Editora: Vozes
Tradução: Jorge
Soares
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 276
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Sinopse: Ver Parte
I
“O termo sacramentum tem, em teologia,
dois sentidos estreitamente relacionados. Inicialmente foi usado para traduzir
a palavra grega mysterion. Mistério, conforme Paulo, significa a realização
e manifestação do desígnio salvífico: “Mistério escondido desde séculos
e gerações, e agora manifestado” (Col 1,26). O evangelho é, por isso, “a
revelação de um mistério mantido em segredo durante séculos eternos, mas
manifestado no presente... dado a conhecer a todos os gentios para obediência
da fé” (Rom 16,25-26).15 Esse mistério é o amor do Pai que “amou
tanto ao mundo que deu o seu Filho único” (Jo 3,16) para convocar todos os homens,
no Espírito, à comunhão com ele. Os homens são chamados em conjunto, como
comunidade, e não como indivíduos separados, a participar da vida da comunidade
trinitária, a entrar no circuito de amor que une as pessoas da Trindade,16
amor que “constrói na história a sociedade humana”.17 O cumprimento e
manifestação da vontade do Pai ocorre de forma privilegiada em Cristo, chamado
por isso “mistério de Deus” (Col 2,22; cf. Col 1,27; 4,3; Ef 3,3; 1Tim 3,16).18
Pela mesma razão a sagrada Escritura, a Igreja, os ritos litúrgicos serão
designados pelas primeiras gerações cristãs com o termo mistério e sua tradução
latina: sacramento. No sacramento realiza-se e revela-se o desígnio salvífico,
isto é, faz-se presente entre os homens e para os homens. Ao mesmo tempo, porém,
através do sacramento os homens encontram a Deus; encontro na história,
não porque venha Deus da história mas porque esta vem de Deus. O
sacramento é então a revelação eficaz do chamado à comunhão com Deus e à
unidade de todo o gênero humano.
Esse é o sentido primordial do termo
sacramento e desse modo é empregado nos primeiros séculos da Igreja. Em começos
do século III, entretanto, Tertuliano acrescenta um matiz que, aos poucos,
determinará um segundo sentido derivado do primeiro. Esse padre africano começa
a designar com o termo sacramento os ritos do batismo e da eucaristia. Pouco a
pouco os dois vocábulos, mistério e sacramento, separam-se. O primeiro indicará
de preferência os mistérios doutrinais e o segundo o que comumente chamamos
sacramentos. A teologia da Idade Média resumirá o significado do sacramento, em
sentido estrito, na fórmula sinal eficaz da graça. O sinal marca o cunho de visibilidade
do sacramento, mediante o qual ele realize um efetivo encontro pessoal de Deus
e do homem. Mas o sinal remete a uma realidade que está além dele, nesse caso à
graça de comunhão, motivo e resultado desse encontro.19 Comunhão que
é também realidade intra-histórica.
Chamar a Igreja “sacramento visível de toda
unidade salvífica” (LG 9) é defini-la em relação ao desígnio salvador, cujo
cumprimento na história ela revela e significa aos homens. Sinal visível, a
Igreja envia à realidade da “comunhão com Deus e da unidade de todo o gênero
humano” (LG 1). Só se compreende a Igreja em função da realidade que ela
anuncia aos homens. Sua existência não é um “para si”, mas um “para os outros”.
Seu centro está fora dela: na obra de Cristo e de seu Espírito. Pelo Espírito é
ela constituída “sacramento universal de salvação” (LG 48); fora da ação do Espírito
que conduz o universo e a história à sua plenitude em Cristo, a igreja nada é.
Mais. Ela só toma autenticamente consciência de si na percepção desta presença
total de Cristo e de seu Espírito na humanidade. A mediação da consciência do “outro”,
do mundo em que ocorre essa presença, é a condição indispensável de sua própria
consciência como comunidade-sinal. Toda tentativa para evitar essa mediação só
pode levar a Igreja a uma falsa percepção de si própria, a uma consciência eclesiocêntrica.
Pelos homens que aceitam explicitamente sua
palavra, o Senhor revela o mundo a si mesmo e tira-o do anonimato dando-lhe a conhecer
o sentido último de seu devir histórico e o valor de comunhão de cada ato
humano.20 Mas por sua vez deve a Igreja converter-se a esse mundo no
qual Cristo e Espírito estão presentes e ativos, deve deixar-se habitar e
evangelizar por ele. Foi dito, por isso, que uma teologia da Igreja no mundo
deve ser completada por uma “teologia do mundo na Igreja”.21 Esta relação
dialética está implicada no enfoque da Igreja como sacramento, o que nos põe na
pista de novo modo de conceber a relação entre a Igreja histórica e o mundo. A
Igreja não é um no mundo, é a humanidade própria atenta à palavra, povo de Deus
que vive na história e orienta-se para o futuro prometido pelo Senhor; é, como
dizia Teilhard de Chardin, a “porção reflexivamente cristificada do mundo”. A
relação Igreja-mundo deve pois ser vista em termos não espaciais, mas dinâmicos
e temporais.22
Comunidade sacramental, deve a Igreja
significar em sua própria estrutura interna a salvação cuja realização anuncia.
Sua organização deve estar em função de sua tarefa. Sinal de libertação do
homem e da história, deve ser, em sua existência concreta, lugar de libertação.
Um sinal deve ser claro e compreensível.
