Editora: Boitempo
ISBN:
978-85-7559-398-1
Tradução: Amilton
Reis e Paulo Cézar Castanheira
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 486
“Como já notado, nas sociedades tradicionais,
as atividades de trabalho e seus produtos são mediados por relações sociais
abertas e nela inseridos, ao passo que no capitalismo o trabalho e seus produtos
medeiam a si mesmos. Em uma sociedade que estão inseridos uma matriz de
relações sociais, o trabalho e seus produtos são informados por essas relações,
e delas recebem o seu caráter — ainda assim, o caráter social atribuído a
vários trabalhos parece intrínseco a eles. Nessa situação, a atividade
produtiva não existe como um meio puro nem os instrumentos e produtos aparecem
como meros objetos. Em vez disso, informados pelas relações sociais, eles são
imbuídos dos significados e significâncias — sejam manifestamente sociais ou
quase sagrados — que parecem intrínsecos a eles111.
Isso leva a uma inversão notável. Uma
atividade, implemento ou objeto que é não conscientemente determinado por
relações sociais parece, dado o seu caráter simbólico resultante, possuir um
caráter socialmente determinante. Numa estrutura social rigidamente
tradicional, por exemplo, o objeto ou atividade parece corporificar e
determinar a posição social e definição de gênero112. Atividades de
trabalho nas sociedades tradicionais não simplesmente parecem trabalho, mas
cada forma de trabalho é socialmente impregnada e se apresenta como uma
determinação particular de existência social. Essas formas de trabalho são
muito diferentes do trabalho no capitalismo: não podem ser entendidas
adequadamente como ação instrumental. Ademais, o caráter social desse trabalho
não deve ser confundido com o que descrevi como caráter social específico do
trabalho no capitalismo. Trabalho nas sociedades não capitalistas não constitui
a sociedade, pois não possui o caráter sintético peculiar que marca o trabalho determinado
por mercadorias. Apesar de social, ele não constitui relações sociais, mas é
constituído por elas. O caráter social do trabalho nas sociedades tradicionais é,
evidentemente, visto como “natural”. Mas essa noção do natural – e, assim,
também a da natureza — é muito diferente do natural de uma sociedade em que
prevalece a forma-mercadoria. A natureza nas sociedades tradicionais é dotada de
um caráter que é “essencialmente” variegado, personalizado e não relacional
como as relações sociais que caracterizam a sociedade113.
Como já vimos, o trabalho no capitalismo não é
mediado por relações sociais, mas, pelo contrário, constitui ele próprio uma
mediação social. Se, em sociedades tradicionais, as relações sociais
atribuem significado e significância ao trabalho, no capitalismo o trabalho
atribui a si próprio e às relações sociais um caráter “objetivo”. Esse
caráter objetivo é historicamente constituído quando o trabalho, que recebe
vários significados específicos das relações sociais abertas em outras
sociedades, medeia a si próprio e nega esses significados. Nesse sentido,
objetividade pode ser vista como o “significado” não abertamente social que
emerge historicamente quando a atividade social de objetivação reflexivamente
se determina socialmente. Na estrutura dessa abordagem, as relações sociais nas
sociedades tradicionais determinam trabalhos, implementos e objetos que, inversamente,
parecem possuir um caráter socialmente determinante. No capitalismo, trabalho e
seus produtos criam uma esfera de relações sociais objetivas: elas são de fato socialmente
determinantes, mas não se apresentam como tal. Pelo contrário, parecem ser
puramente “materiais”.
Essa última inversão merece exame adicional.
já mostrei que o papel mediador específico do trabalho no capitalismo aparece
necessariamente em forma objetivada e não diretamente como atributo do
trabalho. Em vez disso, dado que o trabalho no capitalismo atribui a si próprio
seu caráter social, ele aparece simplesmente com trabalho em geral, despido da
aura de significação social atribuída a trabalhos diversos em sociedades mais
tradicionais. Paradoxalmente, uma vez que precisamente a dimensão social do
trabalho no capitalismo e reflexivamente constituída, e não é um atributo
conferido por relações sociais abertas, esse trabalho não parece ser a
atividade mediadora que realmente é nessa formação social. Pelo contrário, ele
aparece como uma das suas dimensões, como trabalho concreto, uma atividade
técnica que pode ser aplicada e regulada socialmente de maneira instrumental.
