sábado, 25 de junho de 2022

Teologia da Libertação: perspectivas (Parte I), de Gustavo Gutiérrez

Editora: Vozes

Tradução: Jorge Soares

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 276

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Sinopse: O próprio título deste livro já mostra toda a sua importância e atualidade. Intenta uma reflexão, a partir do evangelho e das experiências de homens e mulheres comprometidos com o processo de libertação neste subcontinente de opressão e espoliação que é a América Latina. Depois de um exame crítico das noções de teologia e de libertação, o autor retoma, de maneira clara, profunda e brilhante, os grandes temas da vida cristã na radical mudança de perspectiva e dentro da nova problemática a que se chama hoje de Teologia da Libertação. O ponto de partida do livro são o Evangelho, a História, a Sociologia e também as experiências de homens e mulheres comprometidos com o processo de libertação cristã na América Latina. Vemos por aí que não se trata apenas de um novo enfoque epistemológico sobre noções teológicas, ou de uma descrição erudita de temas novos em teologia, mas sobretudo de um livro em que a reflexão pretende levar a vitalizar a ação da comunidade cristã no mundo, a fazer mais pleno e radical o compromisso da caridade, a colocar a Igreja do lado dos oprimidos, através de um compromisso libertador que é básico em sua missão na terra.


“A reflexão teológica — inteligência da fé — surge espontânea e iniludivelmente naquele que crê, em todos aqueles que acolheram o dom da palavra de Deus. A teologia é, com efeito, inerente à vida de fé que procura ser autêntica e plena, portanto, à colocação em comum dessa fé na comunidade eclesial. Em todo crente, mais ainda, em toda comunidade cristã, há, pois, um esboço da teologia, de esforço da inteligência da fé. Algo assim como pré-compreensão de uma fé que se fez vida, gesto, atitude concreta. Sobre esta tese, e só graças a ela, é que se pode erguer o edifício da teologia, no sentido preciso e técnico do termo. Não é só um ponto de partida. É o solo em que a reflexão teológica mergulha tenaz e permanentemente suas raízes e extrai seu vigor.1

1 Ocorre com a teologia o que da filosofia dizia A. Gramsci: “É necessário destruir o preconceito muito difundido de que a filosofia seja algo sumamente difícil por ser a atividade intelectual própria de determinada categoria de especialistas da ciência ou de filósofos profissionais e sistemáticos. Cumpre, por isso, demonstrar previamente que todos os homens são filósofos, definindo os limites e o caráter desta tfilosofia espontânea, própria de toda a gente”: Avviamento allo studio della filosofia e del materialismo storico. Saggio introduttivo, em La formazione dell’uomo. Roma 1969, 217.

 

 

“Finalmente, a redescoberta, em teologia, da dimensão escatológica levou a perceber o papel central da práxis histórica. Com efeito, se a história humana é, antes de tudo, abertura ao futuro, aparece como tarefa, como labor político; construindo-a o homem orienta-se e abre-se ao dom que dá sentido último à história: o encontro definitivo e pleno com o Senhor e com os demais homens. “Fazer a verdade”, no dizer do evangelho, adquire assim significação precisa e concreta: a importância da ação na existência cristã. A fé num Deus que nos ama e nos chama ao dom da comunhão plena com ele e da fraternidade entre os homens, não só não é alheia à transformação do mundo mas leva necessariamente à construção dessa fraternidade e dessa comunhão na história. Mais. Unicamente fazendo esta verdade se há de verificar, literalmente falando, nossa fé. Daí o uso recente do termo ortopráxis, que não deixa de chocar algumas sensibilidades. Não se pretende com ele negar o sentido que pode ter uma ortodoxia entendida como proclamação e reflexão sobre afirmações reputadas verdadeiras. O que se procura é equilibrar, e mesmo repelir, o primado e a quase exclusividade do doutrinal na vida cristã, sobretudo o empenho — muitas vezes obsessivo — de procurar uma ortodoxia que amiúde não passa de fidelidade a tradição caduca ou a interpretação discutível. Mais positivamente, o que se quer é valorizar a importância do comportamento concreto, do gesto, da ação, da práxis na vida cristã.

