Editora: UFRJ
ISBN: 978-85-7108-329-5
Tradução e
apresentação: José Paulo Netto
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 172
Sinopse: Ver Parte
I
“De fato, como
Lenin compreende a passagem da dialética idealista de Hegel ao materialismo
dialético de Marx e de Engels? Compreende-a como a pura e simples substituição
da concepção idealista que está na base do método dialético em Hegel por
uma outra concepção filosófica, não mais “idealista” e sim
“materialista”; e ele parece não suspeitar que uma tal “inversão materialista”
do idealismo hegeliano só poderia conduzir, no melhor dos casos, a uma
alteração terminológica: o Absoluto já não seria o “Espírito”, e sim a
“Matéria”. O materialismo de Lenin, porém, encerra algo ainda mais grave. Ele
não anula apenas a última inversão materialista da dialética idealista de
Hegel, realizada por Marx e Engels; ele faz retroceder todo o confronto
entre materialismo e idealismo a um nível de desenvolvimento histórico anterior
ao alcançado pela filosofia idealista alemã de Kant a Hegel. Desde a
dissolução da metafísica de Leibniz e de Wolff, iniciada com a filosofia
transcendental de Kant e levada a seu termo pela dialética de Hegel, o
“Absoluto” fora definitivamente banido do ser (tanto do ser do “espírito”
quanto do ser da “matéria”) e transferido ao movimento
dialético da “ideia”. A inversão materialista desta dialética idealista de
Hegel por Marx e Engels consistiu simplesmente em liberá-la do seu último
invólucro mistificador, em descobrir no “automovimento dialético da Ideia” o movimento
histórico real aí dissimulado e em proclamar como último e único “Absoluto”
este movimento revolucionário.37 Mas eis que Lenin retorna às
oposições absolutas entre o “pensamento” e o “ser”, o “espírito” e a “matéria”,
já superadas dialeticamente por Hegel e que foram objeto, nos séculos XVII e
XVIII, da controvérsia filosófica — e, ainda, em parte religiosa — que opunha
as duas tendências da Aufklärung.38
Naturalmente, um tal materialismo, que tem como ponto de partida a
representação metafísica de um Ser dado no absoluto, nada tem realmente a ver —
apesar de todas as insistências formais — com uma concepção dialética universal
e sobretudo dialético-materialista. Lenin e os seus seguidores
transportam unilateralmente a dialética ao objeto (vale dizer, à natureza e à
história) e descrevem o conhecimento como simples reflexo e reprodução passivos
deste ser objetivo na consciência subjetiva; assim, suprimem efetivamente toda
relação dialética entre o ser e a consciência e, por uma
consequência necessária, entre a teoria e a práxis. Não contentes
em pagar, desta forma, um involuntário tribulo ao “kantismo” que tinham
ardentemente combatido, não contentes em fazer retroceder a questão das
relações entre a totalidade do ser histórico e todas as formas históricas
existentes da consciência (já postas amplamente pela dialética de Hegel e,
especialmente, pela dialética materialista de Marx e de Engels) e de retornar
ao problema “gnosiológico” muito mais limitado das relações entre o objeto e
o sujeito do conhecimento, eles concebem este conhecimento como um processo
evolutivo que se desenrola sem enfrentar contradições fundamentais e como uma
progressão infinita em direção a uma Verdade absoluta. Abandonando
completamente a concepção materialista dialética que Marx tinha das relações
entre a teoria e a práxis, tanto em geral quanto em face do movimento
revolucionário, eles retornam à oposição — a mais abstrata possível — entre uma
teoria pura que descobre as verdades e uma prática pura que
aplica à realidade essas verdades enfim descobertas. “A unidade real de teoria
