Editora: Boitempo
ISBN:
978-85-7559-398-1
Tradução: Amilton
Reis e Paulo Cézar Castanheira
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 486
Sinopse: Em Tempo,
trabalho e dominação social, Moishe Postone, professor de história moderna
da Universidade de Chicago, propõe uma reinterpretação fundamental da teoria
crítica de Marx. Fortemente influenciado pela Escola de Frankfurt e inserido em
uma das tradições mais radicais e contemporâneas do marxismo, Postone analisa o
capitalismo, antes de tudo, como uma forma de vida. Escrito na década de 1990,
esse livro inaugurou uma nova frente nos estudos marxistas, tão polêmica quanto
necessária. As teses de Postone relacionam a forma do crescimento econômico e a
estrutura do trabalho social na sociedade moderna com a alienação e a dominação
presentes no coração do capitalismo.
Suas análises abriram caminhos para a renovação dos
debates no interior do marxismo, o que torna esse livro leitura obrigatória,
inclusive para os que defendem uma perspectiva diferente sobre a dinâmica
capitalista. Em 1996, Tempo, trabalho e dominação social recebeu o prêmio de
melhor obra teórica da American Sociological Association e, desde então,
tem sido lançado em diversos países, como Alemanha, França, Espanha e Japão,
entre outros. A edição brasileira conta com um prefácio inédito do autor.
Elaborando conceitos destinados a apreender o caráter
essencial e o desenvolvimento histórico da sociedade moderna e a superar a
conhecida divisão entre estrutura e ação, significado e vida material, o autor
questiona muitos dos pressupostos marxistas tradicionais e oferece novas
interpretações dos argumentos centrais de Marx. Esses conceitos o levaram a uma
análise original da natureza e dos problemas do capitalismo e fornecem a base
para uma crítica do “socialismo realmente existente”.
De acordo com Postone, Marx identifica o núcleo do
sistema capitalista com uma forma impessoal de dominação social gerada pelo
próprio trabalho e não simplesmente com mecanismos de mercado e propriedade
privada. O trabalho proletário e o processo de produção industrial são
caracterizados como expressões de dominação, e não como meios de emancipação
humana. Essa reinterpretação gera uma análise crítica do caráter historicamente
dinâmico da vida social moderna. “Nessa óptica, a mera substituição da
propriedade privada dos meios de produção pela estatal não podia produzir a
superação do capitalismo. Para superá-lo, na perspectiva trazida à luz por
Postone, é preciso superar o próprio valor-trabalho como regulador social ou, o
que é o mesmo, abolir o trabalho alienado. Nessa leitura o advento do
socialismo sempre exigiu, segundo o próprio Marx, a eliminação da forma mercadoria
e, portanto, da forma dinheiro”, afirma Eleutério Prado, no texto de orelha.
“Capitalismo, trabalho e dominação
A teoria social de Marx – por oposição a uma
posição marxista tradicional – sugere uma análise crítica da forma de produção
desenvolvida sob o capitalismo e da possibilidade da sua transformação radical.
Ela claramente não envolve a glorificação produtivista dessa forma. O fato de
Marx tratar o valor como uma categoria historicamente determinada de um modo de
produção específico, e não como apenas um modo de distribuição, sugere — e isso
é crucial – que o trabalho que constitui o valor não deve ser identificado com
o trabalho que existe trans-historicamente. Pelo contrário, trata-se de uma
forma historicamente específica que seria abolida, e
não realizada, com a superação do capitalismo. A concepção da especificidade histórica
do trabalho no capitalismo exige uma reinterpretação fundamental da sua compreensão
das relações sociais que caracterizam aquela sociedade. Essas relações são, de
acordo com Marx, constituídas pelo próprio trabalho e, consequentemente, tem um
caráter peculiar quase objetivo; não podem ser completamente entendidas em
termos de relações de classe.