Esta me parece — dizia E, Schillebeeckx numa entrevista — haver sido a maior transformação operada na concepção cristã da existência. É evidente que o pensamento é também necessário à ação, mas a Igreja preocupou-se essencialmente durante séculos em formular verdades e, enquanto isso, nada fazia para conseguir um mundo melhor. Por outras palavras, limitou-se à ortodoxia e acabou deixando a ortopráxis em mãos dos que estavam fora dela e do número dos crentes.34

Em última instância, esta preocupação pela práxis procura evitar que seja — e continue a ser — certa a frase sarcástica de G. Bernanos: “Deus não escolhe os mesmos homens para conservar sua palavra para cumpri-las”.35

34 VÁRIOS, La teologia, em Los católicos holandeses. Bilbao 1970, 25. Consultar sobre estas questões o interessante artigo de M. de CERTEAU, La rupture instauratrice ou le christianisme dans la culture contemporaîne. Esprit (1971) 1177-1214.

35 Lettire aux anglais. Paris 1948, 245. Sobre o caráter de certo modo tradicional desta importância da práxis, consultar as observações matizadas de C. DUMONT, De trois dimensions retrouvées em théologie: NRT 6 (1970) 570-580.

 

 

“Por sua pregação da mensagem evangélica, por seus sacramentos, pela caridade de seus membros, a Igreja anuncia e acolhe o dom do reino de Deus no coração da história humana.37 “A comunidade cristã professa uma fé que opera pela caridade”. Ela é e deve ser caridade eficaz, ação, compromisso a serviço dos homens. A teologia é reflexão, atitude crítica. Primeiro é o compromisso de caridade, de serviço. A teologia vem depois, é ato segundo.38 Pode dizer-se da teologia o que da filosofia afirmava Hegel: só se levanta ao crepúsculo. A ação pastoral da Igreja não se deduz como conclusão de premissas teológicas. A teologia não gera a pastoral, é antes reflexão sobre ela; deve saber encontrar nela a presença do Espírito inspirando a ação da comunidade cristã.39 A vida, pregação e compromisso histórico da Igreja há de ser, para a inteligência da fé, um privilegiado lugar teológico.

Refletir sobre a presença e atuação do cristão no mundo significa ainda — e isto é de capital importância sair das fronteiras visíveis da Igreja, estar aberto ao mundo, recolher as questões nele suscitadas, estar atento às transformações de seu devir histórico.”

37 A crítica pertinente de R. Schneckenburg tem expressões como “construir o reino de Deus” ou “estender o reino de Deus na Terra”: Règne et royaume de Dieu. Paris 1964, 294. Crítica recolhida por H. KUNG, La Iglesia. Herder, Barcelona 1968, 64.

38 “Todos os corpos juntos e todos os espíritos juntos, e todas as suas produções, não equivalem ao menor movimento de caridade. De todos os corpos em seu conjunto não se poderia obter um pequenino pensamento... De todos os corpos e espíritos não se poderia tirar um movimento de caridade”: B. PASCAL, Pensamentos, n. 829 (edição J. Chevalier).

39 “A teologia — escreve K. Barth em outro contexto — vem depois das afirmações da Igreja sobre Deus, na medida em que coloca para a Igreja a questão da verdade dessas afirmações; na medida em que as julga, não segundo certos critérios estranhos à Igreja, mas segundo a origem e o objeto da Igreja”: Dogmatique I, 1. Genebra 1953, 2.

 

 

““O único futuro da teologia — escreveu H. Cox — é converter-se na teologia do futuro”.46 Mas essa teologia do futuro deverá ser necessariamente leitura crítica da práxis histórica, do labor histórico, no sentido que tentamos esboçar. Diz J. Moltmann que os conceitos teológicos “não vão a reboque da realidade... mas a iluminam mostrando-lhes antecipadamente o seu futuro”47. E precisamente em nosso enfoque, refletir criticamente sobre a práxis libertadora não é ir “a reboque” da realidade. O presente da práxis libertadora está, em seu âmago mais profundo, prenhe de futuro, sendo a esperança parte do compromisso atual na história. A teologia não põe de início esse futuro no presente, não cria do nada a atitude vital da esperança. Mais modesto é seu papel: explicita-os ou interpreta-os como o verdadeiro sustentáculo da história. Refletir sobre uma ação que se projeta para a frente não é fixar-se no passado, não é ser rebocado pelo presente: é desentranhar nas realidades atuais, no movimento da história, o que nos impele para o futuro. Refletir e partir da práxis histórica libertadora é refletir à luz do futuro em que se crê e se espera, é refletir com vistas a uma ação transformadora do presente. É fazê-lo, porém, não a partir de um gabinete mas deitando raízes lá onde lateja neste momento o pulso da história, e iluminando-o com a Palavra do Senhor da história que se comprometeu irreversivelmente com o hoje do devir da humanidade para levá-lo à sua plena realização.

