sábado, 25 de junho de 2022

Introdução ao fascismo (Parte I), de Leandro Konder

Editora: Expressão Popular

ISBN: 978-85-7743-118-2

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 184

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Sinopse: Leandro Konder nos alerta, logo no início de seu livro sobre o tema, que a compreensão do fascismo é um dos “temas quentes” da ciência social e aquele que se aventura na “selva de papel” – composta pelas inúmeras produções que tentaram compreender suas origens e determinações, para defendê-lo, combatê-lo ou utilizá-lo para seus fins próprios, – corre o risco de sofrer graves queimaduras, ou, ainda, de perder-se na selva de palavras que desorientam a percepção e impedem que se veja o horizonte.



Nosso guia na floresta de papel: o artífice da palavra clara (Mauro Luis Iasi)

 

“Contrariando as previsões mais otimistas da breve ordem pós-moderna, que, apregoando o reino da diversidade, imaginava ter superado os nacionalismos chauvinistas, o mundo contemporâneo se afoga em um revigoramento de nacionalismos conservadores e reacionários alimentado pelos renovados interesses interimperialistas em disputa, como se demonstrou na Guerra dos Bálcãs e em outros trágicos exemplos. A xenofobia alimenta a direita europeia e é indisfarçável a paternidade fascista do Patriotic Act quando determina a possibilidade de prisão sem acusação formal ou qualquer julgamento de qualquer um que “pareça árabe”.

Presos à incapacidade de compreensão da distinção entre forma e conteúdo, os mais preocupados espíritos atormentados de liberais democratas, ou seus jovens aliados recém-liberais e tardiamente democratas, ficam a espera de uniformes marrons, camisas negras, suásticas e facios, e deixam escapar manifestações muito mais substanciais. O culto pós-moderno do irracionalismo combinado com a ostensiva retomada de um cientificismo neopositivista, o elogio dos sentimentos e instintos contra a razão, o pragmatismo renovado da realpolitik, a negação da teoria pela revigorada ofensiva daqueles que Zizek batizou de “agnósticos da new age”, e, principalmente, o brutal anticomunismo, o cínico preconceito de classe contra os trabalhadores e sua mais sofisticada e sutil, mas nem por isso menos brutal, expressão acadêmica na tese do “fim do mundo do trabalho” e a suposta impropriedade do conceito de classe social como instrumento explicativo da sociedade contemporânea, nos alertam que os cadáveres enterrados na Itália e Alemanha tiveram tempo de liberar sua alma.”

 

 

“Quem viu o presidente Bush, esse produto exemplar de uma época de decadência, no Senado estadunidense quando da declaração da guerra contra o terror que preparou a ofensiva no Iraque, pode não ter notado ali ao fundo, incrustado na parede daquela respeitável casa de leis que Arendt considerava o paradigma da democracia moderna, um indisfarçável fascio, símbolo inconteste de impérios e do fascismo. Pode ser não mais que uma coincidência, nem tudo que tem um feixe de varas amarrado em torno de um machado é fascista, assim como nem tudo que ostenta uma foice e martelo é comunista, mas as coincidências nunca são totalmente casuais.

O que substancialmente Konder nos alerta é que o fundamento do fascismo como expressão política da direita mais conservadora deve ser encontrado em suas determinações de classe. No entanto, aqui também, as coisas não são tão simples. Parece ser evidente, e para mim esta é uma constatação de grande importância, que o fascismo inicialmente se apoia na pequena burguesia que, como sempre, ambiciona estar acima das classes fundamentais em luta e é a legítima proprietária do mito da nação. Mas a pequena burguesia não poderia explicar a dimensão do fenômeno fascista na sua expressão clássica e em sua sobrevida. O empreendimento da guerra, a combinação eficiente de métodos de propaganda e agitação política e a rápida ascensão do nazifascismo só podem ser compreendidos se associarmos o método e fundamento político da pequena burguesia à adesão do grande capital monopolista, financeiro e imperialista.3

Boa parte das análises conservadoras sobre o fascismo posteriores à Segunda Guerra, procura distanciar-se da constatação, por si mesma evidente, a respeito do comprometimento dos grandes empresários e do capital monopolistas com o projeto fascista,4 seja identificando o nazifascismo com a alternativa socialista e comunista sob a categoria de “totalitarismo” como dissemos, seja isolando o fenômeno como expressão de desvios de personalidade de líderes de massa, seja condenando o fenômeno aos arquivos de história.