Conceber a Igreja como sacramento da salvação do mundo torna mais exigente sua
obrigação de deixar transparecer em suas estruturas visíveis a mensagem de que
é portadora. Não sendo um fim em si, o que importa é sua capacidade de
significar a realidade em função da qual existe, fora da qual não é nada, que a
faz viver sob o signo do provisório e para cuja plena realização se orienta: o
reino de Deus que se inicia já na história.23 A ruptura com uma ordem
social injusta e a busca de novas estruturas eclesiais em que estão empenhados
os setores mais dinâmicos da comunidade cristã têm seu fundamento neste enfoque
eclesiológico. Vamos para formas de presença e estruturas da Igreja cuja
radical novidade quase não é possível delinear a partir da experiência
presente. Esse empenho, no que tem de melhor e mais sadio, não provém de uma
moda, não é o resultado de inaptidões profissionais; origina-se, ao invés, em
profunda fidelidade à Igreja como sacramento da unidade e salvação da
humanidade, na convicção de que seu único apoio deve ser a Palavra que liberta.”
15 Cf. o antigo porém importante estudo de D.
Deden. Le mystère paulinien: ETL (1936) 405-442.
16 O decreto Ad Gentes, dos textos de
maior densidade teológica do Vaticano II, liga estreitamente o plano salvífico
e a tarefa que compete à Igreja, às missões trinitárias (n. 1-5).
17 J.
L. Segundo, Nuestra idea de Dios. Buenos Aires, 1970, 91.
18 Cf.
E. Schillebeeck, Cristo, sacramento del encuentro con Dios. Pamplona,
1971.
19 Cf.
H. Mühlen, L’Esprit dans l’église II. Paris, 1969, 84-114; P. Smulders, La
iglesia como sacramento de salvación, em La iglesia del Vaticano II
I. Barcelona, 1966, 377-400; e E. Schillebeeckx, La misión de la iglesia,
Sígueme, Salamanca, 1971, 61-71.
20 “A igreja — escreve Ch. Duquoc — não dá valor ao amor humano; ela anuncia e
significa sua dimensão escatológica”: L’église et le monde, LV 73
(1965), 65.
21 O.
Clément, Un ensayo de lectura ortodoxa de la Constitución, em G.
Baraúna, La Iglesia en el mundo, Madrí, 1967, 663.
22 “Decididamente, Igreja e mundo devem ser
situados, em termos dinâmicos, no âmago de um único desígnio salvífico, como
duas etapas ou dois tempos: A. Liégé, Église de Jésus-Christ, 164. “A
relação decisiva entre a Igreja e o mundo não é espacial, mas temporal”: J.
METZ, Teologia del mundo, 121. G. Martelet, em ótica um tanto diversa,
já intentara uma fecunda interpretação da distinção temporal-espiritual,
segundo a Lumen gentium: La iglesia y lo temporal: hacia una nueva
concepción, em La iglesia del Vaticano II, I, 559-577. Cf. também L Gera, La iglesia y
el mundo, em La iglesia y el país, Buenos Aires 1967, 9-19.
23 “Se a entendemos corretamente, a Igreja
sempre vive da proclamação de sua própria provisoriedade e supressão
historicamente progressiva no reino de Deus que se aproxima”: K. Rahner, Iglesia
y parusia de Cristo, em Escritos de teología VI, Madrid, 1969, 341.
““Em minha memória”
A primeira tarefa da Igreja é celebrar com
alegria o dom da ação salvífica de Deus à humanidade, realizada pela morte e
ressurreição de Cristo. É isso a eucaristia: memorial e ação de graças. Memorial
de Cristo que supõe uma aceitação sempre renovada do sentido de sua vida; a
entrega total aos outros. Ação de graças pelo amor de Deus que se revela nesses
acontecimentos. A eucaristia é uma festa, celebração de uma alegria que se
deseja e procura compartilhar. A eucaristia é feita na Igreja e, simultaneamente,
a Igreja é construída pela eucaristia. Na Igreja “celebramos — escreve
Schillebeeckx — aquilo que se realiza fora do edifício da Igreja, na história
humana”,24 e essa obra, criadora de profunda fraternidade humana,
confere à Igreja sua razão de ser.
Na eucaristia celebramos a cruz e a ressurreição
de Cristo, sua Páscoa da morte para a vida, nossa passagem do pecado à graça. A
última ceia apresenta-se no evangelho tendo como pano de fundo a páscoa judaica
que celebrava a libertação do Egito e a aliança do Sinai.25 A páscoa
cristã assume e revela o pleno sentido da páscoa judaica.26 A
libertação do pecado está na raiz mesma da libertação política: a primeira faz
ver o que está deveras em jogo na segunda. Por outro lado, porém, a comunhão com
Deus e com os demais supõe a abolição de toda injustiça e exploração. Isto já
se exprime no fato de a eucaristia haver sido instituída no decurso de uma ceia.
Para os judeus a comida em comum era um sinal de fraternidade, ligava os
comensais numa espécie de pacto sagrado. Por outro lado, o pão e o vinho são sinais
de fraternidade que evocam ao mesmo tempo o dom da criação; a matéria da
eucaristia traz em si esta referência recordando que a fraternidade se enraíza
na vontade de Deus de dar a todos os homens os bens da terra para que construam
um mundo mais humano.27 O evangelho de João, que não traz o relato
da instituição eucarística, reforça esta ideia, substituindo-a pelo episódio do
lava-pés, gesto de serviço, de amor e fraternidade. É significativa esta
substituição: João parece ver nesse fato o sentido profundo da celebração
eucarística, cuja instituição não narra.28 A eucaristia aparece,
pois, inseparavelmente unida à criação e, afinal, à construção de uma real
fraternidade humana.
A referência à comunidade não representa portanto simples consequência, uma
dimensão adventícia, o segundo nível de um rito que seria antes de tudo, individual,
como o é a manducação pura e simples. De início, se é visto no conceito humano
da ceia tal como é concebido em Israel, o rito eucarístico em seus elementos
essenciais é comunitário, orientado para a constituição da fraternidade humana.