Por tudo isso a teologia da libertação nos propõe talvez não tanto novo tema para a reflexão quanto novo modo de fazer teologia. A teologia como reflexão crítica da práxis histórica é assim uma teologia libertadora, teologia da transformação libertadora da história da humanidade, portanto também da porção dela — reunida em ecclesia — que confessa abertamente Cristo. Teologia que não se limita a pensar o mundo, mas procura situar-se como um momento do processo através do qual o mundo é transformado: abrindo-se — no protesto ante a dignidade humana pisoteada, na luta contra a espoliação da imensa maioria dos homens, no amor que liberta, na construção de nova sociedade, justa e fraterna — ao dom do reino de Deus.”

46 H. Cox. On not leaving it to the Snake. Londres 1968, 12.

47 J. Moltmann, Teologia de la esperanza. Sigueme, Salamanca 1971, 44.

 

 

“Os países pobres tomam consciência cada vez mais clara de que seu subdesenvolvimento não é mais que subproduto do desenvolvimento de outros países, devido ao tipo de relação que mantêm atualmente com eles. Portanto, que seu próprio desenvolvimento não se fará senão lutando por romper a dominação exercida sobre eles pelos países ricos.

Isto leva a uma visão mais conflituosa do processo. O desenvolvimento deve atacar as causas da situação, das quais a mais profunda é a dependência econômica, social, política e cultural de uns povos com relação a outros — expressão da dominação de umas classes sociais sobre outras. Tentar melhorias dentro da ordem atual era pouco eficiente. Estamos aqui ao nível da análise de uma situação, no plano de certa racionalidade científica. Só uma quebra radical do presente estado de coisas, uma transformação profunda do sistema de propriedade, o acesso ao poder da classe explorada, uma revolução social que rompa com tal dependência, pode permitir acesso a uma sociedade diferente, a uma sociedade socialista. Ou, pelo menos, fazer que esta seja possível.”

 

 

“Conceber a história como processo de libertação do homem é perceber a liberdade como conquista histórica, é compreender que a passagem de uma liberdade abstrata a uma liberdade real não se realiza sem luta — cheia de escolhos, de possibilidades de extravios e tentações de evasão — contra tudo o que oprime o homem. Este fato implica não apenas melhores condições de vida, radical mudança de estruturas, revolução social, mas muito mais: a criação contínua e sempre inacabada de nova maneira de ser do homem, uma permanente revolução cultural.

Por outras palavras, o que está em jogo sobretudo é uma concepção dinâmica e histórica do homem, orientado definitiva e criativamente para seu futuro, atuando no presente em função do amanhã.40” O homem é que, no dizer de Teilhard de Chardin, tomou nas mãos as rédeas da evolução. A história, contra toda perspectiva essencialista e fixista, não é desenvolvimento de virtualidades preexistentes no homem, mas a conquista de novas formas, qualitativamente distintas, de ser do homem, em vista de realização cada vez mais plena e total de si mesmo solidariamente com toda a coletividade humana.”

40 Cf: entre os autores recentes os estudos inspirados de E. :BLOCH, Daz Prlnzip Hoffnung (O princípio esperança), Frankfurt 1959. Ver também J. MOLTMANN, Teologia de la esperança. Sigueme, Salamanca 1971. Cf., mais adiante, cap. 11.

 

 

“Surgida de profundo movimento histórico, esta aspiração à libertação principia a ser acolhida na comunidade cristã como um sinal dos tempos; um chamado a um compromisso e a uma interpretação. A mensagem bíblica, que apresenta a obra de Cristo como uma libertação, propicia-nos o marco dessa interpretação. A teologia parecia haver por muito tempo esquivado uma reflexão sobre o caráter conflitante da história humana, sobre o confronto entre homens, classes sociais e países. Paulo, no entanto, relembra-nos constantemente a índole pascal da existência cristã e de toda vida humana: a passagem do velho homem ao homem novo, do pecado à graça, da escravidão à liberdade.

