domingo, 17 de maio de 2020

Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx (Parte III) – Moishe Postone

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-398-1
Tradução: Amilton Reis e Paulo Cézar Castanheira
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 486
Sinopse: Ver Parte I



“Sociedade não é simplesmente um conjunto de indivíduos, ela é composta de relações sociais. Fundamental para a análise de Marx é o argumento de que as relações que caracterizam a sociedade capitalista são muito diferentes das formas de relações sociais abertas — como as relações de família ou relações de dominação pessoal ou direta — que caracterizam as sociedades não capitalistas. Esses últimos tipos de relação não são apenas manifestamente sociais, eles são qualitativamente particulares, nenhum tipo abstrato e homogêneo de relação está na base de todos os aspectos da vida social.
Mas, de acordo com Marx, o caso é diferente no capitalismo. Relações sociais abertas e diretas continuam a existir, mas a sociedade capitalista é basicamente estruturada por um novo nível subjacente de inter-relação que não pode ser compreendido adequadamente em termos das relações abertamente sociais entre pessoas ou grupos — incluindo as classes87. A teoria marxiana inclui, evidentemente, uma análise da exploração e dominação de classe, mas vai além da investigação da distribuição desigual da riqueza e do poder no capitalismo, e apreende a própria natureza do seu tecido social, sua forma singular de riqueza e sua forma intrínseca de dominação.
O que, para Marx, torna tão peculiar o tecido dessa estrutura social subjacente é ele ser constituído pelo trabalho, pela qualidade historicamente específica do trabalho no capitalismo. Portanto, as relações sociais específicas e características do capitalismo só existem no meio do trabalho. Uma vez que o trabalho é uma atividade que necessariamente se objetiva em produtos, a função do trabalho determinado por mercadoria como atividade socialmente mediadora é inseparavelmente entrelaçada com o ato da objetivação: o trabalho produtor de mercadorias, no próprio processo de se objetivar como trabalho concreto em valores particulares de uso, também se objetiva como trabalho abstrato nas relações sociais.
De acordo com Marx, um marco da sociedade moderna ou capitalista é que, dado que as relações sociais que essencialmente caracterizam tal sociedade são constituídas pelo trabalho, elas só existem em forma objetivada. Elas têm caráter objetivo e formal peculiar, não são abertamente sociais e se caracterizam pela dualidade antinômica do concreto e do abstrato, do particular e do homogeneamente geral. As relações sociais constituídas pelo trabalho determinado por mercadorias não prendem as pessoas umas às outras de maneira abertamente social; pelo contrário, o trabalho constitui uma esfera de relações sociais objetivadas que tem caráter aparentemente não social e objetivo e, como veremos, é separado e oposto ao agregado social de indivíduos e suas relações imediatas88. Como a esfera social que caracteriza a formação social capitalista e objetivada, ela não pode ser adequadamente compreendida em termos das relações sociais concretas.
Correspondentes às duas formas de trabalho objetivadas na mercadoria, existem duas formas de riqueza social: valor e riqueza material. Riqueza material é uma função dos produtos produzidos, da sua qualidade e quantidade. Como forma de riqueza, exprime a objetivação de vários tipos de trabalho, a relação ativa entre a humanidade e a natureza. Mas, tomada por si só, não constitui relações entre pessoas nem determina a sua própria distribuição. A existência da riqueza material como a forma dominante de riqueza social implica, portanto, a existência de formas abertas de relações sociais que a medeiam.
Valor, por outro lado, é a objetivação do trabalho abstrato. Na análise de Marx, ele é uma forma autodistribuidora de riqueza: a distribuição de mercadorias é feita pelo que parece inerente a elas – valor. Valor é então uma categoria de mediação: é ao mesmo tempo uma forma de riqueza historicamente determinada, autodistribuidora e uma forma de relação social objetivada automediadora. Sua medida, como veremos, é muito diferente da medida da riqueza material. Ademais, como já notado, valor e uma categoria da totalidade social: o valor de uma mercadoria e um momento individualizado da mediação social geral objetivada. Por existir em forma objetivada, essa mediação social tem caráter objetivo, não é abertamente social, é abstraída de toda particularidade e é independente das relações pessoais diretas. Uma ligação social é o resultado da função do trabalho como mediação social que, por essas qualidades, não depende das interações sociais imediatas, mas pode funcionar a uma distância espacial e temporal. Como forma objetivada do trabalho abstrato, valor é uma categoria essencial das relações capitalistas de produção.
