apreendida como uma concepção essencialmente escatológica em forma secular.
Finalmente, a noção de que o capital constitui o sujeito histórico também sugere que o reino da política numa sociedade pós-capitalista não deve ser visto em termos de uma totalidade que no capitalismo é impedida de emergir integralmente. Na verdade, ela implica o contrário – que uma forma institucionalmente totalizante de política deva ser interpretada como expressão da coordenação política do capital tido como a totalidade, sujeita às suas restrições e imperativos, e não como a superação do capital. A abolição da totalidade permitiria a possível constituição de formas muito diferentes, não totalizantes, de coordenação política e regulação da sociedade.”
91 Karl Marx, A sagrada família ou A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e seus consortes (trad. Marcelo Backes, são Paulo, Boitempo, 2003), p. 72-6.
92 Idem, O capital, cit., Livro I, p. 113.
93 Ibidem, p. 229-30 (grifos meus).
94 Ibidem, p. 80.
95 Sob esse aspecto, a posição de Louis Althusser pode ser considerada o oposto unilateral da de Lukács. Enquanto Lukács identificou subjetivamente o Geist com o proletariado, Althusser afirmou que Marx devia a Hegel a ideia de que história e um processo sem sujeito. Em outras palavras, Althusser hipostasiou trans-historicamente como história, de maneira objetivista, o que Marx analisou em O capital como estrutura constituída, historicamente específica de relações sociais. Nem a posição de Lukács, nem a de Althusser são capazes de apreender adequadamente a categoria de capital. Ver Louis Althusser, “Lenin before Hegel”, em Lenin and Philosophy (trad. Ben Brewster, Londres, New Left Books, 1971), p. 120-5.
96 Apesar de o afastamento de Marx do paradigma sujeito-objeto ser crucial, ele foi esquecido. Assim, Habermas justificou a adoção de uma teoria de ação comunicativa como uma tentativa de lançar a base para uma teoria crítica com intenção emancipadora que não se liga as implicações objetivistas e cognitivo-instrumentais do paradigma sujeito-objeto clássico – um paradigma que, na sua opinião, mutilou o marxismo (ver Jurgen Habermas, The Theory of Communicative Action, cit., v. 1, p. xi). Como argumentarei a seguir, Marx, entretanto, ofereceu uma crítica do paradigma sujeito-objeto – com uma teoria historicamente específica das formas de mediação social que, para mim, oferece um ponto de partida para uma teoria social crítica mais satisfatório que a adoção por Habermas de teoria evolutiva trans-histórica.


