Editora: Campus
ISBN: 978-85-7001-641-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 104
Sinopse: Entre os
filósofos mais famosos do Ocidente, nenhum apresenta, provavelmente, para os
estudantes brasileiros, tantas dificuldades de leitura e interpretação como o
alemão Hegel. É um autor com frequência admirado, reconhecido como gênio, mas
em geral pouco compreendido.
Leandro Konder — professor da PUC/RJ e da UFF, autor de A
derrota da dialética e de Walter Benjamim, o marxismo da melancolia —
desenvolveu, a partir do trabalho que vem realizando há anos com seus alunos,
uma abordagem simultânea da vida e da obra do inventor da razão dialética.
O volume que o leitor tem nas mãos conta a vida do
pensador e expõe, em linguagem simples e agradável, algumas das suas ideias
mais importantes. Como diz Otto Lara Resende, “aqui está Hegel trocado em
miúdos”.
“O fantasma do jacobinismo, na cabeça de
Hegel, precisava ser exorcizado. Em Tübingen, ele tinha simpatizado com o
entusiasmo jacobino de Hoelderlin. Em Berna, tinha lido com encanto as páginas
escritas pelo jacobino Georg Forster. Em Frankfurt, porém, estava decididamente
convencido de que os anseios de transformação revolucionária precisavam ser
cuidadosamente decantados, contidos, para não desencadearem tumultos
indesejáveis, que afinal acabariam por ensejar retrocessos.
Sua preocupação o levava — como observou
Lukács, em O Jovem Hegel — a fazer uma opção metodológica
problemática: em lugar de pensar primeiro a realidade objetiva da
sociedade burguesa, com sua dura dinâmica hipercompetitiva, para depois começar
a compreender as condições subjetivas das pessoas que a integravam, ele partia
do ângulo dos sujeitos individuais isolados (que correspondia, de maneira
imediata, à situação que ele próprio estava vivendo) para tentar chegar à “positividade”
das instituições, coaguladas, com as quais esses indivíduos estavam condenados
a lidar.
O ponto de vista adotado permitia a um homem
sozinho enxergar questões importantes; mas, na medida em que não lhe proporcionava
a possibilidade de se identificar com ações coletivas, com qualquer força
social atuante, dificultava-lhe enormemente o aprofundamento da análise
política das questões enxergadas, impedindo-o de mergulhar nelas com profundidade
suficiente para discernir a direção histórica em que sua solução podia ser
concretamente proposta.”
“De modo geral, contudo, a posição filosófica
de Hegel ficou confundida com a de Schelling, na crítica que ambos faziam ao subjetivismo
de Fichte. E logo as críticas de Hegel à perspectiva fichtiana se mostraram
mais enérgicas que as de Schelling, no ensaio Diferença entre os
Sistemas Filosóficos de Fichte e de Schelling, publicado em 1801. Em certo
sentido, pode-se dizer que o futuro autor da Fenomenologia do Espírito levava
o autor do Sistema do Idealismo Transcendental a perceber
a extensão das divergências que vinha manifestando em relação a Fichte.
A razão — insistia Hegel — é universal,
precisa valer para todo o mundo, não pode se limitar às motivações de sujeitos particulares;
a filosofia, portanto, deve ir além da particularidade e deve, pela reflexão,
elevar-se até o absoluto. Se a vida se tornou muito estilhaçada e o discernimento
(Verstand) se instala na dilaceração, aceitando-a, cabe à
razão (Vernunft) juntar os cacos, reuni-los num todo, para que o
movimento da vida readquira sua plena significação. “Nessa autoprodução da
razão, o absoluto se configura numa totalidade objetiva”, afirmava o filósofo.
Fichte partia do reconhecimento da criatividade do sujeito, procurava superar a
estreiteza da particularidade dos sujeitos empíricos (através da ideia do “sujeito
transcendental”), mas afinal era incapaz de chegar à totalidade objetiva.
Hegel acusou Fichte de subjetivizar a relação
sujeito-objeto. O sujeito transcendental da concepção fichtiana, quando procura
existir objetivamente, chupa toda a objetividade da natureza “e para esta só fica
a casca morta da objetividade”. Assim, o sistema fichtiano do idealismo transcendental
põe no sujeito, na inteligência, todo o substancial do absoluto, relegando a
natureza à mera condição de “acidental”; e o conteúdo da consciência se empobrece,
fica reduzido ao conteúdo da consciência de si (o objeto do sujeito é apenas o
próprio sujeito: o que não for subjetivo é descartado).
