sábado, 25 de junho de 2022

Teologia da Libertação: perspectivas (Parte IV), de Gustavo Gutiérrez

Editora: Vozes

Tradução: Jorge Soares

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 276

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Sinopse: Ver Parte I


 

“O termo sacramentum tem, em teologia, dois sentidos estreitamente relacionados. Inicialmente foi usado para traduzir a palavra grega mysterion. Mistério, conforme Paulo, significa a realização e manifestação do desígnio salvífico: “Mistério escondido desde séculos e gerações, e agora manifestado” (Col 1,26). O evangelho é, por isso, “a revelação de um mistério mantido em segredo durante séculos eternos, mas manifestado no presente... dado a conhecer a todos os gentios para obediência da fé” (Rom 16,25-26).15 Esse mistério é o amor do Pai que “amou tanto ao mundo que deu o seu Filho único” (Jo 3,16) para convocar todos os homens, no Espírito, à comunhão com ele. Os homens são chamados em conjunto, como comunidade, e não como indivíduos separados, a participar da vida da comunidade trinitária, a entrar no circuito de amor que une as pessoas da Trindade,16 amor que “constrói na história a sociedade humana”.17 O cumprimento e manifestação da vontade do Pai ocorre de forma privilegiada em Cristo, chamado por isso “mistério de Deus” (Col 2,22; cf. Col 1,27; 4,3; Ef 3,3; 1Tim 3,16).18 Pela mesma razão a sagrada Escritura, a Igreja, os ritos litúrgicos serão designados pelas primeiras gerações cristãs com o termo mistério e sua tradução latina: sacramento. No sacramento realiza-se e revela-se o desígnio salvífico, isto é, faz-se presente entre os homens e para os homens. Ao mesmo tempo, porém, através do sacramento os homens encontram a Deus; encontro na história, não porque venha Deus da história mas porque esta vem de Deus. O sacramento é então a revelação eficaz do chamado à comunhão com Deus e à unidade de todo o gênero humano.

Esse é o sentido primordial do termo sacramento e desse modo é empregado nos primeiros séculos da Igreja. Em começos do século III, entretanto, Tertuliano acrescenta um matiz que, aos poucos, determinará um segundo sentido derivado do primeiro. Esse padre africano começa a designar com o termo sacramento os ritos do batismo e da eucaristia. Pouco a pouco os dois vocábulos, mistério e sacramento, separam-se. O primeiro indicará de preferência os mistérios doutrinais e o segundo o que comumente chamamos sacramentos. A teologia da Idade Média resumirá o significado do sacramento, em sentido estrito, na fórmula sinal eficaz da graça. O sinal marca o cunho de visibilidade do sacramento, mediante o qual ele realize um efetivo encontro pessoal de Deus e do homem. Mas o sinal remete a uma realidade que está além dele, nesse caso à graça de comunhão, motivo e resultado desse encontro.19 Comunhão que é também realidade intra-histórica.

Chamar a Igreja “sacramento visível de toda unidade salvífica” (LG 9) é defini-la em relação ao desígnio salvador, cujo cumprimento na história ela revela e significa aos homens. Sinal visível, a Igreja envia à realidade da “comunhão com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1). Só se compreende a Igreja em função da realidade que ela anuncia aos homens. Sua existência não é um “para si”, mas um “para os outros”. Seu centro está fora dela: na obra de Cristo e de seu Espírito. Pelo Espírito é ela constituída “sacramento universal de salvação” (LG 48); fora da ação do Espírito que conduz o universo e a história à sua plenitude em Cristo, a igreja nada é. Mais. Ela só toma autenticamente consciência de si na percepção desta presença total de Cristo e de seu Espírito na humanidade. A mediação da consciência do “outro”, do mundo em que ocorre essa presença, é a condição indispensável de sua própria consciência como comunidade-sinal. Toda tentativa para evitar essa mediação só pode levar a Igreja a uma falsa percepção de si própria, a uma consciência eclesiocêntrica.

Pelos homens que aceitam explicitamente sua palavra, o Senhor revela o mundo a si mesmo e tira-o do anonimato dando-lhe a conhecer o sentido último de seu devir histórico e o valor de comunhão de cada ato humano.20 Mas por sua vez deve a Igreja converter-se a esse mundo no qual Cristo e Espírito estão presentes e ativos, deve deixar-se habitar e evangelizar por ele. Foi dito, por isso, que uma teologia da Igreja no mundo deve ser completada por uma “teologia do mundo na Igreja”.21 Esta relação dialética está implicada no enfoque da Igreja como sacramento, o que nos põe na pista de novo modo de conceber a relação entre a Igreja histórica e o mundo. A Igreja não é um no mundo, é a humanidade própria atenta à palavra, povo de Deus que vive na história e orienta-se para o futuro prometido pelo Senhor; é, como dizia Teilhard de Chardin, a “porção reflexivamente cristificada do mundo”. A relação Igreja-mundo deve pois ser vista em termos não espaciais, mas dinâmicos e temporais.22

Comunidade sacramental, deve a Igreja significar em sua própria estrutura interna a salvação cuja realização anuncia. Sua organização deve estar em função de sua tarefa. Sinal de libertação do homem e da história, deve ser, em sua existência concreta, lugar de libertação.

