Editora: Boitempo
ISBN:
978-85-7559-398-1
Tradução: Amilton
Reis e Paulo Cézar Castanheira
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 486
Sinopse: Ver Parte
I
“Sociedade não é simplesmente um conjunto de
indivíduos, ela é composta de relações sociais. Fundamental para a análise de
Marx é o argumento de que as relações que caracterizam a sociedade capitalista
são muito diferentes das formas de relações sociais abertas — como as relações
de família ou relações de dominação pessoal ou direta — que caracterizam as
sociedades não capitalistas. Esses últimos tipos de relação não são apenas manifestamente
sociais, eles são qualitativamente particulares, nenhum tipo abstrato e homogêneo
de relação está na base de todos os aspectos da vida social.
Mas, de acordo com Marx, o caso é diferente
no capitalismo. Relações sociais abertas e diretas continuam a existir, mas a
sociedade capitalista é basicamente estruturada por um novo nível subjacente de
inter-relação que não pode ser compreendido adequadamente em termos das
relações abertamente sociais entre pessoas ou grupos — incluindo as classes87.
A teoria marxiana inclui, evidentemente, uma análise da exploração e dominação
de classe, mas vai além da investigação da distribuição desigual da riqueza e
do poder no capitalismo, e apreende a própria natureza do seu tecido social, sua
forma singular de riqueza e sua forma intrínseca de dominação.
O que, para Marx, torna tão peculiar o tecido
dessa estrutura social subjacente é ele ser constituído pelo trabalho, pela
qualidade historicamente específica do trabalho no capitalismo. Portanto, as
relações sociais específicas e características do capitalismo só existem no
meio do trabalho. Uma vez que o trabalho é uma atividade que necessariamente se
objetiva em produtos, a função do trabalho determinado por mercadoria como
atividade socialmente mediadora é inseparavelmente entrelaçada com o ato da objetivação:
o trabalho produtor de mercadorias, no próprio processo de se objetivar como
trabalho concreto em valores particulares de uso, também se objetiva como trabalho
abstrato nas relações sociais.
De acordo com Marx, um marco da sociedade
moderna ou capitalista é que, dado que as relações sociais que essencialmente
caracterizam tal sociedade são constituídas pelo trabalho, elas só existem em
forma objetivada. Elas têm caráter objetivo e formal peculiar, não são
abertamente sociais e se caracterizam pela dualidade antinômica do concreto e
do abstrato, do particular e do homogeneamente geral. As relações sociais constituídas
pelo trabalho determinado por mercadorias não prendem as pessoas umas às outras
de maneira abertamente social; pelo contrário, o trabalho constitui uma esfera de
relações sociais objetivadas que tem caráter aparentemente não social e
objetivo e, como veremos, é separado e oposto ao agregado social de indivíduos
e suas relações imediatas88. Como a esfera social que caracteriza a
formação social capitalista e objetivada, ela não pode ser adequadamente
compreendida em termos das relações sociais concretas.
Correspondentes às duas formas de trabalho
objetivadas na mercadoria, existem duas formas de riqueza social: valor e
riqueza material. Riqueza material é uma função dos produtos produzidos, da sua
qualidade e quantidade. Como forma de riqueza, exprime a objetivação de vários
tipos de trabalho, a relação ativa entre a humanidade e a natureza. Mas, tomada
por si só, não constitui relações entre pessoas nem determina a sua própria
distribuição. A existência da riqueza material como a forma dominante de
riqueza social implica, portanto, a existência de formas abertas de relações
sociais que a medeiam.
Valor, por outro lado, é a objetivação do
trabalho abstrato. Na análise de Marx, ele é uma forma autodistribuidora de
riqueza: a distribuição de mercadorias é feita pelo que parece inerente a elas
– valor. Valor é então uma categoria de mediação: é ao mesmo tempo uma forma de
riqueza historicamente determinada, autodistribuidora e uma forma de relação
social objetivada automediadora. Sua medida, como veremos, é muito diferente da
medida da riqueza material. Ademais, como já notado, valor e uma categoria da
totalidade social: o valor de uma mercadoria e um momento individualizado da
mediação social geral objetivada. Por existir em forma objetivada, essa mediação
social tem caráter objetivo, não é abertamente social, é abstraída de toda particularidade
e é independente das relações pessoais diretas. Uma ligação social é o resultado
da função do trabalho como mediação social que, por essas qualidades, não depende
das interações sociais imediatas, mas pode funcionar a uma distância espacial e
temporal. Como forma objetivada do trabalho abstrato, valor é uma categoria
essencial das relações capitalistas de produção.
Assim, a mercadoria, que Marx analisou como
valor de uso e valor, é a objetivação material do duplo caráter do trabalho no
capitalismo — como trabalho concreto e atividade socialmente mediadora. Ela é o
princípio estruturante fundamental do capitalismo, a forma objetivada das
relações das pessoas com a natureza, bem como delas entre si. A mercadoria é ao
mesmo tempo um produto e uma mediação social. Não é um valor de uso que tem valor,
mas, como objetivação materializada do trabalho concreto e do trabalho
abstrato, ela é um valor de uso que é um valor e, portanto, tem valor de
troca. Essa simultaneidade das dimensões substanciais e abstratas na forma do
trabalho e seu produto é a base das várias oposições antinômicas do capital e,
como mostrarei, a base do seu caráter dialético e basicamente contraditório. Na
sua bilateralidade como concreto e abstrato, qualitativamente particular e
quantitativamente geral-homogênea, a mercadoria é a expressão mais elementar do
caráter fundamental do capitalismo. Como objeto, a mercadoria tem uma
forma material, como mediação social, ela é uma forma social.”
87 Apesar de a análise de classe continuar
sendo básica para o projeto crítico marxiano, a análise de valor, de mais-valor
e do capital como formas sociais não pode ser inteiramente compreendida em
termos de categorias de classe. Uma análise marxista que se mantem limitada a
considerações de classe acarreta uma grave redução sociológica da crítica
marxiana.
88 Karl Marx, Grundrisse, cit., p.
105-10.
“Como já sugeri, a revelação por Marx das
categorias da sua crítica pode também ser lida como um metacomentário imanente
sobre a constituição do pensamento filosófico em geral e da filosofia de Hegel
em particular. Para Hegel, o Absoluto, a totalidade das categorias
subjetivo-objetivas, se fundamenta em si próprio. Como a “substância” em
processo que é “sujeito”, ele é a verdadeira causa sui, bem como o ponto
final de seu próprio desenvolvimento. Em O capital, Marx apresenta as
formas que estão na base da sociedade determinada por mercadorias como
constituintes do contexto social de noções, como a diferença entre essência e
aparência, o conceito filosófico de substância, a dicotomia entre sujeito e
objeto, a noção de totalidade e, no nível lógico da categoria de capital, o
desenvolvimento da dialética do sujeito-objeto idêntico90. Sua
análise do duplo caráter do trabalho no capitalismo como atividade produtiva e
como mediação social permite entender o trabalho como uma causa sui não metafísica,
historicamente específica. Como o trabalho medeia a si próprio, ele se
fundamenta (socialmente) e portanto tem os atributos de “substância” no sentido
filosófico. Já vimos que Marx se refere explicitamente a categoria de trabalho
humano abstrato com o termo filosófico “substância” e que ele exprime a
constituição de uma totalidade social pelo trabalho. A forma social é uma
totalidade porque não é uma coleção de várias particularidades, mas, pelo
contrário, é constituído por uma “substância” geral e homogênea que é seu próprio
fundamento. Uma vez que a totalidade é autofundamentada, automediada e objetivada,
ela existe quase independentemente. Como mostrarei, no nível lógico da categoria
de capital, essa totalidade se torna concreta e em processo. O capitalismo, tal
como analisado por Marx, é uma forma de vida social com atributos metafísicos –
os atributos do sujeito absoluto.
Isso não quer dizer que Marx trate as categorias
sociais de maneira filosófica, pelo contrário, ele trata as categorias
filosóficas com referência aos atributos peculiares das formas que analisa. De
acordo com a sua abordagem, os atributos das formas sociais são expressos de
forma hipostasiada como categorias filosóficas. Por exemplo, sua análise do
duplo caráter do trabalho no capitalismo implicitamente trata a
autofundamentação como um atributo da forma social historicamente específica, e
não como o atributo de um Absoluto. Isso sugere uma interpretação histórica da
tradição do pensamento filosófico que exige os primeiros princípios
autofundamentados como seu ponto de partida. As categorias marxianas, tal como
as de Hegel, apreendem a constituição de sujeito e objeto com referência ao
desenvolvimento de um sujeito-objeto idêntico. Mas, na abordagem de Marx, o
segundo é determinado em termos das formas categoriais das relações sociais no
capitalismo, que estão enraizadas na dualidade do trabalho determinado por
mercadorias. O que Hegel tentou captar com seu conceito de totalidade não é, de
acordo com Marx, absoluto nem eterno, mas historicamente determinado. Uma causa
sui de fato existe, mas é social; e não é o verdadeiro ponto final do seu
próprio desenvolvimento. Ou seja, não existe ponto final: superar o capitalismo
resultaria na abolição — não a realização — da “substância” do papel do
trabalho na constituição de uma mediação social e, portanto, na abolição da
totalidade.
Resumindo: na obra de maturidade de Marx, a
noção de que trabalho está no âmago da vida social não se refere simplesmente
ao fato de a produção material ser sempre uma precondição de vida social.
Também não sugere que a produção é a esfera determinante historicamente
específica da civilização capitalista – se produção é entendida apenas como a
produção de bens. Em geral, a esfera da produção no capitalismo não deve ser
entendida apenas em termos das interações materiais dos seres humanos com a
natureza. Apesar de ser obviamente verdade que a interação “metabólica” com a
natureza afetada pelo trabalho é uma precondição da existência de qualquer
sociedade, o que determina uma sociedade é também a natureza das suas relações
sociais. O capitalismo, de acordo com Marx, se caracteriza pelo fato de suas
relações sociais fundamentais serem constituídas pelo trabalho. O trabalho no
capitalismo se objetiva não somente nos produtos materiais — o que ocorre em
todas as formações sociais – mas também nas relações sociais objetivadas. Em
virtude do seu duplo caráter, ele constitui como totalidade uma esfera social
objetiva e quase natural que não pode ser reduzida a soma das relações sociais
diretas e, como veremos, se coloca em oposição ao agregado de indivíduos e
grupos como um Outro abstrato. Em outras palavras, o duplo caráter do trabalho
determinado por mercadorias é tal que a esfera do trabalho no capitalismo
medeia relações que, em outras formações, existem como uma esfera de interação
social aberta. Assim, ela constitui uma esfera social quase objetiva. Seu duplo
caráter significa que o trabalho no capitalismo tem um caráter socialmente sintético
que o trabalho em outras formações não possui. O trabalho como tal não constitui
uma sociedade per se·, mas o trabalho no capitalismo constitui de fato
essa sociedade.”
90 A ascensão da filosofia na Grécia foi
relacionada por Alferd Sohn-Rethel, entre outros, ao desenvolvimento da
cunhagem e extensão da forma-mercadoria nos séculos VI e V a.C.: ver Alfred
Sohn-Rethel, Geistige und köperliche Arbeit (Frankfurt, Suhrkamp, 1972);
George Thomson, The First Philosophers (Londres, Lawrence and Wishart,
1955); e Rudolf W. Muller, Geld und Geist (Frankfurt/Nova York, Campus,
1977). Uma versão revisada do livro de Sohn-Rethel foi publicada em inglês como
Intellectual and Manual Labour: A Critique of Epistemology (trad. Martin
Sohn-Rethel, Atlantic Highlands, Humanides, 1978). Sohn-Rethel não faz
distinção entre uma situação igual à da Ática no século V, onde a produção de
mercadorias era generalizada, mas de maneira alguma a forma dominante de
produção, e o capitalismo, uma situação em que a forma-mercadoria é
totalizante. Portanto, ele não teve condições de fundamentar socialmente a
distinção, enfatizada por György Lukács, entre a filosofia grega e o
racionalismo moderno. A primeira, de acordo com Lukács, “não era estranha a
certos aspectos da reificação [mas não os experimentava] como formas universais
de existência; ela tinha um pé no mundo da reificação e o outro permanecia na
sociedade natural”’. O segundo se caracterizou por “sua afirmação cada vez mais
insistente de que descobriu o princípio que liga todos os fenômenos que, na
natureza e na sociedade, enfrentam a humanidade” (History
and Class Consciousness, cit., p. 111, 113).
Entretanto, por causa das suas premissas relativas ao “trabalho” e, portanto,
sua afirmação de totalidade, o próprio Lukács não é suficientemente histórico
com relação a época capitalista: ele não é capaz de analisar a noção de Hegel
do desenvolvimento dialético do Weltgeist como expressão da época
capitalista; e ele a interpreta como uma versão idealista de uma forma de
pensamento que transcende o capitalismo.
“Já vimos que, de acordo com Marx, as relações
sociais essenciais do capitalismo, por sua qualidade objetiva e geral, são tais
que constituem uma totalidade. Pode ser revelada a partir de uma única forma
estruturante, a mercadoria. Esse argumento é uma dimensão importante da
apresentação de Marx em O capital, que tenta reconstruir teoricamente as
características centrais da sociedade capitalista a partir daquela forma básica.
Partindo da categoria da mercadoria e da determinação inicial do trabalho como
mediação social, Marx desenvolve as categorias do dinheiro e do capital. Nesse processo,
ele mostra que a forma mediada pelo trabalho das relações sociais
características do capitalismo não constituem simplesmente uma matriz social em
que os indivíduos se localizam e se relacionam uns com os outros; pelo
contrário, a mediação, inicialmente analisada como um meio (de adquirir
produtos de outros), adquire vida própria, independente, por assim dizer, dos
indivíduos que medeia. Ela se desenvolve em um tipo de sistema objetivo acima
dos indivíduos e contra eles, e cada vez mais determina os objetivos e meios da
atividade humana92.
É importante observar que a análise de Marx
não pressupõe ontologicamente a existência desse “sistema” social de uma
maneira conceitualmente reificada. Pelo contrário, como já mostrei, ela
fundamenta a qualidade sistêmica típica das estruturas fundamentais da vida
moderna de formas determinadas de prática social. As relações sociais que
fundamentalmente definem o capitalismo são “objetivas” em caráter e constituem
um “sistema”, porque são constituídas pelo trabalho como uma atividade socialmente
mediadora e historicamente específica, ou seja, por uma forma de prática abstrata,
homogênea e objetivante. Por sua vez, a ação social é condicionada por formas
de aparência dessas estruturas fundamentais pela forma como essas relações sociais
se manifestam e modelam a experiência imediata. A teoria crítica de Marx, em outras
palavras, leva a uma análise complexa da constituição recíproca do sistema e da
ação na sociedade capitalista que não postula a existência trans-histórica
dessa mesma oposição – entre sistema e ação mas fundamenta-a e a cada um dos
seus termos nas formas determinadas da vida social moderna.
O sistema constituído pelo trabalho abstrato
corporifica uma nova forma de dominação social que exerce uma forma de
compulsão social cujo caráter objetivo é historicamente novo. A determinação
inicial dessa compulsão social abstrata é serem os indivíduos compelidos a
produzir e trocar mercadorias para sobreviver. Essa compulsão exercida não é
função da dominação social direta, como se dá, por exemplo, com o trabalho
escravo ou servil; ela é, pelo contrário, função das estruturas sociais “abstratas”
e “objetivas” e representa uma forma de dominação abstrata e impessoal. Fundamentalmente,
essa forma de dominação não é baseada em nenhuma pessoa, classe ou instituição,
seu local básico são as formas sociais estruturantes difusas da sociedade
capitalista que são constituídas por formas determinadas de prática social93.
A sociedade, como o Outro quase independente, abstrato e universal que se
coloca em oposição aos indivíduos e exerce sobre eles uma compulsão impessoal, é
constituída como estrutura alienada pelo duplo caráter do trabalho no
capitalismo. A categoria de valor, como categoria básica das relações
capitalistas de produção, é também a determinação inicial das estruturas
sociais alienadas. As relações sociais capitalistas e estruturas alienadas são
idênticas94.
É fato conhecido que, nos seus primeiros
textos, Marx sustenta que o trabalho que se objetiva em produtos não precisa
ser alienante e crítica Hegel por não ter distinguido entre alienação e
objetivação95. Ainda assim, a forma como se conceitua a relação entre
alienação e objetivação depende de como se entende o trabalho. Se se parte de uma
noção trans-histórica de “trabalho”, a diferença entre objetivação e alienação deve
necessariamente basear-se em fatores extrínsecos a atividade
objetivadora — por exemplo, nas relações de propriedade, ou seja, no caso de os
produtores imediatos serem capazes de dispor do próprio trabalho e de seus
produtos ou de a classe capitalista apropriá-los. Essa noção de trabalho
alienado não apreende adequadamente o tipo de necessidade abstrata socialmente
constituída que comecei a analisar. Mas nos textos da maturidade de Marx a
alienação está enraizada no duplo caráter do trabalho determinado por mercadoria
e, como tal, é intrínseca ao caráter desse trabalho mesmo. Sua função
como atividade socialmente mediadora é exteriorizada como uma esfera social
independente abstrata que exerce uma forma de compulsão impessoal sobre as pessoas
que a constituem. O trabalho no capitalismo da origem a uma estrutura que o
domina. Essa forma de dominação reflexiva autogerada é alienação.
A análise da alienação implica outra
compreensão da diferença entre objetivação e alienação. Essa diferença, nas
obras da maturidade de Marx, não é função do que acontece com o trabalho
concreto e seus produtos; pelo contrário, sua análise mostra que objetivação
é de fato alienação — se o que o trabalho objetiva são as relações
sociais. Mas essa identidade é historicamente determinada: é função da
natureza específica do trabalho no capitalismo. Portanto, existe a
possibilidade de que ele possa ser suplantado.
Assim, mais uma vez, está claro que a crítica
da maturidade de Marx teve sucesso em captar o “núcleo racional” da posição de
Hegel – neste caso, que objetivação é alienação analisando a especificidade do
trabalho no capitalismo. já notei anteriormente que a “transformação
materialista” do pensamento de Hegel com base na noção historicamente
indiferenciada de “trabalho” pode apreender socialmente a concepção de Hegel do
sujeito histórico somente como um grupamento social, mas não como uma estrutura
supra-humana de relações sociais. Vemos agora que ela também fracassa em captar
a relação intrínseca (ainda que historicamente determinada) entre alienação e
objetivação. Nos dois casos, a análise de Marx do duplo caráter do trabalho no
capitalismo permite uma apropriação social mais adequada do pensamento de Hegel96.
O trabalho alienado, então, constitui uma
estrutura social de dominação abstrata, mas esse trabalho não deve
necessariamente ser igualado a trabalho árduo, opressão ou exploração. O
trabalho de um servo, uma porção do qual “pertence” ao senhor feudal, não é, em
si mesmo, alienado: a dominação e exploração desse trabalho não são intrínsecas
ao trabalho em si. É precisamente por esta razão que a expropriação nessa situação
era e tinha de ser baseada na compulsão direta. O trabalho não
alienado em sociedades nas quais o mais-valor existe e é expropriado pelas
classes não trabalhadoras está necessariamente ligado a dominação social
direta. Por comparação, exploração e dominação são momentos integrais do
trabalho determinado por mercadoria97. Mesmo o trabalho de um
produtor independente de mercadorias é alienado, ainda que não no mesmo grau
que o trabalhador da indústria, porque a compulsão social se faz abstratamente
em resultado das relações sociais objetivadas pelo trabalho quando este
funciona como uma atividade socialmente mediadora. A dominação abstrata e a exploração
da característica do trabalho no capitalismo são fundamentadas basicamente não
na apropriação do mais-valor pelas classes não trabalhadoras, mas na forma do trabalho
no capitalismo.
A estrutura de dominação abstrata constituída
pelo trabalho que age como uma atividade socialmente mediadora não parece ser
socialmente constituída, pelo contrário, ela aparece em forma naturalizada. Sua
especificidade social e histórica é velada por vários fatores. A forma de
necessidade social exercida – da qual só discuti a primeira determinação —
existe na ausência de qualquer dominação social direta pessoal. Dado que a
compulsão exercida é impessoal e “objetiva”, ela não parece, de forma alguma, ser
social, mas “natural” e, como explicarei mais adiante, condiciona as concepções
sociais da realidade natural. Essa estrutura faz com que as necessidades
próprias, e não a ameaça de força ou qualquer outra sanção social, pareçam ser
a fonte dessa necessidade.
Essa naturalização da dominação abstrata é
reforçada pela superposição de dois tipos muito diferentes de necessidade
associados ao trabalho social. O trabalho de alguma forma é uma precondição
necessária – uma necessidade social “natural” – da existência social
humana como tal. Essa necessidade pode ocultar a especificidade do trabalho
produtor de mercadorias – que, apesar de não se consumir o que se produz, o
trabalho é ainda assim o meio social necessário para obtenção de produtos a
serem consumidos. Esta última necessidade é uma necessidade social
historicamente determinada. (A distinção entre essas duas formas de
necessidade, como se tornara claro mais adiante, é importante para compreender
a concepção de Marx da liberdade na sociedade pós-capitalista.) Dado que o
papel mediador social específico desempenhado pelo trabalho produtor de
mercadorias é velado, e esse trabalho aparece como trabalho per se, esses
dois tipos de necessidades se combinam na forma de uma aparente necessidade trans-histórica:
é preciso trabalhar para sobreviver. Portanto, uma forma de necessidade social
específica do capitalismo aparece como a “ordem natural das coisas”. Essa necessidade
aparentemente trans-histórica — de que o trabalho do indivíduo é o meio necessário
para o seu próprio consumo (e o da sua família) – serve como base de uma ideologia
legitimadora fundamental da formação social capitalista como um todo, ao longo
das suas várias fases. Como afirmação da estrutura mais básica do capitalismo, essa
ideologia de legitimação é mais fundamental que as que se ligam mais
intimamente a fases específicas do capitalismo — por exemplo, as que se
relacionam com a troca de equivalentes mediada pelo mercado.
A análise de Marx da especificidade do
trabalho no capitalismo tem outras implicações para sua concepção de alienação.
O significado de alienação varia consideravelmente dependendo de ela ser
considerada no contexto de uma teoria baseada na noção de “trabalho” ou no
contexto de uma análise da dualidade do trabalho no capitalismo. No primeiro
caso, a alienação se torna um conceito de antropologia filosófica; refere-se à
exteriorização de uma essência humana preexistente. Em outro nível, ela se
refere a uma situação em que os capitalistas possuem o poder de dispor do
trabalho dos trabalhadores e dos seus produtos. Dentro da estrutura dessa
crítica, a alienação é um processo inequivocamente negativo — apesar de ser
fundamentada em circunstâncias que podem ser superadas.
Na interpretação apresentada aqui, alienação é
o processo de objetivação do trabalho abstrato. Ela não leva a exteriorização
de uma essência humana preexistente, pelo contrário, leva ao surgimento dos
poderes humanos na forma alienada. Em outras palavras, alienação se refere ao
processo de constituição dos poderes humanos que se realiza pelo trabalho que
se objetiva como atividade de mediação social. Por meio desse processo, emerge
uma esfera social objetiva que adquire vida própria e existe como estrutura de
dominação abstrata sobre os indivíduos e contra eles. Marx, ao elucidar e
fundamentar os aspectos centrais da sociedade capitalista nesse processo, avalia
os resultados como bilaterais, e não como inequivocamente negativos. Assim, por
exemplo, em O capital ele analisa a constituição por trabalho alienado
de uma forma social universal que é, ao mesmo tempo, uma estrutura em que
capacidades humanas são criadas historicamente é uma estrutura de dominação
abstrata. Essa forma alienada induz uma acumulação rápida de riqueza social e
força produtiva da humanidade e leva também a fragmentação crescente do
trabalho, a regulamentação formal do tempo e a destruição da natureza. As
estruturas de dominação abstrata constituídas por formas determinadas de prática
social produzem um processo social que está além do controle humano; ainda
assim elas também produzem, na análise de Marx, a possibilidade histórica de
que pessoas possam controlar o que constituíram socialmente de forma alienada.”
92 Neste livro não vou tratar a questão da
relação entre a constituição da sociedade capitalista como totalidade social
com uma dinâmica social intrínseca e diferenciação crescente das várias esferas
da vida social que caracterizam essa sociedade. Para uma abordagem desse problema, ver György
Lukács, “The Changing Function of Historical Materialism”, em History and
Class Consciousness, cit., p. 229s. [ed. bras.: “A
mudança de função do materialismo histórico, em História e consciência de
classes, cit.].
93 Essa análise da forma de dominação gerada
pelas formas sociais de mercadoria e capital na teoria de Marx oferece uma
abordagem diferente do tipo de forma de poder impessoal, intrínseca e difusa
que Michel Foucault vê como característica das sociedades ocidentais modernas. Ver Discipline and Punish: The
Birth of the Prison (trad. Alan Sheridan, Nova York,
Pantheon, 1977) [ed. bras.: Vigiar e unir: o nascimento da prisão, Petrópolis,
Vozes, 2012].
94 No seu sofisticado e extenso estudo da
noção de alienação como princípio estruturante fundamental da crítica de Marx,
Bertell Ollman também interpretou a categoria de valor como aquela que apreende
as relações sociais capitalistas como relações de alienação. Ver Alienation (2.
ed., Cambridge, Cambridge University Press, 1976), p. 157, 176.
95 Karl Marx, Manuscritos
econômico-filosóficos, cit., p. 123-37.
96 A discussão de Marx do trabalho alienado
nos Manuscritos
econômico-filosóficos indica que ele ainda não tinha desenvolvido inteiramente a base da sua
própria análise. Por outro lado, ele afirma explicitamente que o trabalho
alienado está no núcleo do capitalismo e não se baseia na propriedade privada,
mas que, pelo contrário, a propriedade privada é produto do trabalho alienado
(p. 279-80). Por outro lado, ele ainda não desenvolveu claramente uma concepção
da especificidade do trabalho no capitalismo e, portanto, não pode, na verdade,
fundamentar sua argumentação: só mais tarde a sua argumentação relativa à
alienação será desenvolvida integralmente, com base na sua concepção do duplo
caráter do trabalho no capitalismo. Esta concepção, por sua vez, modifica a sua
noção de alienação em si.
97 Giddens observa que nas sociedades
pré-capitalistas “divididas em classes”, as classes dominadas não precisam das
classes dominantes para conduzir o processo de produção, mas que no capitalismo
o trabalhador precisa de fato de um empregador para ganhar a vida: ver A
Contemporary Critique of Historical Materialism, cit., p. 130. Ele descreve
uma dimensão muito importante da especificidade da dominação do trabalho no
capitalismo. Mas a minha intenção neste livro é delinear outra dimensão dessa
especificidade, a da dominação do trabalho pelo trabalho. Essa forma
pode ser desprezada quando se aborda apenas a propriedade dos meios de
produção.
“Existe um paralelo conceitual entre a
crítica implícita de Marx da universalidade historicamente constituída e sua
análise da produção industrial como intrinsecamente capitalista. Como já
observei na discussão dos Grundrisse, a superação do capitalismo, para
Marx, não levaria a um novo modo de distribuição baseado no mesmo modo industrial
de produção nem na abolição do potencial produtivo desenvolvido ao longo dos
últimos séculos. Ao contrário, tanto a forma como o objetivo da produção no socialismo
seriam diferentes. Na análise da universalidade e do processo de produção, a
crítica marxiana evita hipostasiar a forma existente e postulá-la como o sine
qua non de uma futura sociedade livre, evitando também a noção de que o que
foi constituído no capitalismo será completamente abolido no socialismo. A
qualidade bilateral do processo de alienação significa, em outras palavras, que
sua superação leva a apropriação pelo povo – e não a simples abolição — do que
tinha sido constituído de forma alienada. Sob esse aspecto, a crítica marxiana
difere tanto da crítica racionalista abstrata quanto da crítica romântica do
capitalismo.
Então, na obra da maturidade de Marx, o
processo de alienação é integral num processo pelo qual formas estruturadas de prática
constituem historicamente as formas sociais básicas, formas de pensamento e
valores culturais da sociedade capitalista. A noção de que valores são
historicamente constituídos não deve, evidentemente, ser tomada como uma
afirmação de que, por não serem eternos, eles são um embuste ou meramente
convencionais e sem validade. Uma teoria autorreflexiva das maneiras em que se
constituem formas da vida social deve ir além dessa oposição entre as abordagens
abstrata absoluta e abstrata relativa, sugerindo as duas que os humanos podem
de alguma forma agir e pensar fora dos seus universos sociais.
De acordo com a teoria de Marx da sociedade
capitalista, o fato de as relações sociais constituídas de forma alienada pelo
trabalho solaparem e transformarem formas sociais anteriores indica que essas
formas anteriores também são constituídas. Entretanto, é necessário diferenciar
entre os tipos de constituição social envolvidos. As pessoas no capitalismo constituem
suas relações sociais e sua história por meio do trabalho. Embora também sejam
controladas pelo que constituíram, elas “fazem” essas relações e essa história
em um sentido diferente e mais enfático de que as pessoas também “fazem” as
relações pré-capitalistas (que Marx caracteriza como geradas espontaneamente e quase
naturais [naturwüchsig]). Se se tivesse de relacionar a teoria
crítica de Marx ao dito de Vico de que as pessoas podem conhecer melhor a
história, pois a fizeram, do que a natureza, que não fizeram104,
seria necessário fazê-lo de forma a distinguir entre “fazer” a sociedade
capitalista e as pré-capitalistas. O modo alienado de constituição social
mediado pelo trabalho, não só enfraquece as formas sociais tradicionais, mas o faz
de uma maneira que introduz um novo tipo de contexto social caracterizado por uma
forma de distância entre indivíduos e sociedade que abre espaço para – e talvez
induza – reflexão social sobre a e análise da sociedade como um todo105.
Ademais, dada a lógica dinâmica intrínseca do capitalismo, essa reflexão não
precisa permanecer retrospectiva, já que a forma do capital está integralmente
desenvolvida. Ao substituir uma estrutura dinâmica alienada de relações “feitas”
para formas sociais tradicionais “quase naturais”, o capitalismo abre espaço
para a possibilidade objetiva e subjetiva de que se estabeleça uma forma mais
nova de relações “feitas”, uma forma que não é mais constituída “automaticamente”
pelo trabalho.”
105 Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 191-3.
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