Um texto de Mateus é claro no aspecto da
relação entre o culto e a fraternidade humana:
Se estiveres para apresentar tua oferta ao pé do altar e ali te recordares
de que teu irmão tem qualquer coisa contra ti, deixa tua oferta diante do
altar, e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; voltarás então para
apresentar tua oferta (5,23-24).30
Não se trata do problema de uma consciência
escrupulosa, e sim de viver segundo as exigências do outro: “se te recordares de
que teu irmão tem qualquer coisa contra ti”. Ser causa de quebra da
fraternidade humana desqualifica para participar no culto que celebra
precisamente a ação do Senhor criando uma profunda comunidade entre os homens.
A comunidade cristã — dizia Camilo Torres não pode oferecer de maneira
autêntica o sacrifício, se antes não realizou, de modo efetivo, o preceito
do amor ao próximo.31
Desligar sacrifício e amor ao próximo é a
razão da dura crítica que Jesus, situando-se em firme tradição profética,
dirige a todo culto puramente externo. É que se “nossa relação de serviço ao próximo
no mundo (relação que se exprime profundamente na oração e na liturgia)
estivesse realmente ausente, neste caso a oração e toda a liturgia, como também
nosso falar de Deus... cairiam no vazio e degenerariam em superestrutura inútil
e falsa”.32 Assim entendia Paulo, que antes de relatar a instituição
da Eucaristia assinala a condição necessária para ter parte nela, ao exprobrar
aos coríntios sua falta de caridade fraterna quando de suas reuniões para
celebrar a ceia do Senhor (1Cor 11,17-34; cf. Tg 2,1-4).”
24 Dio
è “colul che verrà. Per una nova imagine di Dio del mondo
secolarizzato, na obra coletiva Processo alla religione. Roma 1968, 151.
25 Êxodo e aliança formam uma unidade. O Deus
que estabelece a aliança é o mesmo que tirou Israel “da terra do Egito”, da
casa de servidão” (Êx 20,2; Dt 5,6) e, como tivemos ocasião de recordá-lo (Supra,
cap. 9), esta libertação é um ato político; a partir dela pode interpretar-se corretamente
o significado do êxodo e da aliança, celebrados na ceia pascal. J. Blenkinsopp
pode por isso escrever que graças ao “melhor conhecimento da dimensão política
da fé do primitivo Israel, os estudiosos já não estão tão inclinados a aceitar a
separação de tradições da aliança e bênçãos do êxodo, segundo o propunha G. von
Rad”, e continua: “O acontecimento básico principia com uma comunidade em
intolerável situação econômica e refere-se em primeiro lugar à sua salvação
econômica e política: Javé tirou-os dali”: Objetivo y profundidad del éxodo
en Déutero-Isaías 40-45: Concilium 20 (1966) 397-398.
26 Cf. J. Ratzinger, La destinée de Jésus
et l’église na obra coletiva L’église aujourd’hui. Tournai 1967, 43,35; L
Dequeker-W. Zuidema, La eucaristia según san Pablo: Concilium 40 (1968)
561-571. J. Blenklinsopp adverte que o tema e a linguagem do Êxodo são aplicados
no Novo Testamento à vida e morte de Jesus: op. cit. 406.
27 Cf.
J. M. R. Tillard, L’eucharistie et la fraternité: NRT (1969) 113-135.
28 C. H. Dodd considera que este capítulo “corresponde
ao relato dos sinóticos sobre a última ceia”, e explica sua omissão em João
pelo desejo de “não divulgar o ‘mistério’ cristão”: The interpretation of the
Fourth Gospel. Cambridge 1960, 393.
29 J. M. R. Tillard, L’eucharistie et la
fraternité, 121. Rafael Ortega mostrou com sólido apoio bíblico o tríplice significado
do sacrifício da cruz: sacrifício pascal, libertação de toda servidão (Êx 12;
1Cor 5,6-8; 1Pdr 1,18), sacrifício de aliança que restaura o velho pacto
de união entre Deus e seu povo (Êx 19,5; 24,1; Gál 4,4; 1Cor 11,25; Hbr
9,15-28) e sacrifício de expiação, de eliminação do pecado (Lev 16; 1Jo 2,1-2;
Rom 3,23-25), em Biblia y penitencia: Cuestiones liturgicas (Medellín) 8
(1969) 83-92. Cf. também S. Lyonnet, De peccato et redemptione II. Roma 1960,
121-126.
30 Esta é uma das poucas palavras de Jesus
que Bultmann considera autênticas: cf. Thelologie des Neuen Testaments,
16s.
31 Encontra-se este texto na declaração
tornada pública por Camilo Torres em 24 de junho de 1965, ao pedir, e obter,
ser liberado das “obrigações clericais”. Camilo encontrava nessa ideia 0
fundamento de sua patética decisão de sacrificar “um dos direitos que prezo
mais profundamente: poder celebrar o culto externo da Igreja como sacerdote, a
fim de criar as condições que tornem mais autêntico esse culto”: Camilo Torres,
Cristianismo y revolución, México, 1970, 376. O gesto de Camilo fez
perceber implacavelmente uma realidade oculta sob uma montanha de palavras e
boas intenções. E contribuiu também para fazer nascer a esperança de criar uma
Igreja que não levante esse tipo de dilemas aos melhores dentre seus membros.
32 E. Schillebeeckx, Dio è “colui che verrà”,
150. Luís Alonso Schokel lembrou a propósito o laço existente entre a obra
redentora de Cristo e a solidariedade entre os homens: La rédemption oeuvre
de solidarité, NRT (1971), 449-472.