e prática se realiza na transformação prática da realidade pelo movimento
revolucionário, que se apoia nas leis de desenvolvimento do real descobertas
pela teoria”. É com este dualismo, que corresponde cabalmente às
representações do mais vulgar idealismo burguês, que um intérprete
filosófico de Lenin (que não se afasta um milímetro da doutrina do mestre)
opera a degradação da magistral unidade dialético-materialista da “práxis
revolucionária” de Marx.39
Outra consequência inevitável dessa deliberada ênfase no materialismo
às expensas da dialética é a esterilidade dessa filosofia materialista
em face do desenvolvimento efetivo das ciências sociais e das ciências da
natureza. De fato, tornou-se moda, no marxismo ocidental, enfatizar o “método”
materialista dialético e os resultados obtidos graças a ele nas ciências e na
filosofia, mas esta atitude ignorava totalmente o espírito da dialética,
sobretudo da dialética materialista. Com efeito, para uma concepção dialética, método
e conteúdo são inseparáveis e, segundo a fórmula bem conhecida de Marx, “a
forma não tem valor se não é a forma de um conteúdo’’.40 Subjaz
àquela ênfase, todavia, a ideia inteiramente correta de que a importância
assumida pelo materialismo dialético, desde a metade do século XIX, nas
ciências sociais e nas ciências da natureza diz respeito, antes de mais nada,
ao seu método.41”
37 Ver, de uma parte, a conhecida passagem do posfácio à segunda edição
de O capital, de 1873, e, de outra, nos
parágrafos introdutórios do seu Ludwig Feuerbach, a apreciação de Engels
sobre “a significação real e o caráter revolucionário” da filosofia de Hegel,
que ele considera como “o coroamento de todo o movimento filosófico iniciado
com Kant”. Nas frases iniciais de Ludwig Feuerbach: “O conservadorismo
desta concepção é relativo; seu caráter revolucionário é absoluto; é o único
absoluto que ela deixa de pé” [ver, na ed. bras. cit., p. 172-173]. É
desnecessário observar que o termo absoluto tem, seja em Engels, seja em
nosso próprio texto, um sentido figurado — precisamente quando, de repente,
Lenin e os seus recomeçaram a falar alegremente de um Ser absoluto e de uma
Verdade absoluta num sentido que nada tem de figurado!
38 Ver, na Fenomenologia do espírito, a notável crítica histórica — a despeito da inevitável mistificação
idealista nela contida — que Hegel dirige contra as duas tendências da Aufklärung
nos séculos XVII e XVIII: “Um dos iluminismos denomina essência absoluta
esse absoluto sem predicados que está para além da consciência efetiva no
pensamento do qual se partiu; o outro, o chama matéria. Se fossem
distinguidos como Natureza e Espírito ou Deus, faltaria então ao
existir carente de consciência de si mesmo, para ser natureza, a riqueza da
vida desenvolvida; e faltaria ao Espírito ou Deus a consciência que em si mesma
se diferencia. Os dois são pura e simplesmente o mesmo conceito, como vimos. A
diferença não reside na Coisa, mas puramente apenas nos diversos pontos de
partida das duas formações, e no fato de que cada uma se fixa em um ponto
próprio no movimento do pensar. Se fossem mais adiante, teriam de se encontrar
e de reconhecer como o mesmo o que para um — como ele pretende — é uma
abominação e, para o outro, uma loucura” [G. W. F. Hegel. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992, v. 2, p. 89]. Ver também, em A sagrada família, a crítica materialista que Marx dirige não a esta apresentação de Hegel
do materialismo e do teísmo como “as duas partes de um só e mesmo princípio”,
mas ao ralo xarope que dela extrai Bruno Bauer (Nachlass, v. 2, p. 231 e
ss. [ver K. Marx e F. Engels. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 143 e ss.]).
