Editora: Instituto Lukács
Opinião: ★★★★☆
Tradução: Bernard Herman Hess, Rainer Patriota,
Ronaldo Vielmi Fortes
Páginas: 794
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Sinopse: Junto
com outros estudos importantes – como o brilhante ensaio “On Prussianism”
e outras obras incluídas no volume Turn of Fate, Contribuições para
uma nova ideologia alemã (1948) –, A Destruição da Razão (1954) é
uma das maiores contribuições de Georg Lukács para uma teoria e crítica do
fascismo em geral e, em particular, do nazismo. Produto de uma prolongada
reflexão sobre o tema, o livro se dedica, nas palavras do próprio autor, a
examinar a trajetória percorrida pela Alemanha na direção de Hitler no campo da
Filosofia. No entanto, à semelhança do que ocorre no volume sobre O romance
histórico (1937), o exame dos fenômenos “espirituais” – estéticos num caso,
filosóficos no outro – é colocado por Lukács em estreita relação com toda a
trajetória histórica do povo alemão; ou seja: com um irracionalismo que se
manifesta tão eficazmente no pensamento porque tem suas raízes na vida
cotidiana das massas. Não surpreendentemente, o primeiro capítulo do livro
apresenta uma anatomia meticulosa das peculiaridades da evolução histórica
alemã, apoiando-se, sobretudo, nas considerações de Marx e Engels sobre a “miséria”
germânica e suas ideologias particulares. Já não tinha Marx anunciado que a
Alemanha “se encontrará uma manhã no nível da decadência europeia, antes mesmo
de atingir o nível da emancipação europeia” e que então será possível “compará-la
a um adorador de fetiches que sofre da doença do cristianismo”?
O “caminho singular” (Sonderweg) que afastou o povo
alemão das tradições burguesas emancipatórias, e que tantas vezes foi
idealizado pelos conservadores no período da fundação do Império, durante a
Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, pelos fascistas, é visto por Lukács
como uma provação que teve sua fatídica consumação nos campos de extermínio.
O questionamento das correntes antidemocráticas que
durante séculos acompanharam tanto a evolução política e econômica quanto a
evolução filosófica e estética da Alemanha não implica, porém, a adoção de uma
perspectiva apocalíptica, nem é um convite a encontrar um refúgio confortável
(como já escrevia Lukács em 1933, sobre a capitulação passiva de Stefan George
e outros intelectuais alemães ao nazismo) no “Gran Hotel Abismo”. Lukács sabe
que existe uma outra Alemanha, a de Lessing e Goethe, a de Hegel e Marx, e por
isso apela aos impulsos emancipatórios latentes no povo alemão para iniciar um
novo caminho e romper, em suas palavras, com aquela “dança macabra de visões de
mundo” que levou à violência hitleriana. Nesse sentido, A destruição da
razão é uma obra que encontra seu complemento e sua contrapartida positiva
em O jovem Hegel, onde são investigadas as possibilidades que permitiram
à Alemanha ser o berço da dialética e a sede de uma tradição de pensamento.
autor da Fenomenologia
do Espírito e o autor do Capital se
destacam na primeira linha.
Ao mesmo tempo em que oferece uma crítica à filosofia
irracionalista, Lukács exibe uma intensa reflexão sobre a responsabilidade do
filósofo e, em geral, dos intelectuais, e sobre as ramificações capilares que
as ideias mais abstratas têm no cotidiano das massas. Essas considerações nos
interessam especialmente em nosso tempo, marcado pela expansão de novos
direitos e pelo ressurgimento do irracionalismo em nível regional e global. As
ideias deste livro podem fornecer elementos fundamentais, não só para entender
o fascismo em sua historicidade, mas também para compreender e transformar
nosso próprio presente.
“A História da Filosofia, assim como a da arte e
a da literatura, nunca é – como acreditam seus historiadores burgueses –
simplesmente a história das ideias filosóficas ou das personalidades que as
sustentam. Tanto os problemas quanto as vias de resolução são colocados à
filosofia pelo desenvolvimento das forças produtivas, pelo desenvolvimento
social, pelo desdobramento das lutas de classe. Os traços fundamentais e
decisivos de qualquer filosofia não podem jamais ser revelados exceto por meio
do reconhecimento dessas forças motrizes primárias. Quando se pretende
estabelecer e compreender as conexões dos problemas filosóficos a partir do
assim chamado desenvolvimento imanente da filosofia, chega-se necessariamente à
distorção idealista das suas principais conexões, mesmo quando existe por parte
dos historiadores o conhecimento necessário ou quando há neles, subjetivamente,
a maior boa vontade e empenho para com a objetividade.”
