Editora: Companhia das
Letras
ISBN: 978-85-359-1378-1
Tradução: Hildegard
Fiest
Organização: Paul Veiny
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 648
Sinopse: Ver Parte
I
1. O Império Romano — Paul
Veyne
“E no entanto Roma, a
mãe do direito pelo que se diz, deveria ser um Estado em conformidade com o
direito, no qual ninguém seria obrigado a fazer o que a lei não prescreve e no
qual a justiça pública substituiria o arbitrário. Ademais, o direito romano
pode ser qualificado de individualista: a liberdade de divórcio é igual para os
dois sexos, a propriedade pode ser livremente alienada, a liberdade do testador
é muito ampla; não se impõe nenhuma crença religiosa, a cidade e cada indivíduo
têm seus deuses favoritos, o braço secular deixa aos Deuses — se o podem — o cuidado
de vingar as injúrias que lhes são feitas, e o respeito devido aos deuses que a
cidade escolheu venerar limita-se à observância dos feriados; o direito de
mudar de domicílio e de atividade econômica é incontestado. Acrescentemos que
uma divertida indulgência em relação aos pecados sexuais, mesmo femininos, fora
erigida em doutrina pelo próprio Senado. No entanto, também é verdadeiro, como
observa Bleicken, que tacitamente esse liberalismo não faz senão “decorrer de
um sentimento aristocrático da vida privada” e que Roma, não mais do que a
Grécia, jamais garantiu de modo formal a liberdade em seu direito; este se
considerava antes como o estabelecimento dos deveres piedosos para com as
relações da casa, obrigações de fidelidade, responsabilidades patrimoniais e
diferenças de legislação pessoal.
“Privado” em oposição
a “público” é um dos adjetivos mais empregados da língua latina, porém não
delimita positivamente a vida privada; seu sentido é negativo: qualifica o que
um indivíduo pode fazer sem atentar contra seus deveres e suas atitudes de
homem revestido de uma função pública; não erige um santuário no interior do
direito privado, que não se sentia obrigados a respeitar o que respeitava de
fato. Mera nuança formal, explicável pelos acasos históricos (nossas liberdades
e direitos de homem nasceram de uma revolta contra o soberano)? Sem dúvida,
porém essa ausência de garantia deixava a porta liberta a todos os perigos;
semelhantes a tempestades, estes fizeram intrusões momentâneas, das quais a
mais sangrenta foi a perseguição dos cristãos ou dos maniqueus.
A que se acrescentam,
sob certos imperadores e por obra sua, pressões de ordem moral. Em princípio os
soberanos romanos, diferentemente de seus homólogos chineses e japoneses, não
tinham o que Maurice Pinguet chama de “o velho hábito confuciano de medir o
poder proporcionalmente à ordem moral”. Alguns, porém — Augusto, Domiciano, os
Severo ou Constantino —, quiseram corrigir os costumes por meio de decreto;
Augusto tomou medidas severas, ao menos na aparência, contra o adultério da
mulher; Domiciano obrigou os amantes a regularizarem sua união, mandou enterrar
viva uma vestal que falhara em seu voto de castidade e proibiu aos poetas
satíricos o uso de termos obscenos; os Severo fizeram do adultério do marido um
delito e do aborto um crime contra o esposo e a pátria; a legislação de
Constantino substitui por um rigorismo mais popular que verdadeiramente cristão
o velho laxismo aristocrático… Esse moralismo era uma coisa muito particular:
no mundo greco-romano, um legislador podia tentar revolucionar a sociedade por
decreto; as leis nem sempre tinham a prudência de não se atrasar muito nem
avançar demais com relação aos costumes. Pois a cidade era considerada não como
um efeito de forças naturais de sociabilidade, mas, antes, como uma instituição
nascida da lei e que se degradaria se o legislador não lhe desse sustentação
contra forças naturais inimigas; o cidadão era um aluno preguiçoso que só
respeita a disciplina sob a palmatória do mestre. Assim também as crises de
ordem moral tinham como objetivo principal provar a todos que o imperador
reinante era um senhor, pois, não contente de fazer reinar a ordem pública, que
os vícios privados não ameaçavam absolutamente, pretendia governar a
consciência moral de cada um; depois que cada cidadão se compenetrava de tal
ideia, a lei revolucionária deixava de ser aplicada e era esquecida no reinado
seguinte. Somente a de Constantino se manteria e marcaria a Idade Média.”