Esse processo de “objetivação” do trabalho na
sociedade capitalista é também um processo de “secularização” paradoxal da
mercadoria como objeto social. Apesar de a mercadoria como objeto não adquirir
seu caráter social em resultado de relações sociais, mas, pelo contrário, ser
um objeto intrinsecamente social (no sentido de ser uma mediação social
materializada), ela aparece simplesmente uma coisa. Como já observado, apesar
de a mercadoria ser simultaneamente um valor de uso e um valor, a segunda
dimensão social se torna exteriorizada na forma de um equivalente universal, dinheiro.
Como resultado dessa “duplicação” da mercadoria em mercadoria e dinheiro, a
segunda aparece como a objetivação da dimensão abstrata, ao passo que o primeiro
é apenas uma coisa. Em outras palavras, o fato de a mercadoria ser ela própria uma
mediação social materializada implica a ausência de relações sociais abertas
que impregnem os objetos com uma significação “supracoisal” (social ou
sagrada). Como mediação, a mercadoria é ela própria uma coisa “supracomocoisa”.
A exteriorização da sua dimensão mediadora resulta, portanto, no aparecimento
da mercadoria como um objeto puramente material114.
Essa “secularização” do trabalho e dos seus
produtos é um momento do processo histórico da dissolução e transformação dos
elos sociais tradicionais por uma mediação social com um duplo caráter —
concreto-material e abstrato-social. A precipitação da primeira dimensão avança
paralelamente a construção da segunda. Portanto, como já vimos, só
aparentemente é o caso de, com a superação das determinações e dos limites associados
a relações sociais abertas e formas de dominação, os humanos agora disporem livremente
do seu trabalho. Dado que o trabalho no capitalismo não é realmente livre da
determinação social não consciente, mas, ele próprio, se tornou o meio dessa
determinação, as pessoas se veem diante de uma nova compulsão, esta baseada
precisamente no que superou as ligações das formas sociais tradicionais: as
relações sociais alienadas, abstratas que são mediadas pelo trabalho. Essas
relações constituem uma estrutura de restrições aparentemente não sociais nas
quais indivíduos autodeterminantes perseguem seus interesses — nas quais “indivíduos”
e “interesses” parecem ser ontologicamente dados, e não socialmente
constituídos. Ou seja, é constituído um novo contexto social que não parece ser
social nem contextual. Dito de forma simples, a forma de contextualização
social característica do capitalismo é a da aparente descontextualização.
(Superar a compulsão social não consciente em
uma sociedade emancipada, então, levaria a “libertação” do trabalho
secularizado do seu papel como mediação social. As pessoas poderiam dispor do
trabalho e dos seus produtos de uma maneira livre dos limites sociais
tradicionais e compulsões sociais objetivas alienadas. Alternativamente, trabalho,
ainda que secular, poderia ser mais uma vez imbuído de significância — não em
resultado da tradição não consciente, mas por causa da sua reconhecida
importância social, bem como da satisfação substancial e significado que
poderia oferecer aos indivíduos.)”
111 Ver a excelente discussão de Gyorgy
Markus da relação entre normas explicitas e diretas e objetos e instrumentos
nas sociedades pré-capitalistas em “Die Welt menschlicher Objekte: Zum Problem
der Konstitution im Marxismus”, em Axel Hommeth e Urs Jaeggi (orgs.), Arbeit,
Handlung, Normativität (Frankfurt, Suhrkamp, 1980), p. 24-38.
112 Markus, por exemplo, menciona sociedades
em que os objetos que pertencem a um grupo não são nem mesmo tocados por
membros de outros grupos – como, as armas dos homens não devem ser tocadas
pelas mulheres e crianças (ibidem, p. 31).
113 Lukács sugeriu abordagem semelhante de
concepções de natureza: ver “Reification
and the Consciousness of Proletariat”.
114 Não vou, neste nível abstrato de análise,
tratar a questão do significado conferido aos valores no capitalismo, mas
apenas sugerir que qualquer exame dessa questão deveria levar em conta as
relações muito diferentes entre objetos (e trabalho) e relações sociais em
sociedades capitalistas e não capitalistas. Parece que objetos recebem
significância no capitalismo com sentido diferente do que nas sociedades
tradicionais. Seu significado não é visto tanto como intrínseco a elas, um
atributo “essencial”; pelo contrário, eles são coisas “como coisas” que têm significado
– são como sinais no sentido de que não existe relação necessária entre o
significador e o significado. Pode-se tentar relacionar as diferenças entre o “intrínseco”
e o “contingente”, atributos “como coisas” de objetos, bem como o
desenvolvimento histórico da importância dos julgamentos de gosto para o
desenvolvimento da mercadoria como a forma social totalizante da sociedade
capitalista. Mas esse tema não será tratado aqui.
“Em O eclipse da razão, Max Horkheimer
relaciona o trabalho à ação instrumental, que ele caracteriza como aquela forma
reduzida de razão que se tornou dominante com a industrialização. Razão
instrumental, de acordo com Horkheimer, se interessa apenas pela questão do
meio mais correto ou mais eficiente para um dado fim. Ela se relaciona com a
noção de Weber da racionalidade formal, por oposição a substantiva. Os
objetivos em si não são determináveis pela razão humana125. A ideia
de que a razão em si só é significativamente válida com relação aos
instrumentos, ou é ela própria um instrumento, está intimamente ligada a
deificação positivista das ciências naturais como único modelo de conhecimento126.
Essa ideia resulta em completo relativismo em relação aos objetivos e sistemas
substantivos de moral, política e economia127. Horkheimer relaciona
essa instrumentalização ao desenvolvimento de métodos crescentemente complexos
de produção:
A transformação completa do mundo em um mundo de meios e não de fins é
em si a consequência do desenvolvimento histórico dos métodos de produção. À
medida que a produção material e a organização social se tornavam mais
complicadas e reificadas, o reconhecimento dos meios como tal se torna cada vez
mais difícil, pois assume a aparência de entidades autônomas.128
Horkheimer declara de fato que esse processo
de instrumentalização crescente não é função da produção per se, mas do
seu contexto social129. Como já argumentei, Horkheimer, apesar de
algumas evasivas, identifica o trabalho em si e por si com a ação instrumental.
Ainda que eu concorde que exista uma ligação entre ação instrumental e razão
instrumental, discordo de sua identificação ação instrumental com o trabalho como
tal. A explicação de Horkheimer para o crescente caráter instrumental do mundo diante
da crescente complexidade da produção é menos que convincente. O trabalho sempre
pode ser um meio técnico pragmático para se atingir objetivos particulares, além
de qualquer outro significado que lhe possa ser atribuído, mas isso não chega a
explicar o crescente caráter instrumental do mundo – a dominação crescente dos meios
“livres de valor” sobre valores e objetivos substantivos, a transformação do mundo
num mundo de meios. Só à primeira vista o trabalho parece ser o exemplo por
excelência da ação instrumental. Gyorgy Markus e Cornelius Castoriadis, por exemplo,
afirmaram convincentemente que o trabalho social nunca é simplesmente uma ação
instrumental130. Tendo em vista a argumentação que desenvolvi aqui,
essa proposição pode ser modificada: o trabalho social como tal não é
ação instrumental, mas o trabalho no capitalismo é ação instrumental.
A transformação do mundo em um mundo de
meios, e não de fins, um processo que se estende até as pessoas131,
está relacionada ao caráter particular do trabalho mediado pela mercadoria como
um meio. Embora o trabalho social seja sempre um meio para um fim, apenas isso
não o torna instrumental. Como já observado, nas sociedades pré-capitalistas,
por exemplo, o trabalho recebe significância pelas relações sociais abertas e é
modelado pela tradição. Dado que o trabalho produtor de mercadoria não é
mediado por essas relações, ele é, em certo sentido, privado de significado, “secularizado”.
Esse desenvolvimento pode ser uma condição necessária da crescente
instrumentalização do mundo, mas não é condição suficiente para o caráter
instrumental do trabalho – o fato de ele existir como puro meio. Esse caráter é
uma função de um tipo de meio que o trabalho é no capitalismo.
Como já vimos, o trabalho determinado por
mercadorias é, como o trabalho concreto, um meio de produzir um produto
particular; ademais, e mais essencialmente, como trabalho abstrato, ele é
automediador – é um meio social de aquisição de produtos de outros.
Portanto, para os produtores, o trabalho é abstraído do seu produto concreto:
ele serve a eles como puro meio, um instrumento para adquirir produtos que não
tem relação intrínseca com o caráter substantivo da atividade produtiva por meio
da qual eles são adquiridos132.
O objetivo da produção no capitalismo não são
os bens materiais produzidos nem os efeitos reflexivos da atividade do trabalho
sobre o produtor, é o valor ou, mais precisamente, o mais-valor. Mas, valor é
um objetivo puramente quantitativo, não existe diferença qualitativa entre o
valor do trigo e o das armas. Valor é puramente quantitativo porque, como forma
de riqueza, ele é um meio objetivado: ele é a objetivação do trabalho abstrato
– do trabalho como meio objetivo de aquisição de bens que não produziu. Assim,
produção para o (mais-)valor é produção cujo objetivo é em si um meio133.
Portanto, a produção no capitalismo é necessariamente orientada quantitativamente
para quantidades sempre crescentes de mais-valor. Essa é a base da análise de
Marx da produção no capitalismo como produção pela produção134.
Nessa estrutura, a instrumentalização do mundo é função da determinação da
produção e das relações sociais por essa forma historicamente específica de
mediação social — ela não é função da complexidade crescente da produção
material como tal. Produção pela produção significa que a produção não é mais
um meio para um fim substantivo, mas um meio para um fim que é ele próprio um
meio, um momento em uma cadeia sem fim de expansão. Produção no capitalismo
se torna um meio para um meio. A emergência de um objetivo de produção
social que é na verdade um meio que está na base da dominação crescente,
observada por Horkheimer, dos meios sobre os fins. Ela não está enraizada no
caráter do trabalho concreto como meio material determinado de criação de um
produto específico, pelo contrário, está enraizada no caráter do trabalho no
capitalismo como meio social que é quase objetivo e suplanta as relações
abertamente sociais. Horkheimer, de fato, atribui ao trabalho em geral uma consequência
do caráter específico do trabalho no capitalismo.”
Apesar de o processo de instrumentalização
ser logicamente implicado pelo duplo caráter do trabalho no capitalismo, esse
processo é grandemente intensificado pela transformação dos humanos em meios.
Como elaborarei adiante, o primeiro estágio dessa transformação é a
mercantilização do trabalho em si como força de trabalho (o que Marx chama de “subsunção
formal do trabalho sob o capital”), que não transforma necessariamente a forma
material da produção. O segundo estágio é quando o processo de produção de
mais-valor molda o processo de trabalho a sua imagem (a “subsunção real do
trabalho sob o capital”)135. Com a subsunção real, o objetivo da
produção capitalista — que é na verdade um meio – molda o meio material de sua realização.
A relação entre a forma material da produção e seu objetivo (valor) não é mais
contingente. Pelo contrário, o trabalho abstrato começa a quantificar e moldar
o trabalho concreto a sua imagem, a dominação abstrata do valor começa a se
materializar no processo de trabalho em si. Um marco da subsunção real, de
acordo com Marx, é que, apesar das aparências, as matérias-primas reais do
processo de produção não são os materiais físicos que são transformados em
produtos materiais, mas os trabalhadores cujo tempo de trabalho
objetivado constitui o sangue vital da totalidade136. Com a subsunção
real, essa determinação do processo de valorização se materializa: a pessoa, literalmente,
se torna um meio.”
125 Max Horkheimer, Eclipse o f Reason, cit., p. 3-6.
126 Ibidem, p. 59s., 105.
127 Ibidem, p. 31.
128 Ibidem, p. 102.
129 Ibidem, p. 153-4.
130 Cornelius Castoriadis, Crossroads in the Labyrinth (trad.
Kate Soper e Martin H. Ryle, Cambridge, MIT Press, 1984), p. 244-9; Gyorgy
Markus, “Die Welt menschlicher Objekte: Zum Problem der Konstitution im
Marxismus”, cit., p. 24s.
131 Max Horkheimer, Eclipse of Reason, cit., p. 151.
132 Essa análise do trabalho oferece uma
determinação lógica inicial e abstrata para o desenvolvimento no século XX,
observada por Andre Gorz e Daniel Bell, entre outros, da autoconcepção dos
trabalhadores como trabalhadores/consumidores e não como
trabalhadores/produtores. Ver Andre Gorz, Critique of Econômic Reason (trad. Gillian
Handyside e Chris Turner, Londres/Nova York, Verso, 1989), p. 44s.; e Daniel
Bell, “The Cultural Contradictions of Capitalism”, em The Cultural
Contradictions of Capitalism (Nova York, Basic Books, 1978), p. 65-72.
133 A ascensão do formalismo social e
político, bem como do teórico, pode ser investigada com relação a esse processo
de separação da forma e conteúdo, pela qual a primeira domina a segunda. Em
outro nível, Giddens sugeriu que, dado que o processo de comodificação destrói
ao mesmo tempo os valores tradicionais e os modos de vida e resulta nessa
separação de forma e conteúdo, ele induz sentimentos generalizados de falta de
significado. Ver A Contemporary
Critique of Historical Materialism, cit., p. 152-3.
134 Karl Marx, O capital, cit., Livro I, p. 669-70; idem, “Results
of the Immediate Process of Production”, cit., p. 1.037-8.
“A crítica madura marxiana analisa a relação
entre objetividade e subjetividade em termos de estruturas de mediação sociais,
determinados modos de constituição e constituidora de práticas sociais. A “práxis”
a qual Marx se refere, como deve estar claro, não é a prática revolucionária,
mas a prática como atividade socialmente constituidora. O trabalho constitui
formas de vida social apreendidas pelas categorias da crítica de Marx. No
entanto, essa prática socialmente constituidora não pode ser entendida adequadamente
em termos do trabalho per se, ou seja, trabalho concreto em geral. Não é
apenas o trabalho concreto que cria o mundo que Marx analisa, mas uma qualidade
mediadora do trabalho, que cria relações alienadas caracterizadas pela
antinomia de uma dimensão abstrata, geral, objetiva e uma dimensão concreta,
particular, que até mesmo se objetiva em produtos. Essa dualidade faz aparecer
um tipo de campo de ser social unificado no capitalismo. Um sujeito-objeto
idêntico (capital) existe como o sujeito totalizante histórico e pode ser
desenvolvido a partir de uma única categoria, de acordo com Marx, porque duas
dimensões da vida social – as relações entre as pessoas e as relações entre as
pessoas e a natureza – são fundidas no capitalismo na medida em que ambas são
medidas pelo trabalho. Essa fusão molda tanto a forma de produção quanto as
formas das relações sociais no capitalismo e as relaciona internamente. O fato
de as categorias da crítica da economia política de Marx expressarem ambas as dimensões
da vida social de forma unificada singular (que é, ainda assim, intrinsecamente
contraditória) deriva desta fusão real.
A teoria madura de Marx da prática social no
capitalismo é, assim, uma teoria da constituição pelo trabalho das formas
sociais que medeiam as relações entre as pessoas umas com as outras e com a
natureza, e são, portanto, formas de ser e consciência. Ela é uma teoria da
constituição histórica e social de formas determinadas, estruturadas de
práticas sociais assim como do conhecimento social, normas e necessidades que moldam
a ação. Apesar de as formas sociais que Marx analisa serem constituídas por práticas
sociais, elas não podem ser apreendidas no nível imediato apenas da interação. A
teoria da prática de Marx é a teoria da constituição e possível transformação
das formas de mediação sociais.
Essa interpretação da teoria de Marx
transforma os problemas tradicionais da relação entre trabalho e pensamento
formulando-a em termos da relação, entre formas de relações, sociais medidas
pelo trabalho e formas de pensamento, mais que entre trabalho concreto e
pensamento. Eu argumentei que, assim como a constituição social não é função
apenas do trabalho concreto, na análise de Marx, a constituição da consciência
pela prática social não deve ser entendida apenas em termos de interações dos
sujeitos individuais ou grupos sociais com o ambiente natural mediadas pelo
trabalho. Isso se aplica até mesmo às concepções da realidade natural: elas não
foram obtidas pragmaticamente, apenas de lutas com e transformações da
natureza, mas, como eu tentei indicar, também estão fundadas no caráter e em
determinadas formas sociais que estruturam essas interações com a natureza. Em
outras palavras, o trabalho como atividade produtiva não pode, em si mesmo dar
sentido, portanto, como argumentei, mesmo o trabalho obtém seu sentido das
relações sociais nas quais está inserido. Quando essas relações sociais são
constituídas pelo próprio trabalho, o trabalho existe de uma forma “secular” e
pode ser analisado como ação instrumental.
A noção de que o trabalho é socialmente
constituído não está, portanto, baseada na redução por Marx da prática social
ao trabalho como produção material, em que a interação da humanidade com a
natureza se torna o paradigma da interação117. Esse poderia de fato
ter sido o caso se Marx tivesse entendido a práxis em termos do “trabalho”. No
entanto, a concepção de Marx em seus textos maduros sobre o trabalho como prática
social constituidora está ligada à sua análise da mediação pelo trabalho de
dimensões da vida social que, em outras sociedades, não são mediadas. Essa
análise, de acordo com Marx, é sine qua non para um entendimento crítico
adequado da especificidade das formas das relações sociais, produção e
consciência na formação social capitalista. A fusão citada das duas dimensões
da vida social no capitalismo permite que Marx análise a constituição social em
termos de uma forma de prática (trabalho) e investigue a relação intrínseca da
objetividade e subjetividade social em termos de um único conjunto de
categorias da prática estruturada. É possível que em outra sociedade, na qual a
produção e as relações sociais não sejam constituídas como uma esfera
totalizante da objetividade social por um princípio estruturante singular, a
noção de uma forma singular de prática constituidora pudesse ser modificada e a
relação entre as formas de consciência e formas de ser social pudessem ser
apreendidas diferentemente.”
117 Albrecht Wellmer formula essa crítica no ensaio “Communication and
Emancipation: Reflections on the Linguistic Turn in Crítical Theory”, em John
O’Neil (org.), On Crítical Theory (Nova York, Seabury, 1976), p. 232-3.
“A especificidade histórica das categorias da
crítica de maturidade de Marx tem mais implicações gerais para a questão de uma
epistemologia social autorreflexiva. Argumentei que uma vez que a interação da
humanidade com a natureza e as relações sociais essenciais são mediadas pelo
trabalho no capitalismo, a epistemologia desse modo de vida social pode ser
formulada em termos de categorias de trabalho social alienado. Mas as formas de
interação com a natureza e de interação humana, variam consideravelmente entre
as formações sociais. Formações diferentes, em outras palavras, são
constituídas por modos diferentes de constituição social. Isso, por sua vez,
sugere que formas de consciência e o modo mesmo de sua constituição variam
histórica e socialmente. Cada formação social, então, exige a sua própria
epistemologia. Dito de forma mais geral: ainda que a teoria social evolua com
base em certos princípios muito gerais e indeterminados (por exemplo, o
trabalho social como pré-requisito da reprodução social), suas categorias devem
ser adequadas a especificidade do seu objeto. Não existe teoria social
trans-historicamente válida e determinada.
Essa abordagem marxiana historicamente
determinada oferece uma estrutura dentro da qual também se pode analisar o
caráter subespecificado das noções de Habermas de sistema e mundo da vida. Como
já mostrei, Marx argumenta que as relações sociais do capitalismo são únicas na
medida em que não parecem de forma alguma ser sociais. A estrutura de relações
constituída pelo trabalho determinado pela mercadoria solapa sistemas
anteriores de ligações sociais abertas sem, entretanto, substitui-los por um
sistema semelhante. Pelo contrário, o que surge é um universo social que Marx
descreve como um universo de independência pessoal num contexto de dependência
objetiva. A estrutura abstrata e quase objetiva de necessidade e, em nível
imediato, a latitude de interação muito maior na sociedade capitalista do que numa
sociedade tradicional, são momentos da forma de mediação que caracteriza o capitalismo.
Em certo sentido, a oposição entre sistema e mundo da vida — tal como a
anterior entre trabalho e interação — expressa uma hipostasia desses dois
momentos de uma forma que dissolve as relações sociais capitalistas em esferas “simbólicas”
e “materiais”. As características da dimensão de valor das relações sociais
alienadas são atribuídas a dimensão sistêmica. Essa objetivação conceitual
deixa uma esfera aparentemente indeterminada de comunicação que não é mais
vista como estruturada por uma forma de mediação social (na medida em que essa
forma não é abertamente social), pelo contrário, e sim como autoestruturante e “neutramente
social”. Então, dentro da estrutura dessa abordagem, a subespecificação do
mundo da vida, bem como sistema, expressa um ponto de partida teórico que
manteve a noção de “trabalho”.
“A esfera da circulação, ou troca de
mercadorias, de acordo com Marx, é
um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo
da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os
compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho,
são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres,
dotadas dos mesmos direitos [...]. Igualdade, pois eles se relacionam um com o
outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por
equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham,
pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em
relação mutua é [...] de seus interesses privados. E é justamente porque cada
um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos,
em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios
de uma providencia todo-astuciosa, realizam em conjunto [...] do interesse
geral.35
Qual é a natureza dessa crítica? Em um nível,
ela apresenta como social e historicamente constituídos esses modos
estruturados de ação social e valores considerados “eternos” e “naturais”. Marx
claramente está relacionando as determinações da sociedade civil — como
expressas no pensamento iluminista, nas teorias da economia política e direito
natural, e no utilitarismo — com a forma-mercadoria das relações sociais. Ele
argumenta que a diferenciação da vida social na Europa Ocidental em uma esfera
política formal e uma esfera da sociedade civil (de modo que esta funciona
independentemente do controle político e também está livre de muitas restrições
sociais tradicionais) está ligada a expansão e ao aprofundamento dessa forma de
relações sociais — do mesmo modo que os valores modernos de liberdade e
igualdade, bem como a noção de que a sociedade esfera da é construída pelas
ações de indivíduos autônomos agindo em interesse próprio. Ao dar embasamento
social e histórico ao indivíduo moderno – que é um ponto de partida não
examinado do pensamento iluminista — e aos valores e modos de ação associados a
sociedade civil, Marx busca dissipar a ideia de que eles são “naturais”, que
surgem quando pessoas, livres das amarras de superstições, costumes e
autoridades irracionais, são capazes de buscar seus próprios interesses
racionalmente e de maneira compatível com a natureza humana (no qual o “racional”,
obviamente, é visto como independente da especificidade social e histórica).
além disso, Marx também tenta ancorar socialmente a noção de uma forma “natural”
da própria vida social: o capitalismo difere fundamentalmente de outras
sociedades na medida em que suas relações sociais características não são
evidentes, mas sim “objetivamente” constituídas e, portanto, não parecem de
forma alguma socialmente específicas. Essa diferença, no próprio tecido das
relações sociais, contribui para que as diferenças entre as sociedades capitalistas
e não capitalistas pareçam estar entre instituições sociais extrínsecas a natureza
humana, portanto “artificiais”, e aquelas que são socialmente “naturais”36.
Ao especificar as relações sociais determinantes do capitalismo, mostrando que
elas não parecem de forma alguma sociais e indicando que os indivíduos
aparentemente descontextualizados, que atuam de acordo com seu próprio
interesse, são social e historicamente constituídos (como o é a própria
categoria de juro), a teoria crítica de Marx da sociedade capitalista
fundamenta socialmente e, assim, mina a noção moderna do “naturalmente social”37.
34 Karl Marx, O capital, cit., Livro
I, p. 250.
35 Ibidem, p. 250-1.
36 Ibidem, nota 33, p. 156.
37 Esse argumento poderia servir de ponto de
partida para uma crítica da noção de Habermas, desenvolvida em A teoria da
ação comunicativa, de que minar as formas sociais tradicionais do
capitalismo permite o surgimento histórico de um mundo da vida constituído pela
ação comunicativa como tal, isto e, ação social, cujas características não são
socialmente determinadas.
“Na análise de Marx, o desenvolvimento do
mais-valor relativo atribui ao capitalismo uma dinâmica que, embora constituída
pela prática social, tem a forma de uma lógica histórica. Ela é direcional,
desdobra-se de maneira regular, está além do controle de seus agentes constituintes
e exerce sobre eles uma forma abstrata de coação.”
“O desenvolvimento pode ser compreendido com
referência a categoria do tempo histórico. Como veremos ao considerar a
trajetória da produção, com o desenvolvimento da produção científica e
tecnologicamente avançada, aumentos na produtividade também expressam o acúmulo
de experiência social prévia e trabalho, bem como os aumentos frequentemente descontínuos
no conhecimento geral que ocorrem com base nesse passado preservado16.
A dinâmica do capitalismo, como compreendida pelas categorias de Marx, é tal
que, com o acúmulo do tempo histórico, há uma crescente disparidade entre as
condições para a produção de riqueza material e as condições para a geração de
valor. Considerada tendo em vista a dimensão do valor de uso do trabalho (isto é,
em termos de criação de riqueza material), a produção é cada vez menos um
processo de objetivação material das habilidades e dos conhecimentos de
produtores individuais ou mesmo da classe imediatamente envolvida; em vez
disso, torna-se cada vez mais uma objetivação do conhecimento coletivo
acumulado das espécies, da humanidade — que, como uma categoria geral, é
constituída com o acúmulo de tempo histórico. Em relação a dimensão do valor de
uso com o pleno desenvolvimento do capitalismo, a produção torna-se cada vez
mais um processo de objetivação do tempo histórico, e não do tempo de trabalho
imediato. De acordo com Marx, no entanto, o valor continua a ser
necessariamente expressão da objetivação deste último.”