“É precisamente o caminho que, partindo da vida
social, conduz novamente a ela, aquele que confere ao pensamento filosófico a
envergadura que lhe é própria e determina sua profundidade, mesmo no sentido
estritamente filosófico. Ademais, trata-se de questão inteiramente secundária
saber até que ponto cada pensador está consciente dessa sua posição, dessa sua
função histórico-social. Tampouco em filosofia deve-se julgar a intenção,
julgam-se fatos – a expressão objetivada do pensamento e sua eficácia
historicamente necessária. Todo pensador é, nesse sentido, responsável diante
da história pelo conteúdo objetivo de sua filosofia.”
“O
desenvolvimento do irracionalismo não apresenta, em quaisquer de suas etapas,
um caráter essencial “imanente”, como se, de uma certa maneira de colocar ou
resolver os problemas, derivasse outra, impelida pela dialética interna do
pensamento filosófico em movimento. Queremos demonstrar, pelo contrário, que as
diferentes etapas do irracionalismo surgiram como respostas reacionárias a
problemas da luta de classes. O conteúdo, a forma, o método, o tom etc. de sua
reação contra o progresso na sociedade não são determinados por tal dialética
interna própria ao pensamento, mas, sobretudo, pelo adversário, pelas condições
de luta, que são impostas à bourgeoisie reacionária.
Isso precisa ser fixado como princípio básico do desenvolvimento do
irracionalismo.
Mas
isso não significa que o irracionalismo – dentro do quadro social assim
definido – não apresente uma unidade ideal. Pelo contrário. Precisamente por
esse seu caráter resulta que os problemas metodológicos e de conteúdo, trazidos
por ele, tenham uma forte coesão e apresentem uma surpreendente (e estreita)
unidade. A depreciação do entendimento e da razão, a glorificação da intuição,
a gnosiologia aristocrática, a recusa do progresso sócio-histórico, a criação
de mitos são, entre outros, motivos que encontramos em quase todo pensador
irracionalista. A reação filosófica dos representantes dos resquícios feudais e
da bourgeoisie à ideia do progresso social pode, em certas
circunstâncias e da parte de alguns representantes especialmente dotados dessa
direção, receber uma forma genial e brilhante; mas o conteúdo filosófico
presente em todo o desenvolvimento é extremamente monótono e precário. E como,
segundo apontamos acima, a margem de manobra intelectual para a polêmica, a
possibilidade de acolher no sistema de pensamento pelo menos alguns reflexos –
mesmo que de forma deformada – da realidade, restringe-se continuamente diante
da necessidade social, é inevitável o rebaixamento do nível filosófico,
enquanto se mantêm invariáveis determinados motivos decisivos do pensamento.
Deter-se nessas determinações contínuas do pensamento corresponde ao reflexo
dos fundamentos sociais reacionários que formam a unidade do irracionalismo,
por maiores que sejam as transformações qualitativas que podem e devem ser
verificadas também no desenvolvimento que vai de Schelling até Hitler. O fato
de as filosofias irracionalistas terem desembocado no Hitlerismo só pode ser
considerado algo necessário na medida em que as lutas de classe concretas
produziram tal resultado – naturalmente, não sem a ajuda desse desenvolvimento
ideológico. Do ponto de vista dos desdobramentos do irracionalismo, os
resultados provocados pelas lutas de classes são, por isso, fatos imutáveis,
que recebem um reflexo filosófico correspondente e em relação aos quais o
irracionalismo reage de um modo ou de outro; mas eles são – vistos do nosso
ângulo – fatos imutáveis. O que não quer dizer, muito menos, que eles – vistos
de um plano histórico objetivo – teriam resultado de uma necessidade fatal.