Assim, a mercadoria, que Marx analisou como valor de uso e valor, é a objetivação material do duplo caráter do trabalho no capitalismo — como trabalho concreto e atividade socialmente mediadora. Ela é o princípio estruturante fundamental do capitalismo, a forma objetivada das relações das pessoas com a natureza, bem como delas entre si. A mercadoria é ao mesmo tempo um produto e uma mediação social. Não é um valor de uso que tem valor, mas, como objetivação materializada do trabalho concreto e do trabalho abstrato, ela é um valor de uso que é um valor e, portanto, tem valor de troca. Essa simultaneidade das dimensões substanciais e abstratas na forma do trabalho e seu produto é a base das várias oposições antinômicas do capital e, como mostrarei, a base do seu caráter dialético e basicamente contraditório. Na sua bilateralidade como concreto e abstrato, qualitativamente particular e quantitativamente geral-homogênea, a mercadoria é a expressão mais elementar do caráter fundamental do capitalismo. Como objeto, a mercadoria tem uma forma material, como mediação social, ela é uma forma social.”
87 Apesar de a análise de classe continuar sendo básica para o projeto crítico marxiano, a análise de valor, de mais-valor e do capital como formas sociais não pode ser inteiramente compreendida em termos de categorias de classe. Uma análise marxista que se mantem limitada a considerações de classe acarreta uma grave redução sociológica da crítica marxiana.
88 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 105-10.


“Como já sugeri, a revelação por Marx das categorias da sua crítica pode também ser lida como um metacomentário imanente sobre a constituição do pensamento filosófico em geral e da filosofia de Hegel em particular. Para Hegel, o Absoluto, a totalidade das categorias subjetivo-objetivas, se fundamenta em si próprio. Como a “substância” em processo que é “sujeito”, ele é a verdadeira causa sui, bem como o ponto final de seu próprio desenvolvimento. Em O capital, Marx apresenta as formas que estão na base da sociedade determinada por mercadorias como constituintes do contexto social de noções, como a diferença entre essência e aparência, o conceito filosófico de substância, a dicotomia entre sujeito e objeto, a noção de totalidade e, no nível lógico da categoria de capital, o desenvolvimento da dialética do sujeito-objeto idêntico90. Sua análise do duplo caráter do trabalho no capitalismo como atividade produtiva e como mediação social permite entender o trabalho como uma causa sui não metafísica, historicamente específica. Como o trabalho medeia a si próprio, ele se fundamenta (socialmente) e portanto tem os atributos de “substância” no sentido filosófico. Já vimos que Marx se refere explicitamente a categoria de trabalho humano abstrato com o termo filosófico “substância” e que ele exprime a constituição de uma totalidade social pelo trabalho. A forma social é uma totalidade porque não é uma coleção de várias particularidades, mas, pelo contrário, é constituído por uma “substância” geral e homogênea que é seu próprio fundamento. Uma vez que a totalidade é autofundamentada, automediada e objetivada, ela existe quase independentemente. Como mostrarei, no nível lógico da categoria de capital, essa totalidade se torna concreta e em processo. O capitalismo, tal como analisado por Marx, é uma forma de vida social com atributos metafísicos – os atributos do sujeito absoluto.
Isso não quer dizer que Marx trate as categorias sociais de maneira filosófica, pelo contrário, ele trata as categorias filosóficas com referência aos atributos peculiares das formas que analisa. De acordo com a sua abordagem, os atributos das formas sociais são expressos de forma hipostasiada como categorias filosóficas. Por exemplo, sua análise do duplo caráter do trabalho no capitalismo implicitamente trata a autofundamentação como um atributo da forma social historicamente específica, e não como o atributo de um Absoluto. Isso sugere uma interpretação histórica da tradição do pensamento filosófico que exige os primeiros princípios autofundamentados como seu ponto de partida. As categorias marxianas, tal como as de Hegel, apreendem a constituição de sujeito e objeto com referência ao desenvolvimento de um sujeito-objeto idêntico. Mas, na abordagem de Marx, o segundo é determinado em termos das formas categoriais das relações sociais no capitalismo, que estão enraizadas na dualidade do trabalho determinado por mercadorias. O que Hegel tentou captar com seu conceito de totalidade não é, de acordo com Marx, absoluto nem eterno, mas historicamente determinado. Uma causa sui de fato existe, mas é social; e não é o verdadeiro ponto final do seu próprio desenvolvimento. Ou seja, não existe ponto final: superar o capitalismo resultaria na abolição — não a realização — da “substância” do papel do trabalho na constituição de uma mediação social e, portanto, na abolição da totalidade.
