Editora: Companhia das
Letras
ISBN: 978-85-359-1378-1
Tradução: Hildegard
Fiest
Organização: Paul Veiny
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 648
Sinopse: Ver Parte
I
2. Antiguidade tardia — Peter
Brown
“Seja qual for a
cidade, o fato fundamental da sociedade do Império Romano é a convicção de que
existe uma distância social intransponível entre os notáveis “bem-nascidos” e
seus inferiores. A evolução mais sensível do período romano é a discreta
mobilização da cultura e da educação moral para afirmar tal distância. As
classes superiores procuram diferenciar-se das inferiores através de um estilo
de cultura e vida moral cuja mensagem mais vibrante é que não pode ser
partilhado pelos outros. Elas criaram uma moral da distância social,
estreitamente ligada à cultura tradicional posta à disposição das elites em
suas cidades. No próprio seio dessa cultura e da moral que a acompanha reside a
necessidade de assimilar as regras concretas do intercâmbio entre pessoas das
classes superiores na condução dos negócios públicos da civitas.”
“Baseada na posição e
na autovigilância, a qualidade de uma moral, arraigada na necessidade de uma
pessoa da classe superior de provar a distância social por meio de um código
excepcional de comportamento, imediatamente aparece nas preocupações morais da
época antonina. Tomemos dois exemplos: as relações com os inferiores e as
relações sexuais. Veremos que são igualmente regulamentadas por um exigente
código de comportamento público.
Condena-se espancar
um escravo num acesso de raiva. Não porque se trata de cometer um ato desumano
contra um irmão humano, mas porque tal rompante representa uma ruptura da
autoimagem harmoniosa do homem “bem-nascido”. A irrupção de uma violência
anormal constitui uma forma de “contágio moral” que leva o senhor a
comportar-se com um escravo de modo tão incontrolado quanto o do próprio
escravo.
MEDO DO PRAZER
Preocupações
similares determinam as atitudes frente às relações sexuais. Não se estabelece
distinção entre amor homossexual e amor heterossexual; o prazer físico é visto
como uma continuidade subjacente entre os dois; o prazer sexual, enquanto tal,
não coloca nenhum problema para o moralista da classe superior. Em compensação,
julga-se — e muito severamente — o efeito que tal prazer pode exercer sobre o
comportamento público e as relações sociais do homem. A vergonha que pode estar
ligada a uma relação homossexual reside apenas no “contágio moral” que pode
levar um homem das classes superiores a submeter-se ou fisicamente, adotando
uma posição passiva no ato sexual, ou moralmente, entregando-se a um inferior
de qualquer sexo. As relações entre homens e mulheres estão sujeitas às mesmas
limitações. As inversões da verdadeira hierarquia — da qual constitui um
exemplo típico a prática da sexualidade oral com uma parceira — são as mais
reprovadas e (será preciso dizer?) estimulantes formas de degradação, sob o efeito
do “contágio moral” de uma pessoa inferior: a mulher. O medo da efeminação e da
dependência emocional, fundamentado na necessidade de manter a imagem pública
de um homem realmente integrado à classe superior, e não em escrúpulos
relativos à sexualidade em si, determina o código moral segundo o qual a
maioria dos notáveis conduz sua vida sexual.
Nos dois casos o medo
da sujeição social a um inferior é sutilmente apoiado por uma ansiedade
fisiológica convergente. Um homem é um homem porque evolui com eficácia no
mundo público. E evolui porque seu feto “cozinhou” no calor do ventre mais
completamente que o de uma mulher; também seu corpo é um reservatório dos
“calores” preciosos dos quais depende a energia masculina. Embora se possa
estabelecer seguramente a diferença entre homens e mulheres — no caso da mulher
pelo baixo nível de “calor” e pela consequente fraqueza moral de seu
temperamento —, o homem ativo não se beneficia de semelhante segurança. Sempre
pode perder “calor”. Uma descarga sexual excessiva pode “resfriar-lhe” o
temperamento, e a perda de seus recursos se revelaria então com impiedosa
clareza, através de uma perda de entusiasmo na cena pública. Assim, a voz plena
e musical do homem público, que Quintiliano e seus contemporâneos tanto gostam de
ouvir ressoar pelos barulhentos espaços públicos da cidade, é o fruto precioso
de uma masculinidade cuidadosamente preservada pela “abstinência sexual”. O
puritanismo bem real das morais tradicionais das classes superiores nos mundos
grego e latino pesa muito sobre aqueles que as adotaram. Não depende da
sexualidade em si, mas baseia-se, antes, na sexualidade como fonte possível de
“contágio moral”. Através da “efeminação”, supostamente resultante de prazeres
sexuais excessivos com parceiros de ambos os sexos, a complacência sexual pode
com efeito corroer a superioridade incontestada do “bem-nascido”.