Um sinal deve ser claro e compreensível. Conceber a Igreja como sacramento da salvação do mundo torna mais exigente sua obrigação de deixar transparecer em suas estruturas visíveis a mensagem de que é portadora. Não sendo um fim em si, o que importa é sua capacidade de significar a realidade em função da qual existe, fora da qual não é nada, que a faz viver sob o signo do provisório e para cuja plena realização se orienta: o reino de Deus que se inicia já na história.23 A ruptura com uma ordem social injusta e a busca de novas estruturas eclesiais em que estão empenhados os setores mais dinâmicos da comunidade cristã têm seu fundamento neste enfoque eclesiológico. Vamos para formas de presença e estruturas da Igreja cuja radical novidade quase não é possível delinear a partir da experiência presente. Esse empenho, no que tem de melhor e mais sadio, não provém de uma moda, não é o resultado de inaptidões profissionais; origina-se, ao invés, em profunda fidelidade à Igreja como sacramento da unidade e salvação da humanidade, na convicção de que seu único apoio deve ser a Palavra que liberta.”

15 Cf. o antigo porém importante estudo de D. Deden. Le mystère paulinien: ETL (1936) 405-442.

16 O decreto Ad Gentes, dos textos de maior densidade teológica do Vaticano II, liga estreitamente o plano salvífico e a tarefa que compete à Igreja, às missões trinitárias (n. 1-5).

17 J. L. Segundo, Nuestra idea de Dios. Buenos Aires, 1970, 91.

18 Cf. E. Schillebeeck, Cristo, sacramento del encuentro con Dios. Pamplona, 1971.

19 Cf. H. Mühlen, L’Esprit dans l’église II. Paris, 1969, 84-114; P. Smulders, La iglesia como sacramento de salvación, em La iglesia del Vaticano II I. Barcelona, 1966, 377-400; e E. Schillebeeckx, La misión de la iglesia, Sígueme, Salamanca, 1971, 61-71.

20 “A igreja — escreve Ch. Duquoc — não dá valor ao amor humano; ela anuncia e significa sua dimensão escatológica”: L’église et le monde, LV 73 (1965), 65.

21 O. Clément, Un ensayo de lectura ortodoxa de la Constitución, em G. Baraúna, La Iglesia en el mundo, Madrí, 1967, 663.

22 “Decididamente, Igreja e mundo devem ser situados, em termos dinâmicos, no âmago de um único desígnio salvífico, como duas etapas ou dois tempos: A. Liégé, Église de Jésus-Christ, 164. “A relação decisiva entre a Igreja e o mundo não é espacial, mas temporal”: J. METZ, Teologia del mundo, 121. G. Martelet, em ótica um tanto diversa, já intentara uma fecunda interpretação da distinção temporal-espiritual, segundo a Lumen gentium: La iglesia y lo temporal: hacia una nueva concepción, em La iglesia del Vaticano II, I, 559-577. Cf. também L Gera, La iglesia y el mundo, em La iglesia y el país, Buenos Aires 1967, 9-19.

23 “Se a entendemos corretamente, a Igreja sempre vive da proclamação de sua própria provisoriedade e supressão historicamente progressiva no reino de Deus que se aproxima”: K. Rahner, Iglesia y parusia de Cristo, em Escritos de teología VI, Madrid, 1969, 341.

 

 

““Em minha memória”

A primeira tarefa da Igreja é celebrar com alegria o dom da ação salvífica de Deus à humanidade, realizada pela morte e ressurreição de Cristo. É isso a eucaristia: memorial e ação de graças. Memorial de Cristo que supõe uma aceitação sempre renovada do sentido de sua vida; a entrega total aos outros. Ação de graças pelo amor de Deus que se revela nesses acontecimentos. A eucaristia é uma festa, celebração de uma alegria que se deseja e procura compartilhar. A eucaristia é feita na Igreja e, simultaneamente, a Igreja é construída pela eucaristia. Na Igreja “celebramos — escreve Schillebeeckx — aquilo que se realiza fora do edifício da Igreja, na história humana”,24 e essa obra, criadora de profunda fraternidade humana, confere à Igreja sua razão de ser.

Na eucaristia celebramos a cruz e a ressurreição de Cristo, sua Páscoa da morte para a vida, nossa passagem do pecado à graça. A última ceia apresenta-se no evangelho tendo como pano de fundo a páscoa judaica que celebrava a libertação do Egito e a aliança do Sinai.25 A páscoa cristã assume e revela o pleno sentido da páscoa judaica.26 A libertação do pecado está na raiz mesma da libertação política: a primeira faz ver o que está deveras em jogo na segunda. Por outro lado, porém, a comunhão com Deus e com os demais supõe a abolição de toda injustiça e exploração. Isto já se exprime no fato de a eucaristia haver sido instituída no decurso de uma ceia. Para os judeus a comida em comum era um sinal de fraternidade, ligava os comensais numa espécie de pacto sagrado. Por outro lado, o pão e o vinho são sinais de fraternidade que evocam ao mesmo tempo o dom da criação; a matéria da eucaristia traz em si esta referência recordando que a fraternidade se enraíza na vontade de Deus de dar a todos os homens os bens da terra para que construam um mundo mais humano.27 O evangelho de João, que não traz o relato da instituição eucarística, reforça esta ideia, substituindo-a pelo episódio do lava-pés, gesto de serviço, de amor e fraternidade. É significativa esta substituição: João parece ver nesse fato o sentido profundo da celebração eucarística, cuja instituição não narra.28 A eucaristia aparece, pois, inseparavelmente unida à criação e, afinal, à construção de uma real fraternidade humana.

A referência à comunidade não representa portanto simples consequência, uma dimensão adventícia, o segundo nível de um rito que seria antes de tudo, individual, como o é a manducação pura e simples. De início, se é visto no conceito humano da ceia tal como é concebido em Israel, o rito eucarístico em seus elementos essenciais é comunitário, orientado para a constituição da fraternidade humana.