“PUBLICIDADE DA
TUMBA
Pois existe um
direito de todos sobre a conduta de cada um. Notável, plebeu e até senador, um
romano não pode ter intimidade pessoal; todos podem se dirigir a todos e julgar
a todos; todo mundo se conhece, ou tal presume. O menor particular pode,
portanto, dirigir-se ao “público”, que, afinal, não passa de determinado número
de particulares como ele. Pode, por exemplo, fazer graça para divertir a
plateia: todos são cúmplices. Hoje em dia conhecemos o humor dos célebres
grafites de Nova York, através dos quais qualquer indivíduo revela aos
transeuntes e aos passageiros do metrô suas ideias, seus amores ou simplesmente
seu nome e sua existência, escrevendo nas paredes tudo que lhe passa pela
cabeça. Fazia-se a mesma coisa em Pompeia: as paredes dessa cidadezinha entre
outras estão cobertas de grafites traçados pelos transeuntes que queriam
divertir outros transeuntes dando-lhes algo para ler.
Curiosamente,
idêntica publicidade triunfava também no que é o equivalente antigo de nossos
cemitérios: a beira de estrada, que não pertencia a ninguém, e era ali, na
saída das cidades, que se erguiam os túmulos. Tão logo cruzava a porta da
cidade, o viajante passava entre duas fileiras de sepulturas que procuravam
chamar-lhe a atenção. A tumba não se dirige à família, ou aos próximos, mas a
todos. Pois a cova, embaixo da terra, era uma coisa, objeto de homenagens
fúnebres que a família anualmente prestava ao defunto; a tumba com epitáfio era
outra coisa: destinava-se aos passantes. Não vamos raciocinar sobre a enganosa
analogia dos epitáfios modernos, essas celebrações sem destinatário que falam
diante do céu. Os epitáfios romanos diziam: “Lê, transeunte, qual foi meu papel
neste mundo. […] E agora que me leste, boa viagem. — Salve, tu também.” (pois a
resposta do transeunte está gravada na pedra). Testemunhos comprovam que quando
um antigo queria ler um pouco, bastava-lhe caminhar até uma das saídas da
cidade; era menos difícil ler um epitáfio que a escrita cursiva de um livro.
Deixo de lado um fato mais tardio, as necrópoles e também as catacumbas pagãs.
As vias de saída das
cidades, com sua dupla fileira de cartazes funerários, se assim ousamos dizer,
fazem vagamente pensar numa exposição de publicidade funerária de alguma
Broadway do além; certos epitáfios procuram atrair a atenção do transeunte entre
seus vizinhos; oferecem-lhe um campo de esporte e repouso, a sua disposição no
recinto fúnebre. E todos falam não da dor dos íntimos, mas do papel social do
defunto e de sua fidelidade aos deveres para com os seus, que os epitáfios
atestam para o passante, a quem compete julgar. Conversar com alguém durante um
jantar sobre seu futuro sepulcro não significava, pois, passar-lhe ideias
fúnebres; tratava-se, antes, de garantir que sua dignidade e suas virtudes
ficariam publicamente asseguradas; depois de beber, o interessado nem sempre
hesitava em ler seu epitáfio, elaborado por ele mesmo e com tanto cuidado como
se fosse seu testamento. Uma cidade não podia agradecer melhor a um benfeitor
público do que especificando as honras oficiais que enalteceriam seus funerais;
uma dama teve assim a alegria de saber que seus concidadãos dariam açafrão
(então um perfume muito apreciado) para perfumar a pira funerária por ocasião
da cremação.
Os arqueólogos
encontraram uma centena de milhares de epitáfios, e MacMullen notou que sua
multiplicação fora moda, alcançando o auge a partir do século I para
extinguir-se pouco a pouco a partir do século III. Como se surpreender? Eles
não derivam de uma ideia elementar da morte, mas de um reinado da palavra
pública e do controle público e não se restringem aos grandes: os simples
particulares, se não eram personagens públicos, pelo menos viveram em público,
aos olhos de seus semelhantes. Por isso mesmo ocorre-lhes deixar ao público
alguma mensagem tanto no epitáfio como no testamento: “Vivi avaramente o tanto
que me foi dado viver, por isso vos aconselho a gozar os prazeres mais do que
eu. Assim é a vida: chegamos aqui, e não mais longe. Amar, beber, ir aos
banhos, essa é a verdadeira vida: depois não há mais nada. Nunca segui os conselhos
de um filósofo. Desconfiai dos médicos, foram eles que me mataram”. O morto
tira a lição de sua vida para os vivos e as raras menções a um além — que
receberam muita atenção dos historiadores influenciados pelo cristianismo —
desconhecem a função pública da tumba antiga. Pois o epitáfio exerce, quando é
o caso, um papel de censura; o defunto expõe à execração pública aqueles que
lhe deram motivos de queixa. Um patrono amaldiçoa, como se fazia nos
testamentos, um liberto ingrato, trata-o de salteador de estrada; um pai
informa a todos que deserdou uma filha indigna; uma mãe atribui a morte de seu
bebê aos malefícios de uma envenenadora. Para nós, gravar esse tipo de coisa
num túmulo equivaleria a macular a majestade da morte. Mas os romanos não lavavam
roupa suja em casa: faziam limpeza pública. Em Pompeia, na estrada de Nocera,
um epitáfio entrega um amigo ingrato à ira dos deuses do céu e dos infernos.”