Se
quisermos entender corretamente o desenvolvimento da filosofia irracionalista
alemã, então será necessário considerar sempre em sua interdependência os
seguintes fatores: a dependência do desenvolvimento do irracionalismo em relação às lutas de classes decisivas na Alemanha e em todo o
mundo, o que naturalmente pressupõe a recusa de um desenvolvimento “imanente”;
o caráter unitário de conteúdos e métodos e o contínuo estreitamento do campo
para um desdobramento filosófico verdadeiro, o que leva ao recrudescimento das
tendências apologéticas e demagógicas; e, por fim, como consequência: o
rebaixamento necessário, permanente e rápido do nível filosófico. Só assim se
torna possível compreender como se deu, com Hitler, a popularização demagógica
de todos os motivos intelectuais da reação filosófica mais decidida, o
“coroamento” ideológico e político do desenvolvimento do irracionalismo.”
“Nenhuma análise científica é possível sem
descobrir os fundamentos reais da situação histórico-social.”
“Uma
tese fundamental do materialismo dialético é que a prática constitui o critério
da verdade teórica. A exatidão ou inexatidão do reflexo teórico da realidade
objetiva, que existe independentemente da nossa consciência, ou melhor, o grau
de nossa aproximação dela, comprova-se na prática, pela prática.”
“Jamais uma circunstância permanece a mesma; ela
deve necessariamente avançar ou regredir.”
“(...)
O desespero por si só não seria suficiente como elo social e psicológico. Ele
precisava – exatamente por sua intenção voltada à prática – recorrer aos
elementos da credulidade e da fé em milagres, que já comentamos. Essa ligação
existiu efetivamente e não por acaso, pois quanto mais crescia o desespero de
cada indivíduo, quanto mais esse desespero expressava o sentimento de ameaça à
existência individual, tanto mais nasciam dele, em média – sob as condições do
desenvolvimento social e moral-espiritual da Alemanha –, a credulidade e a fé
em milagres. Desde Schopenhauer e especialmente desde Nietzsche, o pessimismo
irracionalista destruiu a convicção da existência objetiva do mundo exterior e
de que o conhecimento imparcial e profundo do mundo possa apontar uma saída
para a problemática que produz o desespero. O conhecimento do mundo,
assim, converteu-se cada vez mais numa – sempre maior arbitrária – interpretação
do mundo. Essa tendência filosófica reforçou naturalmente o comportamento
das camadas sociais que se caracterizava pela espera passiva de tudo o que vem
de cima, da “autoridade”, pois também não se tratava para elas, mesmo na vida
real, da análise concreta de relações concretas, mas da interpretação de decisões, cuja motivação devia permanecer ignorada. É claro que
aqui residia uma das fontes sociopsicológicas dessa fé em milagres: a situação
pode ser desesperadora, mas o “gênio iluminado pela graça divina” (Bismarck,
Guilherme II, Hitler) “certamente” iria encontrar uma saída por meio da
“intuição criadora”. E também é claro que, quanto mais ameaçada estivesse a
“segurança”, quanto mais a existência individual estivesse em xeque, tanto mais
se intensificariam a credulidade e a fé em milagres. Trata-se, portanto, aqui,
de uma antiga fraqueza das camadas médias alemãs, abrangendo um campo que se
estende desde a filosofia nietzschiana até a psicologia da conduta mediana do
filisteu bebedor de cerveja.
Quando
se ouve com tanta frequência a pergunta cheia de espanto de como massas tão
amplas do povo alemão foram capazes de depositar tanta fé no mito pueril de
Hitler e de Rosenberg, então podemos responder do ponto de vista histórico com
outra pergunta: como puderam os homens mais cultos e intelectualmente mais
elevados da Alemanha acreditar na “vontade” mítica de Schopenhauer, nas
profecias do Zaratustra nietzschiano, nos mitos históricos da decadência do
Ocidente? E não adianta dizer que o nível intelectual e artístico de
Schopenhauer e Nietzsche era incomparavelmente mais elevado do que a demagogia
grosseira e contraditória de Hitler e Rosenberg. Porque, quando um homem
formado filosófica e literariamente, que podia acompanhar gnosiologicamente as
nuanças da reelaboração de Schopenhauer por Nietzsche, que foi capaz de honrar
as nuanças de sua crítica da decadência com competência estética e psicológica,
mas, mesmo assim, comportava-se de modo crédulo em relação ao mito de
Zaratustra, ao mito do super-homem e ao mito do “eterno retorno do mesmo”,
isso, no fundo, é mais difícil de entender do que o fato de um jovem
trabalhador pouco culto, que nunca ou só temporariamente frequentou uma
organização partidária, que após terminar sua formação de aprendiz foi colocado
no olho da rua, acreditar, com base em seu desespero, que Hitler vá realizar o
“socialismo alemão”.
Também
aqui vale o que disse Marx sobre as doutrinas “cínicas” da economia clássica:
que as doutrinas não saíram dos livros para a realidade, mas da realidade para
os livros. A questão de se num determinado momento e em determinadas camadas
sociais o que prevalece é a atmosfera para uma crítica sadia e sóbria ou para a
superstição, para a fé em milagres, para a credulidade irracionalista, não é
uma questão que depende do nível intelectual, mas das condições sociais. E é
claro que nesse aspecto as ideologias anteriores e tornadas eficazes não
desempenham papel de pouca importância, na medida em que fortalecem ou
enfraquecem a disposição para a crítica ou para a credulidade. Mas não devemos
esquecer que a eficácia ou a ineficácia de uma tendência de pensamento também
parte da realidade para os livros e não dos livros para a realidade.
A
história ensina-nos que as épocas dominadas especialmente pela credulidade,
pela superstição e pela fé em milagres de modo algum precisam coincidir com um
grau de civilização especialmente baixo. Muito pelo contrário. Podemos ver uma
tendência assim ao final da Antiguidade, durante o auge da civilização
greco-latina, no tempo de máxima difusão da cultura alexandrina. E o que vemos
é que nesse período não são de modo algum os escravos incultos, os pequenos
artesãos ou os portadores do cristianismo em expansão os mais susceptíveis às
crenças milagrosas, mas que em eruditos e artistas mais talentosos e evoluídos
dessa era, como Plutarco ou Apuleius, Plotino ou Porfírio, a credulidade e a
superstição também estiveram presentes; é claro que com um conteúdo totalmente
diferente, mais elevado literariamente, mais refinado e culto intelectualmente.
E – para citar apenas mais um exemplo característico – o auge do delírio da
caça às bruxas não se deu de modo algum nos tempos mais soturnos da Idade
Média, mas num momento de grande crise, que marca a transição da Idade Média
para a Modernidade, a era de Galileu e Kepler. Também aqui podemos constatar
que muitos dos espíritos mais destacados da época não estavam livres das muitas
formas de superstição; pense-se em Francis Bacon, em Jacob Böhme, em Paracelso
etc.
Todas
essas épocas de delírio social, de superstição e fé em milagres levadas ao
extremo se caracterizam por terem sido épocas de declínio de uma velha ordem
social, de uma cultura arraigada por séculos e simultaneamente épocas em que o
novo já provoca as dores do parto. Essa insegurança geral da vida capitalista
cresceu nos anos de crise da Alemanha, significando o surgimento de algo
qualitativamente novo e especial, que conferiu a essa receptividade a difusão
em massa nunca antes vista, explorada de modo inescrupuloso pelo fascismo.
Mais
adiante serão descritas e desmembradas as formas de pensamento que foram
assumidas concretamente por essa exploração demagógica da situação social
desesperadora de amplos setores do povo alemão. Só então – por via da análise
concreta – poder-se-á elucidar por que a demagogia e a tirania
fascista são apenas a culminância de um longo processo, inicialmente tido como
“inocente” (em termos da filosofia pura ou, no máximo, em termos da visão de
mundo): A Destruição da Razão.
Esse
processo, cujos primórdios devem ser procurados na luta romântico-reacionária,
pela restauração do feudalismo, contra a Revolução Francesa, e cuja
culminância, como vimos, acontece no período imperialista do capitalismo, não
se restringia de maneira alguma apenas à Alemanha. Tanto as suas origens como a
sua forma de manifestação hitlerista, bem como a sua permanência no presente
têm raízes socioeconômicas internacionais, e por isso a filosofia
irracionalista se manifestava igualmente em escala internacional.
Mas,
como vimos na introdução, ela nunca pôde alcançar aquele efeito diabólico que
se deu na Alemanha de Hitler; com algumas raras exceções, ela nunca alcançou
tal hegemonia como na Alemanha, e não apenas dentro do território alemão, mas
também em escala internacional. Por isso, foi necessário apresentar e analisar
brevemente neste capítulo aquelas tendências sócio-históricas que transformaram
a Alemanha nesse tipo de pátria, nesse centro de hostilidade à razão.
Assim,
a exposição que se segue das tendências histórico-filosóficas – com poucas
exceções, como Kierkegaard ou Gobineau – precisou se limitar ao desenvolvimento
alemão. Ele, e apenas ele, levou ao hitlerismo. E por isso acreditamos que o
fato de termos nos limitado à exposição da história do irracionalismo na
Alemanha não minora o seu caráter internacional, pelo contrário, amplia-o. Ela
é um Discite moniti, um “aprendam, vocês estão avisados!” aos homens
pensantes de todos os povos. Uma advertência de que não existe uma filosofia
“inocente”, puramente acadêmica, de que sempre e em todo lugar existe
objetivamente o perigo de que algum incendiário, a partir do conteúdo
filosófico de “inocentes” conversas de salão e de cafés, de conferências, de
folhetins, ensaios etc. cause um incêndio devastador à maneira de Hitler. No
epílogo, abordaremos as novas condições da situação mundial de hoje, suas
consequências ideológicas. Elas mostram diferenças profundas entre a preparação
ideológica da segunda e a da terceira guerra mundial imperialista.
Parece,
por motivos que serão detalhados no momento certo, que o irracionalismo puro e
simples não desempenha hoje um papel dirigente como o dos tempos da organização
da segunda conflagração mundial, porém, mostraremos que o irracionalismo ainda
constitui uma atmosfera, por assim dizer, ideológica da nova
propaganda de guerra; ao menos não desempenha nela um papel desimportante. A
advertência aqui proposta para se aprender com o passado não perdeu de modo
algum sua atualidade só porque as condições atuais se modificaram sob muitos
aspectos. Tanto menos porquanto uma série de elementos que foram decisivos no
irracionalismo “clássico” no tempo de Hitler ainda cumpre um papel em nada
reduzido, às vezes até acentuado, na propaganda da “guerra fria” (agnosticismo,
relativismo, nihilismo, tendência para a criação de mitos, acriticidade,
credulidade, fé em milagres, preconceitos de raça, ódio racial etc., etc.)
A
questão do desenvolvimento da razão ou da sua crescente destruição é ainda
hoje, ideologicamente, o ponto central no conflito entre progresso e reação,
enquanto as lutas, comparadas com o tempo do hitlerismo, são travadas também em
relação a outros conteúdos e métodos imediatos. Por isso pensamos que o sentido
de uma história dos problemas fundamentais do irracionalismo aponta ainda hoje
muito para além do meramente histórico.
Da
lição que Hitler deu ao mundo, todo homem singular, como todo povo, deveria
tentar aprender algo para a sua própria salvação. E essa responsabilidade
precisa existir de modo especialmente agudo nos filósofos, que seriam obrigados
a vigiar sobre a existência e o desenvolvimento da razão na medida da sua real
participação no processo de desenvolvimento social.
(Com
isso, o seu significado real no desenvolvimento social não deve ser
superestimado.) Eles perderam a oportunidade de cumprir sua obrigação, dentro e
fora da Alemanha; e se até agora ainda não se realizaram em todos os lugares as
palavras de Mefistófeles sobre o desesperado Fausto:
Verachte nur Vernunft und Wissenschaft,
Der Menschen allerhöchste Kraft,
So hab ich dich schon unbedingt*
Isso
não significa – a menos que ocorra uma mudança – para nenhum outro país de
economia imperialista, para nenhuma outra civilização burguesa sob o signo do
irracionalismo, a menor garantia de que eles não serão amanhã procurados pelo
diabo fascista, em comparação com o qual o próprio Hitler talvez pode ter sido
apenas um ignorante aprendiz. Ao limitar nossa análise ao desenvolvimento
alemão, à filosofia alemã, queremos justamente enfatizar esse Discite moniti.”
*:
“Despreza a razão e a ciência, as mais excelsas forças do homem, e eu te terei
inteiro sob meu poder.” Fausto. J.W. Von Goethe. (N.T.). “
“Mesmo
o fato de o próprio Hegel não utilizar o termo “irracionalismo” não quer dizer
que ele não teria se confrontado com o problema da relação entre dialética e
irracionalismo; ele certamente o fez, e não só na polêmica contra o “saber
imediato” de Friedrich Heinrich Jacobi. Talvez seja uma coincidência, ainda que
uma coincidência significativa, que sua discussão de
princípios sobre esse tema se inicie precisamente com a geometria e com a
matemática. De qualquer forma, o que está em pauta aqui são os limites das
determinações do entendimento, a sua natureza contraditória, o
desenvolvimento e o impulso ascendente do movimento dialético aqui surgido em
direção à razão. Hegel afirma, a propósito da geometria, que: “Contudo, no seu
curso – o que é muito digno de nota –, choca-se finalmente com incomensurabilidades
e irracionalidades, onde, se quiser ir adiante no determinar, é impelida
para além do princípio do entendimento. Aqui também, como aliás é
frequente, apresenta-se uma inversão na terminologia: o que se chama racional
é o que pertence ao entendimento, mas se chama irracional o que
é, antes, um indício e vestígio da racionalidade.”*
Embora
o ponto de partida dessa observação tenha um caráter específico, conquanto
Hegel estivesse ainda muito distante de generalizar filosoficamente os termos
aqui utilizados, ele já toca aqui no problema filosófico central de todo o
desenvolvimento posterior do irracionalismo, isto é, aquelas questões às quais
o irracionalismo filosófico sempre esteve ligado. Essas são precisamente as
questões, como veremos no decorrer de nossas observações, que resultam dos
limites e das contradições do pensamento puramente intelectivo. Esbarrar em
tais limites pode significar para o pensamento humano – se este percebe nisso
um problema a ser solucionado e, como Hegel notou acertadamente, “indício e
sinal da racionalidade”, isso quer dizer, a mais alta forma de
conhecimento – um ponto de partida do desenvolvimento do pensamento para a
dialética. O irracionalismo, pelo contrário – para resumir antecipadamente
algumas questões que mais adiante deverão ser expostas de modo concreto e
detalhado – só chegou até esse ponto, absolutizou o problema, petrificou os
limites do conhecimento intelectivo e transformou-os em limites absolutos do
conhecimento, mistificando até mesmo o problema, convertendo-o artificialmente
em problema insolúvel, atribuindo-lhe uma resposta “suprarracional”. A
equiparação entre entendimento e conhecimento, entre os limites do entendimento
e os limites do conhecimento em geral, a adoção da “suprarracionalidade” (da
intuição etc.) ali onde é possível e necessário avançar para um conhecimento
racional – essas são as características mais gerais do irracionalismo
filosófico.
O
que Hegel aqui trouxe à tona num exemplo de importância radical é uma das
questões centrais do método dialético. Ele descreveu “o reino das
leis” como “a imagem quieta do mundo existente ou fenomênico”. É por
isso que – para apenas tocar no essencial de sua linha de raciocínio – o
fenômeno, em contraposição à lei, é a totalidade, pois o fenômeno contém a lei;
mas também contém algo mais, a saber: o elemento da forma que a faz mover-se a
si mesma.1 Com isso, Hegel elaborou aqueles elementos lógicos mais
gerais, aquela tendência do método dialético que encerra mais fortemente a sua
natureza progressista: o caráter sempre aproximativo do conhecimento dialético.
E Lênin, que revelou esse aspecto decisivo do método dialético, naturalmente já
materialista, não afetado pelos limites idealistas de Hegel, endossou energicamente
a importância da demonstração de Hegel que acabamos de mencionar: “Essa é uma
excelente definição materialista, notavelmente apropriada (o uso do termo ‘quieta’).
A lei toma o que está quieto – e por isso a lei, toda lei, é estreita,
incompleta, aproximativa”.2
Não
podemos nos deter aqui de modo mais detalhado na exposição de Hegel, cada vez
mais concreta, sobre as relações dialéticas de reciprocidade entre lei
(essência) e fenômeno. Temos apenas de apontar para o fato de que Hegel superou
no decorrer dessa concretização os limites do idealismo subjetivo, para o qual
as determinações universais (essência etc.) não podem residir na objetividade,
na própria objetividade, e fundamentou filosoficamente a objetividade da
essência: “A essência ainda não tem ser aí algum; mas ela é, e num sentido mais
profundo do que o ser” [...] “A lei é, portanto, o fenômeno essencial”,3
uma determinação, cujo significado básico Lênin também destacou energicamente
em suas notas marginais à Ciência da Lógica de Hegel.
Com
essas constatações já podemos determinar um pouco melhor a relação geral e
metodológica entre o irracionalismo e a dialética. Como a realidade objetiva em
princípio é mais rica, mais variada e mais complexa do que jamais podem ser os
conceitos mais bem desenvolvidos do nosso pensamento, são inevitáveis
confrontos, do tipo que acabamos de assinalar, entre o pensamento e o ser. E,
com isso, em tempos em que o desenvolvimento objetivo da sociedade e a
descoberta de novos fenômenos naturais por ele produzidos avançam tempestuosamente,
surgem grandes possibilidades para o irracionalismo
transformar esse progresso, por meio da sua mistificação, em um movimento
retrógrado. Tal situação foi produzida na virada do século XVIII para o século
XIX, em parte pela mudança da sociedade, determinada pela Revolução Francesa e
pela revolução industrial, na Inglaterra, em parte como consequência das crises
que se manifestaram no pensamento das ciências naturais, do desenvolvimento da
química, da biologia etc. em função das então novas descobertas geológicas,
paleontológicas etc. A dialética de Hegel, na medida em que procura compreender
historicamente os problemas aqui levantados, é o mais alto estágio da filosofia
burguesa. É dessa filosofia o empreendimento mais enérgico para dominar intelectualmente
essas dificuldades: produzir um método que possa garantir tal – até então a
mais completa – aproximação entre o pensamento, entre a representação
intelectual da realidade e a própria realidade. (Não trataremos aqui dos
conhecidos limites idealistas de Hegel, sobre suas mistificações idealistas,
sobre a contradição entre método e sistema; a crítica feita a esses limites por
parte dos clássicos do marxismo-leninismo é de conhecimento geral e vem aqui
pressuposta.) O irracionalismo interpõe-se aqui nessa – necessária,
insuperável, mas sempre relativa – discrepância entre a representação
intelectual e o original objetivo. O ponto de partida consiste no fato de que
as tarefas colocadas imediatamente ao pensamento, enquanto são ainda tarefas,
enquanto são ainda problemas não resolvidos, aparecem de uma forma que as faz
parecer como se o ato do pensar, a formação conceitual diante da realidade
fosse fracassar, como se a realidade contraposta ao ato de pensar constituísse
um para além da ratio (da racionalidade do sistema de categorias, até
então próprio ao método conceitual). Hegel, como vimos, analisou corretamente
essa situação. Sua dialética de fenômeno e essência, existência e lei, mas,
antes de tudo, sua dialética dos conceitos do entendimento, das determinações
de reflexão, de transição entre entendimento e razão mostra com bastante
nitidez o caminho efetivo para a solução dessas dificuldades.”
*
Hegel: Enzyklopädie, § 231. Sämtliche Werke, Berlim, 1832, t. VI, p. 404
(ed.bras.: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio.
São Paulo: Loyola, 1995. v. I, A Ciência da Lógica, p. 363).
1 Ibid.,
t. IV, p. 145 s. (ed. bras.: Ciência da Lógica, Livro II: A
Doutrina da Essência. Tradução de Christian G. Iber e Federico Orsini.
Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São
Francisco, 2017. E-book, p. 209).
2 Lenin: Aus dem philosophischen Nachlaß,
Berlim, 1949, p. 70.
3
Hegel : Gesammelte Werke, t. IV, p. 150 e 145 (ed. bras.: Ciência da
Lógica, Livro II: A Doutrina da Essência. Tradução de Christian G. Iber e
Federico Orsini. Petrópolis; Rio de Janeiro: Vozes; Bragança Paulista: Ed.
Universitária São Francisco, 2017. E-book, p. 210 e 215, modif.).
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