“Cristo nos libertou para que desfrutemos a liberdade (Gál 5,1), diz-nos Paulo. Libertação do pecado, enquanto este representa fechamento egoístico em si mesmo. Pecar é, com efeito, negar-se a amar os demais, por conseguinte, ao próprio Senhor. O pecado, ruptura de amizade com Deus e com os outros, é, para a Bíblia, a causa última da miséria, da injustiça, da opressão em que vivem os homens. Dizer que é a causa última não significa, de modo algum, negar as razões estruturais e os condicionamentos objetivos de tais situações; mas sublinha que as coisas não sucedem por acaso, que por trás de uma estrutura injusta há uma vontade pessoal ou coletiva responsável, vontade de repulsa a Deus e aos outros. Quer recordar também que uma transformação social, por radical que seja, não traz automaticamente a supressão de todos os males.

Mas Paulo não só afirma que Cristo nos libertou, senão também nos diz que o fez para que fôssemos livres. Livres para quê? Livres para amar.

Na linguagem da Bíblica — escreve Bonhoeffer — a liberdade não é algo que o homem possua para si mesmo, senão algo que está em função dos outros... não é uma posse, uma presença, um objeto... mas uma relação, e nada mais. Na verdade, a liberdade é uma relação entre duas pessoas, ser livre significa “ser livre para o outro”, já que o outro me une a ele. Só em relação a outro eu sou livre.51

A liberdade a que somos chamados supõe saída de nós mesmos, quebra do nosso egoísmo e de toda estrutura que nele nos mantenha; baseia-se na abertura aos outros. A plenitude da libertação — dom gratuito de Cristo — é a comunhão com Deus e com os demais homens.”

51 Creation and Fall. Nova York 1966, 37. Paulo VI assinala sugestivamente que a liberdade “se desenvolve em sua realidade mais profunda: comprometer-se e labutar na realização de solidariedades ativas e vividas”, e acrescenta: “o homem encontra uma verdadeira liberdade, renovada na morte e ressurreição do Senhor, abandonando-se a Deus que o liberta”: Octogesima adveniens, n. 47.

 

 

“Na problemática atual, há um fato de toda evidência: o caráter adulto que começou a assumir a práxis social do homem contemporâneo. É o comportamento de um homem cada vez mais consciente de ser sujeito ativo da história, cada vez mais lúcido em face da injustiça social e de todo elemento repressivo que o impeça de realizar-se, cada vez mais decidido a participar na transformação das atuais estruturas sociais e na efetiva gestão política. Foram sobretudo as grandes revoluções sociais, francesa e russa, para tão só nos referirmos a dois grandes padrões, assim como todo o processo de fermentação revolucionária que delas se deduz, que arrancaram — isto é, começaram a arrancar — as decisões políticas das mãos de uma elite “destinada” ao governo dos povos. Nessas decisões as grandes maiorias não participavam ou só o faziam esporádica e formalmente. É certo que hoje a maior parte dos homens se acha longe deste nível de consciência, porém não é menos certo que o vislumbram confusamente e para ele se orientam. O fenômeno que chamamos “politização”, de amplitude e profundidade crescente na América Latina, é uma das manifestações desse complexo processo. E a luta pela libertação das classes oprimidas neste subcontinente, porque passa necessariamente a efetiva e humana responsabilidade política de todos, busca pistas inéditas.

A razão humana tornou-se razão política. Para a consciência histórica contemporânea, a política já não é algo a que se dê atenção nos momentos livres que sobram da vida privada, nem sequer uma região bem delimitada da existência humana. A construção — a partir de suas bases econômicas — da pólis, de uma sociedade em que os homens possam viver solidariamente como tais, é uma dimensão que abrange e condiciona severamente todo o labor humano. É o lugar do exercício de uma liberdade crítica que se conquista ao longo da história. É o condicionamento global e o campo coletivo da realização humana.12 Só neste sentido amplo do político pode situar-se o sentido mais preciso da política como orientação para o poder. Orientação que constitui para Max Weber a nota típica da atividade política. Variadas são as formas concretas que revestirá a busca e o exercício do poder político, mas todas elas repousam na aspiração profunda do homem por assumir as rédeas de sua própria vida e ser artífice de seu destino. Nada escapa à política assim entendida. Tudo está colorido politicamente. Neste sentido e nunca noutro é que surge o homem como ser livre e responsável, como homem em relação com outros homens, como alguém que assume uma tarefa na história. As próprias relações pessoais adquirem cada vez maior dimensão política. Os homens entram em contacto entre si através da mediação do político. É o que P. Ricoeur denomina as “relações largas” do socius, em oposição às “relações curtas” do próximo.12 Situando-se nesta perspectiva, escreve M.-D. Chenu:

Sempre teve o homem esta dimensão social, sendo ele social por sua própria natureza. Hoje porém, não por acidente mas por estrutura, o acontecimento coletivo dá extensão e intensidade a esta dimensão. O coletivo como tal tem valor humano e é, portanto, caminho e objeto de amor. O amor humano caminha por estas vias “largas”, por estes organismos de justiça distributiva, por estes sistemas de justiça.13

Além deste aspecto de totalidade, defrontamos com uma crescente radicalidade da práxis social. O homem contemporâneo começa a perder a ingenuidade diante de seus condicionamentos econômicos e socioculturais; e cada vez melhor conhecidas são as causas profundas da situação em que ele se encontra. Atacá-las é exigência indispensável para uma mudança radical. Isso levou a abandonar, pouco a pouco, uma atitude simplesmente reformista em face da atual ordem social que, sem atingir até as raízes, perpetua o sistema existente. A situação revolucionária em que hoje se vive, em particular no terceiro mundo, exprime esse caráter de radicalidade ascendente. Propugnar pela revolução social é abolir o presente estado de coisas e tentar substituí-lo por outro qualitativamente distinto; é construir uma sociedade justa baseada em novas relações de produção; é tentar pôr fim à sujeição de povos, classes sociais e homens uns aos outros. A libertação desses países, classes sociais e homens solapa o próprio fundamento da ordem atual, constituindo-se na grande tarefa de nossa época.

Esta radicalidade demonstrou com clareza que o domínio do político é necessariamente conflitante. Mais exatamente, que a construção de uma sociedade justa passa pelo confronto — no qual está presente a violência de diversas maneiras — entre grupos humanos com interesses e opiniões diversas; passa pela superação de tudo o que se opõe à criação de uma autêntica paz entre os homens. Concretamente, na América Latina, essa conflituosidade gira em torno do eixo opressão-libertação. A práxis social tem exigências que podem parecer duras e inquietantes para aqueles que querem obter — ou manter — uma conciliação a baixo preço. Conciliação que não passa de ideologia justificadora de desordem profunda, um artifício para que alguns poucos continuem a viver da miséria dos demais. Mas tomar consciência do caráter conflitante da política não é comprazer-se nele, é antes buscar com lucidez e coragem, sem se enganar nem enganar os outros, o estabelecimento da paz e da justiça entre os homens.

Até agora, a preocupação pela práxis social, no pensamento teológico, não levou na devida consideração esses elementos. Em ambientes cristãos sentiu-se — e sente-se — dificuldade para perceber a originalidade, a especificidade do campo da política. Pôs-se em destaque a vida privada, o cultivo dos valores intimistas; a política achava-se em segundo plano, no escorregadio e pouco exigente terreno de um mal-entendido “bem comum”. O que servia, no máximo, para elaborar uma “pastoral social” baseada na “emoção social” que devia ter todo cristão que se respeitasse. Donde a satisfação com uma visão aproximativa moralista e “humanizante” da realidade, em detrimento de um conhecimento científico, objetivo, estrutural dos mecanismos socioeconômicos e da dinâmica histórica, e, consequentemente, a insistência maior em aspectos pessoais e conciliares da mensagem evangélica do que em suas dimensões políticas e conflitantes. Tudo isso nos leva a um reexame da vida cristã e condiciona e questiona a presença histórica da Igreja. Esta presença tem uma indiscutível dimensão política. Sempre foi assim. Mas a nova situação torna-se mais exigente e mesmo atualmente se tem — inclusive em ambientes cristãos — mais consciência dela. É impossível pensar em Igreja sem ter em conta esse condicionamento.