“Reconhecer a existência da luta de classes
não depende de nossas opções éticas ou religiosas. Há os que tentam
considerá-la algo artificial, estranho às normas que regem nossa sociedade, contrário
ao espírito da “civilização ocidental e cristã”, obra de agitadores e
oprimidos. Apesar porém dos que assim pensam, há algo de certo nesse enfoque: a
opressão e a espoliação e, por conseguinte, a experiência da luta de classes,
são sofridas e percebidas, primeiramente, por aqueles que foram marginalizados
por essa civilização e carecem de voz própria na Igreja. Mas tomar consciência
da luta de classes a partir da periferia não quer dizer que ela não esteja no
centro da sociedade: os desfavorecidos existem por causa dos que orientam e
dividem essa sociedade. A luta de classes não é produto de mentes febricitantes
senão para quem não conhece ou não quer conhecer o que produz o sistema. Como
afirmavam os bispos franceses há alguns anos: “A luta de classes é, primeiro,
um fato que ninguém pode negar” e continuavam: “colocando-nos no nível dos
responsáveis pela luta de classes, os primeiros responsáveis são aqueles que mantêm
voluntariamente a classe operária em situação injusta, que se opõem à sua
promoção coletiva e combatem os esforços que ela faz por libertar-se”.49
Aquele que fala de luta de classes não a “propugna”
— como se ouve dizer — no sentido de criá-la de início por um ato de (má)
vontade; o que faz é provar um fato, e no máximo contribuir para que dele se
tome consciência. E nada existe de mais palpável do que um fato. Ignorá-lo é
enganar e enganar-se; é ainda privar-se dos meios necessários para suprimir
verdadeira e radicalmente essa situação: ir até a uma sociedade sem classes.
Paradoxalmente o que os grupos dominantes chamam “propugnar” a luta de classes
é, na realidade, a expressão da vontade de abolir as causas que a desencadeiam.51
Aboli-las, não dissimulá-las. Suprimir a apropriação por uns poucos da mais-valia
criada pelo trabalho dos demais, e não fazer apelos líricos à harmonia social.
Construir uma sociedade socialista, mais justa, livre e humana, e não uma
sociedade de conciliação e de igualdade aparente e falaz. “Propugnar” a luta de
classes é, pois, rejeitar a existência de opressores e oprimidos, mas rejeição
sem fraudes nem covardias: reconhecer que o fato aí está, a dividir profundamente
os homens, para poder atacá-lo na raiz e criar assim as condições de uma
autêntica comunidade humana. Criar uma sociedade justa passa hoje
necessariamente pela participação consciente e ativa na luta de classes que se
trava ante o nosso olhar.
Em segundo lugar, é necessário ver com
lucidez que negar o fato da luta de classes é, na realidade, tomar partido em
favor dos setores dominantes. Impossível a neutralidade nesta matéria. O
problema não é admitir ou negar um fato que se impõe a nós, mas saber de que
lado se está. A pretensa “doutrina interclassista — escreve J. Girardi em
conhecido artigo sobre a questão — é, de fato, muito classista: reflete a
opinião da classe dominante”.52 Quando a Igreja rejeita a luta de
classes está procedendo objetivamente como uma peça do sistema imperante: este,
com efeito, pretende perpetuar, negando sua existência, a situação de divisão
social em que se baseiam os privilégios de seus usufrutuários. É uma opção
classista, enganosamente encoberta com uma pretensa igualdade perante a lei. É
longa a história dessa rejeição,53 e suas razões múltiplas e
complexas.54 Mas a consciência cada vez mais aguda que tem o
oprimido pela situação em que se encontra e a participação crescente dos
cristãos na luta social estão reformulando as coisas na Igreja em termos novos,
mais reais e autênticos.
A luta de classes é um fato e não há lugar
para neutralidade nesta matéria; essas duas observações delimitam os problemas
assinalados, impedindo perder-nos em soluções fáceis e dando um contexto
concreto a nossa busca. Mais exatamente: as interrogações levantadas a
propósito do caráter universal do amor e da unidade da Igreja são reais
precisamente porque a luta de classes se nos impõe como um fato, e porque é
impossível não tomar partido nela. (...)
A universalidade do amor cristão é uma
abstração se não se faz história concreta, processo, conflito, superação da
particularidade. Amar a todos os homens não quer dizer evitar defrontações, não
é manter uma harmonia fictícia. Amor universal é aquele que em solidariedade
com os oprimidos intenta libertar também os opressores de seu próprio poder, de
sua ambição e egoísmo:
O amor para com os que vivem em condição de pecado objetivo exige de nós
que lutemos por libertá-los dele. A libertação dos pobres e a dos ricos
realiza-se simultaneamente.55
Ama-se aos opressores libertando-os de sua
própria e desumana situação, libertando-os de si próprios. A isto só se chega
optando resolutamente pelos oprimidos, ou seja, combatendo contra a classe opressora.56 Combater real e eficazmente, não odiar;
nisso está a retidão, nova como o evangelho: amar os inimigos. Nunca se pensou
que isto fosse fácil, porém enquanto se tratava de praticar certa doçura de
caráter, pregava-se sem dificuldade. Não se seguia o conselho, mas ele era
ouvido sem inquietação. Hoje, no contexto da luta de classes, amar os inimigos
supõe reconhecer e aceitar terem-se inimigos de classe e ser preciso
combatê-los. Não se trata de não ter inimigos, e sim de não excluí-los de nosso
amor. Mas o amor não suprime a qualidade de inimigos que possuem os opressores,
nem a radicalidade do combate contra eles. O “amor aos inimigos” longe de
suavizar as tensões, termina por questionar o sistema e converte-se
em fórmula subversiva.
O amor universal só abandona, pois, o terreno
da abstração e torna-se concreto e efetivo, encarnando-se na luta pela
libertação dos oprimidos. Trata-se de amar todos os homens, não de modo geral e
vago, mas no homem espoliado, no homem concreto que luta por viver humanamente.
Nosso amor por ele não o “abstrai”, não o isola da classe social a que
pertence, para “nos compadecermos” de sua situação; pelo contrário, nosso amor
não é autêntico se não toma o caminho da solidariedade de classe e da luta social.