BOM PARA O POVO
Daí também o
particularismo restritivo dos códigos sexuais da época, que não se aplicam a
todos. Os notáveis tendem a se submeter e a submeter suas famílias a um código
de austero puritanismo masculino, mais próximo do que ainda se pratica nas
regiões islâmicas do que do puritanismo da Europa setentrional moderna.
Entretanto, envoltos em suas atitudes obrigatórias, os notáveis são mais livres
para manifestar a outra face de seu eu público, sua popularitas [vontade
de agradar ao povo]. Nas relações com os inferiores, como distribuidores das boas
coisas da vida urbana, prodigalizam, àqueles que a seu ver devem desfrutá-los,
prazeres mais vulgares que os seus: uma sucessão de espetáculos, comodidades e
decorações cujas crueza e franca obscenidade contrastam de modo flagrante com o
autocontrole altaneiro que esses homens se arrogaram com o sinal de sua
condição superior dentro da cidade. Aristocratas muito cultos patrocinam as
medonhas carnificinas das lutas de gladiadores nas cidades gregas da época
antonina. E a ascensão do cristianismo não muda muito esse aspecto de sua vida
pública. Se um leitor contemporâneo se lembra do imperador Justiniano, possivelmente
é por causa da descrição que Procópio faz da carreira juvenil de sua esposa,
Teodora, uma dançarina de striptease do teatro público de Constantinopla, onde
os gansos iam comer grãos em suas partes íntimas diante de milhares de
cidadãos. É importante reter na mente a precisão venenosa desse detalhe:
trata-se de uma mulher do povo, e as restrições morais dos códigos das classes
superiores simplesmente não lhe dizem respeito. Sob todos os aspectos, Teodora
é a antítese das respeitáveis mulheres casadas da classe superior, que, nessa
época, se velam sobriamente e vivem reclusas em Constantinopla. Não obstante,
como notáveis, os maridos dessas damas respeitáveis durante séculos financiaram
tal gênero de exibições para a glória eterna de sua pessoa e de sua cidade.
Também não deve nos surpreender a longa sobrevivência da indiferença com
relação à nudez na vida pública romana. Essa sociedade não está presa à
generalização implícita da vergonha sexual. A nudez do atleta continua sendo um
indício de posição para os “bem-nascidos”. O papel essencial dos banhos
públicos como pontos de reunião da vida cívica faz da nudez entre os pares e
diante dos inferiores uma experiência cotidiana inevitável. Como vimos, os
códigos de comportamento também concernem ao corpo; por isso as roupas das
classes superiores na época antonina, embora caras, não têm a magnificência
cerimonial daquelas dos períodos ulteriores. A postura de um homem, nu ou
vestido, é a verdadeira marca de sua condição, uma marca tanto mais convincente
quanto minimizada. Para as mulheres, a vergonha social que haveria em se exibir
de modo inconveniente constitui uma preocupação, não o simples fato de se
mostrar nua: a nudez diante dos escravos é moralmente tão insignificante quanto
a nudez diante dos animais; e a exibição física das mulheres das classes
inferiores constitui outro sinal de sua desregrada inferioridade em relação aos
poderosos.