São consideráveis as diferenças entre a interpretação
“categorial” e a “centrada em classe” das relações sociais fundamentais do
capitalismo. A primeira é uma crítica do trabalho no capitalismo, a segunda uma
crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho; elas implicam concepções
muito diferentes do modo determinante de dominação no capitalismo e, portanto,
da natureza da sua superação. As consequências dessas diferenças ficarão mais
claras quando eu analisar mais detalhadamente a discussão de Marx sobre como o caráter
específico do trabalho no capitalismo constitui suas relações sociais básicas,
e sobre como ele se oculta atrás da especificidade do valor como forma de
riqueza e do modo industrial de produção. O caráter específico do trabalho – para
dar um salto a frente por um momento — também constitui a base de uma forma historicamente
específica, abstrata e impessoal de dominação social.
Na análise de Marx, a dominação social no
capitalismo, no seu nível mais fundamental, não consiste na dominação das
pessoas por outras pessoas, mas na dominação das pessoas por estruturas sociais
abstratas constituídas pelas próprias pessoas. Marx tentou apreender essa forma
de dominação abstrata e estrutural – que abrange e se estende além da dominação
de classe — com as suas categorias de mercadoria e capital. Essa dominação
abstrata não apenas determina o objetivo da produção no capitalismo, de acordo
com Marx, mas é também a sua forma material. Na estrutura da análise de Marx, a
forma de dominação social que caracteriza o capitalismo não é uma função da
propriedade privada, da propriedade pelos capitalistas do produto excedente e dos
meios de produção; pelo contrário, ela se baseia na forma de valor da riqueza
em si, uma forma de riqueza social contrária ao
trabalho vivo (os trabalhadores) como um poder estruturalmente hostil e
dominante37. Tentarei mostrar como, para Marx, essa oposição entre
riqueza social e pessoas se baseia no caráter único do trabalho na sociedade
capitalista.
De acordo com Marx, o processo pelo qual o
trabalho no capitalismo constitui estruturas sociais abstratas que dominam as
pessoas é o que induz um rápido desenvolvimento histórico das forças produtivas
e do conhecimento da humanidade. Ainda assim, isso é feito pela fragmentação do
trabalho social — ou seja, à custa do estreitamento e esvaziamento do indivíduo
particular38. Marx argumenta que a produção baseada no valor cria
enormes possibilidades de riqueza, mas apenas “por todo o tempo do indivíduo
como tempo de trabalho, [o que resulta em] degradação do indivíduo a mero
trabalhador”39. Sob o capitalismo aumentam enormemente o poder e
conhecimento da humanidade, mas de uma forma alienada que oprime as pessoas e
tende a destruir a natureza40.
Uma marca central do capitalismo, é que as
pessoas não controlam sua própria atividade produtiva ou o que produzem, mas
são, em última análise, dominadas pelos resultados dessa atividade. Essa forma
de dominação é expressa como oposição entre indivíduos e sociedade, constituída
como uma estrutura abstrata. A análise de Marx dessa forma de dominação é uma
tentativa de basear e explicar o que, nos seus primeiros textos, ele chamou de alienação.
Sem entrar numa discussão extensa da relação entre os primeiros textos de Marx
e sua teoria crítica posterior, tentarei mostrar que ele não abandonou todos os
temas centrais das suas primeiras obras, mas que alguns – por exemplo, a alienação
– continuam centrais na sua teoria. De fato, foi somente nas suas obras tardias
que Marx fundamentou rigorosamente a posição que apresenta em Manuscritos econômico-filosóficos — a saber, que a propriedade privada não é a
causa social, mas a consequência do trabalho alienado e que, portanto, a superação
do capitalismo não deve ser concebida apenas em termos da abolição da
propriedade privada, mas deve resultar na superação desse trabalho41.
Na sua obra tardia ele apoia essa posição com a análise do caráter específico
do trabalho no capitalismo. Ainda assim, essa análise traz também uma modificação
da noção anterior de alienação. A teoria da alienação, sugerida pela teoria crítica
madura de Marx, não se refere ao estranhamento do que existia antes como uma
propriedade dos trabalhadores (e que, portanto, devia ser reclamado por eles);
pelo contrário, ela se refere a um processo de constituição histórica dos
poderes e conhecimento sociais que não pode ser entendido com referência aos poderes
e habilidades do proletariado. Com a sua categoria do capital, Marx analisou como
são constituídos esses poderes e conhecimento sociais em formas objetivadas que
se tornam quase independentes dos indivíduos que as constituem, e que sobre eles
exercem uma forma de dominação social abstrata.