Um texto de Mateus é claro no aspecto da relação entre o culto e a fraternidade humana:

Se estiveres para apresentar tua oferta ao pé do altar e ali te recordares de que teu irmão tem qualquer coisa contra ti, deixa tua oferta diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; voltarás então para apresentar tua oferta (5,23-24).30

Não se trata do problema de uma consciência escrupulosa, e sim de viver segundo as exigências do outro: “se te recordares de que teu irmão tem qualquer coisa contra ti”. Ser causa de quebra da fraternidade humana desqualifica para participar no culto que celebra precisamente a ação do Senhor criando uma profunda comunidade entre os homens.

A comunidade cristã — dizia Camilo Torres não pode oferecer de maneira autêntica o sacrifício, se antes não realizou, de modo efetivo, o preceito do amor ao próximo.31

Desligar sacrifício e amor ao próximo é a razão da dura crítica que Jesus, situando-se em firme tradição profética, dirige a todo culto puramente externo. É que se “nossa relação de serviço ao próximo no mundo (relação que se exprime profundamente na oração e na liturgia) estivesse realmente ausente, neste caso a oração e toda a liturgia, como também nosso falar de Deus... cairiam no vazio e degenerariam em superestrutura inútil e falsa”.32 Assim entendia Paulo, que antes de relatar a instituição da Eucaristia assinala a condição necessária para ter parte nela, ao exprobrar aos coríntios sua falta de caridade fraterna quando de suas reuniões para celebrar a ceia do Senhor (1Cor 11,17-34; cf. Tg 2,1-4).”

24 Dio è “colul che verrà. Per una nova imagine di Dio del mondo secolarizzato, na obra coletiva Processo alla religione. Roma 1968, 151.

25 Êxodo e aliança formam uma unidade. O Deus que estabelece a aliança é o mesmo que tirou Israel “da terra do Egito”, da casa de servidão” (Êx 20,2; Dt 5,6) e, como tivemos ocasião de recordá-lo (Supra, cap. 9), esta libertação é um ato político; a partir dela pode interpretar-se corretamente o significado do êxodo e da aliança, celebrados na ceia pascal. J. Blenkinsopp pode por isso escrever que graças ao “melhor conhecimento da dimensão política da fé do primitivo Israel, os estudiosos já não estão tão inclinados a aceitar a separação de tradições da aliança e bênçãos do êxodo, segundo o propunha G. von Rad”, e continua: “O acontecimento básico principia com uma comunidade em intolerável situação econômica e refere-se em primeiro lugar à sua salvação econômica e política: Javé tirou-os dali”: Objetivo y profundidad del éxodo en Déutero-Isaías 40-45: Concilium 20 (1966) 397-398.

26 Cf. J. Ratzinger, La destinée de Jésus et l’église na obra coletiva L’église aujourd’hui. Tournai 1967, 43,35; L Dequeker-W. Zuidema, La eucaristia según san Pablo: Concilium 40 (1968) 561-571. J. Blenklinsopp adverte que o tema e a linguagem do Êxodo são aplicados no Novo Testamento à vida e morte de Jesus: op. cit. 406.

27 Cf. J. M. R. Tillard, L’eucharistie et la fraternité: NRT (1969) 113-135.

28 C. H. Dodd considera que este capítulo “corresponde ao relato dos sinóticos sobre a última ceia”, e explica sua omissão em João pelo desejo de “não divulgar o ‘mistério’ cristão”: The interpretation of the Fourth Gospel. Cambridge 1960, 393.

29 J. M. R. Tillard, L’eucharistie et la fraternité, 121. Rafael Ortega mostrou com sólido apoio bíblico o tríplice significado do sacrifício da cruz: sacrifício pascal, libertação de toda servidão (Êx 12; 1Cor 5,6-8; 1Pdr 1,18), sacrifício de aliança que restaura o velho pacto de união entre Deus e seu povo (Êx 19,5; 24,1; Gál 4,4; 1Cor 11,25; Hbr 9,15-28) e sacrifício de expiação, de eliminação do pecado (Lev 16; 1Jo 2,1-2; Rom 3,23-25), em Biblia y penitencia: Cuestiones liturgicas (Medellín) 8 (1969) 83-92. Cf. também S. Lyonnet, De peccato et redemptione II. Roma 1960, 121-126.

30 Esta é uma das poucas palavras de Jesus que Bultmann considera autênticas: cf. Thelologie des Neuen Testaments, 16s.

31 Encontra-se este texto na declaração tornada pública por Camilo Torres em 24 de junho de 1965, ao pedir, e obter, ser liberado das “obrigações clericais”. Camilo encontrava nessa ideia 0 fundamento de sua patética decisão de sacrificar “um dos direitos que prezo mais profundamente: poder celebrar o culto externo da Igreja como sacerdote, a fim de criar as condições que tornem mais autêntico esse culto”: Camilo Torres, Cristianismo y revolución, México, 1970, 376. O gesto de Camilo fez perceber implacavelmente uma realidade oculta sob uma montanha de palavras e boas intenções. E contribuiu também para fazer nascer a esperança de criar uma Igreja que não levante esse tipo de dilemas aos melhores dentre seus membros.

32 E. Schillebeeckx, Dio è “colui che verrà”, 150. Luís Alonso Schokel lembrou a propósito o laço existente entre a obra redentora de Cristo e a solidariedade entre os homens: La rédemption oeuvre de solidarité, NRT (1971), 449-472.