39 Ver, de um lado, as Teses sobre Feuerbach, de Marx (1845) e, de outro, a exposição da relação “dialética” entre
teoria e práxis revolucionária por A. Deborin, na sua anticrítica contra Lukács
(“Lukács und seine Kritik des Marxismus” [citado supra, na nota 28], p. 640 e
ss.). Seria supérfluo demonstrar detalhadamente que Lenin vincula resolutamente
a teoria de Marx a uma concepção não dialética, o que se pode constatar em cada
linha da sua obra filosófica; observemos apenas que, nessa obra, cujas quase
quatrocentas páginas tratam das relações entre o ser e a consciência, ele as
toma somente a partir do ponto de vista gnosiológico mais abstrato. Ele jamais
situa o conhecimento no mesmo plano das outras formas histórico-sociais da
consciência, jamais o examina como fenômeno histórico, como “superestrutura”
ideológica da respectiva estrutura econômica da sociedade (ver o prefácio de Marx à Crítica da economia política) ou como simples “expressões gerais de relações efetivas de uma luta de
classes que existe” (Manifesto comunista...) [ver K. Marx e F. Engels. Manifesto do Partido Comunista. São
Paulo: Cortez, 1998, p. 21].
40 Ver Nachlass, v. 1, p. 319. [Esta exata fórmula de Marx, a que
Korsch retornará, encontra-se em texto não vertido ao português — precisamente
num dos artigos da série em que, na Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), Marx
analisou os debates da VI Dieta renana acerca da lei sobre os roubos de lenha
(edição de 3 de novembro de 1842).]
Isto foi reconhecido à época pelo mestre de Lenin em filosofia, o
teórico russo Plekhanov, considerado durante algum tempo por toda a ortodoxia
marxista do Ocidente e do Oriente como a verdadeira autoridade em todas as
questões filosóficas do marxismo. Por exemplo, ele escreve em Questões
fundamentais do marxismo (publicado em alemão em 1913 [ed. bras.: Rio de
Janeiro, Vitória, 1956]), quando passa da exposição da filosofia materialista à
discussão do método materialista dialético e de sua aplicação às ciências da
natureza e às ciências sociais: “A concepção materialista da história tem,
antes de tudo [!], uma significação metodológica”. No plano
filosófico, as relações entre Plekhanov e Lenin são tais que é o discípulo que,
aceitando cegamente o essencial das doutrinas do mestre, leva-as às últimas
consequências, desembaraçando-se de quaisquer outras considerações. É, pois,
historicamente inexato descrever como uma consequência do seu “desvio
socialpatriótico” durante a guerra a “revisão”, por Plekhanov, em seu último
período, e por sua discípula Axelrod-Orthodox, de suas concepções filosóficas
anteriores “no sentido de uma aproximação à filosofia de Kant”, como o fazem os
bolcheviques, mas também, por exemplo, o menchevique de esquerda Schifrin (ver
o seu estudo crítico sobre o “marxismo soviético”, em Gesellschaft, v.
4, n. 7, p. 46 e nota 6). Na realidade, Plekhanov, já antes e em particular nas
primeira e segunda edições (1902 e 1905) da sua tradução de Ludwig
Feuerbach, de Engels, estava próximo — muito mais do que Lenin em qualquer
momento — da teoria do conhecimento tingida de kantismo de alguns cientistas
modernos. Ver, na nota 7 da edição alemã de Materialismo e
empirio-criticismo, as duas formulações da “teoria dos hieróglifos” de
Plekhanov; o autor desta nota, L. Rudas, retomando servilmente a concepção que
Lenin sustentava por razões táticas, apresenta a segunda fórmula como uma retificação
do que, na primeira, seria “equívoco”. Mas, quando se comparam as duas
fórmulas de modo científico e imparcial, conclui-se que Plekhanov, em 1905,
quando recusa à coisa em si “qualquer forma” fora da sua ação sobre nós, é, no
mínimo, tão agnóstico no sentido leninista do termo como quando, em
1902, caracteriza as nossas sensações como “uma espécie de hieróglifos” que,
sem serem semelhantes aos eventos, “traduzem, todavia, de um modo perfeitamente
correto tanto os próprios eventos quanto — e isto é o essencial — as relações
que mantêm entre si”. A única vantagem desta última fórmula sobre a primeira é
que ela “não faz qualquer concessão terminológica aos adversários” e, portanto,
que a incompreensão total do problema gnosiológico sobre o qual repousa toda a
teoria dos hieróglifos torna-se menos visível sob estas novas vestes.