“A estrutura do desenvolvimento dialético do argumento de Marx em O capital deveria ser lida como um metacomentário sobre Hegel. Marx não “aplicou” Hegel à economia política clássica, mas contextualizou os conceitos hegelianos em termos das formas sociais da sociedade capitalista. Ou seja, a crítica marxiana madura de Hegel é imanente ao desenvolvimento das categorias em O capital – que, traçando um paralelo a maneira como Hegel desenvolve esses conceitos, sugere implicitamente o contexto socio-histórico determinado de que eles são expressão. Em termos da análise de Marx, os conceitos hegelianos de dialética, contradição e sujeito-objeto idêntico expressam aspectos fundamentais da realidade capitalista, mas não os apreendem adequadamente99. As categorias de Hegel não elucidam o capital como sujeito de um modo alienado de produção nem analisam a dinâmica historicamente específica das formas impelidas pelas suas contradições imanentes particulares. Em vez disso, Hegel postula o Geist como o sujeito e a dialética como a lei universal do movimento. Em outras palavras, Marx argumenta implicitamente que Hegel captou as formas sociais abstratas e contraditórias do capitalismo, mas não na sua especificidade histórica. Ele as hipostasiou e expressou de uma forma idealista. O idealismo de Hegel, entretanto, expressa essas formas, ainda que inadequadamente: ele as apresenta por meio de categorias que são a identidade de sujeito e objeto, e parecem ter vida própria. Essa análise crítica é muito diferente do tipo de materialismo que simplesmente inverteria antropologicamente essas categorias idealistas; essa abordagem não permite uma análise adequada dessas estruturas sociais alienadas características do capitalismo que de fato dominam as pessoas e são independentes da vontade delas.
A crítica madura de Marx, portanto, não exige uma inversão “materialista” antropológica da dialética idealista mas, em certo sentido, é a sua “justificação” materialista. Marx pretende implicitamente mostrar que o “núcleo racional” da dialética de Hegel é exatamente o seu caráter idealista100: é a expressão de um modo de dominação social constituído por estruturas de relações sociais que, por serem alienadas, adquirem uma existência quase independente em relação aos indivíduos e que, dada a sua natureza dualística típica, tem caráter dialético. O sujeito histórico, de acordo com Marx, é a estrutura alienada de mediação social que constitui a formação de capital.
O capital é então uma crítica de Hegel e de Ricardo – dois autores que, para Marx, representaram o desenvolvimento máximo do pensamento que continua preso na formação social existente. Marx não se limitou a “radicalizar” Ricardo e a “materializar” Hegel. Sua crítica – que se origina no “duplo caráter” historicamente específico do trabalho no capitalismo – é essencialmente histórica. Ele argumenta que, com suas respectivas concepções de “trabalho” e Geist, Ricardo e Hegel postularam como trans-histórico e, portanto, não tiveram condições de apreender integralmente o caráter historicamente específico dos objetos que investigavam. A forma de exposição da análise madura de Marx não é uma “aplicação” da dialética de Hegel a problemática do capital, assim como sua investigação crítica da mercadoria não indica que ele tenha “tomado” a teoria do valor de Ricardo. Pelo contrário, seu argumento é uma exposição imanentemente crítica que pretende basear e tornar plausíveis as teorias de Hegel e Ricardo com relação ao caráter peculiar das formas sociais do seu contexto.
Paradoxalmente, a análise do próprio Marx, pretende ir além dos limites da totalidade atual limitando-se historicamente. Como discutirei a seguir, sua crítica imanente do capitalismo é tal que a indicação da especificidade histórica do objeto do pensamento implica reflexivamente a especificidade histórica da sua teoria, ou seja, o próprio pensamento que apreende o objeto.
Resumindo, o que denominei de “marxismo tradicional” pode ser considerado uma síntese crítica “materialista” de Ricardo e Hegel. Uma afirmação em teoria social do conceito hegeliano da totalidade (por exemplo, tal como desenvolvido por Lukács) pode oferecer uma crítica eficaz de um aspecto da sociedade capitalista, bem como das tendências evolucionistas, fatalistas e deterministas do marxismo da Segunda Internacional. Entretanto, ela não deve ser vista, de forma alguma, como um delineamento de uma crítica do capitalismo do ponto de vista de sua negação histórica. A identificação do proletariado (ou da espécie) com o sujeito histórico se apoia na mesma noção historicamente indiferenciada de “trabalho” na qual se apoia o “marxismo ricardiano”. “Trabalho” é postulado como a fonte trans-histórica de riqueza social e, como a substância do sujeito, é considerado aquilo que constitui a sociedade. As relações sociais do capitalismo são vistas como o que impede que o sujeito se realize. O ponto de vista da crítica se torna a totalidade, tal como é constituída pelo “trabalho”, e a dialética de Marx se transforma de um movimento historicamente específico autoimpelido das formas sociais da sociedade capitalista na expressão da prática criadora de história da humanidade. Qualquer teoria que postule o proletariado ou a espécie como sujeito implica que a atividade que o constitui deve ser cumprida e não superada. Portanto, a atividade em si não pode ser vista como alienada. Na crítica baseada no “trabalho”, a alienação está enraizada fora do trabalho, no seu controle pelo Outro concreto, a classe capitalista. O socialismo envolve a realização de si próprio pelo sujeito e a reapropriação da mesma riqueza que, no capitalismo, tinha sido privadamente expropriada. Resulta na recuperação do “trabalho”.
Dentro dessa interpretação geral, o caráter da crítica marxiana é essencialmente de “desmascaramento”. Supostamente, ela prova que, apesar das aparências, o “trabalho” é a fonte da riqueza e o proletariado representa o sujeito histórico, ou seja, a humanidade autoconstituinte. Essa posição é intimamente relacionada a noção de que o socialismo leva a realização dos ideais universalistas das revoluções burguesas que foram traídos pelos interesses particularistas da burguesia.
Mais adiante, tentarei mostrar como a crítica marxiana inclui esse desmascaramento, mas como um momento de uma teoria mais fundamental da constituição social e histórica dos ideais e realidade da sociedade capitalista. Marx analisa a constituição pelo trabalho das relações sociais e de uma dialética histórica como característica da estrutura profunda do capitalismo — e não como a base ontológica da sociedade humana que se realizará integralmente no socialismo. Então, qualquer crítica que argumente trans-historicamente que o trabalho gera riqueza e constitui a sociedade de maneira única, que opõe positivamente os ideais da sociedade burguesa a sua realidade e que formula uma crítica do modo de distribuição do ponto de vista do “trabalho” mantem-se necessariamente dentro dos limites da totalidade. A contradição postulada por essa crítica entre, de um lado, o mercado e a propriedade privada e, de outro, a produção industrial de base proletária, aponta para a abolição da classe burguesa – mas não para além da totalidade social. Pelo contrário, ela aponta para a superação histórica das primeiras relações burguesas de distribuição por outra forma talvez mais adequada em nível nacional as relações capitalistas avançadas de produção. Ou seja, ela delineia a superação de uma forma anterior, aparentemente mais abstrata de totalidade por uma forma aparentemente mais concreta. Se a própria totalidade é entendida como capital, essa crítica se revela como uma crítica que, inconscientemente, aponta para a plena realização do capital como uma totalidade quase concreta, e não para a sua abolição.”
98 Para um argumento semelhante, ver Iring Fetscher, “Vier Thesen zur Gesichtsauffassung bei Hegel und Marx”, em Hans Georg Gadamer (org.), Stuttgarter Hegel-Tage 1970 (Bonn, Bouvier, 1974), p. 481-8.
99 Esse argumento também foi defendido por Alfred Schmidt e Iring Fetscher. Cf. seus comentários em W. Euchner e A. Schmidt (eds.), Kritik der politischen Ökonomie heute: 100 Jahre Kapital (Frankfurt, Europaische Verlagsanstalt, 1968), p. 26-57. Também cf. Hiroshi Uchida, Marx’s Grundrisse andHegel’s Lógic (Londres e Boston, Routledge, 1988).
100 Cf. Moishe Postone e Helmut Reinicke, “On Nicolaus”, Telos, n. 22, 1974-1975, p. 139.