Essa desqualificação do “natural” afetava
negativamente — segundo Hegel — a concepção fichtiana da “liberdade”. Fichte exaltava
a liberdade, porém tendia a compreendê-la de modo um tanto abstrato, contrapondo
unilateralmente a liberdade às exigências da comunidade. Do ponto de vista
hegeliano, os seres humanos necessitam “naturalmente” da comunidade; e a
realização da comunidade (o encontro de uma pessoa com outra, ou com outras)
não precisa ser uma limitação a sua liberdade: ao contrário, esse encontro
amplia os horizontes do indivíduo, move sua consciência na direção de uma
universalidade maior e alarga seu campo de possibilidades, quer dizer, sua
efetiva liberdade. “A mais alta forma de comunidade é a mais alta forma de
liberdade”, argumentava o autor da Diferença entre os Sistemas Filosóficos
de Fichte e de Schelling.”
“Hegel se empenhava em extrair todas as consequências
da diferença— assinalada por Kant — entre a razão (Vernunft) e o
discernimento (Verstand). O discernimento constata algo que se passa
no plano de uma realidade puramente objetiva, sobre a qual nós, sujeitos, não
temos qualquer possibilidade de intervir ativamente; por isso, o discernimento
é uma razão que se esgota na contemplação passiva. A razão, em sua expressão
mais vigorosa, supera essa passividade e pensa o sujeito humano em sua
intervenção no real, em sua ação transformadora. E o filósofo estava convencido
de que era exatamente essa razão que poderia dar conta da “união da união e da
desunião” a que tinha se referido quando conseguira sair da “crise de Frankfurt”.
Mais ainda: estava convencido de que, encarnada no movimento da história, a razão
tinha encaminhado na França a criação de uma comunidade política na qual se
manifestava um espírito ético concreto, conquistando uma unidade que ensejava o
aparecimento de uma “nova religião”. E nessa nova religião o sofrimento e a
dilaceração da consciência cristã seriam “ao mesmo tempo assumidos e tranquilamente
suprimidos” (Sistema da Eticidade, 1802).
A razão — em sua concepção hegeliana —
realizava-se na história; estava presente nos movimentos históricos, na
continuidade e também nas rupturas da atuação coletiva dos sujeitos humanos.
Não era negada pelo irracional: atravessava as aparentes irracionalidades e
crescia por meio delas. Essa ideia não apareceu de repente, pronta e acabada,
na cabeça do pensador; foi sendo elaborada ao longo dos primeiros anos do
século dezenove. Até 1803, data em que Schelling foi chamado pelo governo da
Baviera para lecionar em Würzburg, os dois colaboraram intensamente, produzindo
juntos o Jornal Crítico da Filosofia, e não apareceu qualquer divergência
significativa entre eles.
Em Würzburg, porém, Schelling lançou, em
1804, um livro intitulado Filosofia e Religião, no qual expunha ideias
que Hegel não apoiava. Nesse livro, o interesse central do autor do Sistema do
Idealismo Transcendental passava a ser a religião. E Hegel tendia cada vez
mais resolutamente a subordinar a religião ao processo de realização da razão
na história.”
“Observando a essência do trabalho como
fenômeno, Hegel concluiu que os seres humanos se serviam de um ardil:
astuciosamente, punham forças da natureza a trabalharem para si, subordinando-as
a seus projetos. Desenvolvendo a tecnologia, os homens passaram a ter a
possibilidade de trabalhar menos, ou, pelo menos, de trabalhar de modo menos
cansativo. Mas o ardil empregado contra a natureza acabou se voltando contra
eles mesmos, na medida em que, com o aumento da produtividade, os trabalhadores
foram sendo compelidos a trabalhar mais e de modo mais fatigante, pois foram
sendo levados a trabalhar como se fossem máquinas.
Envilecido, degradado, maquinizado, o
trabalho humano passou a valer menos no mercado, isto é, passou a ser vendido por
salários menores. “Quanto mais maquinizado se torna o trabalho, menor valor ele
tem”, escreveu Hegel. Além disso, a própria mobilidade inerente à economia da
sociedade industrial burguesa agrava a insegurança em que vive a massa dos
trabalhadores, que podem perder subitamente seus empregos em decorrência de uma
crise ou de uma queda de preços: em tais condições, uma “multidão é sacrificada
e, sem poder se defender, é reduzida à miséria”. “As fábricas e as manufaturas
baseiam sua existência precisamente na miséria de uma classe.” A própria
atividade mercantil, para obter êxito, endurece o espírito daqueles que a
praticam. A concentração da propriedade decorre de um movimento que os
proprietários realizam com muita “naturalidade”, mesmo sabendo que ele resulta
no empobrecimento de muitos, na revolta da massa. A dilaceração é vivida como “normal”:
“essa desigualdade de riqueza e miséria, essa privação e necessidade, tornam-se
a maior dilaceração da vontade, revolta íntima e ódio”.