 

 

“Reconhecer a existência da luta de classes não depende de nossas opções éticas ou religiosas. Há os que tentam considerá-la algo artificial, estranho às normas que regem nossa sociedade, contrário ao espírito da “civilização ocidental e cristã”, obra de agitadores e oprimidos. Apesar porém dos que assim pensam, há algo de certo nesse enfoque: a opressão e a espoliação e, por conseguinte, a experiência da luta de classes, são sofridas e percebidas, primeiramente, por aqueles que foram marginalizados por essa civilização e carecem de voz própria na Igreja. Mas tomar consciência da luta de classes a partir da periferia não quer dizer que ela não esteja no centro da sociedade: os desfavorecidos existem por causa dos que orientam e dividem essa sociedade. A luta de classes não é produto de mentes febricitantes senão para quem não conhece ou não quer conhecer o que produz o sistema. Como afirmavam os bispos franceses há alguns anos: “A luta de classes é, primeiro, um fato que ninguém pode negar” e continuavam: “colocando-nos no nível dos responsáveis pela luta de classes, os primeiros responsáveis são aqueles que mantêm voluntariamente a classe operária em situação injusta, que se opõem à sua promoção coletiva e combatem os esforços que ela faz por libertar-se”.49

Aquele que fala de luta de classes não a “propugna” — como se ouve dizer — no sentido de criá-la de início por um ato de (má) vontade; o que faz é provar um fato, e no máximo contribuir para que dele se tome consciência. E nada existe de mais palpável do que um fato. Ignorá-lo é enganar e enganar-se; é ainda privar-se dos meios necessários para suprimir verdadeira e radicalmente essa situação: ir até a uma sociedade sem classes. Paradoxalmente o que os grupos dominantes chamam “propugnar” a luta de classes é, na realidade, a expressão da vontade de abolir as causas que a desencadeiam.51 Aboli-las, não dissimulá-las. Suprimir a apropriação por uns poucos da mais-valia criada pelo trabalho dos demais, e não fazer apelos líricos à harmonia social. Construir uma sociedade socialista, mais justa, livre e humana, e não uma sociedade de conciliação e de igualdade aparente e falaz. “Propugnar” a luta de classes é, pois, rejeitar a existência de opressores e oprimidos, mas rejeição sem fraudes nem covardias: reconhecer que o fato aí está, a dividir profundamente os homens, para poder atacá-lo na raiz e criar assim as condições de uma autêntica comunidade humana. Criar uma sociedade justa passa hoje necessariamente pela participação consciente e ativa na luta de classes que se trava ante o nosso olhar.

Em segundo lugar, é necessário ver com lucidez que negar o fato da luta de classes é, na realidade, tomar partido em favor dos setores dominantes. Impossível a neutralidade nesta matéria. O problema não é admitir ou negar um fato que se impõe a nós, mas saber de que lado se está. A pretensa “doutrina interclassista — escreve J. Girardi em conhecido artigo sobre a questão — é, de fato, muito classista: reflete a opinião da classe dominante”.52 Quando a Igreja rejeita a luta de classes está procedendo objetivamente como uma peça do sistema imperante: este, com efeito, pretende perpetuar, negando sua existência, a situação de divisão social em que se baseiam os privilégios de seus usufrutuários. É uma opção classista, enganosamente encoberta com uma pretensa igualdade perante a lei. É longa a história dessa rejeição,53 e suas razões múltiplas e complexas.54 Mas a consciência cada vez mais aguda que tem o oprimido pela situação em que se encontra e a participação crescente dos cristãos na luta social estão reformulando as coisas na Igreja em termos novos, mais reais e autênticos.

A luta de classes é um fato e não há lugar para neutralidade nesta matéria; essas duas observações delimitam os problemas assinalados, impedindo perder-nos em soluções fáceis e dando um contexto concreto a nossa busca. Mais exatamente: as interrogações levantadas a propósito do caráter universal do amor e da unidade da Igreja são reais precisamente porque a luta de classes se nos impõe como um fato, e porque é impossível não tomar partido nela. (...)

A universalidade do amor cristão é uma abstração se não se faz história concreta, processo, conflito, superação da particularidade. Amar a todos os homens não quer dizer evitar defrontações, não é manter uma harmonia fictícia. Amor universal é aquele que em solidariedade com os oprimidos intenta libertar também os opressores de seu próprio poder, de sua ambição e egoísmo:

O amor para com os que vivem em condição de pecado objetivo exige de nós que lutemos por libertá-los dele. A libertação dos pobres e a dos ricos realiza-se simultaneamente.55

Ama-se aos opressores libertando-os de sua própria e desumana situação, libertando-os de si próprios. A isto só se chega optando resolutamente pelos oprimidos, ou seja, combatendo contra a classe opressora.56 Combater real e eficazmente, não odiar; nisso está a retidão, nova como o evangelho: amar os inimigos. Nunca se pensou que isto fosse fácil, porém enquanto se tratava de praticar certa doçura de caráter, pregava-se sem dificuldade. Não se seguia o conselho, mas ele era ouvido sem inquietação. Hoje, no contexto da luta de classes, amar os inimigos supõe reconhecer e aceitar terem-se inimigos de classe e ser preciso combatê-los. Não se trata de não ter inimigos, e sim de não excluí-los de nosso amor. Mas o amor não suprime a qualidade de inimigos que possuem os opressores, nem a radicalidade do combate contra eles. O “amor aos inimigos” longe de suavizar as tensões, termina por questionar o sistema e converte-se em fórmula subversiva.