Resumindo: na obra de maturidade de Marx, a noção de que trabalho está no âmago da vida social não se refere simplesmente ao fato de a produção material ser sempre uma precondição de vida social. Também não sugere que a produção é a esfera determinante historicamente específica da civilização capitalista – se produção é entendida apenas como a produção de bens. Em geral, a esfera da produção no capitalismo não deve ser entendida apenas em termos das interações materiais dos seres humanos com a natureza. Apesar de ser obviamente verdade que a interação “metabólica” com a natureza afetada pelo trabalho é uma precondição da existência de qualquer sociedade, o que determina uma sociedade é também a natureza das suas relações sociais. O capitalismo, de acordo com Marx, se caracteriza pelo fato de suas relações sociais fundamentais serem constituídas pelo trabalho. O trabalho no capitalismo se objetiva não somente nos produtos materiais — o que ocorre em todas as formações sociais – mas também nas relações sociais objetivadas. Em virtude do seu duplo caráter, ele constitui como totalidade uma esfera social objetiva e quase natural que não pode ser reduzida a soma das relações sociais diretas e, como veremos, se coloca em oposição ao agregado de indivíduos e grupos como um Outro abstrato. Em outras palavras, o duplo caráter do trabalho determinado por mercadorias é tal que a esfera do trabalho no capitalismo medeia relações que, em outras formações, existem como uma esfera de interação social aberta. Assim, ela constitui uma esfera social quase objetiva. Seu duplo caráter significa que o trabalho no capitalismo tem um caráter socialmente sintético que o trabalho em outras formações não possui. O trabalho como tal não constitui uma sociedade per se·, mas o trabalho no capitalismo constitui de fato essa sociedade.”
90 A ascensão da filosofia na Grécia foi relacionada por Alferd Sohn-Rethel, entre outros, ao desenvolvimento da cunhagem e extensão da forma-mercadoria nos séculos VI e V a.C.: ver Alfred Sohn-Rethel, Geistige und köperliche Arbeit (Frankfurt, Suhrkamp, 1972); George Thomson, The First Philosophers (Londres, Lawrence and Wishart, 1955); e Rudolf W. Muller, Geld und Geist (Frankfurt/Nova York, Campus, 1977). Uma versão revisada do livro de Sohn-Rethel foi publicada em inglês como Intellectual and Manual Labour: A Critique of Epistemology (trad. Martin Sohn-Rethel, Atlantic Highlands, Humanides, 1978). Sohn-Rethel não faz distinção entre uma situação igual à da Ática no século V, onde a produção de mercadorias era generalizada, mas de maneira alguma a forma dominante de produção, e o capitalismo, uma situação em que a forma-mercadoria é totalizante. Portanto, ele não teve condições de fundamentar socialmente a distinção, enfatizada por György Lukács, entre a filosofia grega e o racionalismo moderno. A primeira, de acordo com Lukács, “não era estranha a certos aspectos da reificação [mas não os experimentava] como formas universais de existência; ela tinha um pé no mundo da reificação e o outro permanecia na sociedade natural”’. O segundo se caracterizou por “sua afirmação cada vez mais insistente de que descobriu o princípio que liga todos os fenômenos que, na natureza e na sociedade, enfrentam a humanidade” (History and Class Consciousness, cit., p. 111, 113). Entretanto, por causa das suas premissas relativas ao “trabalho” e, portanto, sua afirmação de totalidade, o próprio Lukács não é suficientemente histórico com relação a época capitalista: ele não é capaz de analisar a noção de Hegel do desenvolvimento dialético do Weltgeist como expressão da época capitalista; e ele a interpreta como uma versão idealista de uma forma de pensamento que transcende o capitalismo.