O proprietário não pode hesitar, ele sabe que
seu êxito depende da capacidade que venha a manifestar de obter lucros a qualquer
custo. Para ser eficaz, o sistema exige a repressão do trabalhador, sua
adaptação ao movimento produtivo da máquina: “a consciência do trabalhador das
fábricas é sufocada até o grau máximo de embotamento”. A propriedade privada é,
em si, contraditória; devemos reconhecer sua contraditoriedade intrínseca: “na
posse está a contradição segundo a qual uma coisa, como coisa, é universal, e, no
entanto, deve ser propriedade de uni único proprietário”.
Hegel, contudo, não extrai nenhuma consequência
revolucionária dessa análise. Para ele, era impossível superar o sistema baseado
na propriedade privada e, portanto, era preciso lidar de maneira realista com
suas contradições. A lei, segundo ele, poderia promover a adequação do
interesse privado do proprietário ao discernimento dos cidadãos. Já que a lei
me assegura meu direito à propriedade, argumentava, ela assegura também o direito
dos outros às propriedades deles: “A segurança do que possuo é a segurança do
que todos possuem; na minha propriedade, todos têm a propriedade deles.”
A razão se realizava na história na medida em
que os seres humanos se reconheciam em leis comuns e, apesar da diversidade deles,
reconheciam-se num Estado que os unificava por cima de suas
contradições, somando-lhes as energias e canalizando-as num movimento conjunto.
Nesse movimento, as limitações estreitamente individuais eram superadas, as
dores pessoais eram absorvidas, os anseios particulares eram incorporados a uma
criação coletiva.”
“A estruturação das “figuras” e seu
encadeamento, na Fenomenologia, refletem a preocupação do filósofo com o
rigor. A primeira “figura” é a do “saber imediato” ou “certeza sensível”: a consciência,
ao surgir, se dá conta de que algo existe, porém não tem como chegar a
conhecer coisa alguma a respeito do que existe. Ela vive uma experiência
importante (a de seu nascimento) e, no entanto, permanece prisioneira das
limitações dessa experiência. O conhecimento imediato, segundo Hegel, é o mais pobre
dos conhecimentos.
Na linguagem cotidiana, a palavra “concreto”
costuma significar “palpável”. Em comparação com as noções abstratas que nos
são ensinadas através de argumentos, os objetos que tocamos fisicamente nos
parecem “concretos”. Para Hegel, porém, o conhecimento que temos desses objetos
é abstrato. O que sei a respeito de uma cadeira ou de uma caneta se me
limito a apalpá-las? Muito pouco. Se quiser saber mais, preciso estudar a forma
delas, verificar como estão feitas e quais são as relações que elas têm com a
sociedade para a qual foram criadas. Minha consciência não pode se deter na
primeira impressão; deve crescer com o objeto, reconstituir o movimento de
formação do objeto, acompanhá-lo em seu uso. O termo “concreto”, aliás, vem do latim
concretum, que é o particípio passado de con crescere: a própria
palavra, portanto, indica que o concreto é mais o resultado do que o
ponto de partida do conhecimento.
A segunda “figura” do movimento da consciência
é a “percepção”. Nela, o sujeito começa a escapar da tirania do imediato e se
dá conta de algumas características determinadas daquele algo difuso
que tinha passado a existir para a consciência na “figura” anterior. O que a
consciência percebe é que o real é constituído por coisas e cada coisa possui
múltiplas qualidades. A primeira determinação de que o conhecimento é capaz,
então, se mostra contraditória: a consciência é levada a se defrontar com a
unidade do objeto e a diversidade das qualidades do objeto. O sujeito conquista
uma capacidade que lhe faltava na “figura” precedente: a capacidade de duvidar.
E a dúvida o impele no sentido de se rebelar contra as limitações da
consciência que não ultrapassa as fronteiras da sensibilidade e não consegue se
organizar melhor.
Surge, aí, a terceira “figura”, que Hegel
chama de “discernimento” (a palavra alemã é Verstand, e muitas
vezes é traduzida como “intelecto” ou “entendimento”). O “discernimento”
representa um avanço muito importante no movimento da consciência: com ele o
sujeito vai além da esfera do meramente sensível e inicia a busca do conceito,
no caminho da razão. O “discernimento” observa, analisa e decompõe as
coisas, separando os elementos uns dos outros para que o sujeito possa examiná-los
melhor e conhecê-los com maior exatidão: “a atividade de separar é a força e o
trabalho do discernimento”.