O processo de dominação estrutural autogerada
não pode ser completamente entendido em termos de exploração e dominação de
classe nem em termos estáticos, não direcionais e “sincrônicos”. A forma fundamental
de dominação social que caracteriza a sociedade moderna, aquela que Marx
analisou em termos de valor e capital, é a que gera uma dinâmica histórica além
do controle dos indivíduos que a constituem. Um objetivo central da análise de
Marx da especificidade do trabalho na sociedade capitalista é explicar essa dinâmica;
não apenas uma teoria da exploração, ou do funcionamento da economia
restritivamente entendida, a teoria crítica do capital de Marx é uma teoria da
natureza da história da sociedade moderna. Ela trata essa história como
socialmente constituída e, ainda assim, como tendo uma lógica quase autônoma de
desenvolvimento.
Essa discussão preliminar implica uma compreensão
da superação da alienação muito diferente daquela postulada pelo marxismo
tradicional. Ela sugere que Marx considerava o modo industrial de produção
desenvolvido sob o capitalismo e a dinâmica histórica intrínseca dessa
sociedade como características da formação social capitalista. A negação histórica
dessa formação social resultaria na abolição do sistema historicamente dinâmico
de dominação abstrata, e do modo capitalista de produção industrial. Da mesma
forma, a teoria desenvolvida sobre a alienação implica que Marx via a negação
do núcleo estrutural do capitalismo como aquilo que permite a apropriação pelo
povo dos poderes e conhecimento historicamente constituídos de forma alienada.
Essa apropriação resultaria na transcendência material da separação anterior entre
o indivíduo diminuído e empobrecido e o conhecimento produtivo geral alienado da
sociedade pela incorporação do último no primeiro. Isso permitiria que o “mero trabalhador”42
se tornasse o “indivíduo social”43 – aquele que incorpora
conhecimento e potencial humanos inicialmente desenvolvidos em forma alienada.
A noção do indivíduo social expressa a ideia
de Marx de que a superação do capitalismo resulta na superação da oposição
entre indivíduo e sociedade. Conforme essa análise, tanto o indivíduo burguês quanto
a sociedade como um todo abstrato que confronta os indivíduos foram constituídos
quando o capitalismo suplantou as formas anteriores de vida social. Mas, para
Marx, superar essa oposição não resulta na subsunção do indivíduo sob a
sociedade nem na sua unidade não mediada. A crítica marxiana da relação entre indivíduo
e sociedade não é, como geralmente se admitiu, limitada a uma crítica do indivíduo
burguês isolado e fragmentado. Assim como Marx não criticou o capitalismo do
ponto de vista da produção industrial, ele não avaliou positivamente a
coletividade, de que todas as pessoas são parte, como o ponto de vista do qual criticar
o indivíduo atomizado. além de relacionar a constituição do indivíduo monadário
com a esfera de circulação de mercadorias, Marx também analisa o meta-aparato
em que as pessoas são meras engrenagens como característico da esfera da
produção determinada pelo capital44. Essa coletividade não representa
a superação do capitalismo. Então, a oposição entre o indivíduo atomizado e a
coletividade (como uma espécie de “supersujeito”) não representa a oposição
entre o modo de vida social no capitalismo e na sociedade pós-capitalista; pelo
contrário, é uma oposição entre duas determinações unilaterais da relação entre
indivíduo e sociedade que, juntas, constituem mais uma antinomia da formação
social capitalista.
Para Marx, o indivíduo social representa a superação
dessa oposição. Essa noção não se refere apenas a uma pessoa que trabalha
comunal e altruisticamente com outras pessoas; pelo contrário, ela expressa a
possibilidade de todas as pessoas existirem como seres plenos e amplamente
desenvolvidos. Uma condição necessária para a realização dessa possibilidade é
ser o trabalho de cada um completa e positivamente autoconstituinte de formas
que correspondam a riqueza, diversidade, poder e conhecimento gerais da
sociedade como um todo; o trabalho individual não seria mais a base fragmentada
da riqueza da sociedade. Superar a alienação resulta não na reapropriação de
uma essência que existiu antes, mas na apropriação do que foi constituído de
forma alienada.