Detive-me, detalhadamente, sobre esta questão no meu Auseinandersetzung mit
Kautsky, p. 111 e ss. [A edição portuguesa citada de Materialismo e
empiriocriticismo não contém a nota de Rudas mencionada por Korsch; mas há
referência à questão, na nota editorial 75, p. 283-284.]
“Eis por que declaramos expressamente que a
continuação da luta proletária revolucionária — que, em Marxismo e
filosofia, designamos como “ditadura ideológica” — distingue-se por
três aspectos do sistema de opressão intelectual que, em nome do que se
chama “ditadura do proletariado”, se exerce hoje na Rússia. Em primeiro lugar,
ela é uma ditadura do proletariado, não uma ditadura sobre o proletariado. Em
segundo lugar, é uma ditadura da classe, não do Partido ou dos dirigentes do
Partido. Enfim, e acima de tudo, é uma ditadura revolucionária, um simples
elemento no processo de transformação social radical que, com a supressão das
classes e dos seus antagonismos, cria as condições para a “extinção do Estado”
e, simultaneamente, para a supressão de toda coerção ideológica. Assim
compreendida, a “ditadura ideológica” tem por tarefa essencial suprimir as suas
próprias causas materiais e ideológicas, tornando-se ela mesma inútil e
impossível. E o que distinguirá, desde o primeiro dia, esta ditadura
proletária autêntica de todas as suas contrafações é que ela não criará somente
as condições de uma tal liberdade espiritual para “todos” os trabalhadores, mas
também para “cada um deles” tomados como tais — liberdade que jamais existiu,
em qualquer parte, para os escravos assalariados do capital, oprimidos
física e intelectualmente na sociedade de classes burguesa, a despeito de toda
“democracia” ou “liberdade de pensamento” que se possa invocar. Esta
concretização do conceito marxiano de ditadura proletária revolucionária faz
desaparecer a contradição que, sem esta determinação mais precisa, pareceria
subsistir entre a exigência de uma “ditadura ideológica” e o princípio
essencialmente crítico e revolucionário do método materialista dialético e da
concepção comunista do mundo. Tanto nos seus fins quanto nos seus meios, o
socialismo é um combate pela realização da liberdade.”
(Korsch comenta
aqui o famoso trecho do prefácio de 1859 de Para a crítica da economia política, que pode ser acessado nesse link.)
“Como Marx assinala expressamente, não se deve procurar nessas frases,
tal como se apresentam, mais que um “fio condutor” para o estudo dos dados empíricos
(isto é, históricos) da vida social do homem; posteriormente, Marx
manifestou-se mais de uma vez contra os que nelas procuraram ver algo mais que
aquele “fio condutor”.
Contudo, é indubitável que, por trás dessas frases, há mais do
que elas exprimem imediatamente. Não apreenderemos todo o seu sentido se nos
limitarmos a ver nelas o enunciado hipotético de um “princípio heurístico”.
Elas contêm o essencial do que Marx escreveu antes e depois e nelas se encontra
o que merece — mais do que qualquer das pretensas “filosofias” produzidas pela
época burguesa moderna — o título de “visão filosófica” de mundo. De fato, a
rígida separação entre a teoria e a práxis, que justamente caracteriza essa
época, e que a filosofia da Antiguidade e da Idade Média desconheceu, é aqui,
pela primeira vez nos tempos modernos, completamente superada (o que Hegel já
preparara, ao elaborar o seu método dialético). Páginas atrás, citamos algumas
palavras de uma célebre passagem do Manifesto comunista concernentes à significação das “concepções teóricas” no sistema do
comunismo marxista:
[...] as concepções teóricas dos comunistas não repousam sobre ideias,
princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo.
Elas apenas exprimem, em termos gerais, as condições reais de uma luta de
classes que existe, de um movimento histórico que se desenvolve sob nossos
olhos.