Mas o “discernimento” — a razão analítica —
apresenta alguns problemas. Ao decompor a representação em seus elementos originários,
para tentar superar as ilusões da sensibilidade, o “discernimento” tende a
reduzir a representação àquilo que existia antes que a representação
fosse elaborada; tende, portanto, a reduzir um conhecimento potencialmente novo
aos conhecimentos que já estavam previamente constituídos. Guiado pelo “discernimento”,
então, o sujeito custa a aprender, custa a se abrir para a “subversão” das
novidades e prefere reiterar o já sabido. Mesmo o já sabido, contudo, lhe
escapa, porque “o que é dado como sabido, precisamente porque é dado
como sabido, não é efetivamente conhecido”.
Outro problema do “discernimento”: para
compreender os fenômenos com que se depara, ele se dispõe a identificar as leis
que os regem e passa a colecionar uma quantidade crescente de leis (para cada
fenômeno diferente há uma lei própria). As leis se acumulam infindavelmente,
constituindo o que Hegel chama de “má infinitude”: proliferam sem parar e não
se articulam satisfatoriamente, não proporcionam nenhum conhecimento a respeito
da unidade do real. O sujeito acumula informações a respeito de realidades
isoladas múltiplas e continua a desconhecer a realidade.
A quarta “figura” da consciência nasce do
susto que o sujeito leva ao constatar que a realidade lhe escapa,
que o mundo não se deixa dominar. O sujeito se retrai em face da realidade objetiva
e se pergunta o que há de errado dentro dele: forma-se, assim, a “figura” da “consciência
de si” ou “autoconsciência”.
A consciência se interroga, quer se conhecer
melhor, mas logo é obrigada a enfrentar uma dificuldade enorme: só posso me conhecer
se tiver um termo de comparação, isto é, se conseguir me comparar aos outros. A
“autoconsciência”, portanto, precisa de outra “autoconsciência”. Mais
precisamente: ela se afirma (afirma sua liberdade) em sua relação com a
outra “autoconsciência”. No momento em que o sujeito se volta para si mesmo, enfraquecido
e intranquilizado por sua experiência fracassada (na tentativa de conhecer e
dominar o mundo externo), a “autoconsciência” não pode ser universal. E
a liberdade a que o sujeito tem acesso, não sendo universal, é particular:
colide com a liberdade do outro.
A “autoconsciência” é a “figura” do sujeito
dividido: capaz de ser livre e ao mesmo tempo incapaz de uma liberdade real,
isto é, universal. O sujeito é envolvido por uma dialética perversa: a dialética
do senhor e do escravo. O senhor comanda, impõe sua vontade, é “livre”, mas
vai perdendo contato com a experiência humana dos escravos, com o universo da
dura atividade material dos seres humanos escravizados: de seu ângulo de visão,
a “autoconsciência” passa a padecer de abstratividade. E o escravo — coitado! —
é posto em contato com a condição humana em toda a sua rudeza, porém é privado
dos meios que lhe permitiriam viver e pensar a dimensão divina da liberdade.
O pensamento, em busca da universalidade,
tenta superar a dicotomia, a cisão, sobrepondo-se aos dois termos e abrangendo tanto
o senhor como o escravo. O estoicismo conclui que o nosso é, afinal, um
mundo de servidão generalizada, e trata de se refugiar nas nuvens: enquanto a
carne sofre, o espírito escapa às contingências terrenas, refugiando-se na
estratosfera. O ceticismo conclui que não há nada a fazer e resolve se
instalar nas contingências mutáveis da contradição insuperável: adota um ponto
de vista que ora pode coincidir como do senhor, ora pode coincidir com o do
escravo, balançando ao sabor dos ventos, que sempre são suscetíveis de mudar de
direção. E a consciência infeliz; típica dos cristãos dilacerados,
empenhada simultaneamente em respeitar a pessoa do senhor e solidarizar-se com
a pessoa do escravo, opta por sofrer (passivamente) junto com ambos, nas
dores e limitações que os dois experimentam (em face da doença e da morte, por
exemplo).
Para sair do círculo vicioso da dialética
perversa do senhor e do escravo, a consciência precisa superar a estreiteza dos
horizontes do estoicismo, do ceticismo e da consciência
infeliz. Para isso, ela precisa passar por duas experiências decisivas: a
de vencer o pânico diante da morte e a de reconhecer todas as
potencialidades do trabalho. Enquanto não são capazes de enfrentar essas
duas experiências, o senhor e o escravo partilham da mesma impotência, da mesma
falta de universalidade; e ficam meio misturados, meio confundidos (cada um dos
dois contendo elementos do outro).