“Já vimos que, de acordo com Marx, as relações sociais essenciais do capitalismo, por sua qualidade objetiva e geral, são tais que constituem uma totalidade. Pode ser revelada a partir de uma única forma estruturante, a mercadoria. Esse argumento é uma dimensão importante da apresentação de Marx em O capital, que tenta reconstruir teoricamente as características centrais da sociedade capitalista a partir daquela forma básica. Partindo da categoria da mercadoria e da determinação inicial do trabalho como mediação social, Marx desenvolve as categorias do dinheiro e do capital. Nesse processo, ele mostra que a forma mediada pelo trabalho das relações sociais características do capitalismo não constituem simplesmente uma matriz social em que os indivíduos se localizam e se relacionam uns com os outros; pelo contrário, a mediação, inicialmente analisada como um meio (de adquirir produtos de outros), adquire vida própria, independente, por assim dizer, dos indivíduos que medeia. Ela se desenvolve em um tipo de sistema objetivo acima dos indivíduos e contra eles, e cada vez mais determina os objetivos e meios da atividade humana92.
É importante observar que a análise de Marx não pressupõe ontologicamente a existência desse “sistema” social de uma maneira conceitualmente reificada. Pelo contrário, como já mostrei, ela fundamenta a qualidade sistêmica típica das estruturas fundamentais da vida moderna de formas determinadas de prática social. As relações sociais que fundamentalmente definem o capitalismo são “objetivas” em caráter e constituem um “sistema”, porque são constituídas pelo trabalho como uma atividade socialmente mediadora e historicamente específica, ou seja, por uma forma de prática abstrata, homogênea e objetivante. Por sua vez, a ação social é condicionada por formas de aparência dessas estruturas fundamentais pela forma como essas relações sociais se manifestam e modelam a experiência imediata. A teoria crítica de Marx, em outras palavras, leva a uma análise complexa da constituição recíproca do sistema e da ação na sociedade capitalista que não postula a existência trans-histórica dessa mesma oposição – entre sistema e ação mas fundamenta-a e a cada um dos seus termos nas formas determinadas da vida social moderna.
O sistema constituído pelo trabalho abstrato corporifica uma nova forma de dominação social que exerce uma forma de compulsão social cujo caráter objetivo é historicamente novo. A determinação inicial dessa compulsão social abstrata é serem os indivíduos compelidos a produzir e trocar mercadorias para sobreviver. Essa compulsão exercida não é função da dominação social direta, como se dá, por exemplo, com o trabalho escravo ou servil; ela é, pelo contrário, função das estruturas sociais “abstratas” e “objetivas” e representa uma forma de dominação abstrata e impessoal. Fundamentalmente, essa forma de dominação não é baseada em nenhuma pessoa, classe ou instituição, seu local básico são as formas sociais estruturantes difusas da sociedade capitalista que são constituídas por formas determinadas de prática social93. A sociedade, como o Outro quase independente, abstrato e universal que se coloca em oposição aos indivíduos e exerce sobre eles uma compulsão impessoal, é constituída como estrutura alienada pelo duplo caráter do trabalho no capitalismo. A categoria de valor, como categoria básica das relações capitalistas de produção, é também a determinação inicial das estruturas sociais alienadas. As relações sociais capitalistas e estruturas alienadas são idênticas94.
É fato conhecido que, nos seus primeiros textos, Marx sustenta que o trabalho que se objetiva em produtos não precisa ser alienante e crítica Hegel por não ter distinguido entre alienação e objetivação95. Ainda assim, a forma como se conceitua a relação entre alienação e objetivação depende de como se entende o trabalho. Se se parte de uma noção trans-histórica de “trabalho”, a diferença entre objetivação e alienação deve necessariamente basear-se em fatores extrínsecos a atividade objetivadora — por exemplo, nas relações de propriedade, ou seja, no caso de os produtores imediatos serem capazes de dispor do próprio trabalho e de seus produtos ou de a classe capitalista apropriá-los. Essa noção de trabalho alienado não apreende adequadamente o tipo de necessidade abstrata socialmente constituída que comecei a analisar. Mas nos textos da maturidade de Marx a alienação está enraizada no duplo caráter do trabalho determinado por mercadoria e, como tal, é intrínseca ao caráter desse trabalho mesmo. Sua função como atividade socialmente mediadora é exteriorizada como uma esfera social independente abstrata que exerce uma forma de compulsão impessoal sobre as pessoas que a constituem. O trabalho no capitalismo da origem a uma estrutura que o domina. Essa forma de dominação reflexiva autogerada é alienação.