O que estamos a dizer faz-nos compreender por que a práxis social deixou de ser — e é cada vez menos — para os cristãos um dever imposto por sua consciência moral, ou uma reação ante o ataque aos interesses da Igreja. As notas de totalidade, radicalidade e conflituosidade que acreditamos descobrir na política ultrapassam uma concepção setorial e nos fazem ver suas mais profundas dimensões humanas. A práxis social converte-se gradualmente no próprio campo onde o cristão joga — com outros — seu destino de homem e sua fé no Senhor da história. A participação no processo de libertação é um lugar obrigatório e privilegiado da atual reflexão e vida cristãs. Nelas se ouvirão matizes da palavra de Deus imperceptíveis em outras situações existenciais, e sem as quais não há, no presente, autêntica e fecunda fidelidade ao Senhor.

Por isso é que, se aprofundarmos um pouco a forma como hoje se apresenta o problema do valor da salvação, descobriremos no labor histórico assim entendido, a saber, como práxis libertadora, que se trata de uma pergunta sobre a própria significação do cristianismo. Ser cristão é, com efeito, aceitar e viver solidariamente a fé, a esperança e a caridade, no sentido que a palavra do Senhor e o encontro com ele dão ao devir histórico da humanidade a caminho da comunhão total. Colocar a relação única e absoluta com Deus como horizonte de toda ação humana é situar-se inicialmente em contexto mais amplo, mais profundo. Mais exigente também. Como vemos, defrontamos mais abertamente em nossos dias com a questão teológico-pastoral central: que é ser cristão? como ser Igreja nas condições inéditas que se avizinham?” É, em última análise, procurar na mensagem evangélica a resposta ao que, segundo Camus, constitui a interrogação capital de todo homem: “julgar se a vida vale ou não a pena de ser vivida”.15

Tais elementos dão talvez maior profundidade, nova fisionomia ao problema tradicional. Não ter em conta a novidade de sua colocação, sob pretexto de que de um modo ou doutro o assunto esteve sempre presente, é desgarrar-se perigosamente da realidade e arriscar-se a tomar o caminho das generalidades, das soluções pouco comprometedoras, finalmente das atitudes evasivas. Por outro lado, porém, ver unicamente o inédito do quadro atual é perder a contribuição da vida e da reflexão da comunidade cristã em seu peregrinar histórico. Seus acertos, suas lacunas e seus erros são herança nossa. Não devem ser, contudo, nosso limite. O povo de Deus é aquele que caminha “certo de sua esperança” rumo a “novos céus e novas terras”.

A questão, tal como hoje se formula, não é tida na devida consideração nas tentativas de respostas que passaremos em revista no capítulo seguinte. Mas as aquisições desses esforços em face do permanente problema, assim como suas carências e limitações, ajudarão talvez a esboçar — frequentemente em negativo — o itinerário que, para diante, será preciso tomar.”

11 O político, no entanto, continua ambíguo. Universal quanto à sua significação, sua realidade empírica não chega a libertar-se inteiramente da particularidade.

12 Le “socius” et le prochain, em Histoire et vérité. Paris 1955, 213-229. Esclareçamos, afirmar que toda realidade humana tem uma dimensão política não significa, de maneira alguma, como o indica o termo empregado, reduzir tudo a essa dimensão.

13 Les masses pauvres, em Église et pauvreté. Paris 1965, 174. Cf. as interessantes observações sobre o político de P. EYT. Pour une réflexion en matière politique...; NRT (1971) 1055-1075.

14 São muitos os cristãos que procuram responder a essas questões por caminhos até agora pouco transitados. São muitas também as experiências, às vezes um tanto confusas, provocadas por essa busca. Cf. neste empenho R. Laurentin, Enjeu du II Synode et contestation dans l’église. Paris 1969; ver também À la recherche d’une église: PM 46 (1969); Le due chiese. IDOC, Roma 1969; e o conjunto de trabalhos editados por M. Boyd, The underground church. Baltimore 1968.

15 Como um primeiro momento, situar-se-ia neste contexto o que P.-A, Liégé chamava, há algum tempo, “a credibilidade humana do cristianismo”: Bulletin d’Apologétique. RSPT 33 (1949) 67.

 

 

“O projeto em prol do reino de Deus não deixa lugar a um projeto histórico profano.3

3 Tinha a Igreja diante de si um mundo plenamente mundo, estando a sociedade ordenada a servir aos fins da salvação eterna, cujas regras eram determinadas pela Igreja”: Y.-M. Congar, Église et monde, em Le concile au jour le jour. Troisième session. Paris 1965, 143.

 

 

“2. Tomada de consciência de uma situação alienante

Há muito tempo que se fala em ambientes cristãos do “problema social” ou da “questão social”, mas só nos últimos anos se tomou clara consciência da amplitude da miséria e sobretudo da situação de opressão e alienação em que vive a imensa maioria da humanidade. Estado de coisas que representa uma ofensa ao homem e, por consequência, a Deus. Mais ainda, percebe-se melhor tanto a própria responsabilidade nesta situação, como o obstáculo que ela representa para a plena realização de todos os homens, explorados e exploradores.

Tomou-se consciência também, e cruelmente, de que um amplo setor da Igreja está, de certa maneira, ligado aos que detêm o poder econômico e político no mundo de hoje. Quer pertença aos povos opulentos e opressores, quer viva em países pobres — como na América Latina — e esteja vinculada às classes exploradoras.

Nessas condições, pode-se dizer honestamente que a Igreja não intervém “no temporal”? Quando, com seu silêncio ou suas boas relações com ele, legitima um governo ditatorial ou opressor, está cumprindo apenas uma função religiosa?7 Descobre-se então que a não-intervenção em matéria política vale para certos atos que comprometem a autoridade eclesiástica, não porém para os outros. Vale dizer que esse princípio não é aplicado quando se trata de manter o status quo; é porém escamoteado quando, por exemplo, um movimento de apostolado leigo ou um grupo sacerdotal toma atitude considerada subversiva em face da ordem estabelecida. Concretamente, na América Latina, a distinção de planos serve para dissimular a real opção política de um grande setor da Igreja pela ordem estabelecida. É interessante observar que, enquanto não se tinha clara consciência do papel político da Igreja, a distinção de planos era mal vista tanto pela autoridade civil como pela eclesiástica; desde, porém, que o sistema, do qual a instituição eclesiástica é peça central, começou a ser rejeitado, o esquema foi adotado para dispensar a tomada de posição efetiva em favor dos oprimidos e espoliados e poder pregar uma lírica unidade espiritual de todos os cristãos. Os grupos dominantes, que sempre se serviram da Igreja para defender os próprios interesses e manter sua situação de privilégio, apelam hoje, ao ver as tendências “subversivas” que penetram no seio da comunidade cristã, para a função puramente religiosa e espiritual da Igreja. A bandeira da distinção de planos mudou de mãos. Até há poucos anos defendida pelos elementos de vanguarda, é atualmente sustentada pelos grupos de poder, muitos deles alheios a todo compromisso com a fé cristã. Não nos enganemos, porém; os propósitos são muito diferentes. Guardemo-nos de fazer o jogo dos mais sujos.

Além do mais, ante a imensa miséria e injustiça, não deveria a Igreja — mormente onde tem, como na América Latina, grande influência social — intervir mais diretamente e abandonar o terreno das declarações líricas? De fato, fazia-o algumas vezes, mas dizendo tratar-se de função supletória. A amplitude e permanência do problema parecem tornar insuficiente hoje esta fundamentação. Opções mais recentes, como a de Medellín*, afastaram esses limites e exigem outra base teológica.

Em resumo, radicalizaram-se as opções políticas, e os compromissos concretos que os cristãos vão assumindo põem às claras a insuficiência do esquema teológico-pastoral da distinção de planos.”

7 H. Assmann analisa com lucidez La función legitimadora de la religión para la dictadura brasilera: PD (agosto 1970) 171-181.

8 Cf., por exemplo, Las tareas de la iglesia en América Latina. FERES. Bogotá 1964; e F. Houtart-E. Pin. Los cristianos en la revolución de América Latina. Buenos Aires 1966, 184

* Conferência Episcopal de Medellín (1968).

 

 

“Jorge Vernazza, em nome do Secretariado permanente do movimento “Sacerdotes para o terceiro mundo”, escrevia ao responsável pelo movimento “Echanges et Dialogues” (França), após reconhecer certas coincidências entre os dois movimentos: “Contudo, cremos que são diferentes nossos enfoques fundamentais. Nosso objetivo essencial não é “por fim à nossa condição de clérigos”, mas comprometer-nos sacerdotalmente no processo revolucionário latino-americano. Não há dúvida de que nossos condicionamentos sociais e eclesiásticos são muito diversos: a América Latina exige primordialmente uma salvação que se verifique na libertação de um multissecular estado de injustiça e de opressão. E a Igreja é que deve anunciar e promover essa libertação, a Igreja que, aos olhos do povo, está indissoluvelmente unida à imagem e função sacerdotal... Portanto, muito embora nossos gestos e declarações nos tragam — como de fato já trouxeram — atritos e suspeitas com a maior parte da Igreja “oficial”, é nossa preocupação não aparecermos marginalizados dela, a fim de nossa ação não perder eficácia, pois a Igreja é que detém, relativamente ao povo, uma enorme eficiência conscientizadora... Acontece que, múltiplas razões sociológicas e históricas nos fazem sentir — a nós latino-americanos — o “estado clerical” de forma diferente da de vocês. Talvez a falta de maior formalismo e eficácia, ou também formas sociais mais chãs e “democráticas” no governo eclesiástico nos tenham facilitado o sentirmo-nos menos oprimidos por ele... Parece-nos, portanto, que o próprio compromisso com o homem e com o processo revolucionário é que nos obriga a permanecermos clérigos”.*

E em carta aberta do mesmo grupo sacerdotal argentino aos padres holandeses, a propósito da questão do celibato, lê-se: “Celibatários ou casados, o importante é que tornem presente a este mundo de hoje a salvação de Jesus Cristo. Mas esta salvação, na conjuntura de 1970, exige liquidar com o “imperialismo do dinheiro”... Vossas Reverendíssimas, padres da Holanda, são testemunhas de Jesus Cristo e de sua salvação em país rico, imperialista e explorador. Permitam-nos, pois, lançar-lhes este apelo: Como celibatários. os Senhores não souberam ou não puderam ser a voz dos países espoliados, que sofrem as consequências da política econômica injusta dos dirigentes de seus países. Esperamos que, uma vez casados, o possam fazer melhor. Com efeito, se a vida matrimonial não os ajudar a abrirem-se mais às dimensões do mundo, sobretudo do mundo dos que são despojados pelas “leis” do comércio internacional, não terão feito outra coisa que dar mais um passo no rumo do aburguesamento. .Não esqueçam que, enquanto vossas Reverendíssimas pedem o direito de construir um lar, muitos pobres do terceiro mundo renunciam ao seu para entregar-se completamente à libertação de seus irmãos”.**”

* Carta de 10 de dezembro de 1969, em Enlace, boletim do movimento “Sacerdotes para o terceiro mundo” 10 (1970) 22-23.

** Em Liberación (México, março de 1970).

 

 

“É frequente hoje, na América Latina, serem certos sacerdotes considerados elementos “subversivos”. Muitos são vigiados ou procurados pela polícia. Outros acham-se na prisão, são expulsos do país (Brasil, Bolívia, Colômbia, República Dominicana, são exemplos significativos) ou assassinados por grupos terroristas anticomunistas.19 Para os defensores da ordem atual, a “subversão sacerdotal” é surpreendente. Não estão acostumados com ela. Quase se poderia dizer que a atividade política de certos grupos de esquerda e, dentro de certos limites, é assimilada e tolerada pelo sistema, o que até lhes é útil para justificar determinadas medidas repressivas. O papel que tradicionalmente exerceram os sacerdotes e religiosos na América Latina antes faz que sua dissidência apareça como particularmente perigosa.20

19 Foi o que recentemente ocorreu com Henrique Pereira, sacerdote do Recife, Brasil. Cf. os documentos reproduzidos em SEDOC (agosto 1969) 143-149; e Ante el asesinato dei padre Henrique Pereira: Spes (Montevidéu) (1989). Ver também a este respeito as reflexões de B. Pelegri, Meditación ante el cadáver dei padre Henrique: Víspera 12 (1969) 3-7.

20 A propósito desta situação, depois de afirmar que “o marxismo tem necessidade de desenvolver-se, de sair de certo anquilosamento, de interpretar com espírito objetivo e científico as realidades de boje, de comportar-se como uma força revolucionária e não como uma Igreja pseudorrevolucionária”, Fidel Castro acrescenta: “São as palavras da história: quando vemos setores do clero converter-se em forças revolucionárias, como podemos nos resignar-nos a ver setores do marxismo transformar-se em forças eclesiásticas?”: Discurso no encerramento do Congresso de intelectuais, a 12 de Janeiro de 1968, em F. Castro, Révolution Cubaine II. Paris 1969, 253.

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