Hegel percebia que a “autoconsciência” se
encastela numa compreensão unilateralmente positiva da realidade: com medo do novo,
ela tende a se refugiar num círculo fechado, imune às surpresas. Sua
única possibilidade de sair desse círculo e se abrir para o novo é
assumir o negativo. O negativo, em sua expressão mais concentrada, é a morte.
Nós evitamos encarar a morte, fugimos dela. “Mas a vida do espírito não
recua diante da morte”; o movimento da consciência é capaz de olhar a morte de
frente, aproximar-se dela, permanecer na sua vizinhança e suportar a desolação
dessa proximidade. “O espírito só conquista sua verdade quando é capaz de se
encontrar a si mesmo na mais absoluta dilaceração”. Nessa situação terrível, a “autoconsciência”
começa a se superar a si mesma, porque é obrigada a pensar criticamente sua
finitude: ela se abre para a incorporação da “força mágica” do negativo, que
lhe permite começar a caminhar na direção da busca da universalidade.
Para avançar na direção da universalidade,
entretanto, a “autoconsciência” ainda necessita de outra conquista: ela deve se
dar conta da importância do trabalho. Apesar da rudeza das formas que
assumiu, o trabalho é a atividade básica pela qual os sujeitos humanos afirmam,
inicialmente, seu poder de intervir na realidade objetiva, dominando-a e pondo-a,
astuciosamente, a seu serviço. Só quando se dá conta disso é que a “autoconsciência”
supera a ótica distorcida que lhe vinha da postura passiva, contemplativa, que
vinha prevalecendo no sujeito em todas as “figuras” anteriores da consciência e
que ainda prevalecia nela. Nesse momento, a “autoconsciência” deixa de ser “autoconsciência”
e se transforma, finalmente, em razão (Vernunft).
A “razão” é a quinta “figura” do movimento da
consciência. Ela supera a dialética do senhor e do escravo. O indivíduo começa a
se pensar concretamente como parte de uma realidade mais universal: suas
iniciativas, suas paixões, seus interesses particulares, seus movimentos se
inserem num todo mais amplo, no movimento mais geral da humanidade, naquilo que
Hegel caracteriza como o processo do real (o processo de realização do
espírito); e é essa inserção histórica que dá aos atos humanos o sentido
mais completo que eles podem ter.
A inserção, porém, não é tranquila. Os
indivíduos reconhecem as potencialidades de sua ação, percebem que o trabalho que
realizam é por sua própria essência social, enxergam a direção da
convergência de seus esforços, mas defrontam-se com um quadro extremamente
tumultuado, dão-se conta de que estão se movendo numa situação institucionalizada
que enseja múltiplos equívocos e lhes mutila a universalidade da ação: “o que parece
ser a ordem pública é um estado de hostilidade universal, no qual cada um trata
de se apoderar do que pode, impõe sua justiça sobre a singularidade dos outros,
faz prevalecer sua própria singularidade e, afinal, constata que essa mesma
singularidade acaba por desaparecer sob a ação das demais”.
Sentindo-se ainda frágil, a “razão” se
empenha em obter o máximo de precisão e precisa pagar tributo à postura de observação:
ela descreve, conta e nomeia; tende a repetir algo da atitude da
consciência na “figura” do “discernimento” e corre o risco de escorregar para
uma aridez classificadora e organizativa. Pior corre o risco de se prender à
letra das leis, tornando-se apenas uma limitada razão
legisladora. Caso se deixe prender por essas armadilhas, a “razão”
não consegue encarar a riqueza do universal e é levada a enquadrar a verdade em
fórmulas secas, estratificadas, sem vida.
A lei é válida, mas é limitada. Hegel dá o
exemplo da lei cristã que nos diz: “ama o teu próximo”. O que ela nos recomenda
é certamente bom, porém é vago. Nas situações que a vida põe em nosso
caminho, o problema que enfrentamos exige que nós sigamos adiante e resolvamos
outra questão, mais concreta: como amar o próximo? Na realidade,
escreveu Hegel, o que percebemos é que “devemos amar o próximo de maneira
inteligente, pois um amor não inteligente talvez lhe cause mais malefícios do
que o próprio ódio”. Nas leis, a forma universal coagula, de algum modo, a
riqueza do conteúdo universal; precisamos, portanto, assumir em face das leis
uma atitude crítica, um ângulo caracterizado por uma abrangência histórica
maior do que elas mesmas admitem. Hegel esclareceu: “Se investigo a gênese
delas, determino as condições de sua origem, supero-as, vou além delas, passo a
ser o universal, enquanto elas ficam sendo o condicionado, o limitado.”