“Não importa o que
possamos dizer, Roma não foi um Estado segundo o direito civil ou público, mas
um Estado que obedecia em tudo a uma realidade desconcertante para o
sociologismo moderno: uma classe governante; o direito público de Roma se
esclarece quando paramos de procurar normas e sabemos que tudo se decidia golpe
a golpe, segundo as relações de força em cada momento. Coisa mais curiosa
ainda, Roma nada tinha de um Estado tradicionalista, regido pelo respeito ao
costume, à maneira inglesa; a confusão das instituições romanas sempre foi meio
fluida. Um autoritarismo sem regra do jogo; a célebre “boa-fé” romana é
fidelidade a um homem, não a um pacto. A não menos célebre invocação perpétua
da “tradição ancestral”, dos “hábitos dos antigos” (more majorum) é não
menos especiosa e não implica autoridade de costume. Essa tradição só era
invocada com relação às instituições públicas; por isso se encontrava apenas na
boca dos grandes, únicos autorizados a falar de política; e era invocada como
objeção; quer dizer, só a mencionavam quando estava para ser violada.”
“O bom senso, as
filosofias orais, são filhos dos acasos da história das ideias, e não o
imutável reflexo funcional da realidade: são livres criações, e sua relação com
a realidade varia de uma para outra; algumas são conformistas e outras,
desmistificadoras.”
“IDEOLOGIA BÁQUICA
Lembramos que nas
cidades o evergetismo dava a população oportunidades de comer e beber à larga.
Era importante que se encontrassem todos juntos; importante reunir-se para se
banquetear, o que atualizava a sociabilidade e o prazer de beber; importante
reunir-se em data estabelecida ou em ocasiões raras, o que criava uma espera e
solenizava o prazer. Não menos importante era pensar na tumba. Ora, havia uma
crença, a de Baco, que simbolizava e glorificava tudo isso. Crença é um termo
excessivo: ainda que acreditasse ingenuamente em sua existência, o povo não o
venerava, e esse deus era célebre principalmente por suas lendas; era um deus
da mitologia; algumas seitas místicas tinham-no por um grande deus verdadeiro,
como veremos, porém os romanos em geral se dirigiam a divindades mais
autênticas a seus olhos quando precisavam da proteção divina e ninguém lhe
dedicava um ex-voto. E no entanto a lenda báquica era mais que uma lenda; era
um conjunto de imagens presente por toda parte cujo sentido não escapava a
ninguém e que se exibia nos mosaicos, nas pinturas das casas ou das tabernas,
nas baixelas, nos objetos domésticos de todo tipo. E até nos sarcófagos.
Nenhuma imagem se difundiu tanto, nem mesmo a de Vênus. Suas imagens
adequavam-se a todo lugar, pois evocavam apenas ideias agradáveis. Deus do
prazer e da sociabilidade, Baco está sempre acompanhado do cortejo de seus
familiares bêbados e suas adoradoras extasiadas: os amáveis excessos de todo
tipo lhes são prometidos; deus benfazejo, civilizador, que acalma os espíritos,
levou às extremidades da Terra um triunfo pacífico e sabe domar a fúria dos
tigres, que, mansos como carneiros, são atrelados a seu carro; suas adoradoras
são tão belas e pouco vestidas como sua linda amante Ariadne. As imagens
báquicas certamente não tinham sentido religioso e místico, mas também não eram
decorativas: afirmavam a importância da sociabilidade e do prazer e
conferiam-lhe uma garantia sobrenatural; era uma ideologia, uma afirmação de princípio.
Tinham como contrapartida a imagem de Hércules, símbolo da “virtude” cívica e
filosófica.