Eis aqui a antítese exata da ideologia burguesa, que repousa sobre os
princípios e os ideais teóricos considerados como essências ideais válidas em
si mesmas, autônomos em face da realidade comum, terrena e material, de sorte
que o mundo pode ser melhorado a partir de uma Ideia que lhe é exterior. Tais
palavras do Manifesto comunista encontram fundamentação, a mais precisa e detalhada, nas onze Teses sobre Feuerbach, redigidas por Marx para a sua “clarificação pessoal”, em 1845, mais
tarde dadas à luz por Friedrich Engels como um apêndice de suas próprias ideias
filosóficas (Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, 1888).
As onze Teses sobre Feuerbach contêm muito mais do que “o embrião genial
da nova concepção de mundo”, que é como Engels as apresenta. Nelas se encontra,
com um audacioso rigor e uma luminosa clareza, toda a concepção filosófica
fundamental do marxismo. Sob esses onze golpes sabiamente dirigidos, vemos
destruídos todos os suportes em que se apoiava a filosofia burguesa. Marx não
se detém minimamente no dualismo banal entre pensamento e ser, vontade e ação,
que ainda hoje caracteriza a filosofia vulgar da época burguesa — ele empreende
imediatamente a crítica dos dois grandes grupos de sistemas filosóficos que já
tinham aparentemente ultrapassado, no interior do mundo burguês, esse dualismo:
de um lado, o sistema do “materialismo” anterior, que culmina em Feuerbach; de
outro, o sistema do “idealismo” de Kant-Fichte-Hegel. Ambos têm seu caráter
equivocado posto a nu e, em seu lugar, surge o novo materialismo que dissipa
todos os mistérios da teoria de um só golpe ao situar o homem, como ser ao
mesmo tempo pensante e atuante, no mundo; e ao tomar agora a objetividade do
mundo em seu conjunto como o “produto” da “atividade” do “homem socializado” (vergesellschafteten).
Esta inflexão filosófica decisiva se exprime de modo mais conciso e
significativo na oitava tese: “Toda vida social é essencialmente prática. Todos
os mistérios que induzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional
na prática humana e na compreensão desta prática”.5
Para compreender o que há de verdadeiramente novo nesta concepção de
Marx, é necessário tomar consciência do que a distingue, de um lado, do
“idealismo” e, de outro, do “materialismo” que a precederam. Em oposição ao
“idealismo”, que, mesmo na filosofia hegeliana da identidade, contém sempre
visivelmente o “além” como momento principal, o “materialismo” de Marx situa-se
sempre no âmbito de um “aquém” plenamente realizado: não apenas todos os
“ideais” ético-práticos, mas igualmente todas as “verdades” teóricas têm, para
Marx, uma natureza estritamente terrena. Que os deuses eternos cuidem das
verdades divinas e eternas! Todas as verdades que disseram ou dirão respeito a
nós, seres terrenos, são de natureza terrena e, portanto, estão submetidas —
sem qualquer privilégio — à “caducidade” e a todas as outras chamadas
“insuficiências” dos fenômenos terrenos. Contudo, de outra parte e ao contrário
do que frequentemente imaginou o antigo “materialismo”, nada no mundo do homem
é um ser morto, um jogo cego de forças inconscientes e de matéria sem sentido —
assim como não o são as “verdades”. Todas as “verdades” humanas são sobretudo,
como o próprio homem que as pensa, um produto — e um produto humano, à
diferença dos chamados puros “produtos da natureza” (que, enquanto naturais,
não podem ser, no sentido próprio da palavra, “produtos”!). Elas são, pois, em
termos mais precisos, um produto social, criado ao mesmo tempo que
outros produtos da atividade humana pela cooperação dos homens no marco da
divisão do trabalho, nas condições naturais e sociais de produção de uma época
determinada da história da natureza e da história humana.