Então, a “figura” da “razão” precisa se
superar a si mesma. Em seu movimento vivo — e portanto autocrítico — a “razão”
se questiona, abrindo caminho para a sexta “figura” da consciência: o “espírito”
(Geist). O “espírito” ao mesmo tempo supera e preserva como
momentos significativos tudo aquilo que havia de válido em todas as “figuras”
precedentes do movimento da consciência: desde a certeza sensível do saber
imediato e da percepção, passando pelo discernimento e pela consciência de si, até
a razão. Para que o sujeito possa dispor de toda a energia vital de que carecia
para agir mais eficazmente (uma energia que a razão não conseguira dinamizar),
o espírito se beneficia da paixão. Absorvida pelo “espírito”, a paixão não se
limita a qualquer entusiasmo intenso, porém passageiro: torna-se uma força
poderosa, um alto-forno que pode fundir os sentimentos e uni-los num mesmo esforço
criativo bem direcionado. “Nada de grande no mundo se fez sem paixão”, adverte
Hegel.
Impulsionado pela paixão, o “espírito” se
realiza e, ao se realizar, supera-se a si mesmo, elevando-se à sétima e última “figura”
da Fenomenologia: “o saber absoluto”. Hegel fala sobre esta “figura”
em termos um tanto obscuros. Aí, segundo ele, realiza-se a unidade do sujeito e
do objeto, o triunfo da verdade, a conquista do conceito. De fato, o conceito
(Begriff) aparece como o grande herói da epopeia da
consciência: por meio dele o sujeito supera plenamente sua incapacidade de
reconhecer a liberdade do outro na intersubjetividade (ultrapassando, assim, as
fronteiras acanhadas do “reino animal do espírito”). O conceito não
permanece uma abstração: ele promove a reconciliação da universalidade da ideia
com a singularidade da coisa. O conceito é a ferramenta do “saber
absoluto”.
O “saber absoluto” não é — e nunca poderia
ser — uma quietude definitiva, uma solidão sem vida. A compreensão básica de
Hegel, observou Herbert Marcuse, em Razão e Revolução, é a da mobilidade
da vida. O “saber absoluto” é a consciência do movimento que o sujeito humano
realiza, através das contingências insuprimíveis da história, recordando os
momentos decisivos de suas experiências, mas exercendo sua liberdade de ir além
delas. Em seu movimento, o sujeito se conhece a si mesmo e também conhece seu
negativo, seus limites, a necessidade de seus sacrifícios: dá-se conta de que
os acontecimentos contingentes ligados à sua ação constituem a face com que
aparece o “tornar-se outro”, a mudança pela qual o espírito existe. A própria contingência
é necessária. E o relativo é um modo especial de manifestação do absoluto.
Hegel, cita, em dado momento, uma frase do
filósofo alemão Hegel, cita, em dado momento, uma frase do filósofo alemão medieval
Mestre Eckhart: “O olho com que Deus nos vê é o mesmo olho com que nós O vemos”.
O absoluto está em nós, o absoluto é sujeito.”
“A Fenomenologia do Espírito já
ensinava: “a verdade é o todo”. Uma certa visão de conjunto é imprescindível
para a avaliação de cada coisa, para a compreensão de como as coisas se
articulam umas com as outras. Hegel advertia para o risco de que as
árvores acabem atrapalhando nossa visão da floresta. A floresta seria o todo
de que as árvores fazem parte. O todo, porém, nunca é dado: não
se entrega a nós, de graça, no primeiro contato. O todo depende das
partes que o integram; ele se torna concreto através da incorporação dos
elementos particulares que o constituem e lhe dão vida. O todo é “a
essência que se completa através de seu próprio desenvolvimento”, como se lê na
Fenomenologia.
Hegel desprezava o ponto 'de vista estreito
daqueles que atribuíam excessiva importância às turbulências momentâneas da
história, sem procurar apreender a lição maior do processo histórico. Para ele,
a verdade só aparece como um resultado do “trabalho que o espírito
realiza na história real”. A razão — a apreensão do sentido objetivo do
movimento — depende do esforço subjetivo, depende da “paciência do conceito”.
A perspectiva mais verdadeira não poderia
deixar de ser a mais abrangente: a busca da verdade não poderia empacar numa fórmula
simples, nem poderia ficar girando em torno de um episódio, atribuindo-lhe uma
dimensão desmesurada. O fim da era de Napoleão não era, nem podia ser, o fim da
história. E, se as pessoas custavam a se dar conta disso, é porque estavam pensando
mal: estavam grudando demais no existente e fechando os olhos
para o inevitável irrompimento do novo.