Para o povo, Baco era
um deus do qual não se duvidava: pretexto suficiente para que se formassem
confrarias populares de adoradores de Baco, em que a principal preocupação
(atestam-no seus regulamentos) consistia em beber a essa amável divindade; na
Idade Média veneravam-se não menos alegremente determinados santos. A classe
culta considerava suas imagens como lenda, amável fantasia, porém achava que
Baco talvez existisse, ou fosse um dos numerosos nomes da divindade, ou ainda
um personagem sobre-humano que vivera em tempos remotos e cujos feitos
autênticos a lenda teria encoberto. Mas era o bastante para que alguns
espíritos especulassem sobre esse deus e para que se formassem certas seitas,
pequenos grupos isolados nos quais se encontravam lado a lado devoção refinada,
gosto de mundanalidade e, em alguns membros, autêntico fervor religioso. Para
compreender essa mistura de esnobismo e misticismo, basta pensar no prestígio
social e no brilho espiritual da primeira maçonaria, na época de A flauta
mágica; como entre os
maçons, havia nas seitas báquicas ritos secretos, uma iniciação (ou
“mistérios”) e uma hierarquia da qual as mulheres não estavam excluídas. É excepcionalmente
raro a picareta dos arqueólogos cavar no local autêntico de uma dessas seitas
de mistérios (isso aconteceu uma ou duas vezes); e no entanto devia-se dizer
algo a respeito, pois o fenômeno das seitas, populares ou não, constitui outro
traço dessa época, e o fervor nelas bebia nada menos que a sociabilidade; em
suas especulações reside uma das origens da revolução espiritual no fim da
Antiguidade.”
“FESTA E RELIGIÃO
A festa e a devoção
podiam coexistir nas seitas ou confrarias porque o paganismo era uma religião
de festas: o culto não passava de uma festa, com a qual os deuses se divertiam
pois nela encontravam o mesmo prazer que os homens. As religiões têm a vocação
de confundir a emoção do divino e a solenização: cada fiel tira um ou outro
desses bens e aproveita-se da confusão, da qual não se conscientiza. Como
decidir, na Antiguidade, se o uso de uma coroa indica festa ou participação
numa cerimônia religiosa? A devoção consiste em prestar aos deuses as devidas
homenagens; a festa religiosa oferece o duplo prazer de ser também um dever. A
confusão só se desfaz quando se resolve ordenar ao fiel que confesse seus
sentimentos, o que o paganismo não exigia. Para ele a homenagem prestada aos
deuses solenizava o prazer; porém, felizes aqueles que, além disso, sentiam
mais que os outros a presença da divindade e se emocionavam!
O ato principal do
culto, ninguém o ignora, era o sacrifício, ao qual se assistia com grande
recolhimento. Não devemos esquecer, porém, que num texto grego ou latino o termo
sacrifício sempre implica festim: todo sacrifício era seguido de uma refeição
em que se comia a vítima imolada depois de cozê-la no altar (os grandes templos
tinham cozinhas e forneciam os serviços dos cozinheiros aos fiéis que iam
imolar um animal); aos assistentes, a carne da vítima; aos deuses, a fumaça. Os
restos do festim ficavam sobre o altar, e os mendigos (bômolochoi) iam
recolhê-los. Quando se sacrificava assim, não no altar da casa, mas num templo,
queria a norma que se pagasse pelos serviços dos sacerdotes com uma determinada
porção da vítima; os templos obtinham proventos vendendo essa carne aos
açougueiros (quando quer dizer ao imperador que chegou a extirpar o
cristianismo da província da qual é governador, Plínio, o Jovem, escreve-lhe: “Encontra-se
novamente à venda a carne de vítimas”, o que prova que os sacrifícios foram
retomados). Na verdade, come-se a vítima imolada ou imola-se aos deuses um
animal que se deseja comer? Depende. O termo que designa um homem que
frequentemente oferece sacrifícios (philothytès) acabou por designar não
um devoto, mas um anfitrião em cuja casa se come bem.
O calendário
religioso, diferente de uma cidade para outra, periodicamente restaurava festas
religiosas; essas festas eram feriados. A religião determinava assim a
distribuição irregular dos dias de descanso ao longo do ano (a semana, de
origem mais astrológica que judaico-cristã, só entrou em uso no final da
Antiguidade). Nesses dias um romano convidava os amigos a assistirem ao
sacrifício que oferecia em sua casa, o que os honrava ainda mais que
simplesmente convidá-los para jantar. Conta Tertuliano que a casa desprende
vapores de incenso nessas grandes ocasiões: as festas nacionais dos imperadores
e de alguns deuses, o primeiro do ano e o primeiro dia de cada mês; pois um
costume caro aos romanos que tinham meios para tanto era sacrificar no começo
do mês um leitão aos gênios protetores da casa (Lares, Penates). Uma
grande festa anual, celebrada com real fervor, era o aniversário do pai de
família, que, nesse dia, se banqueteava em homenagem a seu gênio protetor (uma
espécie de dublê divino de cada indivíduo; na verdade, sua existência
resumia-se a permitir a cada um dizer: “Que meu gênio me proteja!”, ou “Juro
por teu gênio que obedeci a tuas ordens”). Os pobres ofereciam vítimas menos
caras; curados de uma doença pelo deus, iam sacrificar uma ave doméstica a
Esculápio diante de seu templo e comê-la em casa; ou então depositavam no altar
doméstico um simples bolo de trigo (farpium).