Nas cidades da época
dos Antoninos, as realidades do poder pesam como uma atmosfera carregada ainda
que impalpável sobre os súditos da classe superior de um império mundial. Por
íntima que seja a vida de uma cidade média, Roma é um império fundado na
violência e protegido pela violência. A crueldade dos combates de gladiadores é
exibida como parte da celebração oficial do imperador em todas as grandes
cidades do Mediterrâneo. Esses espetáculos fazem compreender a vontade
sanguinária de governar da elite italiana. Mesmo os jogos a que se dedicam os
humildes quando lançam dados nos recantos do foro são jogos guerreiros; os
lances significam: “Os partos estão mortos; os bretões estão conquistados; os
romanos podem jogar”. Não se dissimula o fato de que a política das cidades
pequenas, que continuam sendo a principal escola do caráter dos notáveis em
todas as regiões, desenrola-se doravante “sob vigilância”: está submetida à
constante intervenção do governador romano ladeado por sua guarda de honra
militar, que empunha o gládio e o dardo do legionário. Para que a vida das
cidades continue, a disciplina e a solidariedade das elites locais e sua
capacidade de controlar seus administrados devem ser mobilizadas ainda com mais
consciência do que antes. Um sentimento de disciplina pública é levado a
penetrar mais profundamente nas vidas privadas dos notáveis: é o preço a pagar para
manter o status quo da ordem imperial. Daí a profunda mudança da atitude
com relação aos cônjuges no decorrer do século II.”
“UMA IGREJA RICA E
MARGINAL
Na nova cena urbana o
bispo cristão e sua Igreja não passam de um elemento. Agora pode-se construir
numerosas e magníficas igrejas graças às doações imperiais e segundo o novo
modelo imperial, a basílica, edifício muito semelhante à “sala de
audiência” do imperador e ao trono do juízo de Deus, o imperador invisível da
cidade. O clero pode se beneficiar com exonerações e alocações de alimento a
título de privilégio. O bispo tem acesso aos governadores e aos potentes;
intervém sobretudo em favor dos pobres e oprimidos. Agostinho
nota, porém, que muitas vezes o fazem esperar na antecâmara dos grandes e que
gente mais importante entra antes dele. Por impressionante que pareça, a Igreja
do século IV continua marginal em relação ao saeculum, a um “mundo”
cujas estruturas principais evoluem sob as fortes pressões do poder e da
necessidade de segurança e hierarquia. O cristianismo é periférico a esse saeculum,
mesmo que agora seja a fé nominal dos poderosos.
A comunidade cristã
permanece unida através de uma miragem muito particular: a da solidariedade,
que doravante pode exprimir-se abertamente no decorrer de cerimônias na
basílica do bispo. Assim, conquanto não constitua realmente uma “assembleia dos
santos”, a basílica cristã é um lugar do qual estão francamente ausentes as
estruturas do saeculum. A hierarquia do século é menos nítida na
basílica do que nas ruas da cidade. Apesar da nova importância do clero, apesar
da cuidadosa segregação de homens e mulheres — o mais das vezes apartados de um
lado e outro das grandes naves da basílica —, apesar da consumada habilidade
dos poderosos para se destacarem da massa obscura dos inferiores com suas
espetaculares vestes domingueiras bordadas com cenas dos Evangelhos, as
basílicas cristãs permanecem uma reunião de homens e mulheres e pessoas de
todas as classes, igualmente expostos, sob a tribuna do bispo na abside, ao
olhar inquisidor de Deus. Sabemos que João Crisóstomo, quando estava em
Constantinopla, se tornou deliciosamente impopular graças a seu hábito de
acompanhar com os olhos cada um dos grandes proprietários de terras e os
cortesãos que deambulavam dentro e fora da basílica durante os sermões; seu
olhar penetrante os designava publicamente como os autores dos pecados e das
injustiças sociais que ele denunciava do alto de sua tribuna. E a velha
“liberdade de expressão” do filósofo, crítico dos grandes, que doravante pesa
sobre toda uma comunidade urbana, reunida por seu clero na “sala de audiência”
de Deus. Uma comunidade conduzida dessa maneira e por tais pessoas não podia
deixar de tentar transformar a cidade antiga numa comunidade moldada segundo
uma imagem, insólita, que lhe fosse própria.
Ao olhar de seus
dirigentes, a igreja é uma nova comunidade pública unida pela extraordinária
importância atribuída a três temas, delimitados com uma acuidade até então
inexistente no mundo antigo: o pecado, a pobreza, a morte. Esses três sombrios
conceitos, aparentemente abstratos e estreitamente interligados, habitam o horizonte
do cristão da Antiguidade tardia. Apenas afrontando-os de maneira definida já
sem equívocos pelo clero é que o homem e a mulher comuns poderão ganhar a “cidade
de Deus”, cujas delícias e prazeres francamente sensuais os mosaicos
cristãos da Antiguidade tardia evocam. Neles os cristãos dessa época contemplam
o rosto eternamente belo e tranquilo dos santos, dos homens e mulheres
agradáveis a Deus, que os colocou não no “além” asséptico e etéreo, nascido da
imaginação moderna, mas no antigo “paraíso das delícias”, “um lugar fertilizado
pelas águas refrescantes e de onde desapareceram a dor, o sofrimento e as
lágrimas”.