O filósofo se insurgia contra essa preguiça
mental, contra essa covardia intelectual, que se encastelava numa fortaleza
denominada “senso comum”. Na realidade, esse “senso comum” servia para
legitimar uma aparelhagem conceituai incapaz de pensar a novidade qualitativa
na experiência humana, limitando-se a repetir cansativamente o chamado
princípio lógico da identidade: “o que é, é; o que não é, não é”. Na medida em
que esse princípio era invocado abusivamente, deixava de ajudar os homens a
compreender sua realidade e passava a ser usado para escamotear questões
incômodas; passava a excluir, por exemplo, a possibilidade da reflexão a
respeito do movimento pelo qual coisas que não são passam a ser e coisas que
são deixam de ser. Em tais casos, o “senso comum” excluía o reconhecimento da
mudança, desviava o pensamento da gênese e da decomposição dos seres. “O que é
não começa. O que não é também não começa. Por conseguinte, o senso comum
afirma a impossibilidade do começo” (Propedêutica Filosófica).
“Hegel não acreditava na possibilidade de um exame
separado das leis formais do pensamento, como aquele que costumava ser
encontrado nos tratados de lógica. Para ele, os problemas da forma remetem
sempre, inexoravelmente, aos problemas do conteúdo. Se o pensamento se
equivoca, deixa de ter interesse; se acerta, seu movimento só pode ser o
movimento da própria realidade, o movimento do ser.
Coerente com sua teimosa busca do ponto de
vista mais abrangente e com seu esforço de “enxergar a floresta”, Hegel procura
elucidar os conceitos de que nos servimos na compreensão racional das coisas a
partir do conceito mais geral, mais vasto, que podemos conceber: exatamente o
conceito de ser.
Kant sustentava que, antes de falar sobre o
ser, nós deveríamos enfrentar a questão preliminar do conhecimento. Deveríamos começar
por perguntar: o que significa conhecer? O que podemos efetivamente conhecer?
Hegel, porém, discordava de Kant e advertia que, até para poder indagar
concretamente o que é o conhecimento, já precisamos ter uma certa
concepção do ser, que está implícita no “é” da indagação.
A Ciência da Lógica abre com a
afirmação de que o ser, abstratamente considerado, em sua indeterminação, não
se distingue do nada. A distinção entre ser e nada só se concretiza no ser determinado;
e o ser determinado é aquele no qual ser e nada se manifestam numa unidade
dinâmica e contraditória, como um momento do tornar-se. A palavra alemã
que expressa o tornar-se (“Werden”) costuma ser traduzida
por “devir”, por “vir a ser”, ou então através do termo francês “devenir”.
No tornar-se o ser assume sua negação interior, a contraditoriedade
que existe dentro dele, que lhe imprime movimento e o faz viver. Ser e nada, então,
aparecem como nascer e perecer.
Depois de fazer essa observação a respeito do
mais geral e mais vasto dos conceitos, num nível muito alto (estratosférico!) de
abstração, o pensador passa a 'examinar o que se passa com outros conceitos
gerais. E mostra que, no plano daquilo que ele denomina “lógica objetiva”, os
grandes conceitos decisivos também se movem, também têm “vida” e, de algum
modo, remetem-se uns aos outros. Não adianta tentar formular para esses
conceitos, tomados um por um, definições rigorosas, na esperança de — depois — procurar
dar conta das relações entre eles.
O uno e o múltiplo, o infinito e o finito, o
absoluto e o relativo, o positivo e o negativo, a permanência e a mudança, o mais
e o menos, todos são conceitos que se acham em determinação recíproca, ou, como
diz Hegel, em determinação reflexiva.
Lênin, quando estava na Suíça, amargurado com
a explosão das contradições europeias na guerra de 1914, mergulhado no estudo
do teórico das contradições, ficou encantado com essa passagem da Ciência da
Lógica; e anotou em seus Cadernos Filosóficos: “Hegel analisa
conceitos que habitualmente parecem mortos e mostra que há movimento neles.”
A determinação reflexiva decorre da contraditoriedade
dinâmica do real: as coisas nunca se colocam diante de nós isoladamente, por
isso só as podemos apreender já articuladas umas com as outras, submetidas à
tensão do processo através do qual estão mudando. Em função desse processo de
que fazem parte, os seres são inevitavelmente marcados por uma dualidade interna;
neles encontra-se tanto o germe do novo como o peso do velho. E neles
encontra-se tanto a identidade como a alteridade, já que cada ser se determina
na relação com o outro e se determina na relação consigo mesmo.
As coisas são interligadas e são mutáveis.