Para nós, o essencial, seguindo as pistas da introdução de Konder, é o caráter de classe do projeto fascista, sua intrínseca relação com a fase monopolista e imperialista e sua inseparável vinculação com o irracionalismo pragmático. Por isso, não nos espanta as novas formas que escondem velhos espíritos que se acreditavam exorcizados. Adorno afirmou que os Estados Unidos entraram na guerra não para derrotar o nazismo, mas para aprender com ele. Weber, deprimido pela derrota Alemã naquela que ele havia considerado “apesar de tudo, uma grande e maravilhosa guerra” (referia-se à Primeira Guerra Mundial), vai aos Estados Unidos, mas quando olha para a jovem democracia americana sentencia de forma pessimista, como era de seu feitio, que o que via era a escolha entre uma democracia fundada em partidos burocráticos sem liderança ou líderes carismáticos acima de partidos. De uma forma ou de outra, Weber arremata concluindo que estaríamos diante de uma “manipulação emocional das massas para fins absolutamente racionais”, antecipando, sem o saber, o que viria a ocorrer em sua própria terra.

O que Weber não podia saber, e que Konder nos revela, é o que há de comum na base material e nas expressões ideológicas dessas situações aparentemente tão distintas. A forma capitalista desenvolvida em monopólios que dão o salto ao imperialismo e que necessitam do Estado como síntese abstrata possível da sociabilidade incontrolável do capital.

Hábil operador da bússola dialética, Konder não se descuida das mediações. A mesma base econômica não implica na inevitabilidade da forma política. O capital monopolista/imperialista pode servir-se de outras formas para atingir os mesmos fins. Não nos surpreende que a atual “guerra contra o terror” seja feita em nome da defesa da “democracia”, que ditadores como Franco, Salazar, Pinochet, assim como os ditadores tupiniquins, tenham sido acolhidos com um caloroso abraço no campo do “mundo livre” e democrático contra o perigo do comunismo, enquanto Fidel é sempre incluído na lista dos “ditadores”.

Capital monopolista em crise, imperialismo, ofensiva anticomunista, criminalização de movimentos sociais, decadência cultural, hegemonia da política pequeno-burguesa em detrimento da política revolucionária do proletariado, irracionalismo, neopositivismo, misticismo, chauvinismos nacionalistas acompanhados ou não de racismo... Não se enganem. Só posso alertar, como certa feita o fez Marx, que “esta fábula trata de ti”!”

3 Identificando corretamente a característica pequeno-burguesa na concepção fundante do fascismo e a importância do apoio efetivo do grande capital, existe na análise de Konder, ao meu ver, uma certa relativização exagerada do papel que desempenha o apoio, passivo ou não, de setores consideráveis das massas operárias e da classe trabalhadora em geral. Konder diz literalmente que “A classe operária foi, evidentemente, menos envolvida pela demagogia ‘nacionalisteira’ dos fascistas do que a pequena burguesia e as chamadas camadas médias da população. Mas mesmo alguns trabalhadores chegaram a se entusiasmar com a ideia de pertencerem à ‘comunidade popular’ (Volksgemeinschaft) dos alemães, à superior ‘raça ariana’; ou então – na Itália de Mussolini – chegaram a se entusiasmar com a ideia de serem os herdeiros do antigo império romano, de César e de Augusto, e de ajudarem a relançar as bases da grandeza italiana no mundo, partindo do conceito religioso da ‘italianidade’.” Creio que o fascismo e o nazismo lograram conquistar um apoio na classe trabalhadora, o que exige por nossa parte uma reflexão bastante séria, até porque o apoio do grande capital aos representantes da pequena burguesia fascista se explica, em parte, por sua capacidade de orientar os trabalhadores e dirigi-los para um projeto que não o socialismo revolucionário. Acredito que algumas pistas contidas nas reflexões de Reich em seu Psicologia de massas do fascismo, que Konder trabalha ligeiramente, poderiam aqui ser muito úteis.