O PECADO
A basílica cristã
abriga uma assembleia de pecadores iguais em sua necessidade da misericórdia de
Deus. As fronteiras mais firmes no interior do grupo são aquelas que o pecado
traça. Não se deve subestimar o elemento de novidade de tal definição da
comunidade. Questões tão profundamente íntimas como os mores [costumes]
sexuais ou as opiniões pessoais sobre o dogma cristão podem ser julgadas pelos
membros do clero e justificar um ato público e vibrante de exclusão da Igreja
cristã. Um sistema inteiramente público de penitência impera nesse período. A
excomunhão acarreta a exclusão pública da eucaristia, e seus efeitos só podem
ser revogados por um ato igualmente público de reconciliação com o bispo.
Assim, na basílica do século IV, a solidariedade pública está normalmente
ligada à consequência do pecado e ao “crime por pensamento” de heresia, com uma
nitidez que desaparecerá nas épocas posteriores. O acesso à eucaristia implica
uma série de atos plenamente visíveis de separação e adesão. O rebanho dos
catecúmenos é expulso do edifício ao iniciar-se a liturgia principal da
eucaristia. A cerimônia começa pelo movimento dos crentes que colocam suas
oferendas no altar. Por ocasião da solene subida dos fiéis para participarem do
“alimento místico”, evidencia-se a hierarquia estabelecida no grupo cristão: os
bispos e o clero são os primeiros a se adiantar, seguidos pelos fiéis castos dos
dois sexos; os últimos de todos são os leigos casados. Num espaço especialmente
designado no fundo da basílica, muito longe da abside, ficam os “penitentes”,
cujos pecados os excluíram dos atos de participação tão concretos. Moralmente
humilhados, vestidos com mais simplicidade do que sua posição autoriza e com a
barba por fazer, esperam, sob o olhar da assistência, o gesto público de
reconciliação de seu bispo. Às vezes a hierarquia do saeculum e a
igualdade perante o pecado se chocam, e as consequências são memoráveis: em
Cesareia, Basílio recusa as oferendas do imperador herético Valente; em Milão,
Ambrósio coloca o imperador Teodósio no meio dos penitentes — o senhor do mundo
despojado de seu manto e do diadema — por haver ordenado o massacre da população
de Tessalônica.
A POBREZA
Os pobres também
chamam a atenção. Estropiados, indigentes, vagabundos e imigrantes de campos
muitas vezes assolados, aglomeram-se às portas da basílica e dormem sob os
pórticos que rodeiam seus pátios internos. Sempre se fala dos pobres no plural,
em termos que não têm mais relação nenhuma com a classificação “cívica”
precedente da sociedade dividida em cidadãos e não-cidadãos. São o anônimo
rebotalho humano da economia antiga. Tal anonimato precisamente os transforma
em remédio para os pecados dos membros mais afortunados da comunidade cristã.
Pois a esmola aos pobres constitui uma parte essencial da longa reparação dos
penitentes e o remédio normal para os pecados “veniais”, como a preguiça e os
pensamentos impuros e fúteis, que não demandam penitência pública.
A condição miserável
dos pobres recebe pesada carga de significados religiosos. Eles representam o
estado do pecador que diariamente precisa do perdão de Deus. A equação
simbólica entre o pobre e o pecador miserável e abandonado por Deus retorna com
insistência na linguagem dos Salmos,
que formam a coluna vertebral da literatura da Igreja e especialmente das
cerimônias penitenciais. Tal simbolismo era indispensável para despertar a
empatia graças à qual o citadino, habituado a ver essas desagradáveis ruínas
humanas como exceções ameaçadoras para a regra da antiga comunidade cívica de
cidadãos, concede ao pobre a privilegiada posição de símbolo da miserável
condição da humanidade da qual participa seu eu que é pecador. A esmola
torna-se uma analogia poderosa da relação de Deus com o homem pecador. Os
gemidos que os mendigos dirigem aos fiéis que entram na basílica para rezar
preludiam os apelos desesperados dos fiéis à misericórdia divina. “Quando
estiveres cansado de rezar e não receber”, diz João Crisóstomo, “pensa no
número de vezes em que escutaste um pobre pedir e não lhe deste ouvidos.” “Não
é erguendo as mãos [na atitude de rezar do orans suplicante] que serás
ouvido. Estende a mão não para o Céu, mas para o pobre.”