16 O capital, cit., Livro I, p. 459s.
“As determinações de classe — que eu admito
ter apenas começado a elucidar (por exemplo, o proletariado como proprietário
da força de trabalho-mercadoria e como objeto do processo de valorização) – não
são simplesmente determinações “posicionais”, mas sim determinações tanto da
objetividade como da subjetividade social. Isso implica uma crítica a
abordagens que, primeiro, definem classe “objetivamente” – em termos da posição
dentro da estrutura social – e, em seguida, abordam a questão de como a classe
se constitui “subjetivamente”; isso normalmente implica relacionar objetividade
e subjetividade extrinsecamente, por meio da noção de “interesse”.
Se a determinação inicial da classe na
abordagem de Marx não é de posição objetiva, mas de objetividade e subjetividade,
a questão da dimensão subjetiva de uma determinação de classe em particular
deve ser distinta da questão das condições sob as quais muitas pessoas agem
como membros de uma classe. Eu não posso aqui responder a essa última questão,
mas, no que diz respeito a primeira, a dimensão subjetiva da classe não pode —
mesmo no nível de sua determinação inicial – ser entendida apenas diante da
consciência dos interesses coletivos se as concepções particulares desses
interesses, bem como a noção de interesse em si, não são compreendidas no
contexto social e histórico. Procurei mostrar como, de acordo com a abordagem
categorial marxiana, a consciência não é um mero reflexo de condições
objetivas; em vez disso, as categorias, que expressam as mediações sociais
básicas características do capitalismo, delineiam formas de consciência como
momentos intrínsecos de formas do ser social. Assim, as determinações de classe,
para Marx, implicam formas de subjetividade determinadas social e
historicamente — por exemplo, pontos de vista da sociedade e de si mesmo,
sistemas de valores, entendimentos de ação, concepções sobre as fontes de males
sociais e possíveis formas de remediação – que estão enraizadas nas formas de
mediação social como constituem diferencialmente uma classe em particular.
Nesse sentido, a categoria de classe é um momento de uma abordagem que busca
compreender a determinação histórica e social de várias concepções e
necessidades sociais, bem como de formas de ação.
A classe social, estruturada pelas formas
sociais e pelo momento propulsor da totalidade social capitalista, é também uma
categoria estruturadora de sentido e consciência social. Isso não quer dizer
que todos os indivíduos que podem ser “situados” de maneira semelhante tenham
as mesmas crenças, nem que a ação social e política siga “automaticamente” as
linhas de classe. Isso de fato significa que a especificidade social e
histórica das formas de subjetividade e ação social podem ser elucidadas diante
da noção de classe. A natureza das exigências sociais e políticas, ou das
formas determinadas das lutas associadas a tais exigências, por exemplo, pode
ser compreendida e explicada social e historicamente em relação a classe,
contanto que a classe seja compreendida com referência às formas categoriais.”
“Se o valor é a categoria fundamental das
relações sociais de produção capitalista, e se a dimensão do valor de uso da
força de trabalho engloba as forças produtivas, então o capital pode ser
entendido como uma estrutura alienada de relações de produção mediadas pelo
trabalho que promove o desenvolvimento de forças produtivas sociais gerais
enquanto as incorpora como atributos. A dialética entre as forças e relações
de produção — cujas determinações fundamentais analisei como dialética
entre transformação e reconstituição — é, pois, uma dialética entre duas
dimensões do capital, e não entre o capital e forças a ele extrínsecas.
Essa dialética está no cerne do capital como uma totalidade social dinâmica e
contraditória. Longe de denotar apenas os meios de produção possuídos pela
classe de expropriadores privados, a categoria do capital refere-se a uma estrutura
alienada e dual de relações mediadas pelo trabalho em termos das quais o
peculiar tecido da sociedade moderna, sua forma abstrata de dominação, sua dinâmica
histórica e suas formas características de produção e de trabalho podem ser
entendidas sistematicamente.”
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