Até aqui, essa discussão implica que Marx via
o trabalho proletário como expressão materializada do trabalho alienado. Essa posição
sugere que, na melhor das hipóteses, se o trabalho concreto de cada um continua
o mesmo que era sob o capitalismo, seria ideológico afirmar que a emancipação
do trabalho se realiza quando se abole a propriedade privada e as pessoas têm
uma atitude coletiva e socialmente responsável com relação ao seu trabalho.
Pelo contrário, a emancipação do trabalho pressupõe uma nova estrutura de
trabalho social; na estrutura da análise de Marx, o trabalho só pode ser
constitutivo do indivíduo social quando o potencial das forças produtivas de
uma forma que revolucione completamente a organização do próprio processo de trabalho.
As pessoas devem ser capazes de se retirar do processo de trabalho imediato em
que antes atuavam como pecas, e controlá-lo de cima. O controle do “processo natural,
que ele converte em um processo industrial”45, tem de estar disponível
não somente para a sociedade como um todo, mas também a todos os seus membros.
Uma condição material necessária para o completo desenvolvimento de todos os indivíduos
é que “deixou de existir [...] o trabalho no qual o ser humano faz o que pode
deixar as coisas fazerem por ele”46.
A noção de Marx da apropriação pela “massa de
trabalhadores [...] de seu próprio trabalho excedente”47 resulta em
um processo de autoabolição como um processo de autotransformação material.
Longe de levar a realização do proletariado, a superação do capitalismo
envolve a abolição material do trabalho proletário. A emancipação do trabalho
exige a emancipação em relação ao trabalho (alienado).
No curso das nossas investigações, veremos
que o capitalismo, na análise de Marx, é uma formação social em que a produção
social se faz em nome da produção, enquanto o indivíduo trabalha para consumir.
Minha discussão, até aqui, imaginou sua negação como uma formação social em que
a produção social é para o consumo, ao passo que o trabalho do indivíduo é feito
em nome dele mesmo48.”
37 Karl Marx, Grundrisse: manuscritos
econômicos de 1857-1858 – esboços da crítica da economia política (trad.
Mario Duayer e Nelio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 705.
38 Karl Marx, O capital (trad. Rubens
Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), Livro I, p. 412-3, 423, 434 -5 ,438-41
,494.
39 Idem, Grundrisse, cit., p. 591.
40 Idem, O capital, cit., Livro I, p.
338, 574.
41 Idem, Manuscritos
econômico-filosóficos (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 85. Uma discussão mais abrangente sobre
a relação entre os primeiros manuscritos de Marx e suas obras posteriores
mostrará que muitos outros temas dos primeiros (por exemplo, as relações entre
pessoas e natureza, entre mulheres e homens, entre trabalho e diversão)
continuam implicitamente centrais nos últimos, ainda que transformados pela sua
análise do caráter historicamente específico do trabalho no capitalismo.
42 Idem, Grundrisse, cit., p. 591.
43 Ibidem, p. 705.
44 Idem, O
capital, cit., Livro I, p. 428-30, 493-4, 554-5.
45 Idem, Grundrisse, cit., p. 588.
46 Ibidem, p. 255.
47 Ibidem, p. 590-1.
48 Como discutirei no Capítulo 9, é
importante distinguir duas formas de necessidade e liberdade na análise de Marx
do trabalho social. Ele ter pensado que o trabalho social numa sociedade futura
pudesse ser estruturado de forma a ser satisfatório e agradável não significa,
como já vimos, que ele considerasse que esse trabalho pudesse ser divertimento.
A noção de Marx sobre o trabalho não alienado é ele ser livre de relações de
dominação social direta ou abstrata; ele pode tornar-se uma atividade de
autorrealização, portanto, mais semelhante a uma diversão. Ainda assim, essa
liberdade da dominação não implica liberdade de todas as restrições,
pois para sobreviver toda sociedade humana exige alguma forma de trabalho. Que
o trabalho nunca será uma esfera de liberdade absoluta, não significa que o
trabalho não alienado seja tão sem liberdade da mesma forma e no mesmo grau que
o trabalho restringido pelas formas de dominação social. Em outras palavras, ao
negar que a liberdade absoluta possa existir no reino do trabalho, Marx não
estava revertendo a oposição indiferenciada do trabalho a liberdade e
felicidade, conforme Adam Smith (ver Karl Marx, Grundrisse, cit., p.