Participar na luta de classes não só não se opõe ao amor universal, mas esse
compromisso é hoje a mediação necessária e inesquinável de sua concreção: a
passagem a uma sociedade sem classes, sem proprietários e espoliados, sem
opressores nem oprimidos.57 Para um pensamento dialético a reconciliação é superação de um
conflito. A comunhão da alegria pascal passa pelo confronto e pela cruz.”
50 Carta da Comissão episcopal do mundo
operário, de outubro de 1908, citada em R. Potiere, Lutie de classes: MO
271 (1970) 9. Cf. também Hacia una definición, documento de Iglesia
joven (Santiago do Chile) em NADOC n. 9, novembro 1968.
51·Num texto célebre assinala Marx com precisão
qual foi sua contribuição à luta de classes: não a descoberta de sua
existência, mas a análise de suas causas e a indicação do caminho para uma
sociedade sem classes. “No que me diz respeito — escreve — não me pertence o mérito
de haver descoberto a existência de classes na sociedade moderna, nem a luta
entre eles. Muito antes de mim, os historiadores burgueses haviam descrito o desenvolvimento
histórico dessa luta de classes, e os economistas burgueses estudado sua anatomia
econômica. O que fiz de novo foi: 1. demonstrar que a existência de classes
só se liga a etapas do desenvolvimento histórico determinado pela produção;
2. que a luta de classes leva necessariamente à ditadura do proletariado;
3. que esta ditadura constitui apenas a transição para a abolição de todas as
classes e a uma sociedade sem classes”: carta a J. Weydemayer, de 5 de março de
1852, em K. Marx-F. Engels, Études philosophiques. Paris 1961, 151 (grifado
no texto). A luta de classes é inerente à organização classista da sociedade. O
objetivo de Marx é abolir o que dá origem à própria existência das classes
sociais. Mas não se superam as causas da luta de classes se antes não se toma
consciência dessa luta e de suas exigências no processo de construção de uma nova
sociedade.
52 Cristianismo,
pastoral y lucha de clases, na obra coletiva La vertiente
política de la pastoral. Quito 1970, 94.
53 Cf.
L. Pelissier, L’église et la lutte des classes: FM 40-41 (1966)
99-126.
54 J.
Girardi, op. cit., 93-95.
55 J.
Girardi, Amor cristiano y lucha de clases. Sígueme, Salamanca 1971, 57.
56 “Cumpre amar a todos, mas não é possível
amá-los a todos do mesmo modo: amam-se os oprimidos libertando-os, amam-se os
opressores combatendo-os. Ama-se a uns libertando-os de sua miséria, e aos
outros de seu pecado”: J. Girardi, Cristianismo, pastoral y lucha de clases.
98.
57 Os cristãos devemos estar comprometidos
pessoal e coletivamente... com a construção de nova sociedade. Esta nova sociedade
deve ser uma sociedade sem classes, em que haja propriedade coletiva dos meios
de produção”: Cristianos en um mundo de injusticia. Conclusiones
del “Primer Encuentro por una iglesia solidaria”,
em Expreso (Lima) 7 de maio de 1971.
“Optar pelo
oprimido é optar contra o opressor.”
“O “pobre” não existe como um dado fatal, sua
existência não é neutra politicamente, nem inocente eticamente. O pobre é o
subproduto do sistema em que vivemos e de que somos responsáveis. É o
marginalizado de nosso mundo social e cultural. Mais: pobre é o oprimido, o
explorado, o proletário, o despojado do fruto de seu trabalho, o espoliado de
seu ser de homem. Por isso é que a pobreza do pobre não é um chamado para uma
ação generosa que a alivie, e sim uma exigência de construção de uma diferente
ordem social.
É mister, entretanto, irmos logo ao fundo da
questão. A opção pelo pobre num compromisso libertador levou à compreensão de que
não se trata de isolar o oprimido da classe social a que pertence, pois seria “compadecermo-nos
de sua situação”. O pobre, o oprimido, é membro de uma classe social explorada,
sutil ou abertamente, por outra classe social. Classe social explorada que tem
no proletariado seu mais beligerante e lúcido setor. Optar pelo pobre é optar
por uma classe social contra outra. Tomar consciência do fato do confronto
entre classes sociais e tomar partido pelos desapossados. Optar pelo pobre é
entrar no mundo da classe social explorada, de seus valores, de suas categorias
culturais. É fazer-se solidário com seus interesses e com suas lutas.”
“Por muito tempo apareceu a política como algo
setorial. Era um setor da existência humana, ao lado do familiar, do
profissional, do recreativo. A atividade política era exercida portanto nos
momentos livres deixados pelas outras ocupações. Além disso, pensava-se que o
político era o próprio de um setor da humanidade chamada especialmente a essa
responsabilidade. Hoje, porém, os que optaram por um compromisso libertador
experimentam o político como uma dimensão que abrange e condiciona
exigentemente toda a tarefa humana. É o condicionamento global e o campo
coletivo da realização humana. Só partindo desta percepção da globalidade do
político numa perspectiva revolucionária se pode situar devidamente um sentido
mais restrito do termo que define acertadamente o político como orientação para
o poder político. Toda realidade humana tem pois uma dimensão política. Falar
de dimensão política não só não exclui, antes tem em conta a
multidimensionalidade do homem, mas rejeita todo setorialismo socialmente
infecundo, ao desviar das condições concretas em que se desenvolve a existência
humana. No contexto do político, o homem surge como um ser livre e responsável,
como homem em relação com a natureza, em relação com outros homens, como alguém
que toma as rédeas de seu destino transformando a história.
Uma formação insistentemente axiomática e
a-histórica fez que os cristãos fossem em geral pouco sensíveis e mesmo hostis
às tentativas de racionalidade científica que abrem caminho no campo do
político. Aqueles, porém, que se acham comprometidos na luta por uma sociedade
diferente sentem a urgência de conhecer com o máximo rigor possível os
mecanismos da sociedade capitalista, centrada no lucro privado e na propriedade
privada para o lucro. Só isso dará eficácia à sua ação. Os vagos e líricos
apelos à defesa da dignidade da pessoa humana, que não levem em conta as causas
profundas da atual ordem social e as condições concretas da construção de uma
sociedade justa, são inteiramente estéreis e, afinal, sutis maneiras de enganar
e enganar-se. Racionalidade científica incipiente mas real, exigente porém
necessária. Graças a sua introdução no campo da história e da sociedade, começou
o homem contemporâneo a ser cônscio de seus condicionamentos econômicos e
socioculturais e a perceber as causas profundas da situação de miséria e
esbulho em que vivem os pobres dos países pobres. Muito custou e ainda custa
aos cristãos entrarem nesta mentalidade. Graças a ela, entretanto, estão saindo
de meias verdades como a que tanto corre em certos ambientes cristãos: de que
serve mudar as estruturas sociais se não se muda o coração do homem? Meia
verdade, porque ignora que o “coração” do homem também se transforma
transformando as estruturas sociais e culturais. Vale dizer que entre esses
dois aspectos há uma dependência e exigências recíprocas, baseadas numa unidade
radical. Não é menos “mecanicista” quem pensa que uma transformação
estrutural trará automaticamente homens diferentes do que quem acredita que uma
mudança “pessoal” assegure transformações sociais. Todo mecanismo é irreal e
ingênuo.
O que, no entanto, talvez mais choque o
cristão que busca colocar-se franca e decididamente do lado do pobre e do
explorado e comprometer-se com as lutas do proletariado é o caráter conflitual que
adquire nesse contexto sua práxis social. O terreno do político, tal como hoje
se apresenta, implica confrontações entre grupos humanos, entre classes sociais
com interesses opostos, confrontações em que aparece a violência em graus
diversos. Ser “artífice da paz” não só não dispensa de estar presente em tais conflitos,
senão ainda exige tomar parte neles, se se quiser superá-los desde a raiz;
exige compreender que não existe paz sem justiça. Exigência dura e inquietante
para os que preferem não ver essas situações conflituosas ou se contentam com
paliativos. Dura também para os que, com a maior boa vontade, confundem amor
universal com harmonia fictícia. Entretanto, o Evangelho manda-nos amar os
inimigos; no contexto político da América Latina, isso implica em reconhecer o
fato da luta de classes e aceitar ter inimigos de classe a quem urge combater.
Não se trata de não ter inimigos, mas de não excluí-los do nosso amor. Pouco acostumados
estamos, em ambientes cristãos, a pensar em termos conflituais e históricos. Ao
antagônico preferimos uma irênica conciliação, ao provisório uma evasiva
eternidade. Devemos aprender a viver e pensar a paz no conflito, o definitivo e
transistórico no tempo.”
“Um mundo diferente
A opção pelo pobre, pelas classes exploradas
e pelas lutas do proletariado latino-americano, a percepção do político como
uma dimensão que marca toda a existência humana com exigências de racionalidade
científica e de modo inevitavelmente conflituoso, a redescoberta da pobreza
evangélica como solidariedade com o pobre e protesto contra a natureza, foi-nos
levando a uma forma diferente de nos percebermos como homens e como cristãos.
Antes de mais nada, estamos diante de um
questionamento radical da ordem social vigente. A miséria e injustiça em que se
vive na América Latina são por demais profundas para se cogitar de medidas
atenuantes. Daí falar-se em revolução social e não em reformas, libertação e
não desenvolvimento, socialismo, não modernização do sistema atual. Aos “realistas”
parecerão românticas e utópicas semelhantes afirmações. Compreende-se. Elas pertencem
a uma racionalidade que lhes é estranha. A racionalidade de um projeto
histórico que anuncia uma sociedade diferente, construída em função do
pobre e do oprimido, e que denuncia a outra, construída em proveito de alguns
poucos. Projeto em elaboração, baseado em estudos do maior rigor científico
possível, que parte da exploração das grandes maiorias da América Latina pelas
classes dominantes e da percepção de que se trata de um continente dependente —
econômica, social, política e culturalmente — de centros de poder que estão
fora dele, que estão nos países opulentos. Dependência externa e dominação
interna marcam as estruturas sociais da América Latina. Por isso, unicamente uma
análise de classe permitirá ver o que está realmente em jogo na oposição entre
países oprimidos e povos dominantes. Só ter em conta o confronto entre nações
dissimula e, finalmente, suaviza a verdadeira situação. A teoria da dependência
erraria seu caminho e provocaria engano se não situasse sua análise no âmbito
da luta de classes que se desenrola em nível mundial. Tudo isto permitirá
compreender a formação social latino-americana como um capitalismo dependente,
e prever a estratégia necessária para sair de tal situação.
Só a superação de uma sociedade dividida em
classes, só um poder político a serviço das grandes maiorias populares, só a
eliminação da apropriação privada da riqueza criada pelo trabalho humano, pode
dar-nos as bases de uma sociedade mais justa. Por isso é que a elaboração do
projeto histórico de uma nova sociedade toma, cada vez mais, na América Latina,
o rumo do socialismo. Construção do socialismo que não desconhece aa
deficiências de muitas de suas atuais realizações históricas, que procura sair
de esquemas e frases feitas e busca criadoramente caminhos próprios.