O amor universal só abandona, pois, o terreno da abstração e torna-se concreto e efetivo, encarnando-se na luta pela libertação dos oprimidos. Trata-se de amar todos os homens, não de modo geral e vago, mas no homem espoliado, no homem concreto que luta por viver humanamente. Nosso amor por ele não o “abstrai”, não o isola da classe social a que pertence, para “nos compadecermos” de sua situação; pelo contrário, nosso amor não é autêntico se não toma o caminho da solidariedade de classe e da luta social. Participar na luta de classes não só não se opõe ao amor universal, mas esse compromisso é hoje a mediação necessária e inesquinável de sua concreção: a passagem a uma sociedade sem classes, sem proprietários e espoliados, sem opressores nem oprimidos.57 Para um pensamento dialético a reconciliação é superação de um conflito. A comunhão da alegria pascal passa pelo confronto e pela cruz.”

50 Carta da Comissão episcopal do mundo operário, de outubro de 1908, citada em R. Potiere, Lutie de classes: MO 271 (1970) 9. Cf. também Hacia una definición, documento de Iglesia joven (Santiago do Chile) em NADOC n. 9, novembro 1968.

51·Num texto célebre assinala Marx com precisão qual foi sua contribuição à luta de classes: não a descoberta de sua existência, mas a análise de suas causas e a indicação do caminho para uma sociedade sem classes. “No que me diz respeito — escreve — não me pertence o mérito de haver descoberto a existência de classes na sociedade moderna, nem a luta entre eles. Muito antes de mim, os historiadores burgueses haviam descrito o desenvolvimento histórico dessa luta de classes, e os economistas burgueses estudado sua anatomia econômica. O que fiz de novo foi: 1. demonstrar que a existência de classes só se liga a etapas do desenvolvimento histórico determinado pela produção; 2. que a luta de classes leva necessariamente à ditadura do proletariado; 3. que esta ditadura constitui apenas a transição para a abolição de todas as classes e a uma sociedade sem classes”: carta a J. Weydemayer, de 5 de março de 1852, em K. Marx-F. Engels, Études philosophiques. Paris 1961, 151 (grifado no texto). A luta de classes é inerente à organização classista da sociedade. O objetivo de Marx é abolir o que dá origem à própria existência das classes sociais. Mas não se superam as causas da luta de classes se antes não se toma consciência dessa luta e de suas exigências no processo de construção de uma nova sociedade.

52 Cristianismo, pastoral y lucha de clases, na obra coletiva La vertiente política de la pastoral. Quito 1970, 94.

53 Cf. L. Pelissier, L’église et la lutte des classes: FM 40-41 (1966) 99-126.

54 J. Girardi, op. cit., 93-95.

55 J. Girardi, Amor cristiano y lucha de clases. Sígueme, Salamanca 1971, 57.

56 “Cumpre amar a todos, mas não é possível amá-los a todos do mesmo modo: amam-se os oprimidos libertando-os, amam-se os opressores combatendo-os. Ama-se a uns libertando-os de sua miséria, e aos outros de seu pecado”: J. Girardi, Cristianismo, pastoral y lucha de clases. 98.

57 Os cristãos devemos estar comprometidos pessoal e coletivamente... com a construção de nova sociedade. Esta nova sociedade deve ser uma sociedade sem classes, em que haja propriedade coletiva dos meios de produção”: Cristianos en um mundo de injusticia. Conclusiones del Primer Encuentro por una iglesia solidaria”, em Expreso (Lima) 7 de maio de 1971.

 

 

“Optar pelo oprimido é optar contra o opressor.”

 

 

“O “pobre” não existe como um dado fatal, sua existência não é neutra politicamente, nem inocente eticamente. O pobre é o subproduto do sistema em que vivemos e de que somos responsáveis. É o marginalizado de nosso mundo social e cultural. Mais: pobre é o oprimido, o explorado, o proletário, o despojado do fruto de seu trabalho, o espoliado de seu ser de homem. Por isso é que a pobreza do pobre não é um chamado para uma ação generosa que a alivie, e sim uma exigência de construção de uma diferente ordem social.

É mister, entretanto, irmos logo ao fundo da questão. A opção pelo pobre num compromisso libertador levou à compreensão de que não se trata de isolar o oprimido da classe social a que pertence, pois seria “compadecermo-nos de sua situação”. O pobre, o oprimido, é membro de uma classe social explorada, sutil ou abertamente, por outra classe social. Classe social explorada que tem no proletariado seu mais beligerante e lúcido setor. Optar pelo pobre é optar por uma classe social contra outra. Tomar consciência do fato do confronto entre classes sociais e tomar partido pelos desapossados. Optar pelo pobre é entrar no mundo da classe social explorada, de seus valores, de suas categorias culturais. É fazer-se solidário com seus interesses e com suas lutas.”

 

 

“Por muito tempo apareceu a política como algo setorial. Era um setor da existência humana, ao lado do familiar, do profissional, do recreativo. A atividade política era exercida portanto nos momentos livres deixados pelas outras ocupações. Além disso, pensava-se que o político era o próprio de um setor da humanidade chamada especialmente a essa responsabilidade. Hoje, porém, os que optaram por um compromisso libertador experimentam o político como uma dimensão que abrange e condiciona exigentemente toda a tarefa humana. É o condicionamento global e o campo coletivo da realização humana. Só partindo desta percepção da globalidade do político numa perspectiva revolucionária se pode situar devidamente um sentido mais restrito do termo que define acertadamente o político como orientação para o poder político. Toda realidade humana tem pois uma dimensão política. Falar de dimensão política não só não exclui, antes tem em conta a multidimensionalidade do homem, mas rejeita todo setorialismo socialmente infecundo, ao desviar das condições concretas em que se desenvolve a existência humana. No contexto do político, o homem surge como um ser livre e responsável, como homem em relação com a natureza, em relação com outros homens, como alguém que toma as rédeas de seu destino transformando a história.