509-10).
Está claro, evidentemente, que todo trabalho
unilateral e fragmentado não poderá ser abolido imediatamente com a superação
do capitalismo. Ademais, é concebível que uma parte desse trabalho nunca poderá
ser completamente abolido (embora o tempo necessário possa ser drasticamente
reduzido, e essas tarefas alternadas entre a população).
“Então, com relação a estrutura do trabalho
social, a contradição marxiana deve ser entendida como contradição crescente entre
o tipo de trabalho que as pessoas executam sob o capitalismo e o tipo de
trabalho que poderiam executar se o valor fosse abolido e o potencial produtivo
desenvolvido sob o capitalismo fosse usado reflexivamente para libertar as
pessoas do domínio das estruturas alienadas constituídas por seu próprio
trabalho.”
“Essa exposição preliminar da noção marxiana
de alienação e da contradição do capitalismo indica que sua análise busca
apreender o curso do desenvolvimento do capitalismo como possuidor de duas
faces de enriquecimento e empobrecimento. Ela implica que esse desenvolvimento
não pode ser entendido adequadamente de modo unidimensional, seja como o
progresso do conhecimento e felicidade, seja como o “progresso” da dominação e
destruição. De acordo com a sua análise, apesar da emergência da possibilidade
histórica de que o modo de trabalho social possa ser enriquecedor para a
maioria, o trabalho social se tornou efetivamente empobrecedor para a
maioria. Portanto, o rápido crescimento do conhecimento científico e
tecnológico sob o capitalismo não significa o progresso linear em direção a
emancipação. De acordo com a análise de Marx de mercadoria e capital, esse
conhecimento aumentado, socialmente constituído, levou a fragmentação e ao
esvaziamento do trabalho individual e ao controle crescente da humanidade pelos
resultados da atividade objetivante; apesar disso, ele também aumentou a
possibilidade de o trabalho ser individualmente enriquecedor e de a humanidade
exercer um controle maior sobre o seu destino. Esse desenvolvimento bipolar está
enraizado nas estruturas alienadas da sociedade capitalista e pode ser superado.
A análise dialética de Marx não deve ser de forma alguma identificada com a fé
positivista no progresso científico linear e no progresso social, ou na
correlação dos dois.
Assim, a análise de Marx implica uma noção da
superação do capitalismo que não resulte na afirmação acrítica da produção
industrial como a condição do progresso humano nem na rejeição romântica do
progresso tecnológico per se. Ao indicar que o potencial do sistema de
produção desenvolvido sob o capitalismo poderia ser usado para transformar o
próprio sistema, a análise de Marx supera a oposição entre essas duas posturas
e mostra que cada uma delas toma como a totalidade o que é apenas um momento de
um desenvolvimento histórico mais complexo. Ou seja, a abordagem de Marx capta
a oposição entre a fé no progresso linear e a rejeição romântica como expressão
de uma antinomia que, nos seus dois termos, é característica da época
capitalista52.
De modo mais geral, sua teoria crítica não se
coloca a favor de simplesmente reter tampouco a favor de abolir o que foi
constituído historicamente no capitalismo. Pelo contrário, sua teoria ressalta
a possibilidade de que aquilo que foi constituído de forma alienada seja
apropriado, e assim transformado fundamentalmente.”
50 O argumento de que a contradição primaria
do capitalismo é, para Marx, estrutural e não se refere simplesmente ao
antagonismo social foi proposto também por Anthony Giddens. Mas ele a localiza
entre a apropriação privada e produção socializada, ou seja, entre as relações
burguesas de distribuição e a produção industrial: ver Anthony Giddens, Central
Problems in Social Theory (Berkeley, University of California Press, 1979),
p. 135-41. Minha leitura dos Grundrisse justifica uma interpretação
muito diferente.
52 Karl Marx, O capital, cit., Livro
I, p. 513-4, 719s.