4 Hoje sabemos com grande certeza da íntima relação entre monopólios – não só alemães, como a Volkswagen, mas também estadunidenses como a IBM – e o nazismo.

 

Fim do prefácio de Mauro Iasi

 

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“Em sua essência, a ideologia da direita representa sempre a existência (e as exigências) de forças sociais empenhadas em conservar determinados privilégios, isto é, em conservar um determinado sistema socioeconômico que garante o estatuto de propriedade de que tais forças são beneficiárias. Daí o conservadorismo intrínseco da direita.

O conteúdo conservador de uma concepção não implica que ela se exteriorize necessariamente numa política de resistência passiva à mudança. Os conservadores sabem que, para uma política ser eficaz, ela precisa ser levada à prática através de iniciativas concretas, manobras, concessões, acordos, golpes de audácia, formas de arregimentação das forças disponíveis que transcendem da mera atitude doutrinária. A efetiva conservação dos privilégios depende menos de esforços lógicos do que de energia material repressiva: para o responsável pela prisão é mais importante que os guardas sejam de confiança e as portas das celas sejam sólidas do que persuadir os presos da excelência do sistema penal vigente. (...)

O próprio sistema em cuja defesa as classes dominantes se acumpliciam – um sistema que gravita em torno da competição obsessiva pelo lucro privado – impede que as forças sociais em que consiste a direita sejam profundamente solidárias: elas só se unem para os objetivos limitados da luta contra o inimigo comum.”

 

 

“Mas o empenho político pragmático e radical do fascismo na luta contra a revolução exclui um relativismo absoluto. O relativismo é incapaz de armar os homens para o combate, ele impede a formação de bases suficientemente sólidas para as convicções apaixonadas que devem mover ao engajamento. Mussolini compreendia que o fascismo se beneficiaria da mais extrema flexibilidade ideológica e definia o fascismo como “um movimento super-relativista” (Opera Omnia, vol. XVII, p. 268), porém não lhe escapava também a necessidade de indicar aos seus liderados uma direção clara e permanente para a canalização das energias deles. “Negar o bolchevismo é necessário”, dizia o Duce, e completava: “mas alguma coisa deve ser afirmada” (Opera Omnia, vol. XIII, p. 29). Era imprescindível um princípio sagrado, posto acima de qualquer discussão, imune a qualquer dúvida, capaz de funcionar como bússola quando o barco tivesse de manobrar em meio à tempestade, um valor supremo que nunca se degradasse e pudesse alimentar incessantemente a chama da fé no coração dos combatentes.

Mussolini percebeu logo no começo da guerra de 1914-1918 qual poderia ser esse valor supremo, esse mito: a pátria. Ele próprio o diz, com sua franqueza habitual: “Criamos o nosso mito. O mito é uma fé, é uma paixão. Não é preciso que seja uma realidade. [...] O nosso mito é a nação, o nosso mito é a grandeza da nação! [Opera Omnia, vol. XVIII, p. 457].”

 

 

“O recurso fascista ao mito da nação só pôde ser eficaz porque, em sua evolução, o capitalismo havia ingressado em sua fase imperialista: nos países capitalistas mais adiantados, o capital bancário havia se fundido com o capital industrial, constituindo o capital financeiro; as condições criadas nesses países exigiram deles a exportação sistemática de capitais; acentuou-se a competição em torno da exploração colonialista; e, no bojo da guerra interimperialista de 1914-1918, difundiram-se em alguns países acentuados ressentimentos nacionais, análogos, à primeira vista, às mágoas dos povos explorados.