A análise da alienação implica outra compreensão da diferença entre objetivação e alienação. Essa diferença, nas obras da maturidade de Marx, não é função do que acontece com o trabalho concreto e seus produtos; pelo contrário, sua análise mostra que objetivação é de fato alienação se o que o trabalho objetiva são as relações sociais. Mas essa identidade é historicamente determinada: é função da natureza específica do trabalho no capitalismo. Portanto, existe a possibilidade de que ele possa ser suplantado.
Assim, mais uma vez, está claro que a crítica da maturidade de Marx teve sucesso em captar o “núcleo racional” da posição de Hegel – neste caso, que objetivação é alienação analisando a especificidade do trabalho no capitalismo. já notei anteriormente que a “transformação materialista” do pensamento de Hegel com base na noção historicamente indiferenciada de “trabalho” pode apreender socialmente a concepção de Hegel do sujeito histórico somente como um grupamento social, mas não como uma estrutura supra-humana de relações sociais. Vemos agora que ela também fracassa em captar a relação intrínseca (ainda que historicamente determinada) entre alienação e objetivação. Nos dois casos, a análise de Marx do duplo caráter do trabalho no capitalismo permite uma apropriação social mais adequada do pensamento de Hegel96.
O trabalho alienado, então, constitui uma estrutura social de dominação abstrata, mas esse trabalho não deve necessariamente ser igualado a trabalho árduo, opressão ou exploração. O trabalho de um servo, uma porção do qual “pertence” ao senhor feudal, não é, em si mesmo, alienado: a dominação e exploração desse trabalho não são intrínsecas ao trabalho em si. É precisamente por esta razão que a expropriação nessa situação era e tinha de ser baseada na compulsão direta. O trabalho não alienado em sociedades nas quais o mais-valor existe e é expropriado pelas classes não trabalhadoras está necessariamente ligado a dominação social direta. Por comparação, exploração e dominação são momentos integrais do trabalho determinado por mercadoria97. Mesmo o trabalho de um produtor independente de mercadorias é alienado, ainda que não no mesmo grau que o trabalhador da indústria, porque a compulsão social se faz abstratamente em resultado das relações sociais objetivadas pelo trabalho quando este funciona como uma atividade socialmente mediadora. A dominação abstrata e a exploração da característica do trabalho no capitalismo são fundamentadas basicamente não na apropriação do mais-valor pelas classes não trabalhadoras, mas na forma do trabalho no capitalismo.
A estrutura de dominação abstrata constituída pelo trabalho que age como uma atividade socialmente mediadora não parece ser socialmente constituída, pelo contrário, ela aparece em forma naturalizada. Sua especificidade social e histórica é velada por vários fatores. A forma de necessidade social exercida – da qual só discuti a primeira determinação — existe na ausência de qualquer dominação social direta pessoal. Dado que a compulsão exercida é impessoal e “objetiva”, ela não parece, de forma alguma, ser social, mas “natural” e, como explicarei mais adiante, condiciona as concepções sociais da realidade natural. Essa estrutura faz com que as necessidades próprias, e não a ameaça de força ou qualquer outra sanção social, pareçam ser a fonte dessa necessidade.
Essa naturalização da dominação abstrata é reforçada pela superposição de dois tipos muito diferentes de necessidade associados ao trabalho social. O trabalho de alguma forma é uma precondição necessária – uma necessidade social “natural” – da existência social humana como tal. Essa necessidade pode ocultar a especificidade do trabalho produtor de mercadorias – que, apesar de não se consumir o que se produz, o trabalho é ainda assim o meio social necessário para obtenção de produtos a serem consumidos. Esta última necessidade é uma necessidade social historicamente determinada. (A distinção entre essas duas formas de necessidade, como se tornara claro mais adiante, é importante para compreender a concepção de Marx da liberdade na sociedade pós-capitalista.) Dado que o papel mediador social específico desempenhado pelo trabalho produtor de mercadorias é velado, e esse trabalho aparece como trabalho per se, esses dois tipos de necessidades se combinam na forma de uma aparente necessidade trans-histórica: é preciso trabalhar para sobreviver. Portanto, uma forma de necessidade social específica do capitalismo aparece como a “ordem natural das coisas”. Essa necessidade aparentemente trans-histórica — de que o trabalho do indivíduo é o meio necessário para o seu próprio consumo (e o da sua família) – serve como base de uma ideologia legitimadora fundamental da formação social capitalista como um todo, ao longo das suas várias fases. Como afirmação da estrutura mais básica do capitalismo, essa ideologia de legitimação é mais fundamental que as que se ligam mais intimamente a fases específicas do capitalismo — por exemplo, as que se relacionam com a troca de equivalentes mediada pelo mercado.