Um meio mais simples
de santificar as refeições era, creio, o que Artemidoro chama de “theoxenies”:
para convidar deuses a jantar (invitare deos), instalavam-se na sala de
refeições suas Estatuetas, retiradas do nicho sagrado da casa, e diante delas
colocavam-se pratos de comida; depois do jantar esse alimento abandonado fazia
as delícias dos escravos, que assim participavam do regozijo. Esse deve ser o
sentido dos seguintes versos de Horácio: “Ó noites, ó jantares de deuses em que
meus amigos e eu comemos diante do gênio da casa e alimento com pratos
consagrados meus escravos incitados à alegria”. Pois a festa os incita à
alegria, e está de acordo com a norma. Os camponeses, que têm suas festas
sazonais segundo um calendário rústico, celebram-nas não menos alegremente; com
os presentes que os meeiros lhe entregam, o grande proprietário sacrifica aos
deuses dos campos o dízimo dos produtos da terra e depois todos comem, bebem e
dançam; por fim (Horácio o diz e Tibulo deixa entender), chegada a noite, é um
direito ou até um dever fazer amor para encerrar dignamente esse dia em que
todos exultaram para melhor honrar os deuses. Alguém repreendeu Aristipo,
filósofo e teórico do prazer, por viver indolentemente. “Se fosse errado”,
replicou ele, “por que seria assim nas festas dos deuses?””
“O QUE ERA UM
DEUS?
O paganismo
greco-romano é uma religião sem além nem salvação, mas não necessariamente fria
nem indiferente à conduta moral dos homens: a tal respeito pode enganar o fato
de que essa religião sem teologia nem Igreja é, se assim ousamos dizer, uma
religião à la carte: cada um venera particularmente os deuses que quiser
e imagina-os como pode. Em lugar do “partido único” que é uma Igreja, trata-se
de “livre empresa” religiosa: cada um fundava o templo que desejasse e pregava
o deus que bem entendesse, como abriria um hotel ou lançaria um produto novo, e
cada um se tornava o cliente de seu deus favorito, não necessariamente o mesmo
que a cidade elegera como tal: a escolha era livre.
Assim era porque só
existe o nome em comum entre o que o paganismo entendia por “deus” e o que
entendem os judeus, os cristãos e os muçulmanos. O deus dessas três religiões
do Livro é um ser gigantesco infinitamente superior ao mundo — o qual, aliás,
ele criou —; não existe senão como ator de um drama cósmico em que a humanidade
põe em jogo sua salvação. Os deuses do paganismo vivem sua vida, e sua
existência não se reduz a um papel metafísico, pois fazem parte do mundo; são
uma das três raças que povoam o mundo. Há os animais, nem racionais nem
imortais; os homens, mortais e racionais; e os deuses, racionais e imortais. A
raça divina tanto constitui uma fauna que cada deus é macho ou fêmea. Segue-se
que os deuses de todos os povos são verdadeiros. Duas possibilidades: ou os
povos estrangeiros têm conhecimento de deuses cuja existência os greco-romanos
ainda ignoravam, ou adoram deuses já conhecidos, mas traduzem-lhes os nomes
para sua língua: Júpiter é Júpiter em toda parte, assim como um leão é leão
onde quer que seja, porém chama-se Zeus em grego, Taranis em gaulês, Yaô em
hebraico; os nomes dos deuses se traduzem de uma língua a outra, como os nomes
comuns e os nomes dos planetas. Só se deixava de acreditar nos deuses
estrangeiros se eram produto de uma superstição ridícula, a mesma que leva a
crer nos bestiários fantásticos; ria-se dos deuses com corpo de animal que o
Egito adorava. Os crentes da Antiguidade viveram na mesma tolerância que as
seitas hinduístas entre elas: interessar-se particularmente por um deus não
significa negar os outros deuses.
Isso acarretava
consequências para a ideia que um homem podia ter sobre sua qualidade de homem.