“A maior ameaça à forma totalitária é a paz.” (Friedrich Pollock)


“Em outras palavras, é um erro ver a diferença entre a crítica da economia política e a crítica da razão instrumental (e das outras) como simplesmente uma questão da importância relativa atribuída a esferas particulares da vida social. O trabalho é fundamental para a análise de Marx não porque pressupõe ser a produção material como tal o aspecto mais importante da vida social ou a essência da sociedade humana, mas porque ele considera ser o caráter peculiarmente abstrato e direcionalmente dinâmico da sociedade capitalista sua marca central e afirma que essas características básicas podem ser apreendidas e elucidadas em termos da natureza historicamente específica do trabalho naquela sociedade. Por sua análise daquela natureza específica, Marx pretende esclarecer e basear socialmente uma forma abstrata das relações e de dominação sociais como característica do capitalismo. Sua crítica o faz de maneira que mostra ser o capitalismo uma totalidade intrinsecamente contraditória e, portanto, imanentemente dinâmica. Sob esse aspecto, uma crítica das instituições políticas ou da razão instrumental poderia ser vista como a que substitui (não amplia ou suplementa) a crítica de Marx da economia política, se fosse também capaz de explicar o dinamismo histórico da formação social – ao indicar, por exemplo, uma contradição intrínseca a natureza do seu objeto de investigação. Para mim, esta é uma proposição incrivelmente improvável. Ademais, o desvio de enfoque da teoria crítica delineado anteriormente foi relacionado exatamente com a premissa de que, visto que a totalidade social pós-liberal tinha se tornado não contraditória, ela não tinha nenhuma dinâmica histórica. Essa análise não somente resultou numa posição fundamentalmente pessimista, mas também solapou a possibilidade de a teoria crítica ser consistentemente autorreflexiva como crítica imanente. Além disso, em retrospectiva ela se mostrou historicamente questionável.”


“Um dos aspectos mais poderosos da crítica de Marx à economia política é a forma como ela se localiza como um aspecto historicamente determinado daquilo que examina, e não como uma ciência positiva trans-historicamente válida que constitui uma exceção historicamente única (portanto, espúria) colocada acima da interação entre formas sociais e formas de consciência que analisa. Essa crítica não adota um ponto de vista fora do seu objeto e, portanto, é autorreflexiva e epistemologicamente consistente.”

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