A análise de Marx da especificidade do trabalho no capitalismo tem outras implicações para sua concepção de alienação. O significado de alienação varia consideravelmente dependendo de ela ser considerada no contexto de uma teoria baseada na noção de “trabalho” ou no contexto de uma análise da dualidade do trabalho no capitalismo. No primeiro caso, a alienação se torna um conceito de antropologia filosófica; refere-se à exteriorização de uma essência humana preexistente. Em outro nível, ela se refere a uma situação em que os capitalistas possuem o poder de dispor do trabalho dos trabalhadores e dos seus produtos. Dentro da estrutura dessa crítica, a alienação é um processo inequivocamente negativo — apesar de ser fundamentada em circunstâncias que podem ser superadas.
Na interpretação apresentada aqui, alienação é o processo de objetivação do trabalho abstrato. Ela não leva a exteriorização de uma essência humana preexistente, pelo contrário, leva ao surgimento dos poderes humanos na forma alienada. Em outras palavras, alienação se refere ao processo de constituição dos poderes humanos que se realiza pelo trabalho que se objetiva como atividade de mediação social. Por meio desse processo, emerge uma esfera social objetiva que adquire vida própria e existe como estrutura de dominação abstrata sobre os indivíduos e contra eles. Marx, ao elucidar e fundamentar os aspectos centrais da sociedade capitalista nesse processo, avalia os resultados como bilaterais, e não como inequivocamente negativos. Assim, por exemplo, em O capital ele analisa a constituição por trabalho alienado de uma forma social universal que é, ao mesmo tempo, uma estrutura em que capacidades humanas são criadas historicamente é uma estrutura de dominação abstrata. Essa forma alienada induz uma acumulação rápida de riqueza social e força produtiva da humanidade e leva também a fragmentação crescente do trabalho, a regulamentação formal do tempo e a destruição da natureza. As estruturas de dominação abstrata constituídas por formas determinadas de prática social produzem um processo social que está além do controle humano; ainda assim elas também produzem, na análise de Marx, a possibilidade histórica de que pessoas possam controlar o que constituíram socialmente de forma alienada.”
92 Neste livro não vou tratar a questão da relação entre a constituição da sociedade capitalista como totalidade social com uma dinâmica social intrínseca e diferenciação crescente das várias esferas da vida social que caracterizam essa sociedade. Para uma abordagem desse problema, ver György Lukács, “The Changing Function of Historical Materialism”, em History and Class Consciousness, cit., p. 229s. [ed. bras.: “A mudança de função do materialismo histórico, em História e consciência de classes, cit.].
93 Essa análise da forma de dominação gerada pelas formas sociais de mercadoria e capital na teoria de Marx oferece uma abordagem diferente do tipo de forma de poder impessoal, intrínseca e difusa que Michel Foucault vê como característica das sociedades ocidentais modernas. Ver Discipline and Punish: The Birth of the Prison (trad. Alan Sheridan, Nova York, Pantheon, 1977) [ed. bras.: Vigiar e unir: o nascimento da prisão, Petrópolis, Vozes, 2012].
94 No seu sofisticado e extenso estudo da noção de alienação como princípio estruturante fundamental da crítica de Marx, Bertell Ollman também interpretou a categoria de valor como aquela que apreende as relações sociais capitalistas como relações de alienação. Ver Alienation (2. ed., Cambridge, Cambridge University Press, 1976), p. 157, 176.
95 Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, cit., p. 123-37.
96 A discussão de Marx do trabalho alienado nos Manuscritos econômico-filosóficos indica que ele ainda não tinha desenvolvido inteiramente a base da sua própria análise. Por outro lado, ele afirma explicitamente que o trabalho alienado está no núcleo do capitalismo e não se baseia na propriedade privada, mas que, pelo contrário, a propriedade privada é produto do trabalho alienado (p. 279-80). Por outro lado, ele ainda não desenvolveu claramente uma concepção da especificidade do trabalho no capitalismo e, portanto, não pode, na verdade, fundamentar sua argumentação: só mais tarde a sua argumentação relativa à alienação será desenvolvida integralmente, com base na sua concepção do duplo caráter do trabalho no capitalismo. Esta concepção, por sua vez, modifica a sua noção de alienação em si.
97 Giddens observa que nas sociedades pré-capitalistas “divididas em classes”, as classes dominadas não precisam das classes dominantes para conduzir o processo de produção, mas que no capitalismo o trabalhador precisa de fato de um empregador para ganhar a vida: ver A Contemporary Critique of Historical Materialism, cit., p. 130. Ele descreve uma dimensão muito importante da especificidade da dominação do trabalho no capitalismo. Mas a minha intenção neste livro é delinear outra dimensão dessa especificidade, a da dominação do trabalho pelo trabalho. Essa forma pode ser desprezada quando se aborda apenas a propriedade dos meios de produção.


“Existe um paralelo conceitual entre a crítica implícita de Marx da universalidade historicamente constituída e sua análise da produção industrial como intrinsecamente capitalista. Como já observei na discussão dos Grundrisse, a superação do capitalismo, para Marx, não levaria a um novo modo de distribuição baseado no mesmo modo industrial de produção nem na abolição do potencial produtivo desenvolvido ao longo dos últimos séculos. Ao contrário, tanto a forma como o objetivo da produção no socialismo seriam diferentes. Na análise da universalidade e do processo de produção, a crítica marxiana evita hipostasiar a forma existente e postulá-la como o sine qua non de uma futura sociedade livre, evitando também a noção de que o que foi constituído no capitalismo será completamente abolido no socialismo. A qualidade bilateral do processo de alienação significa, em outras palavras, que sua superação leva a apropriação pelo povo – e não a simples abolição — do que tinha sido constituído de forma alienada. Sob esse aspecto, a crítica marxiana difere tanto da crítica racionalista abstrata quanto da crítica romântica do capitalismo.
Então, na obra da maturidade de Marx, o processo de alienação é integral num processo pelo qual formas estruturadas de prática constituem historicamente as formas sociais básicas, formas de pensamento e valores culturais da sociedade capitalista. A noção de que valores são historicamente constituídos não deve, evidentemente, ser tomada como uma afirmação de que, por não serem eternos, eles são um embuste ou meramente convencionais e sem validade. Uma teoria autorreflexiva das maneiras em que se constituem formas da vida social deve ir além dessa oposição entre as abordagens abstrata absoluta e abstrata relativa, sugerindo as duas que os humanos podem de alguma forma agir e pensar fora dos seus universos sociais.
De acordo com a teoria de Marx da sociedade capitalista, o fato de as relações sociais constituídas de forma alienada pelo trabalho solaparem e transformarem formas sociais anteriores indica que essas formas anteriores também são constituídas. Entretanto, é necessário diferenciar entre os tipos de constituição social envolvidos. As pessoas no capitalismo constituem suas relações sociais e sua história por meio do trabalho. Embora também sejam controladas pelo que constituíram, elas “fazem” essas relações e essa história em um sentido diferente e mais enfático de que as pessoas também “fazem” as relações pré-capitalistas (que Marx caracteriza como geradas espontaneamente e quase naturais [naturwüchsig]). Se se tivesse de relacionar a teoria crítica de Marx ao dito de Vico de que as pessoas podem conhecer melhor a história, pois a fizeram, do que a natureza, que não fizeram104, seria necessário fazê-lo de forma a distinguir entre “fazer” a sociedade capitalista e as pré-capitalistas. O modo alienado de constituição social mediado pelo trabalho, não só enfraquece as formas sociais tradicionais, mas o faz de uma maneira que introduz um novo tipo de contexto social caracterizado por uma forma de distância entre indivíduos e sociedade que abre espaço para – e talvez induza – reflexão social sobre a e análise da sociedade como um todo105. Ademais, dada a lógica dinâmica intrínseca do capitalismo, essa reflexão não precisa permanecer retrospectiva, já que a forma do capital está integralmente desenvolvida. Ao substituir uma estrutura dinâmica alienada de relações “feitas” para formas sociais tradicionais “quase naturais”, o capitalismo abre espaço para a possibilidade objetiva e subjetiva de que se estabeleça uma forma mais nova de relações “feitas”, uma forma que não é mais constituída “automaticamente” pelo trabalho.”
105 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 191-3.

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