Para nossa demonstração imaginemos um círculo que representará o mundo segundo
as religiões do Livro; por sua importância no drama cósmico, o homem ocupará
pelo menos a metade desse círculo. E Deus? É tão elevado e gigantesco que
ficará bem acima do círculo; assim nos limitaremos a fazer partir do círculo
uma seta apontando para o alto e ao lado colocaremos o signo do infinito.
Passemos agora ao mundo segundo o paganismo: desenhemos um espaço dividido em
três degraus horizontais, uma espécie de escada. A faixa inferior será a dos
animais; a segunda, a dos homens; e o degrau mais alto, o dos deuses. Para se
tornar deus não seria necessário ir muito alto: os deuses estão logo acima dos
homens, tanto que em latim e em grego muitas vezes nos interessa traduzir por
“sobre-humano” o termo que significava “divino”. Epicuro,
diz um de seus sectários, “foi um deus, sim, um deus”: compreendamos que foi um
gênio sobre-humano. Eis por que o cosmos era qualificado de divino: nele se
produzem efeitos sobre-humanos dos quais o homem seria incapaz. Eis por que foi
possível divinizar os reis e os imperadores; era uma hipérbole ideológica, mas
não um absurdo: saltava-se um degrau, não se fugia para o infinito. E eis por
que as seitas estoica
e epicurista
puderam propor aos indivíduos que se tornassem, sob o nome de sábios, os iguais
mortais dos deuses; que se tornassem “super-homens”…
Como com os animais,
a raça humana está em relação com a fauna divina e, sendo esta superior,
deve-lhe homenagens; prestam-se aos deuses as mesmas honras (colere, timân)
que aos homens superiores, aos soberanos. Os deuses têm seus costumes e seus
defeitos, dos quais não é proibido sorrir respeitosamente, como nos divertimos
com os caprichos de poderosos estrangeiros, ricos o bastante para se permitirem
tudo; o povo se divertia com os incontáveis amores do grande Júpiter, assim
como os súditos do bom Henrique IV falavam alegremente dos amores de seu rei,
que respeitavam e temiam: o humor sobre o sagrado supõe uma fé ingênua e firme.
As relações dos homens e dos deuses são recíprocas: o fiel que promete a
Esculápio um galo para sarar de uma doença espera que a raça divina ponha em
seus contratos com os humanos a mesma boa-fé que um homem de bem deve ter em
suas transações. Ainda que muitas vezes se decepcione: “Essa é toda a tua
boa-fé, Júpiter?”. A conduta dos deuses é por vezes decepcionante e criticada
como hoje criticam os governos: “Júpiter, tem piedade dessa filha enferma; se a
deixares morrer, hão de te criticar”. Ao morrer um príncipe amado, Germânico, a
multidão romana foi apedrejar os templos, como os manifestantes que lançam
pedras contra uma embaixada estrangeira. Podia-se romper com os Deuses: “Já que
os deuses não me pouparam, tampouco os pouparei”, escreve um infeliz furioso.”
“RELAÇÕES COM OS
DEUSES
Pois as relações dos
homens com as divindades eram análogas às existentes com os poderosos, reis ou
patronos. O primeiro dever era saudar os deuses com a mão ao passar diante de
sua imagem. A oração mais frequente atiçava o amor-próprio dos deuses quanto a
seu poder: “Júpiter, acode-me, pois tu o podes”; se o deus não atendia,
arriscava-se a levantar suspeitas de que não era tão poderoso como se acreditava.
Tentava-se vencer os deuses pela fadiga, cansar com muita prece sua altiva
indiferença de patronos (fatigare deos). “Frequentava-se seu templo”
para saudá-los todas as manhãs, como os clientes que iam cumprimentar o
patrono; homenageava-se particularmente o deus cujo templo era vizinho à casa
em que se morava, pois um vizinho poderoso é o protetor mais indicado. A desenvoltura
liberal, a serenidade ingênua do paganismo resultavam, assim, do fato de ter
concebido as relações com os deuses segundo o modelo das relações políticas e
sociais; caberia ao cristianismo concebê-las segundo o modelo das relações
familiares e paternalistas, e por isso o cristianismo, diferentemente do
paganismo, seria uma religião de obediência e amor: a genialidade de santo
Agostinho, a sublimidade de santa Teresa constituem desenvolvimentos
gigantescos da relação familiar. E também a angústia de Lutero diante do
arbítrio todo-poderoso do Pai. Havia outra metáfora que os pagãos sensatos
reprovavam: a relação servil. O homem que a todo instante treme à ideia dos
deuses como diante dos senhores caprichosos e cruéis faz destes uma imagem
indigna deles e de um homem livre. O medo dos deuses (deisidaimonia) é o
que os romanos entendiam por “superstição”; deixavam a gente do povo, nesse
Oriente habituado a obedecer a potentados, imaginar que devoção significava
proclamar-se escravo, servidor de um deus. No fundo a relação clássica com os
deuses é nobre e livre: é de admiração.
A verdadeira devoção
consiste em imaginar os deuses benfazejos e justos, benévolos, providenciais:
super-homens de bem. Nem todos os homens se elevam a esse nível, pois cada qual
se comporta com os deuses segundo seu próprio caráter. Alguns se limitam a
achar que bons negócios fazem bons amigos: propõem um contrato a um deus
(“cura-me e receberás uma oferenda”), pagam se ficam satisfeitos e oferecem um
ex-voto como quitação da dívida. Alguns julgam os deuses indelicados como eles
mesmos: “Tornai-me mais rico que meu vizinho”; não ousam pronunciar o pedido em
voz alta, diante de outros fiéis, e escrevem-no num papel que depositam lacrado
sobre o altar. No entanto os verdadeiros devotos são mais delicados e sabem que
a divindade prefere às oferendas caras o bolo humilde que lhe oferece um
coração puro. Se multiplicam os votos solenes e procuram os deuses quando se
encontram em dificuldade, é mais por amor a eles que por um cálculo interesseiro;
pois um devoto gosta de estar em relação direta com a divindade o mais
frequentemente possível: promessas, peregrinações, aparições de deuses nos
sonhos. A devoção não estava numa fé, em obras ou na contemplação, e sim na
multiplicação de práticas que só parecem interesseiras porque o deus patrono
que se ama é um protetor. Doença, viagem, parto, todas as ocasiões são boas
para lhe demonstrar fiel confiança.
Algumas dessas
práticas são consagradas pelo hábito. Como se reconhecia um ímpio? Uma passagem
pouco conhecida de Apuleio diz:
Nunca dirigiu pedido
solene a nenhum deus, nunca frequentou o templo; quando passa diante de alguma
capela, julgaria pecar se levantasse a mão aos lábios em sinal de adoração;
nunca ofereceu aos deuses de seus domínios, que o alimentam e vestem, as
primícias de suas colheitas e as crias de seus rebanhos; nas terras onde tem
sua casa de campo não há nenhuma capela, nenhum canto dedicado aos deuses,
nenhum bosque sagrado.
A conduta de um homem
pio é muito diferente: em viagem, ele “para ao passar diante de uma capela ou
um bosque sagrado e formula um voto, deposita um fruto no altar e fica sentado
um momento junto aos deuses”. A doação e o voto, essa troca de proteção divina
por doação humana, eram tão importantes quanto a prece. Se Deus é Pai, só se
pode pedir; mas com deuses-patronos havia antes essas relações de troca de
doações e contradoações que alimentam e simbolizam uma amizade entre parceiros
desiguais que, cada um com sua vida, só estabelecem relações confiantes por
seus respectivos interesses. Se o parceiro humano levasse mais longe a
familiaridade, seria ingenuidade pouco liberal: os antigos sorriam ao ver
mulheres se sentarem no templo de Ísis para relatar à deusa seus penares;
intimidade popular: um homem livre sabe guardar distância dos outros homens e
dos representantes da raça divina. Não se rebaixa tampouco à domesticidade;
deixa a gente do povo passar o dia inteiro num templo servindo o deus como
escravos, imitando durante horas, diante da estátua, os gestos do cabeleireiro
ou da camareira.
Todas essas práticas
de religião privada, que lembram o culto popular dos santos na Idade Média,
eram duplamente tranquilizadoras. Os temperamentos pouco religiosos, que teriam
sido descrentes em outra sociedade, procuravam nas relações com os deuses uma
semitranquilização mágica contra os perigos e as dores da vida real; as
práticas piedosas equivaliam para eles a um talismã. Os espíritos religiosos
nelas encontravam essa presença de uma realidade “outra”. Fazendo com que o
real não seja tudo, o divino o desvaloriza; esse vasto recurso em que o devoto
se apoia reduz o tamanho proporcional do real e faz com que ele não seja mais o
único a nos ocupar. Nas cartas privadas, das quais se encontrou um bom número
no Egito, frequentemente se questionam os deuses (mas nunca, para ser exato, a
divindade do imperador).