Havia, porém, uma diferença essencial entre os ressentimentos nacionais cuja difusão as classes dominantes patrocinaram na Itália e na Alemanha (e, em outros termos, também no Japão) e a autêntica revolta nacionalista dos povos submetidos à exploração colonial. O nacionalismo dos povos efetivamente oprimidos e explorados é tendencialmente democrático e se fortalece através da mobilização popular feita “de baixo para cima”. Ele nasce de um movimento cujas raízes se acham nas condições reais da nação e por isso a assume em toda a sua complexidade, em sua contraditoriedade interna, não precisa renegá-la e substituí-la por um mito. O pretenso “nacionalismo” fascista, ao contrário, por seu conteúdo de classe e pelas condições em que é posto em prática, exige a manipulação das massas populares, limita brutalmente a sua participação ativa na luta política em que são utilizadas, impondo-lhes diretivas substancialmente imutáveis “de cima para baixo”.

Na prática, a demagogia fascista assume frequentemente formas “populistas”, lisonjeando o “povo”, prestando-lhe todas as homenagens e contrapondo-o à “massa” (que representa apenas o peso morto da “quantidade”). Mas esse “populismo” pressupõe um “povo” tão mítico como a “nação”, nos quadros da ideologia fascista. E todas as vezes em que alguma tendência no interior do fascismo se mostrou mais sensível a pressões “plebeias” e procurou aprofundar certos aspectos “populistas”, foi sumariamente cortada pelas forças que mantinham a hegemonia no movimento fascista. Basta lembrar aqui a queda de Gregor Strasser, na Alemanha, o afastamento de Farinacci, na Itália, ou a derrota de Kita Ikki, no Japão.6

O nacionalismo que exprime os sentimentos de um povo explorado pelo capital estrangeiro ou que exprime a revolta de um povo contra imposições de outra nação é um nacionalismo essencialmente defensivo: seus valores podem levá-lo a hostilizar circunstancialmente os estrangeiros exploradores, mas ele não se afirma em contraposição à humanidade em geral e não nega os valores das outras nações. A valorização fascista da nação, ao contrário, exatamente porque é inevitavelmente retórica, precisa ser agressiva, precisa recorrer a uma ênfase feroz para disfarçar o seu vazio e tende a menoscabar os valores das outras nações e da humanidade em geral. Isso se verifica, por exemplo, numa frase do Discurso a las juventudes de España (1935), em que o fascista espanhol Ramiro Ledesma proclama: “Nos importan más los españoles que los hombres” (p. 52). No caso dos fascistas alemães, o fenômeno ainda se mostra com maior clareza, por causa da ideologia racista, que veio a fortalecer imensamente o chauvinismo.7

6 Gregor Strasser, farmacêutico bávaro, tornou-se líder nazista no Norte da Alemanha e exerceu forte influência sobre Goebbels até 1926. No livro Kampf um Deutschland, publicado em 1932, insistia em que os nazistas eram socialistas, “inimigos mortais do sistema econômico capitalista”. Hitler mandou matá-lo em 30 de junho de 1934. Roberto Farinacci, líder do fascismo em Cremona, expoente da “linha dura”, assumiu a secretaria-geral do Partido Nacional Fascista para liquidar a oposição antifascista, mas não aceitou as manobras de composição de Mussolini com a Igreja e foi derrubado do cargo em 30 de março de 1927. (Ressurgiu, mais tarde, a serviço da política de Hitler). Kita Ikki, profundamente impressionado pelo movimento revolucionário chinês de Sun Yat Sen, lançou as bases de um movimento de libertação da raça amarela em luta contra a raça branca, num livro publicado em 1919 (Esboço de programa para a reforma do Japão), onde o fascismo assumia tons anti-imperialistas. Em 1937, tentou um putsch que fracassou e foi fuzilado.

7 As proporções assumidas pelo racismo e pelo antissemitismo no caso do fascismo alemão contribuem para que alguns autores – como Leon Poliakov e Josef Wulf, por exemplo – percam de vista o fato de que na ideologia fascista é o chauvinismo que é essencial, e não o racismo. Pode existir um fascismo que não seja racista, mas não pode existir fascismo que não seja chauvinista.