Uma formação insistentemente axiomática e a-histórica fez que os cristãos fossem em geral pouco sensíveis e mesmo hostis às tentativas de racionalidade científica que abrem caminho no campo do político. Aqueles, porém, que se acham comprometidos na luta por uma sociedade diferente sentem a urgência de conhecer com o máximo rigor possível os mecanismos da sociedade capitalista, centrada no lucro privado e na propriedade privada para o lucro. Só isso dará eficácia à sua ação. Os vagos e líricos apelos à defesa da dignidade da pessoa humana, que não levem em conta as causas profundas da atual ordem social e as condições concretas da construção de uma sociedade justa, são inteiramente estéreis e, afinal, sutis maneiras de enganar e enganar-se. Racionalidade científica incipiente mas real, exigente porém necessária. Graças a sua introdução no campo da história e da sociedade, começou o homem contemporâneo a ser cônscio de seus condicionamentos econômicos e socioculturais e a perceber as causas profundas da situação de miséria e esbulho em que vivem os pobres dos países pobres. Muito custou e ainda custa aos cristãos entrarem nesta mentalidade. Graças a ela, entretanto, estão saindo de meias verdades como a que tanto corre em certos ambientes cristãos: de que serve mudar as estruturas sociais se não se muda o coração do homem? Meia verdade, porque ignora que o “coração” do homem também se transforma transformando as estruturas sociais e culturais. Vale dizer que entre esses dois aspectos há uma dependência e exigências recíprocas, baseadas numa unidade radical. Não é menos mecanicista” quem pensa que uma transformação estrutural trará automaticamente homens diferentes do que quem acredita que uma mudança “pessoal” assegure transformações sociais. Todo mecanismo é irreal e ingênuo.

O que, no entanto, talvez mais choque o cristão que busca colocar-se franca e decididamente do lado do pobre e do explorado e comprometer-se com as lutas do proletariado é o caráter conflitual que adquire nesse contexto sua práxis social. O terreno do político, tal como hoje se apresenta, implica confrontações entre grupos humanos, entre classes sociais com interesses opostos, confrontações em que aparece a violência em graus diversos. Ser “artífice da paz” não só não dispensa de estar presente em tais conflitos, senão ainda exige tomar parte neles, se se quiser superá-los desde a raiz; exige compreender que não existe paz sem justiça. Exigência dura e inquietante para os que preferem não ver essas situações conflituosas ou se contentam com paliativos. Dura também para os que, com a maior boa vontade, confundem amor universal com harmonia fictícia. Entretanto, o Evangelho manda-nos amar os inimigos; no contexto político da América Latina, isso implica em reconhecer o fato da luta de classes e aceitar ter inimigos de classe a quem urge combater. Não se trata de não ter inimigos, mas de não excluí-los do nosso amor. Pouco acostumados estamos, em ambientes cristãos, a pensar em termos conflituais e históricos. Ao antagônico preferimos uma irênica conciliação, ao provisório uma evasiva eternidade. Devemos aprender a viver e pensar a paz no conflito, o definitivo e transistórico no tempo.”

 

 

“Um mundo diferente

A opção pelo pobre, pelas classes exploradas e pelas lutas do proletariado latino-americano, a percepção do político como uma dimensão que marca toda a existência humana com exigências de racionalidade científica e de modo inevitavelmente conflituoso, a redescoberta da pobreza evangélica como solidariedade com o pobre e protesto contra a natureza, foi-nos levando a uma forma diferente de nos percebermos como homens e como cristãos.

Antes de mais nada, estamos diante de um questionamento radical da ordem social vigente. A miséria e injustiça em que se vive na América Latina são por demais profundas para se cogitar de medidas atenuantes. Daí falar-se em revolução social e não em reformas, libertação e não desenvolvimento, socialismo, não modernização do sistema atual. Aos “realistas” parecerão românticas e utópicas semelhantes afirmações. Compreende-se. Elas pertencem a uma racionalidade que lhes é estranha. A racionalidade de um projeto histórico que anuncia uma sociedade diferente, construída em função do pobre e do oprimido, e que denuncia a outra, construída em proveito de alguns poucos. Projeto em elaboração, baseado em estudos do maior rigor científico possível, que parte da exploração das grandes maiorias da América Latina pelas classes dominantes e da percepção de que se trata de um continente dependente — econômica, social, política e culturalmente — de centros de poder que estão fora dele, que estão nos países opulentos. Dependência externa e dominação interna marcam as estruturas sociais da América Latina. Por isso, unicamente uma análise de classe permitirá ver o que está realmente em jogo na oposição entre países oprimidos e povos dominantes. Só ter em conta o confronto entre nações dissimula e, finalmente, suaviza a verdadeira situação. A teoria da dependência erraria seu caminho e provocaria engano se não situasse sua análise no âmbito da luta de classes que se desenrola em nível mundial. Tudo isto permitirá compreender a formação social latino-americana como um capitalismo dependente, e prever a estratégia necessária para sair de tal situação.

Só a superação de uma sociedade dividida em classes, só um poder político a serviço das grandes maiorias populares, só a eliminação da apropriação privada da riqueza criada pelo trabalho humano, pode dar-nos as bases de uma sociedade mais justa. Por isso é que a elaboração do projeto histórico de uma nova sociedade toma, cada vez mais, na América Latina, o rumo do socialismo. Construção do socialismo que não desconhece aa deficiências de muitas de suas atuais realizações históricas, que procura sair de esquemas e frases feitas e busca criadoramente caminhos próprios.