O anonimato do pobre
efetivamente ajuda a manter o sentimento da solidariedade indiferenciada dos
pecadores na Igreja. O ideal cívico, segundo o qual os grandes são obrigados a
dar generosamente, desempenha um papel atuante na Igreja cristã, pois implica também
que as prodigalidades estabeleçam a evidência do direito dos poderosos de
controlarem sua comunidade. Afinal, poucas basílicas teriam sido construídas
sem tal retorno. As mais espetaculares são oferecidas pelo imperador ou pelos
dirigentes do clero; são os atos de homens muito desejosos de provar à maneira
antiga que têm o direito de “alimentar” e portanto de controlar as congregações
cristãs que ali se reúnem. Os nomes dos que levam as oferendas ao altar são
lidos em voz alta durante as orações solenes que precedem a eucaristia e muitas
vezes aclamados, como na bela época da munificência cívica. Graças à noção de
pecado, pode-se esperar reduzir essa audaciosa pirâmide de patronato e
dependência. Os bispos, portanto, insistem no fato de que cada membro da
comunidade cristã, homem ou mulher, é pecador e que toda esmola, por modesta
que seja, é bem-vinda para os verdadeiros pobres. Por conseguinte, o aspecto
ostensivo do patronato dos grandes, que se expressa em pedras, mosaicos,
tapeçarias de seda e candelabros reluzentes, de cima para baixo à maneira da
antiga munificência cívica, é velado pela garoa leve mas persistente das
esmolas cotidianas do cristão pecador aos desgraçados anônimos.
AS MULHERES RICAS
Com efeito, a miséria
real dos pobres os torna clientes ideais para um grupo desejoso de evitar as
tensões causadas por relações de patronato com uma verdadeira clientela. De
todas as formas de patronato às quais o clero notoriamente foi exposto durante
muito tempo, a mais perigosa e aviltante aos olhos dos pagãos é a estreita
dependência com relação a mulheres ricas. Desde Cipriano, a pobreza e o papel
das mulheres influentes na Igreja são preocupações estreitamente ligadas. A
fortuna de numerosas virgens, viúvas e diaconisas cria laços de patronato e de
obrigação humilhante entre o clero e as mulheres que, no final do século IV,
são membros dirigentes da aristocracia senatorial. Tal riqueza e o patronato
que lhe é associado tocarão de modo muito mais certo os pobres, que, como todos
sabem, não podem retribuir prestando serviço, e sua clientela não vale nada.
Ademais, códigos estritos de segregação entre os sexos vetaram o acesso das
mulheres ao poder público dentro da Igreja. Toda infração a esses códigos
provoca um escândalo que se procura alimentar desde que desponte a ameaça de
mulheres virem a exercer influência na Igreja graças a sua fortuna, cultura ou
coragem superior. Esses tabus, no entanto, não se aplicam ao papel público de
uma mulher que socorre pobres farrapos humanos. Como protetoras dos pobres,
através da esmola e dos cuidados com os doentes e os estrangeiros nos
hospitais, as mulheres abastadas desfrutam de uma verdadeira posição pública
nas cidades da região mediterrânea, posição excessivamente rara nos outros
aspectos da vida pública dos poderosos sob o Império tardio, vida hierarquizada
e dominada pelos homens.
O BISPO
Patrono dos pobres e
protetor das mulheres influentes, cujas energias e fortuna coloca a serviço da
Igreja, diretor espiritual de vastos grupos de viúvas e virgens, o bispo
adquire importância na cidade do século IV; deliberadamente se associa em
público a essas categorias de pessoas cuja existência fora ignorada pelo antigo
modelo “cívico” dos notáveis urbanos. Segundo os termos dos Cânones de
santo Atanásio: “Um bispo que ama os pobres é rico, e a cidade e sua
circunscrição o honrarão”. Dificilmente se podia desejar um contraste mais
agudo com a imagem “cívica” que os notáveis ostentavam dois séculos antes.
A comunidade cristã
que cresce paralela à cidade antiga, onde está longe de ser dominante no século
IV, criou, todavia, através de suas cerimônias públicas, seu tipo pessoal de
uma nova forma de espaço público, dominado com segurança por um novo tipo de personagem
público: apoiados com firmeza por mulheres celibatárias, os bispos celibatários
fundamentam seu prestígio sobre sua capacidade de “alimentar” uma nova
categoria de pessoas, a categoria anônima e profundamente anticívica dos pobres
sem raízes e abandonados. No século V, as cidades do Mediterrâneo passam por
novas crises. As gerações que precedem e seguem imediatamente o ano 400
conhecem importantes catástrofes urbanas, como o saque de Roma pelos visigodos
em 410 e o surgimento de bispos influentes: Ambrósio em Milão, Agostinho em
Hipona, o papa Leão em Roma, João Crisóstomo em Constantinopla e o implacável
Teófilo em Alexandria. A questão que se coloca para tais gerações é saber como
a fachada restaurada da antiga cidade romana corre o risco de desmoronar,
deixando o bispo cristão, munido por sua própria definição “não cívica” da
comunidade, livre para intervir como o único ator representativo da vida urbana
nas margens do Mediterrâneo.
A MORTE
No exterior das
cidades estende-se a solidariedade mais tranquila e definitiva dos túmulos
cristãos. Em qualquer museu moderno, passar das salas pagãs às cristãs equivale
a penetrar num mundo de claros significados gerais. A diversidade pouco clara
dos sarcófagos da classe social superior dos séculos II e III — os eruditos não
acabaram de interrogá-los — deixa lugar a um repertório de cenas facilmente
reconhecíveis, inscritas, com poucas variações, em todas as tumbas cristãs. A
surpreendente variedade de inscrições funerárias pagãs e da arte funerária pagã
testemunha uma sociedade pouco rica em opiniões comuns referentes à morte e ao
além. A tumba era então um lugar privado porém privilegiado. A pessoa morta,
sustentada por seus grupos tradicionais — a família, os pares, os associados
funerários e, no caso dos grandes, a própria cidade —, devia, em sua linguagem
peculiar, explicar aos vivos o sentido de sua morte. Daí a extraordinária
proliferação de associações funerárias entre os humildes, o papel crucial do
mausoléu de família entre os abastados e a bizarra diversidade das declarações
do defunto ou a propósito do defunto. Pensamos num notável grego, Opramoas, que
cobriu seu túmulo com cartas de governadores romanos elogiando-lhe as
generosidades cívicas, e na mensagem de um humilde pedreiro que pede desculpa pela
qualidade dos versos de seu epitáfio! Esses túmulos constituem a alegria dos
leitores de epitáfios gregos e romanos, mas o desespero do historiador das
religiões que gostaria de retirar deles uma doutrina coerente sobre o além. No
mundo pagão dos séculos II e III nenhuma comunidade religiosa amplamente
difundida interferiu para sufocar tantas vozes privadas, e tão diferentes,
surgidas do além-túmulo.
Com a ascensão da
cristandade, a Igreja se introduz entre o indivíduo, a família e a cidade. O
clero afirma ser o grupo mais capaz de preservar a memória dos mortos. Uma
sólida doutrina cristã sobre o além, pregada pelo clero, esclarece os vivos
sobre o sentido da morte do defunto. As celebrações tradicionais no cemitério
permanecem habituais, porém já não bastam. Oferendas, no momento da eucaristia,
garantem que durante as orações o nome dos mortos será lembrado em toda a
comunidade cristã, apresentada como a mais vasta parentela artificial do
crente. Festas anuais em memória dos mortos e em benefício de suas almas —
oferecidas, como sempre, em favor dos pobres (esse eterno pretexto) —
desenrolam-se nos átrios das basílicas e mesmo em seu interior. Pois a Igreja,
e não mais a cidade, celebra a glória dos desaparecidos. E, uma vez introduzida
no recinto da basílica, a democracia do pecado estende-se para além do túmulo
de modo inconcebível para os pagãos. O clero pode recusar as oferendas feitas
em nome de membros não convertidos da família, de pecadores não arrependidos e
de suicidas.
A TUMBA
Uma nova acepção da
expressão “terra consagrada” persistentemente atrai os mortos à sombra das
basílicas. Grandes cemitérios cristãos, administrados pelo clero, existiram em
Roma desde o início do século III. Comportavam galerias subterrâneas
cuidadosamente construídas e concebidas de tal modo que grande número de pobres
encontrava sepultura. Talhados em nichos superpostos nas catacumbas, tais
túmulos constituem ainda hoje os testemunhos silenciosos da determinação do
clero de agir como patrono dos pobres. Até na morte os pobres são mobilizados:
as fileiras de túmulos humildes situadas a uma distância decente do mausoléu
dos ricos testemunham a solicitude e a solidariedade da comunidade cristã.
No final do século
IV, a difusão da prática do depositio ad sanctos — o privilégio de ser
enterrado perto do túmulo dos mártires — garante que, se a comunidade cristã
exigia uma hierarquia de estima entre seus membros, o clero, que controlava o
acesso a esses lugares consagrados, erigia-se em árbitro de tal hierarquia. Virgens,
monges e membros do clero são agrupados mais perto de numerosas tumbas de
mártires nos cemitérios de Roma, Milão e outros lugares. Essas novas elites da
Igreja urbana são seguidas de leigos humildes, admitidos ali em recompensa de
sua boa conduta cristã. “Probiliano […] a Hilaritas, uma mulher cuja castidade
e bondade natural eram conhecidas de todos os vizinhos […], Em minha ausência
ela permaneceu casta durante oito anos; por isso repousa neste lugar santo.”
Integrados de modo
bem visível nas Igrejas cristãs, os mortos são imperceptivelmente retirados de
sua cidade. A fim de assegurar o repouso e a permanente reputação de seus
defuntos, a família cristã doravante trata apenas com o clero. As formas
cívicas de testemunho passam a segundo plano. É só nas pequenas cidades
italianas tradicionais que o aniversário de um personagem público ainda
constitui ocasião para um grande banquete cívico para os notáveis e seus
concidadãos. No século IV a corte imperial celebra publicamente o luto do
“primeiro cidadão”, Petrônio Probo, o maior dos potentes de Roma. Mas,
em seguida, sua memória é confiada à tumba de são Pedro. Um esplêndido
sarcófago de mármore proclama a certeza da nova intimidade de Probo com Cristo
na corte celeste. O grande homem repousou a alguns metros de são Pedro até que,
no século XV, alguns operários encontram seu sarcófago cheio dos fios de ouro
com os quais fora tecida sua veste derradeira. Quanto ao clero e aos cristãos
mortos santamente, os mosaicos os mostram longe da cidade antiga, caminhando
sobre a relva verde do paraíso de Deus, sob as palmeiras orientais, cercados de
um grupo de pares de modo nenhum clássico:
E agora [ele vive]
entre os patriarcas,
entre os profetas que
claramente veem o futuro,
na companhia dos
apóstolos
e dos mártires,
homens de grande poder.
XXXXXXXXXXXXXXXX
3. Vida privada e arquitetura
doméstica na África romana — Yvon Thébert
“Na cidade grega
clássica, a arquitetura e a decoração das residências privadas confinam-se
estreitamente em limites modestos: o majestoso e o luxuoso só convêm ao setor
público, à cidade que repousa na fusão do indivíduo com a comunidade, na
adequação do privado e do público. Nesse quadro, o indivíduo deve tudo —
inclusive sua condição de súdito dotado de uma vida privada — ao fato de pertencer
à comunidade política. Na época helenística, a crise da cidade clássica
sublinha uma mudança em que é fácil ler uma evolução que se pode resumir numa
extensão notável da esfera privada à custa do público.”
“Cabe-nos, pois,
abordar um problema teórico da mesma natureza que aquele encontrado a propósito
dos trabalhos efetuados pelos proprietários. Que papel o comanditário
desempenhava na concepção do programa decorativo? Devemos realmente aceitar o
termo “programa” para qualificar os temas que adornam uma residência? As duas
perguntas estão ligadas, e atualmente tendem a prevalecer respostas que
resultam de uma mesma atitude negativa: o proprietário participa bem pouco da
escolha dos motivos, os mosaicistas impõem seu repertório; tal repertório é quase
nada carregado de valores simbólicos e sobretudo não se deve “superinterpretar”
os temas, querer lhes dar um significado mais profundo que uma vaga referência
a uma herança cultural que constitui o quinhão comum de todos e não envolve
ninguém.
Tal procedimento se
opõe com razão às especulações, tão abusivas quanto engenhosas, suscitadas por
algumas pavimentações particularmente excitantes para a imaginação. Mas também
parece excessivo. Com efeito, atribui ao artesão-artista da Antiguidade um
papel que não lhe cabe: em sua relação com o comanditário, é este último que
desempenha o papel determinante: está em posição de impor os temas que lhe
interessam — ou até a maneira de tratá-los. Para nos convencermos disso, basta
verificar como a evolução do estilo e dos motivos corresponde perfeitamente à
evolução de toda a sociedade e de modo mais preciso às novas necessidades das
classes dirigentes do Baixo Império. Ademais, nada permite rejeitar a priori
o que aparece como uma evidência de bom senso, a saber, que um assunto figurado
possui um sentido e não é escolhido sem razão.
O problema se coloca
claramente quando a decoração compreende cenas da mitologia pagã. Tornou-se de
bom-tom considerar que estas não traduzem em nada as tendências religiosas dos
proprietários: seriam apenas as sequelas assépticas de uma cultura, no sentido
menos significativo do termo. Tal abordagem antecipa em alguns séculos uma
situação cultural em que o cristianismo dominante poderá com efeito retomar por
sua conta, sem risco excessivo, os farrapos de uma cultura antiga desmembrada
porém prestigiosa. Em compensação, ela não corresponde à situação política,
cultural e religiosa do Baixo Império. Primeiro é preciso observar que, se
muitas vezes se nega a mosaicos claramente pagãos uma dimensão religiosa, não
ocorre a ninguém agir da mesma forma com relação aos pavimentos de motivos
cristãos. O procedimento é curioso e só se justificaria caso se pudesse afirmar
o desaparecimento no Império tardio de toda religião além do cristianismo. Da
mesma forma, frequentemente se afirma que a justaposição de mosaicos cristãos e
pagãos demonstra que estes últimos não possuem significado preciso. Tal
raciocínio não permite explicar casos em que se verifica uma destruição
voluntária desses motivos: numa residência recentemente escavada em Mactar, no
coração da Tunísia, um mosaico de um tanque com cena marinha e o de uma fonte
com uma Vênus foram escondidos sob uma camada de cimento, operação que tudo
leva a crer ter sido obra de cristãos.{21}
Surpreender-se com tais justaposições equivale a desconhecer a maneira como a
religião cristã se difundiu no mundo romano. Essa difusão não é a fonte de uma
mudança radical da sociedade e das pessoas: não passa de um dos aspectos de uma
evolução geral que promove o cristianismo bem mais do que este a promove. Em
tais condições, exceto para uma minoria entre a qual essa conversão corresponde
a uma revolução espiritual e a uma subversão das práticas, as novas crenças se
acrescentam às antigas bem mais do que as substituem. Nesse contexto devemos
compreender a reunião de mosaicos de temas díspares, e não é por acaso se o
espaço privado constitui um lugar que se presta à leitura de tais atitudes
cumulativas. Seus proprietários com efeito são mais livres para desenvolver
suas concepções pessoais: Agostinho condena com violência a opinião dominante
segundo a qual o homem é inteiramente senhor do que se passa em sua casa (Sermões,
224, 3). Ora, sejam quais forem suas opiniões religiosas, todos os homens dessa
época pensam que o mundo é presa de demônios maléficos: se a defesa do espaço
coletivo compete à cidade, cada um deve proteger a própria morada. Nessas
condições, nada tem de surpreendente o fato de acrescentar-se aos penates e a
outras divindades pagãs que residem na casa e a protegem os símbolos de uma
religião que, apoiada em milagres, passa o tempo a proclamar sua eficácia
protetora. Seria muito mais surpreendente se o responsável pela família
renunciasse deliberada e bruscamente a uma dessas garantias. Uma pessoa não
muda sua visão de mundo porque se torna cristã, mas é o contrário que ocorre: a
fase de transição só pode ser muito longa.”
{21} G. Picard, “La
maison de Vénus”, Recbercbes archéologiques franco-tunisiennes à Mactar,
I, Roma, 1977, pp. 18, 20.
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