Tal projeto, porém, de uma sociedade
diferente encerra também a criação de um homem novo cada vez mais livre de toda
servidão que o impeça de ser agente do próprio destino na história. Isso leva a
questionar as ideologias dominantes — nas quais se encontram elementos
religiosos — que hoje modelam o homem em nossa sociedade. Contudo só será
autêntica a construção de tal sociedade diferente e de um homem novo, se for
assumida pelo próprio povo oprimido, e para tanto deverá partir dos próprios valores
desse povo. A partir dele opera-se o questionamento radical da atual ordem
social e a abolição da cultura opressora. Somente assim se pode levar a bom
termo uma verdadeira revolução social e cultural.
Não perceberíamos talvez o alcance deste
questionamento radical se não tomássemos consciência da mudança que se
verificou no modo como o homem conhece, na forma como se aproxima da verdade e
a relaciona com sua prática história. Desde o nascimento da ciência
experimental, foi o homem adquirindo mais ativo papel no conhecimento. Já não
se limita a admirar a natureza e a classificar o que observa, porém a interpela
e provoca, descobrindo-lhe as leis, dominando-a pela técnica. O surgimento das ciências
sociais e psicológicas ampliou, de certo modo, esse tipo de conhecimentos a
campos até o momento reservado a considerações de tipo filosófico. Estas
conservam seu sentido em determinado nível, mas doravante terão que conviver
com os esforços de fazer ciências humanas. Ciências ainda em seus primeiros
passos, em busca de caminho, que nos estão abrindo a novas dimensões do homem,
mas não podem ser assimiladas, pura e simplesmente, às ciências naturais. Tudo
isso fez descobrir algo que hoje se perfila como traço fundamental da
consciência contemporânea: o conhecimento ligado à transformação. Só se conhece
a história — que é indisssoluvelmente natureza e sociedade — transformando-a e
transformando-se a si mesmo. Já o dizia Vico: o homem não conhece bem senão
aquilo que faz. A verdade para o homem contemporâneo veri-fica-se, faz-se.
Conhecimento da realidade, que não leve a uma modificação desta, é
interpretação não verificada, não feita verdade. Em suas penetrantes e quase escultóricas
“Teses sobre Feuerbach”, assenta Marx nessa ótica as bases epistemológicas de sua contribuição
para o conhecimento científico da história. A realidade histórica deixa assim
de ser o campo de aplicação de verdades abstratas e de interpretações idealistas,
para ser antes o lugar privilegiado donde se parte e ao qual se torna no
processo do conhecimento. A práxis transformadora da história não é o momento
da encarnação degradada de teoria límpida e bem pensada, mas a fonte de um
conhecimento autêntico e a prova decisiva de seu valor. É o lugar em que o homem
recria o seu mundo e forja-se a si próprio, conhece a realidade em que se acha
e a si mesmo se conhece.”
“Nova inteligência da fé
A palavra do Senhor aceita na fé será vivida
e pensada hoje por um homem que se move nestas categorias culturais, como no passado
o foi por homens moldados pelo pensamento grego. As resistências e acusações de
distorção da fé dos que se aferram a velhas formas de refletir lembram as que
se opuseram ao uso da filosofia aristotélica em teologia. Como elas, porém, em
que pese os alarmas infundados e as condenações episódicas que possam provocar
presentemente, não têm futuro. O futuro está em mãos de uma fé, em comunhão
eclesial, que não teme os avanços do pensamento e a prática social do homem,
que se deixa interrogar por eles mas também os interpela, que se enriquece mas que
não se submete acriticamente, que conhece os próprios condicionamentos, mas
também as próprias exigências. Tarefa complexa, que apela para múltiplas
especialidades, para um sério conhecimento das diferentes facetas do pensamento
contemporâneo, filosóficas e científicas, sem as quais não é possível elaborar
hoje um estudo teológico. Tarefa de inteligência da fé que só pode ser efetuada
na base da práxis histórica, na luta dos homens por viver como homens, animada
pela esperança naquele que, revelando-se, revela ao homem toda a plenitude nele
existente. Animada pela esperança no Senhor da História, em quem tudo foi feito
e tudo foi salvo.
O compromisso no processo de libertação
introduz o cristão num mundo que lhe era pouco familiar e fá-lo dar um salto
qualitativo: questionamento radical de uma ordem social e de sua ideologia, rompimento
com velhos modos de conhecer. Tudo isso faz que seja pouco significativa para
ele uma reflexão teológica feita em outro contexto cultural. Transmite-lhe ela
a consciência que precedentes gerações cristãs tomaram de sua fé, suas
expressões são pontos de referência para ele, mas não o tiram de sua orfandade
teológica porque não lhe falam a linguagem forte, clara e incisiva, correspondente
à experiência humana e cristã que está vivendo.
Ao mesmo tempo, porém, nascem dessas mesmas
experiências os germes de novo tipo de inteligência da fé. Elas ensinam a unir,
conhecer e transformar, teoria e prática. Impõe-se uma releitura do Evangelho,
na qual se descobrirá algo tradicional, autenticamente tradicional e talvez por
isso esquecido por “tradições” mais recentes: a verdade evangélica se faz.
Importa praticar a verdade, diz-nos S. João, pois essa verdade é Amor. Viver o
amor é afirmar Deus. Crer em Deus não é limitar-se a sustentar-lhe a
existência, crer em Deus é compreender a vida com Ele e com todos os homens.
Ter fé é sair de si e dar-se a Deus e aos outros. A fé age pela caridade, esclarece-nos
S. Paulo.
Não se trata de uma mecânica correspondência
com a insistência contemporânea em estabelecer os laços entre conhecer e transformar
e em viver uma verdade que se verifica. Mas o mundo cultural em que vivemos
permite descobrir um ponto de partida e um horizonte em que se inscreve uma
reflexão teológica que deverá empreender novo caminho, apelando também,
necessariamente, para suas próprias fontes.