 

 

“As razões para essa eficácia derivam de um conjunto de circunstâncias. No plano cultural, a direita havia preparado terreno para o avanço do fascismo através de um bombardeio constante e prolongado, que destruía não só os princípios do liberalismo como, sobretudo, as convicções democráticas e a confiança nas massas populares, que poderiam constituir a única base suficientemente sólida para a oposição consequente à expansão das tendências fascistas. Em certos círculos intelectuais, ostentava-se acentuado desprezo pela “plebe”, pelas “moscas da praça pública”, como dizia Nietzsche. E essa difusão de preconceitos aristocráticos influiu sobre algumas forças potencialmente progressistas, levando-as a subestimar na prática a necessidade do trabalho político com as massas (Deficientemente preparadas no plano ideológico, deficientemente organizadas, inseguras e confusas, e submetidas a uma pressão que as desagregava internamente, as massas passaram a encontrar crescentes dificuldades para seguir os caminhos das soluções coletivas; suas energias começaram a se dispersar pelos múltiplos caminhos – socialmente ilusórios – das “soluções” individuais).

Nos planos econômico, social e político, por outro lado, haviam amadurecido tendências destinadas a desempenhar um papel ainda mais importante que o da preparação cultural para a expansão do fascismo. O capitalismo, como sistema, jogara os homens uns contra os outros, numa competição desenfreada onde só uma coisa podia contar: o lucro privado. Desenvolveram-se enormes metrópoles capitalistas, povoadas por multidões de indivíduos solitários, amedrontados, cheios de desconfiança. As condições técnicas da produção industrial aproximavam os seres humanos, socializavam a vida deles, mas as condições privadas, exacerbadamente competitivas, criadas pelo capitalismo para a apropriação da riqueza produzida afastavam-nos uns dos outros. Vítimas da tendência desagregadora que se fortalecia no interior da vida social, reduzidos a uma solidão angustiante, os indivíduos – reconhecendo sua fragilidade – ansiavam por se integrar em comunidades capazes de prolongá-los, de completá-los. O socialismo, apoiado sobre a massa do proletariado industrial, que o próprio capitalismo precisara concentrar em suas fábricas, representava uma perspectiva de atendimento a essa exigência, propondo uma reorganização prática da vida social, uma superação revolucionária das relações capitalistas de produção: por isso, o seu apelo e a sua mensagem encontraram eco nas massas populares em geral, além das fronteiras da classe operária em sentido estrito.

Mas o socialismo, desenvolvendo-se num meio hostil e sob a poderosa pressão de seus inimigos, não podia permanecer imune à influência da ideologia dominante, isto é, à ideologia das classes dominantes: o amadurecimento das contradições da nova fase em que o capitalismo ingressara – a fase imperialista – acabou por se manifestar numa guerra interimperialista (a guerra de 1914-1918) e o movimento socialista, que já estava em crise, acabou por se cindir. E foi precisamente no auge da crise do movimento socialista, quando a cisão tumultuava no espírito de muitos a compreensão do seu sentido, que o fascismo passou a se empenhar a fundo na apresentação do seu mito da nação como algo capaz de satisfazer às exigências de vida comunitária, que os indivíduos, no quadro da sociedade capitalista, são levados a experimentar de maneira intensa porém frequentemente confusa.

A classe operária foi, evidentemente, menos envolvida pela demagogia “nacionalisteira” dos fascistas do que a pequena burguesia e as chamadas camadas médias da população. Mas mesmo alguns trabalhadores chegaram a se entusiasmar com a ideia de pertencerem à “comunidade popular” (Volksgemeinschaft) dos alemães, à superior “raça ariana”; ou então – na Itália de Mussolini – chegaram a se entusiasmar com a ideia de serem os herdeiros do antigo império romano, de César e de Augusto, e de ajudarem a relançar as bases da grandeza italiana no mundo, partindo do conceito religioso da “italianidade” (Mussolini: lançar as bases da grandeza italiana no mundo, a partir do conceito religioso de italianidade”, Opera Omnia, vol. XVI, p. 45).