“A diferença entre as duas formas de crítica
também fica evidente nas maneiras como concebem a forma fundamental de
dominação social característica do capitalismo. A crítica social do ponto de
vista do “trabalho” entende aquela forma de dominação essencialmente em termos
de dominação de classe, arraigada na propriedade privada dos meios de produção;
entretanto, a crítica social do trabalho no capitalismo caracteriza a forma
mais fundamental de dominação naquela sociedade como uma forma estrutural abstrata
e impessoal de dominação ocultada sob a dinâmica histórica do capitalismo. Esta
abordagem coloca a base daquela forma de dominação nas formas sociais
historicamente específicas do valor e do trabalho que produz valor. Esta última
leitura da teoria crítica do capitalismo de Marx fornece a base de uma crítica
de longo alcance da dominação abstrata – da dominação das pessoas pelo seu trabalho
— e, num significado associado, de uma teoria da constituição social de uma forma
de vida social caracterizada por uma dinâmica direcional intrínseca. Mas, nas mãos
do marxismo tradicional, a crítica é achatada e reduzida a uma crítica do
mercado e da propriedade privada que projeta no socialismo a forma de trabalho
e o modo de produção característicos do capitalismo. O desenvolvimento do “trabalho”,
de acordo com a teoria tradicional, atingiu o seu ponto final histórico com a
produção industrial; uma vez que o modo industrial de produção seja libertado
dos grilhões do mercado e da propriedade privada, o “trabalho” se realizará
como o princípio constitutivo quase natural da sociedade.
Como já observado, a crítica do marxismo
tradicional e a da burguesia nascente compartilham uma noção de progresso
histórico que, paradoxalmente, é um movimento em direção ao “naturalmente”
humano, em direção a possibilidade de que o ontologicamente humano (por
exemplo, Razão, “trabalho”) vá se realizar e prevalecer sobre a artificialidade
existente. Sob este aspecto, a crítica baseada no “trabalho” está aberta a
crítica de Marx dirigida ao pensamento iluminista em geral e a economia política
clássica em particular:
Os economistas procedem de um modo curioso. Para eles, há apenas dois
tipos de instituições, as artificiais e as naturais. As instituições do
feudalismo seriam artificiais, ao passo que as da burguesia seriam naturais.
[...] Desse modo, houve uma história, mas agora não há mais.82
O que é visto como instituição natural,
evidentemente, não é a mesma coisa para “os economistas” e os marxistas
tradicionais. Mas a forma do pensamento é: os dois naturalizam o que é
socialmente constituído e historicamente específico e veem a história como um
movimento em direção a realização do que consideram “naturalmente humano”.
Como já vimos, interpretações das relações
determinantes do capitalismo em termos do mercado autorregulado e da
propriedade privada dos meios de produção se baseiam numa interpretação do que
seja a categoria marxista do valor que permanece presa à estrutura da economia
política clássica. Consequentemente, essa forma de teoria social crítica — a
crítica social do ponto de vista do “trabalho” – permanece presa a essa
estrutura. Sob certos aspectos, ela é sem dúvida diferente da economia
política: por exemplo, ela não aceita como final o modo burguês de distribuição
e o coloca historicamente em discussão. Ainda assim, a esfera da distribuição
continua sendo o toco do seu interesse crítico. Enquanto a forma do trabalho
(portanto, da produção) é o objeto da crítica de Marx, um “trabalho” não
estudado é, para o marxismo tradicional, a fonte trans-histórica da riqueza e a
base da constituição social. O resultado não é uma crítica da economia
política, mas uma economia política crítica, ou seja, uma crítica
apenas do modo de distribuição. Trata-se de uma crítica que, em termos do seu tratamento
do trabalho, merece o nome de “marxismo ricardiano”83. O marxismo tradicional
substitui a crítica de Marx do modo de produção e distribuição por uma crítica
apenas do modo de distribuição, e sua teoria da autoabolição do proletariado por
uma teoria da realização do proletariado. A diferença entre as duas formas de
crítica é profunda: o que na análise de Marx é o objeto central da crítica do
capitalismo transforma-se para o marxismo tradicional na base social da
libertação.”
81 Karl Marx, O capital, cit., Livro
I, p. 574.
82 Ibidem, nota 33, p. 156.
83 Para uma crítica extensiva do que ele
denomina de “ricardianismo de esquerda”, ver Hans Georg Backhaus, “Materialien
zur Rekonstruktion der Marxschen Werttheorie”, Gesellschaft: Beiträge zur
Marxschen Theorie, Frankfurt, Suhrkamp, n. 1 (1974), 3 (1975) e 11 (1978).
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