A fé aparece-nos destarte cada vez mais como
práxis libertadora. A fé aceitação do amor e resposta ao amor do Pai vai à raiz
última da injustiça social: o pecado, ruptura de amizade com Deus e de
fraternidade entre os homens. Não fará isso, porém, esquivando-se às mediações
históricas, evitando as análises sociopolíticas dessas realidades históricas.
Dá-se o pecado na negação do homem como irmão, em estruturas opressoras criadas
em proveito de uns poucos, na espoliação de povos, raças, culturas e classes
sociais. O pecado é a alienação fundamental que, por isso mesmo, não pode ser
alcançada em si mesma, mas ocorre em situações históricas concretas, em
alienações particulares. Impossível compreender um sem o outro. O pecado exige
radical libertação, mas esta inclui necessariamente uma libertação de ordem política.
Só participando beligerante e eficazmente no processo histórico de libertação,
será possível apontar com o dedo a alienação fundamental presente em toda
alienação parcial. Essa libertação radical é o dom trazido por Cristo. Por sua
morte e ressurreição redime o homem do pecado e de todas as suas consequências.
“É o mesmo Deus — diz Medellín — quem, na plenitude dos tempos, envia seu Filho
para que, feito carne, venha a libertar todos os homens de todas as
escravidões a que os sujeita o pecado, a ignorância, a fome, a miséria e a
opressão, numa palavra, a injustiça e o ódio que têm sua origem no egoísmo humano”.
Como já o dissemos e repetimos, a ação
política tem suas exigências e suas leis próprias. Recordar o sentido profundo
que ela tem para um cristão é muito diferente do que dar um salto para trás,
para etapas em que o homem não estava em condições de conhecer os mecanismos
internos de uma sociedade opressora e em que a
ação política não atingira a idade adulta. Aceitar o dom da filiação fazendo-se
irmãos de todos os homens não deixará de ser uma frase, útil só para a
autossatisfação com a nobreza do ideal, se não for vivida diária e
conflitivamente na história. Se não se traduzir em real identificação com os
interesses dos homens que sofrem opressão de outros homens, com as lutas das classes
exploradas. Se não enriquecer, de modo criador e crítico, e internamente, os
processos políticos tendentes a se fechar sobre si mesmos e a mutilar
autênticas dimensões do homem. Se não usar os instrumentos, proporcionados
pelas ciências humanas, para conhecer as realidades sociais negadoras da
justiça e da fraternidade que se buscam, e tornar assim eficaz sua ação.
Em tal contexto, será a teologia uma reflexão
crítica sobre a práxis histórica em confrontação com a Palavra do Senhor vivida
e aceita na fé, fé que nos vem através de múltiplas e não raro ambíguas
mediações históricas, mas que refazemos dia a dia. Será uma reflexão em e sobre
a fé como práxis libertadora. Inteligência da fé que se faz a partir de uma
opção. A partir da real e efetiva solidariedade com as classes exploradas
latino-americanas e a partir de seu mundo. Reflexão que parte de um compromisso
por criar uma sociedade justa e fraterna e que deve contribuir para que seja
esse compromisso mais radical e pleno. Discurso teológico que se faz verdade,
que se verifica na inserção real e fecunda no processo de libertação.
Refletir sobre a fé como práxis libertadora é
refletir sobre uma verdade que se faz e não apenas se afirma. Em última
instância, a exegese da Palavra, para a qual quer contribuir a teologia, dá-se nos
fatos. Isso, e não simples afirmações, purgará a inteligência da fé de toda
eiva de idealismo.”
“O dom da filiação vive-se na história.
Fazendo dos homens irmãos, acolhemos esse dom de fato, não de palavra. Lutar
contra toda injustiça, esbulho e exploração, comprometer-se na criação de uma
sociedade mais fraterna e humana é viver e testemunhar o amor do Pai. O anúncio
de um Deus que ama igualmente todos os homens deve tomar corpo na história,
deve tornar-se história. Proclamar esse amor numa sociedade profundamente
desigual, marcada pela injustiça e pela exploração de uma classe social por outra,
fará desse “tornar-se história” algo que provoca e gera conflito. Por isso é
que dizíamos que a dimensão política está no próprio dinamismo de uma Palavra
que procura encarnar-se na história. As exigências evangélicas são
incompatíveis com a situação social vivida na América Latina, com as formas em
que se dão as relações entre os homens, com as estruturas em que se travam
essas relações. Não se trata do repúdio a tal ou qual injustiça individual, mas
da exigência de uma ordem social diversa. Só um certo grau de maturidade
política permitirá verdadeira compreensão da dimensão política do Evangelho e
impedirá sua redução a um assistencialismo, por sofisticado que seja, ou a
simples tarefa de “promoção humana”.
O anúncio autêntico do amor de Deus, da
fraternidade e igualdade radical de todos os homens, ao homem explorado de
nosso continente, fá-lo-á perceber que sua situação é contrária ao Evangelho, o
que o ajudará a tomar consciência da profunda injustiça de tal estado de
coisas. As classes oprimidas não adquirirão clara consciência política a não ser
na participação direta nas lutas populares; na globalidade, porém, e na
complexidade do processo político que deve romper com uma ordem social opressora
e levar a uma sociedade sem classes, a luta ideológica tem um lugar importante.
Pois na América Latina dá-se ao “cristão” um papel dentro da ideologia
dominante que dá coesão e firmeza a uma sociedade capitalista dividida em
classes. É frequente, com efeito, apelarem os setores conservadores para noções
cristãs, a fim de justificar a ordem social que serve a seus interesses e manter
seus privilégios. Esta é uma das grandes mentiras de nossa sociedade
latino-americana. Por ela é que a comunicação da mensagem, na parte referente
ao outro, ao pobre, ao oprimido, terá função desmascaradora de toda intenção de
fazer jogo ideológico com o Evangelho e justificar uma situação contrária às
mais elementares exigências evangélicas.”
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