Na Itália e na Alemanha, países que só realizaram a unificação nacional na segunda metade do século 19, o chauvinismo fascista assumiu tons particularmente histéricos e monstruosos; mas a verdade é que o uso do mito da nação como sucedâneo da autêntica comunidade humana pela qual as pessoas anseiam é uma característica essencial do fascismo e se manifesta em todos os movimentos desse tipo, independentemente dos países em que se realizam e independentemente das formas particulares que assumem. (...)

Aliás, já que mencionamos os aspectos mais “monstruosos” que a demagogia fascista assumiu, ao servir-se do mito da nação, na Itália e na Alemanha, convém alertar os leitores para o erro em que incorrem alguns estudiosos do fascismo hitleriano e do fascismo mussoliniano: eles ficam tão (compreensivelmente) impressionados com a “monstruosidade” do fenômeno que acabam por renunciar à tarefa de esclarecer por que ele chegou a ocorrer. Para esclarecer a eficácia do chauvinismo fascista, convém lembrar que ele conseguiu, às vezes, tirar proveito de críticas bastante bem fundamentadas aos imperialismos rivais. Durante a guerra com os ingleses, em 1940, Hitler lembrou, por exemplo, que a Inglaterra, com 46 milhões de habitantes, havia subjugado 480 milhões de habitantes de outros países e conquistado territórios que, somados, chegavam a ter 40 milhões de km2. E acusou: “A história da Inglaterra é uma sequência de violações, de chantagens, de atos de prepotência, de opressão e de exploração de outros povos” (Discurso de 30/1/1940, em Der Grossdeutsche Freiheitskampf).

 

 

“Outra circunstância que não pode ser esquecida no exame das causas que permitiram os êxitos do fascismo nos anos de 1920 e 1930: o fascismo foi o primeiro movimento conservador que, com seu pragmatismo radical, serviu-se de métodos modernos de propaganda, sistematicamente, explorando as possibilidades que começavam a ser criadas por aquilo que viria a ser chamado de sociedade de massas de consumo dirigido.

No bojo das transformações que lhe eram impostas pelas condições do imperialismo, o sistema capitalista, impelido a expandir-se, deixou de controlar apenas a produção e começou a estender seu controle também ao consumo, promovendo investimentos cada vez mais substanciais na propaganda dos produtos, para influenciar a conduta do consumidor. O fascismo percebeu, agilmente, que esse crescente investimento na propaganda, servindo-se de novas técnicas e de novos meios de comunicação, abria também novas possibilidades para a ação política, e tratou de aproveitá-las. No lugar da imagem dos políticos conservadores tradicionais, com seus fraques e cartolas, muitas vezes apoiando em bengalas seus vultos pálidos e senis, difundiu-se pela Itália inteira a imagem de um Duce cheio de vitalidade, viajando frequentemente de avião e ditando por telefone os artigos diários destinados aos leitores do seu jornal. No lugar da polida oratória parlamentar, impôs-se o discurso enérgico, de agitação,8 pronunciado ao vivo em múltiplos comícios ou então ressoando por todo o país, graças ao uso sistemático (pioneiro) do rádio.

A principal vantagem dessa “imagem”, difundida com eficiência em escala massiva, é que ela disfarçava o conteúdo social conservador do fascismo e fixava a atenção da massa no “estilo novo”, “dinâmico”, nas potencialidades “modernizadoras” do movimento fascista. O movimento foi caracterizado por Goebbels como “tão moderno que o mundo inicialmente não pôde entendê-lo” (Der Faschismus und seine praktischen Ergebnisse, Berlim, 1934. No original: so modern, dass die Welt es nicht begreifen konnte).”

8 Por ter pragmaticamente renunciado a empenhar-se nas formas necessariamente complexas da elaboração teórica, doutrinária, o fascismo, concentrando-se nas formas simples da agitação, levou vantagem sobre as demais forças representativas da direita e explorou com maior proveito que elas as possibilidades oferecidas pelo rádio.

 

 

“Os imponentes investimentos dos fascistas no setor da propaganda nos impõem a pergunta: de onde provinham os fundos que eram investidos? Uma primeira resposta, óbvia, que nos ocorre imediatamente, é a de que o dinheiro só podia ser fornecido por aqueles que o tinham. Mas é preciso tentar esclarecer quais os setores que financiaram o fascismo.