Temos, agora, a chave de toda a “concepção materialista da sociedade” de
Karl Marx. Todos os fenômenos do mundo real em que se desenvolve a nossa
existência de seres pensantes e de seres atuantes — ou de seres ao mesmo tempo
pensantes e atuantes — dividem-se em dois grupos principais: de uma parte,
pertencemos (nós e tudo quanto existe) a um mundo que podemos considerar como
“natureza”, um mundo “não humano”, totalmente independente do nosso pensamento,
da nossa vontade e da nossa ação; de outra parte, enquanto seres capazes de
pensar, querer e agir, estamos situados num mundo sobre o qual exercemos uma
ação prática, cujos efeitos práticos experimentamos e que, portanto, podemos
considerar essencialmente como nosso produto, da mesma forma que somos produto
dele. Entretanto, esses dois mundos, o mundo natural e o mundo da prática
histórica e social, não existem separadamente — constituem, na realidade, um só
mundo —, e a sua unidade advém de que ambos estão envolvidos na existência
passiva-ativa dos seres humanos, que continuamente reproduzem (pela sua
atividade coletiva no marco da divisão do trabalho e pelo seu pensamento) o
conjunto da sua realidade. Mas o vínculo entre esses dois mundos assim
considerados só pode residir na economia ou, mais exatamente, na “produção
material”; Marx o disse expressamente numa “Introdução geral” à sua crítica da economia política, “esboçada” em 1857 também para o
seu “esclarecimento pessoal”:6 a vida histórica e
social do homem se constitui, se renova e se desenvolve sob a interação de
múltiplos fatores e, dentre todos estes, é o processo de produção material que
os “vincula” a todos entre si e os organiza numa unidade real.”
5 [Ver K. Marx e F. Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007,p. 534 e 539.]
6 Esta “Introdução”, que nos oferece o resumo mais profundo das
premissas da investigação de Marx, foi publicada pela primeira vez na Neue
Zeit, v. 21,n. 1, p. 710 e ss. [Ver, supra, a nota 35, no capítulo
“Marxismo e filosofia”.]
“Já é tempo de
colocar um ponto final na concepção superficial que visualiza o trânsito da
dialética de Hegel à dialética de Marx como uma operação tão simples que se
poderia efetivar meramente por uma “inflexão” ou “inversão” de um método que,
quanto a todo o resto, permaneceria inalterado. É verdade que há passos muito
conhecidos de Marx nos quais ele caracteriza a diferença entre o seu próprio
método e o de Hegel dessa maneira abstrata, como uma simples contraposição. Mas
se penetrarmos na práxis teórica de Marx, ao invés de determinar a essência do
seu método a partir de citações, rapidamente veremos que aquele “trânsito”
metodológico — como todas as passagens desta natureza longe de aparecer como
uma inflexão puramente abstrata, envolve um conteúdo concreto de enorme
riqueza.
Ao tempo em que a economia clássica desenvolvia a lei do valor sob
a forma “mistificada”, abstrata, a-histórica que Ricardo lhe conferira, a
filosofia alemã tentou, também ela de forma mística e abstrata, superar
intelectualmente os limites do pensamento burguês. Assim como a lei do valor de
Ricardo, o “método dialético” — elaborado, como tal lei, à mesma época
revolucionária da sociedade burguesa — transcende esta sociedade nas suas
consequências (do mesmo modo como o movimento revolucionário prático da
burguesia já a ultrapassa parcialmente, em seus fins, enquanto o movimento
revolucionário proletário ainda não se constitui “autonomamente”). Mas todos os
conhecimentos adquiridos graças à economia e à filosofia burguesas permanecem,
em última análise, conhecimentos “puros”: seus conceitos são o “ser
restabelecido”, e suas teorias, o mero “reflexo” passivo deste ser, puras
“ideologias” no sentido mais estrito e preciso desta palavra em Marx. A ciência
econômica e a filosofia burguesas podiam reconhecer as “contradições”, as
“antinomias” da economia e do pensamento burgueses e até torná-las
transparentes; mas, no fim das contas, tinham de deixá-las subsistir. Essa
espécie de encantamento só pode ser rompida pela nova ciência do proletariado,
que não é nem pretende ser, como a ciência burguesa, uma “pura” ciência