Daí a tendência, que se manifesta em nossa consciência, a formular juízos do
tipo “tudo é relativo”. Mas Hegel sabe que todo e qualquer “relativismo” resulta
de nossa incapacidade de pensar com maior rigor a conexão dos movimentos uns
com os outros. Se dizemos “tudo é relativo”, expomo-nos a ouvir de nosso
interlocutor a objeção — irrespondível— de que a “verdade” dessa afirmação
também é... relativa.
O desafio com que nos defrontamos está em
reconhecer a base concreta, ontológica, “absoluta”, a partir da qual podemos nos
empenhar em pensar as múltiplas relativizações. Devemos admitir, de saída, que
o real é absoluto e infinito. Por ser absoluto, ele pode absorver em si
todas as relatividades, acolhendo-as e permitindo-lhes que se manifestem com
uma desenvoltura... absoluta. Por ser infinito, ele pode aceitar e assimilar
todas as finitudes, multiplicadas... infinitamente.
O discernimento — aquela terceira “figura”
da Fenomenologia do Espírito — se caracteriza pela pretensão insensata
de se instalar na finitude para, posteriormente, dar conta do infinito. A
finitude — escreveu Hegel — é “a categoria mais obstinada do discernimento”.
Ora, é evidente que o finito cabe dentro do infinito, mas o infinito não cabe
(nem poderia caber) no finito. Consequência lógica dessa limitação do discernimento:
o pensamento não que não vai além dele só consegue apreender o infinito sob
forma mistificada ou empobrecida. Só chega a conceber o infinito desligado do finito,
como algo nebuloso e, em última análise, finito. É a partir da quinta “figura”
da Fenomenologia do Espírito — a razão — que o
pensamento começa a lidar mais adequadamente com o finito e o infinito, sem
contrapô-los estaticamente. Começa a compreender que “o movimento de superar-se
a si mesmo e transformar-se em infinito constitui a própria natureza do finito”.
A Ciência da Lógica trata de
esclarecer as relações entre os conceitos fundamentais com os quais a razão precisa
trabalhar; e mostra que, assim como o infinito está nos próprios seres finitos e
depende da finitude, também o absoluto está nos seres relativos, o universal
está nos seres singulares e a essência está nos fenômenos. O geral não cancela
o particular; ao contrário, nutre-se dele: funda nele sua existência concreta.
Hegel sempre foi — como observou José
Guilherme Merquior — “enamorado do absoluto”. Mas é bom acrescentar, em seguida,
que Hegel, em sua paixão pelo absoluto, jamais se deixa fascinar por um
invólucro vazio: o absoluto que ele ama não é oco e o amor se estende,
necessariamente, aos múltiplos relativos que lhe dão consistência (só temos
acesso ao absoluto pelo relativo).”
“Retomando e reformulando as observações que
tinha feito sobre a sociedade civil-burguesa e seus conflitos internos
necessários, durante o curso ministrado em Iena, na época da preparação da Fenomenologia,
Hegel se dispôs a reexaminar — à luz do quadro pós-napoleônico — os problemas
da relação entre o indivíduo e a comunidade. Ou, mais precisamente: os
problemas da relação entre o cidadão e o Estado.
Na medida em que a pessoa existe
concretamente no intercâmbio ativo com outras pessoas, o acesso à
universalidade, nas relações humanas, não podia eliminar a dimensão particular da
experiência, já que essa dimensão era, para Hegel, a expressão da diversidade
das pessoas. Cada pessoa, entretanto, precisa se empenhar em ir além de sua
mera particularidade.
No plano do direito, os indivíduos começam
por afirmar sua liberdade pela apropriação particular das coisas; a essa apropriação
corresponde, exatamente, o direito de propriedade, que dá conta de uma
necessidade insuprimível, mas permanece formal e abstrato. Quando a pessoa se
assume como sujeito e se defronta com as questões centrais de sua
relação intersubjetiva com outras pessoas (acima de sua dependência em relação
à propriedade particular), ela passa a reconhecer sua inserção livre numa
determinada comunidade (o Estado) e passa a ter uma referência concretamente
universal.
Nas condições em que prevalece o privado, a
liberdade fica amesquinhada, resvala para o arbítrio e o capricho acidental. Só
no âmbito da cidadania é que a liberdade, ao se universalizar, pode se
afirmar em sua plenitude. Mas a relação do cidadão com o Estado não é imediata:
ela passa por uma mediação decisiva, ela depende da objetividade
do Estado e da subjetividade do cidadão, isto é, depende do movimento pelo qual
o indivíduo se reconhece integrado num povo, num todo que o completa sem dissolvê-lo.
O autor da Enciclopédia adverte, a
propósito dessa mediação: “Quem não tem direitos, não tem deveres. E
vice-versa: quem não tem deveres, não tem direitos” (§ 486).”
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