Tal projeto, porém, de uma sociedade diferente encerra também a criação de um homem novo cada vez mais livre de toda servidão que o impeça de ser agente do próprio destino na história. Isso leva a questionar as ideologias dominantes — nas quais se encontram elementos religiosos — que hoje modelam o homem em nossa sociedade. Contudo só será autêntica a construção de tal sociedade diferente e de um homem novo, se for assumida pelo próprio povo oprimido, e para tanto deverá partir dos próprios valores desse povo. A partir dele opera-se o questionamento radical da atual ordem social e a abolição da cultura opressora. Somente assim se pode levar a bom termo uma verdadeira revolução social e cultural.

Não perceberíamos talvez o alcance deste questionamento radical se não tomássemos consciência da mudança que se verificou no modo como o homem conhece, na forma como se aproxima da verdade e a relaciona com sua prática história. Desde o nascimento da ciência experimental, foi o homem adquirindo mais ativo papel no conhecimento. Já não se limita a admirar a natureza e a classificar o que observa, porém a interpela e provoca, descobrindo-lhe as leis, dominando-a pela técnica. O surgimento das ciências sociais e psicológicas ampliou, de certo modo, esse tipo de conhecimentos a campos até o momento reservado a considerações de tipo filosófico. Estas conservam seu sentido em determinado nível, mas doravante terão que conviver com os esforços de fazer ciências humanas. Ciências ainda em seus primeiros passos, em busca de caminho, que nos estão abrindo a novas dimensões do homem, mas não podem ser assimiladas, pura e simplesmente, às ciências naturais. Tudo isso fez descobrir algo que hoje se perfila como traço fundamental da consciência contemporânea: o conhecimento ligado à transformação. Só se conhece a história — que é indisssoluvelmente natureza e sociedade — transformando-a e transformando-se a si mesmo. Já o dizia Vico: o homem não conhece bem senão aquilo que faz. A verdade para o homem contemporâneo veri-fica-se, faz-se. Conhecimento da realidade, que não leve a uma modificação desta, é interpretação não verificada, não feita verdade. Em suas penetrantes e quase escultóricas “Teses sobre Feuerbach”, assenta Marx nessa ótica as bases epistemológicas de sua contribuição para o conhecimento científico da história. A realidade histórica deixa assim de ser o campo de aplicação de verdades abstratas e de interpretações idealistas, para ser antes o lugar privilegiado donde se parte e ao qual se torna no processo do conhecimento. A práxis transformadora da história não é o momento da encarnação degradada de teoria límpida e bem pensada, mas a fonte de um conhecimento autêntico e a prova decisiva de seu valor. É o lugar em que o homem recria o seu mundo e forja-se a si próprio, conhece a realidade em que se acha e a si mesmo se conhece.”

 

 

Nova inteligência da fé

A palavra do Senhor aceita na fé será vivida e pensada hoje por um homem que se move nestas categorias culturais, como no passado o foi por homens moldados pelo pensamento grego. As resistências e acusações de distorção da fé dos que se aferram a velhas formas de refletir lembram as que se opuseram ao uso da filosofia aristotélica em teologia. Como elas, porém, em que pese os alarmas infundados e as condenações episódicas que possam provocar presentemente, não têm futuro. O futuro está em mãos de uma fé, em comunhão eclesial, que não teme os avanços do pensamento e a prática social do homem, que se deixa interrogar por eles mas também os interpela, que se enriquece mas que não se submete acriticamente, que conhece os próprios condicionamentos, mas também as próprias exigências. Tarefa complexa, que apela para múltiplas especialidades, para um sério conhecimento das diferentes facetas do pensamento contemporâneo, filosóficas e científicas, sem as quais não é possível elaborar hoje um estudo teológico. Tarefa de inteligência da fé que só pode ser efetuada na base da práxis histórica, na luta dos homens por viver como homens, animada pela esperança naquele que, revelando-se, revela ao homem toda a plenitude nele existente. Animada pela esperança no Senhor da História, em quem tudo foi feito e tudo foi salvo.

O compromisso no processo de libertação introduz o cristão num mundo que lhe era pouco familiar e fá-lo dar um salto qualitativo: questionamento radical de uma ordem social e de sua ideologia, rompimento com velhos modos de conhecer. Tudo isso faz que seja pouco significativa para ele uma reflexão teológica feita em outro contexto cultural. Transmite-lhe ela a consciência que precedentes gerações cristãs tomaram de sua fé, suas expressões são pontos de referência para ele, mas não o tiram de sua orfandade teológica porque não lhe falam a linguagem forte, clara e incisiva, correspondente à experiência humana e cristã que está vivendo.

Ao mesmo tempo, porém, nascem dessas mesmas experiências os germes de novo tipo de inteligência da fé. Elas ensinam a unir, conhecer e transformar, teoria e prática. Impõe-se uma releitura do Evangelho, na qual se descobrirá algo tradicional, autenticamente tradicional e talvez por isso esquecido por “tradições” mais recentes: a verdade evangélica se faz. Importa praticar a verdade, diz-nos S. João, pois essa verdade é Amor. Viver o amor é afirmar Deus. Crer em Deus não é limitar-se a sustentar-lhe a existência, crer em Deus é compreender a vida com Ele e com todos os homens. Ter fé é sair de si e dar-se a Deus e aos outros. A fé age pela caridade, esclarece-nos S. Paulo.

Não se trata de uma mecânica correspondência com a insistência contemporânea em estabelecer os laços entre conhecer e transformar e em viver uma verdade que se verifica. Mas o mundo cultural em que vivemos permite descobrir um ponto de partida e um horizonte em que se inscreve uma reflexão teológica que deverá empreender novo caminho, apelando também, necessariamente, para suas próprias fontes.