teórica, e sim, ao mesmo tempo, uma práxis revolucionária (umwälzende
Praxis). A economia política de Karl Marx e a dialética materialista do
proletariado conduzem, na sua implementação prática, à resolução daquelas
contradições na realidade da vida social e, por sua vez, do pensamento, que
dela é parte constitutiva. Compreende-se, assim, que Karl Marx atribua à
consciência de classe proletária e ao seu método dialético-materialista uma
força que o método da filosofia burguesa jamais teve, inclusive em sua forma
última, a mais rica e mais elevada, a de Hegel. Somente o proletariado
mostra-se capaz, mediante o desenvolvimento da sua consciência de classe,
tornada tendencialmente prática, de superar o limite de uma última
“Imediaticidade” ou uma última “Abstração” — limites que subsistem e se tornam
manifestos nas suas contradições insuperáveis no marco da perspectiva de um
conhecimento puro e mesmo da dialética idealista de Hegel. É aqui — e não numa
mera “inflexão” ou “inversão” abstratas — que reside o desenvolvimento
revolucionário da dialética idealista e da filosofia burguesa clássica em uma
dialética materialista, dialética que Marx estabeleceu teoricamente como método
da ciência e da práxis novas do proletariado e que Lenin empregou teórica e
praticamente.
Ora, se se considera sob este ponto de vista o “trânsito” da dialética
burguesa de Hegel à dialética proletária de Marx e Lenin, verifica-se que é
absurdo pensar a concepção da dialética materialista como um “sistema”
autônomo. Somente um dialético idealista pode pretender autonomizar todas as
formas do pensamento (determinações, categorias) — de que, por uma parte,
fazemos uso consciente na práxis, na ciência e na filosofia, e, por outra
parte, perpassam instintiva e inconscientemente o nosso espírito — do objeto da
intuição, da imaginação e do desejo, com o qual estão ordinariamente
envolvidas, para considerá-las em si mesmas, como um objeto particular. O
último e maior dos dialéticos idealistas, o burguês Hegel, já denunciara em
parte a “falsidade” de um tal ponto de vista e “introduziu o conteúdo na
lógica” (ver as precisões feitas no prefácio à segunda edição da Lógica, ed.
Lasson, p. 17 e ss.). Mas, para o dialético materialista, este procedimento é
absurdo. Uma dialética verdadeiramente “materialista” não pode dizer
rigorosamente nada das determinações do pensamento em si mesmas, nem das suas
inter-relações, fazendo abstração do seu conteúdo histórico concreto. Apenas de
um ponto de vista idealista (isto é, burguês), a dialética poderia — atendendo
à demanda de Thalheimer — “esclarecer a relação interna, universal,
sistemática, de todas as categorias do pensamento”. Em troca, do ponto de vista
materialista, é preciso retomar, a propósito de todas as categorias ou
determinações do pensamento em geral, o que Marx observou em relação às
“categorias econômicas”: elas não mantêm entre si relações “na ideia” (concepção
obscura que valeu a Proudhon a severa censura de Marx), não estão numa “relação
interna sistemática”; ao contrário, o seu encadeamento, em aparência puramente
lógico e sistemático, é “determinado pelas relações que elas mantêm entre si na
sociedade burguesa moderna”. Com a transformação da realidade e da práxis
históricas, transformam-se também as categorias do pensamento e todas as suas
relações. Negligenciar esta correspondência histórica e pretender enquadrar as
determinações do pensamento e suas relações num sistema abstrato significa
sacrificar a dialética “materialista”, proletária e revolucionária a um modo de
pensar que só teoricamente beneficiou-se da inversão “materialista” e que
continua a ser, na realidade prática, a velha dialética “idealista” da
filosofia burguesa. A dialética materialista do proletariado não pode ser
ensinada de forma abstrata, nem mesmo com a ajuda de pretensos exemplos, como
uma ciência particular que dispõe de um objeto próprio. Ela só pode ser
aplicada concretamente na práxis da revolução proletária e numa teoria
que seja parte constitutiva, imanente e real desta práxis revolucionária.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário