Editora: Literatura Clássica
ISBN: 978-65-87036-26-7
Tradução: Tiago Gadotti
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 128
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Sinopse: Em A Peste Escarlate (1912), Jack London
aproxima-se da ficção científica. A história decorre no século XXI e tem como
protagonistas um velho professor universitário e três netos, todos eles
reduzidos ao estado selvagem. São dos poucos sobreviventes de uma peste que
dizimou a humanidade e aniquilou a civilização no ano 2013. Vítima das partidas
dos netos, o avô conta aos três rapazes as aventuras que viveu para escapar à
peste, através do mundo despovoado, de desertos e de cidades mortas, procurando
aos mesmo tempo incutir-lhes os valores do conhecimentos e da sabedoria.
“– “Os sistemas fugidios evaporam como espuma”
– murmurou o que era evidentemente uma citação. – Isso é tudo: espuma e
fugacidade. Toda a labuta do homem sobre o planeta não passou de espuma:
domesticou os animais úteis, destruiu os animais hostis e limpou a terra de sua
vegetação selvagem. E então desapareceu, e o dilúvio da vida primordial caiu
novamente sobre a terra, varrendo seu trabalho manual: as ervas daninhas e a floresta
inundaram seus campos, as feras varreram seus rebanhos, e agora há lobos na
praia de CliffHouse – ficou horrorizado com esse pensamento. – Aqui, onde
quatro milhões de pessoas se divertiam, os lobos selvagens vagueiam hoje, e a
progênie selvagem de nossos lombos, com armas pré-históricas, se defende contra
os despojadores ferozes. Pense nisso! E tudo por causa da Morte Escarlate...”
“Hoo-Hoo, deitado de bruços, e cavoucando a
areia com o pé, gritou, e examinou, primeiro, a unha do pé e, depois, o pequeno
buraco que havia cavado. Os outros dois garotos se juntaram a ele, escavando a
areia rapidamente com as mãos até que três esqueletos ficassem expostos. Dois
eram de adultos, sendo o terceiro o de uma criança parcialmente crescida. O velho
homem caminhou pelo chão e espreitou o achado.
– Vítimas da peste – anunciou. – Foi assim que
morreram em todos os lugares nos últimos dias. Deve ter sido uma família
fugindo do contágio, perecendo aqui na praia de Cliff House. Eles... o que está
fazendo, Edwin?
Essa pergunta foi feita com repentina consternação,
pois Edwin, usando a traseira de sua faca de caça, começou a arrancar os dentes
das mandíbulas de um dos crânios.
– Vou fazer um colar – foi a resposta.
Os três garotos ficara In obcecados por isso;
em meio a batidas e marteladas, os balbucios de Granser passaram despercebidos.
– Vocês são verdadeiros selvagens. Começaram com
o costume de usar dentes humanos. Na próxima geração, estarão perfurando as narinas
e orelhas, e usando ornamentos de osso e concha. Eu sei. A raça humana está
condenada a afundar-se cada vez mais na noite primitiva, antes de recomeçar sua
sangrenta escalada para cima, para a civilização. Quando sentirmos a falta de
espaço, começaremos a matar uns aos outros. E então, suponho, pendurarão cabelo
humano em sua cintura, assim como você, Edwin, que é o mais gentil de meus
netos, já fez com esse rabo de porco. Jogue-o fora, Edwin, rapaz, jogue-o fora.”
“Aqui o velho partiu numa digressão sobre
germes e suas naturezas, usando palavras e frases tão longas e sem sentido, que
os rapazes sorriam uns para os outros e olhavam para o oceano deserto, até
esquecerem que o velho estava balbuciando.
– Mas e a Morte Escarlate, Granser? – Edwin finalmente
sugeriu.
Granser voltou a si, e, de sobressalto, saiu
da tribuna da sala de aula, onde, para o público de outro mundo, expunha,
sessenta anos atrás, a mais recente teoria sobre germes e doenças relacionadas.
– Sim, sim, Edwin; tinha esquecido. Às vezes
a memória do passado é muito forte, e me esqueço de que sou um velho sujo,
vestido de pele de cabra, vagando com meus netos selvagens, criadores de cabras
no deserto primitivo. “Os sistemas fugazes evaporam como espuma”, e assim
evaporou nossa gloriosa e colossal civilização. Eu sou Granser, um velho
cansado.”
““Eu estava sozinho em minha grande casa. Como
já lhes disse muitas vezes, naqueles dias podíamos conversar um com o outro por
fio ou pelo ar. O telefone tocou, e comecei a falar com meu irmão. Disse que
não vinha para casa por medo de pegar a peste de mim, e que havia levado nossas
duas irmãs para ficar na casa do professor Bacon. Aconselhou-me a permanecer onde
estava, e a esperar para descobrir se tinha, ou não, sido contaminado pela
peste.
Concordei e fiquei em casa, tentando cozinhar
pela primeira vez na vida. E a peste não se manifestou em mim. Pelo telefone,
podia falar com quem quisesse e receber as notícias. Além disso, havia os
jornais. Assinei todos eles, para saber o que estava acontecendo com o resto do
mundo.
Nova York e Chicago estavam em caos. E o mesmo
acontecia em todas as grandes cidades. Um terço da polícia de Nova York tinha morrido.
O xerife também morreu, assim como o prefeito. Toda a lei e ordem tinham
cessado. Os corpos jaziam nas ruas insepultos. Todas as ferrovias e embarcações
que transportavam alimentos para a grande cidade haviam parado. Os pobres
famintos, aos montes, saqueavam lojas e armazéns. Assassinato, roubo e
embriaguez grassavam em toda parte. Os homens fugiam da cidade aos milhões –
primeiro os ricos, em seus carros particulares e dirigíveis, e depois a grande
massa da população, a pé, carregando a peste com eles, passando fome e pilhando
os agricultores e todas as cidades e vilas no caminho.
“O homem que enviava as notícias, o operador
da rede sem fio, estava sozinho com seu instrumento no topo de um edifício. As
pessoas que permaneceram na cidade – ele as estimou em várias centenas de
milhares – enlouqueceram de medo e embriaguez, e incêndios pululavam por toda
parte ao redor de seu edifício. Foi um herói aquele homem que se manteve em seu
posto – muito provavelmente, um jornalista obscuro.
“Por vinte e quatro horas, disse ele, nenhum dirigível
transatlântico havia chegado, e não vinham mais mensagens da Inglaterra.
Declarou, porém, que uma mensagem de Berlim, que fica na Alemanha, anunciava
que Hoffmeyer, um bacteriologista da Escola Metchnikoff, tinha descoberto o
soro para a peste. Essa foi a última notícia, até hoje, que nos americanos recebemos
da Europa. Se Hoffmeyer descobriu mesmo o soro, já era tarde demais, pois os
exploradores europeus já teriam vindo à nossa procura. Podemos apenas concluir
que o que aconteceu na América aconteceu na Europa, e que, na melhor das
hipóteses, alguns devem ter sobrevivido à Morte Escarlate em todo aquele
continente.
“Por mais um dia, os telegramas continuaram a
chegar de Nova York. Por fim, também cessaram. O homem que os enviava, empoleirado
em seu alto edifício, ou havia morrido da peste ou havia sido consumido pelas
grandes conflagrações que descrevera. E o que acontecera a Nova York replicou-se
em todas as outras cidades. Foi o mesmo em São Francisco, Oakland, e Berkeley.
Na quinta-feira, as pessoas estavam morrendo tão rapidamente, que seus corpos não
podiam ser manuseados, e os cadáveres estavam por toda a parte. Na quinta-feira
à noite espalhou-se o pânico pelo país. Imaginem, meus netos, pessoas, mais
gente do que o cardume de salmões que vocês veem no rio Sacramento, fugindo das
cidades aos milhões, lançando-se loucamente ao interior, na tentativa vã de
escapar à morte onipresente. Vejam, carregavam os germes consigo. Até mesmo as
aeronaves dos ricos, fugindo para as montanhas e para o deserto, carregavam os
germes.
“Centenas dessas aeronaves escaparam para o
Havaí, e não só levaram a peste consigo, mas descobriram que a peste já estava
lá antes. Soubemos disso pelos telegramas, até o dia em que a ordem em São
Francisco ruiu completamente, e não havia operadores nos postos para receber ou
enviar mensagens. Foi surpreendente, espantosa essa perda de comunicação com o
mundo. Era exatamente como se o mundo tivesse parado, sido apagado. Por
sessenta anos, esse mundo não existe mais para mim. Sei que devem existir lugares
como Nova York, Europa, Ásia e África; mas não ouvimos nenhuma palavra sobre
eles por sessenta anos. Com a chegada da Morte Escarlate, o mundo desmoronou,
absolutamente, irremediavelmente. Dez mil anos de cultura e civilização
passaram em um piscar de olhos, ‘evaporaram como espuma’.”
“Afastei-me apressado, desci uma rua transversal,
e na primeira esquina vi outra tragédia. Dois operários apanharam um homem e
uma mulher com dois filhos, e os estavam roubando. Conhecia o homem de vista,
embora nunca tivéssemos sido apresentados. Era um poeta cujos versos há muito
tempo admirava. Mas não o ajudei, pois quando cheguei ao local, ouvi um tiro de
pistola e o vi caindo no chão. A mulher gritou, e foi atingida por um golpe de
punho de um dos selvagens. Dei um grito ameaçador, e descarregaram as pistolas
contra mim, que tive de fugir pela esquina. Aqui fui bloqueado por um incêndio
crescente. Os prédios de ambos os lados estavam queimando e a rua estava cheia
de fumaça e chamas. De algum lugar daquela escuridão, ouvi a voz de uma mulher
clamando por ajuda. Mas não fui até ela. O coração de um homem vira ferro em
meio a tais cenas, e os gritos de socorro eram muitíssimos.”
“Voltando à esquina, vi que os dois ladrões tinham
desaparecido. O poeta e sua esposa estavam mortos na calçada. Foi uma visão chocante.
As duas crianças tinham desaparecido – para onde, não sei. E descobri, agora,
por que os fugitivos que encontrava andavam tão furtivamente e com rostos tão pálidos.
Dentro de nossa civilização, em nossas favelas e guetos, tínhamos criado uma
raça de bárbaros, de selvagens; e agora, no tempo de nossa calamidade, voltaram-se
contra nós como animais selvagens e nos destruíram. E também se destruíam uns aos
outros. Inflamavam-se com bebida forte e cometiam mil atrocidades, brigando e
matando uns aos outros na loucura geral. Vi um grupo de trabalhadores, de bom
caráter, que tinham se unido e, deixando as mulheres e crianças no meio, os
doentes e idosos carregados em macas, e uma série de cavalos puxando uma carga
de provisões, estavam lutando para sair da cidade. Era bonito vê-los descendo a
rua em meio à fumaça, embora quase atirassem em mim quando apareci no caminho.
Enquanto passavam, um de seus líderes gritou comigo, em pedido de desculpas.
Disse que estavam matando ladrões e
saqueadores, e que andavam assim em bando por ser o único meio de escapar dos
salteadores.
“Foi aqui que vi pela primeira vez o que
veria depois com tanta frequência. Um dos viandantes mostrou-me a marca
inconfundível da peste. Imediatamente os circunstantes se afastaram e ele, sem
pestanejar, saiu de seu lugar para deixá-los passar. Uma mulher, muito provavelmente
sua esposa, tentou segui-lo. Estava conduzindo um menino pela mão. Mas o marido
ordenou-lhe severamente que prosseguisse viajem, enquanto outros a seguraram
pela mão e a impediram de segui-lo. Isso eu vi, e vi também o homem, com seu
rosto escarlate, entrar numa porta do lado oposto da rua. Ouvi o disparo de sua
pistola e o vi cair morto no chão.”
“Reunimos uma grande quantidade de provisões,
e um comitê de alimentos se encarregou de distribuir porções diárias para as
diversas famílias que se organizavam em pequenos grupos. Vários comitês foram
nomeados e desenvolvemos uma organização muito eficiente. Eu fazia parte do
comitê de defesa, embora no primeiro dia nenhum inimigo se aproximasse. No
entanto, podíamos vê-los à distância, e, pela fumaça dos incêndios, sabíamos
que estavam ocupando a outra extremidade do campus.
A embriaguez era abundante, e muitas vezes os ouvíamos cantando canções
vulgares ou gritando insanamente. Enquanto o mundo ruía sobre eles, e todo o ar
se impregnava da fumaça de suas queimadas, essas criaturas vis davam livre
curso à sua bestialidade, brigavam, bebiam e morriam. Mas afinal, o que
importava? Todos morriam de qualquer maneira, os bons e os maus, os fortes e os
fracos, os que amavam a vida e os que a desprezavam. Eles também passaram. Tudo
passou.”
“– Vou fazer com que Granser ensine essa coisa
de pólvora – disse Edwin calmamente –, e então botarei todos vocês para correr.
Você, Hare-Lip, lutará por mim e buscará minha carne, e você, Hoo-Hoo, enviará
o bastão da morte por mim e fará com que todos tenham medo. E se eu pegar
Hare-Lip tentando quebrar sua cabeça, Hoo-Hoo, eu o castigarei com a pólvora.
Granser não é um tolo como pensam. Vou escutá-lo, e um dia serei o chefe de
todo o grupo.
O velho sacudiu a cabeça tristemente, e
disse:
– A pólvora virá. Nada pode detê-la: a mesma
velha história, de novo e de novo. O homem se multiplicará, e os homens
lutarão. A pólvora permitirá aos homens matar milhões, e somente desta forma,
por fogo e por sangue, surgirá uma nova civilização, em algum dia remoto. E de
que proveito será? Assim como a velha civilização passou, a nova também
passará. Pode levar cinquenta mil anos para ser construída, mas vai passar.
Todas as coisas passam. Somente permanecem a força cósmica e a matéria, sempre
em fluxo, sempre agindo e reagindo e realizando os tipos eternos – o sacerdote,
o soldado e o rei.
Da boca das crianças sai a sabedoria de todas
as eras.10 Alguns lutarão, outros governarão, e outros rezarão; e
todos os demais hão de labutar e sofrer dor enquanto, sobre seus cadáveres, é recriada
de novo e de novo, num ciclo sem fim, a beleza surpreendente, a maravilha
suprema do estado civilizado. Tanto faz se eu destruir aqueles livros da
caverna – quer permaneçam, quer pereçam, todas as suas velhas verdades serão
descobertas, e as velhas mentiras serão revividas e transmitidas. De que
adianta...”
10. Expressão bíblica: “Da boca das crianças
e dos que mamam tu suscitaste força, por causa dos teus adversários, para
fazeres calar o inimigo e vingativo.” (Salmo 8, 2) Também nos Evangelhos, Jesus
cita esse versículo: “Vendo, então, os principais dos sacerdotes e os escribas
as maravilhas que fazia e os meninos clamando no templo: ‘Hosana ao Filho de
Davi’, indignaram-se e disseram-lhe: ‘Ouves o que estes dizem?’ E Jesus lhes
disse: ‘Sim; nunca lestes: Pela boca dos meninos e das criancinhas de peito
tiraste o perfeito louvor?’” (Mateus 21, 15-16.) – NE.
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