A fé aparece-nos destarte cada vez mais como práxis libertadora. A fé aceitação do amor e resposta ao amor do Pai vai à raiz última da injustiça social: o pecado, ruptura de amizade com Deus e de fraternidade entre os homens. Não fará isso, porém, esquivando-se às mediações históricas, evitando as análises sociopolíticas dessas realidades históricas. Dá-se o pecado na negação do homem como irmão, em estruturas opressoras criadas em proveito de uns poucos, na espoliação de povos, raças, culturas e classes sociais. O pecado é a alienação fundamental que, por isso mesmo, não pode ser alcançada em si mesma, mas ocorre em situações históricas concretas, em alienações particulares. Impossível compreender um sem o outro. O pecado exige radical libertação, mas esta inclui necessariamente uma libertação de ordem política. Só participando beligerante e eficazmente no processo histórico de libertação, será possível apontar com o dedo a alienação fundamental presente em toda alienação parcial. Essa libertação radical é o dom trazido por Cristo. Por sua morte e ressurreição redime o homem do pecado e de todas as suas consequências. “É o mesmo Deus — diz Medellín — quem, na plenitude dos tempos, envia seu Filho para que, feito carne, venha a libertar todos os homens de todas as escravidões a que os sujeita o pecado, a ignorância, a fome, a miséria e a opressão, numa palavra, a injustiça e o ódio que têm sua origem no egoísmo humano”.

Como já o dissemos e repetimos, a ação política tem suas exigências e suas leis próprias. Recordar o sentido profundo que ela tem para um cristão é muito diferente do que dar um salto para trás, para etapas em que o homem não estava em condições de conhecer os mecanismos internos de uma sociedade opressora e em que a ação política não atingira a idade adulta. Aceitar o dom da filiação fazendo-se irmãos de todos os homens não deixará de ser uma frase, útil só para a autossatisfação com a nobreza do ideal, se não for vivida diária e conflitivamente na história. Se não se traduzir em real identificação com os interesses dos homens que sofrem opressão de outros homens, com as lutas das classes exploradas. Se não enriquecer, de modo criador e crítico, e internamente, os processos políticos tendentes a se fechar sobre si mesmos e a mutilar autênticas dimensões do homem. Se não usar os instrumentos, proporcionados pelas ciências humanas, para conhecer as realidades sociais negadoras da justiça e da fraternidade que se buscam, e tornar assim eficaz sua ação.

Em tal contexto, será a teologia uma reflexão crítica sobre a práxis histórica em confrontação com a Palavra do Senhor vivida e aceita na fé, fé que nos vem através de múltiplas e não raro ambíguas mediações históricas, mas que refazemos dia a dia. Será uma reflexão em e sobre a fé como práxis libertadora. Inteligência da fé que se faz a partir de uma opção. A partir da real e efetiva solidariedade com as classes exploradas latino-americanas e a partir de seu mundo. Reflexão que parte de um compromisso por criar uma sociedade justa e fraterna e que deve contribuir para que seja esse compromisso mais radical e pleno. Discurso teológico que se faz verdade, que se verifica na inserção real e fecunda no processo de libertação.

Refletir sobre a fé como práxis libertadora é refletir sobre uma verdade que se faz e não apenas se afirma. Em última instância, a exegese da Palavra, para a qual quer contribuir a teologia, dá-se nos fatos. Isso, e não simples afirmações, purgará a inteligência da fé de toda eiva de idealismo.”

 

 

“O dom da filiação vive-se na história. Fazendo dos homens irmãos, acolhemos esse dom de fato, não de palavra. Lutar contra toda injustiça, esbulho e exploração, comprometer-se na criação de uma sociedade mais fraterna e humana é viver e testemunhar o amor do Pai. O anúncio de um Deus que ama igualmente todos os homens deve tomar corpo na história, deve tornar-se história. Proclamar esse amor numa sociedade profundamente desigual, marcada pela injustiça e pela exploração de uma classe social por outra, fará desse “tornar-se história” algo que provoca e gera conflito. Por isso é que dizíamos que a dimensão política está no próprio dinamismo de uma Palavra que procura encarnar-se na história. As exigências evangélicas são incompatíveis com a situação social vivida na América Latina, com as formas em que se dão as relações entre os homens, com as estruturas em que se travam essas relações. Não se trata do repúdio a tal ou qual injustiça individual, mas da exigência de uma ordem social diversa. Só um certo grau de maturidade política permitirá verdadeira compreensão da dimensão política do Evangelho e impedirá sua redução a um assistencialismo, por sofisticado que seja, ou a simples tarefa de “promoção humana”.

O anúncio autêntico do amor de Deus, da fraternidade e igualdade radical de todos os homens, ao homem explorado de nosso continente, fá-lo-á perceber que sua situação é contrária ao Evangelho, o que o ajudará a tomar consciência da profunda injustiça de tal estado de coisas. As classes oprimidas não adquirirão clara consciência política a não ser na participação direta nas lutas populares; na globalidade, porém, e na complexidade do processo político que deve romper com uma ordem social opressora e levar a uma sociedade sem classes, a luta ideológica tem um lugar importante. Pois na América Latina dá-se ao “cristão” um papel dentro da ideologia dominante que dá coesão e firmeza a uma sociedade capitalista dividida em classes. É frequente, com efeito, apelarem os setores conservadores para noções cristãs, a fim de justificar a ordem social que serve a seus interesses e manter seus privilégios. Esta é uma das grandes mentiras de nossa sociedade latino-americana. Por ela é que a comunicação da mensagem, na parte referente ao outro, ao pobre, ao oprimido, terá função desmascaradora de toda intenção de fazer jogo ideológico com o Evangelho e justificar uma situação contrária às mais elementares exigências evangélicas.”

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