Normalmente, esse esclarecimento apresenta grandes dificuldades. Por sua própria natureza, esse tipo de fornecimento de dinheiro evita deixar-se documentar. Mas os historiadores conseguiram apurar numerosos casos de grande significação. Sabe-se hoje, por exemplo, que, no momento em que Mussolini estava bastante deprimido com a derrota eleitoral que os fascistas italianos sofreram em novembro de 1919, ele recebeu substancial apoio financeiro de alguns grandes industriais, entre os quais Max Bondi, do grupo Ilva, que era o principal grupo siderúrgico da Itália.9 Sabe-se, também, que, durante a crise que se seguiu ao assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti em 10 de junho de 1924, o grande capital poderia ter retirado seu apoio ao Duce e este teria caído, realizando-se a passagem do poder, sem grandes riscos, para uma coalizão de políticos liberais-conservadores recrutados entre os oposicionistas que abandonaram o Parlamento e foram reunir-se sobre uma das colinas de Roma, no Aventino. Mas o grande capital continuou a preferir a ditadura de Mussolini a um governo centrista comandado, digamos, por Giovanni Amendola.

No caso da Alemanha, sabe-se, ainda, de coisas mais sérias. Sabe-se que, em 26 de janeiro de 1932, Hitler fez no Clube da Indústria de Dusseldorf um discurso no qual antecipava seu programa econômico de governo e seu discurso foi calorosamente aplaudido por várias dezenas de grandes industriais e grandes banqueiros. Num artigo publicado no Preussische Zeitung, em 3/1/1937, Emil Kirdorf, proprietário principal da empresa que explorava as minas de Gelsenkirchen, conta como, desde 1927, ele se empenhava em ampliar e aprofundar os contatos entre o Fuehrer e os representantes do capital financeiro. Entre estes, ao lado de Fritz Thyssen (que se orgulhava de financiar Hitler desde 1923), havia muitos que em 1931 já contribuíam com regularidade para o Partido Nacional-Socialista, como Fritz Springorum, da Hoesch (indústria química), Albert Vögler, Ernst Poensgen e Ernst Brandi (das Empresas Unidas do Aço, Vereinigte Stahlwerke), Wilhelm Keppler, Rudolf Bingel (Siemens & Halske), Emil Meyer (Dresdner Bank), Friedrich Heinhardt (Commerz und Privatbank), Kurt von Schroeder (Bankhaus Stein) e diversos outros. Os autos do “Processo contra os principais criminosos de guerra perante o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg (de 14 de novembro de 1945 a 1º de outubro de 1946)” estão cheios de depoimentos e documentos de vários tipos, que comprovam abundantemente a íntima vinculação do nazismo com o capital financeiro. No volume 35, à página 70, catalogado com o título de “Documento D-317”, encontra-se um texto em que o magnata Krupp explica que, quando Hitler desencadeou a guerra, “os empresários alemães empreenderam de todo coração a caminhada pelo novo curso; que eles, com a melhor disposição e conscientemente agradecidos, compreenderam e adotaram como suas as grandes intenções do Fuehrer, reafirmando-se como fiéis seguidores dele”. Outros textos, não menos eloquentes, mostram que, sem o apaixonado empenho da direção da IG-Farben no fabrico de borracha sintética e de produtos de magnésio, teria sido impossível a Hitler lançar-se à guerra.10

9 Cf. Renzo De Felice, Mussolini il Rivoluzionario, ed. Einaudi, Torino, 1965. E também Valerio Castronovo, “Il Potere economico e il fascismo”, em Fascismo e Società Italiana, Quazza e outros, ed. Einaudi, Torino, 1973.

10 Cf. Dieter Halfmann, Der Anteil der lndustrie und Banken an der faschistischen Innenpolitik, Pahl-Rugenstein, Colônia, 1974. Cf. também Eberard Czichon, Wer verhalf Hitler zur Macht?, Pahl-Rugenstein, Colônia, 1967.

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