As duas
tranquilizações, a mágica e a divina, não se distinguiam, pois gestos ou
símbolos indistintamente as lembravam por toda parte (a “religião” é uma dessas
coisas paradoxais que têm como essência o próprio confusionismo); uma capela na
paisagem evocava a possibilidade de um recurso; a mais simples conduta piedosa
— derramar no altar doméstico as primeiras gotas da taça que se vai beber (libatio)
— atestava que nem tudo se limita ao útil. O próprio imperador recebia as
homenagens da devoção privada e tinha seu lugar no nicho de imagens sagradas de
cada casa. Isso ocorria porque o tomavam por um deus? Não: ninguém lhe dirigia
um voto nem imaginava que esse mortal tivesse o poder de curar as doenças ou de
fazer encontrar os objetos perdidos. Capa religiosa do patriotismo e da
submissão? Não. Culto da personalidade de um ditador carismático? Também não:
ao erguer um brinde à imagem sagrada, o romano elevava-se a essa outra esfera,
sem maiores definições, que lhe engrandecia o espaço e da qual dava provas
venerando-a.”
“A FÉ DOS DOUTOS
Não houve nenhuma
irreligião popular em Roma: o povo nunca deixou de crer e rezar. Mas em que um
romano culto — um Cícero, um Horácio, um imperador, um senador, um notável —
podia crer dentro dessa fantasmagoria dos deuses ancestrais? A resposta é
categórica: não podia crer em nada; leu Platão e Aristóteles, que, quatro
séculos antes, tampouco acreditavam. Virgílio, alma religiosa, acredita na
Providência, mas não nos deuses de seus próprios poemas — Vênus, Juno ou Apoio.
Cícero e o solene enciclopedista Plínio não têm suficientes sarcasmos: esses
seres etéreos, escrevem, têm figura humana, a acreditar nos escultores e nos
fiéis ingênuos; portanto há estômago, intestinos, partes sexuais no interior
dessa figura? Mas o que esses eternos bem-aventurados fazem com seus órgãos?
Nas histórias da religião romana, a crença da classe governante mereceria um
capítulo inteiro que, em lugar de falar de Mercúrio ou de Juno, se intitularia:
“Providência, Acaso ou Fatalidade”. Pois todo o problema religioso consistia
nisso. Era preciso crer numa Providência, como as almas devotas e cultas e os
seguidores do estoicismo?
Numa Fatalidade, como os que estudaram a física e a astronomia (que era também
uma astrologia)? Ou ver apenas o Acaso na confusão deste mundo, pomo os
numerosos ímpios que negam toda Providência? No entanto todos se punham de
acordo para rir das mulheres do novo que adoravam a deusa Latona em seu templo,
atribuíam-lhe os traços que lhe emprestou o escultor, achavam-na feliz por ser
a mãe de uma deusa tão bela como Diana e desejavam ter uma filha igualmente linda.
Na ordem senatorial, guardiã da religião pública e viveiro de sacerdotes
públicos, a doutrina consagrada era um ceticismo sorridente que aflorava nas
cerimônias oficiais e na ingênua piedade popular.
E no entanto… Se era
impossível acreditar ao pé da letra na velha religião, também não se podia
livrar-se dela; não por ser oficial e reinar sobre o povo, mas por possuir um
núcleo de verdade: esse politeísmo girava se não ao redor do monoteísmo que os
acasos do futuro deviam fazer triunfar, pelo menos ao redor da simplicidade de
uma abstração (ora, as palavras abstratas são essencialmente usadas no
singular…): a Providência, o Bem, entidades das quais os filósofos trataram
extensivamente. Um homem culto se dizia mais ou menos isto: “Existe uma
Providência, faço questão de acreditar; o núcleo de verdade das fábulas sobre
os deuses deve ser esse. Mas há ainda outra realidade em Apolo, em Vênus? São
nomes da Divindade única? Emanações desta? O nome de suas virtudes? Um
princípio abstrato, porém ao mesmo tempo vivo? Ou nada além de fábula vã?”.
Tinha certeza do essencial, da Providência divina, mas não conseguia esclarecer
o resto. O que autorizava a participar da religião popular, em parte por
condescendência, pois as fábulas dizem a verdade numa linguagem ingenuamente
falsa, e em parte por prudência intelectual, pois quem sabe se Apolo, mais que
um nome vazio, não é uma Emanação, apesar das fábulas que o rodeiam? Isso
autorizava também a empregar a linguagem da velha religião sem cair no
ridículo. Tendo escapado de um acidente (uma árvore quase o esmagou), o cético
Horácio agradeceu aos deuses do panteão segundo as formas tradicionais: estava
certo de que devia sua salvação à Divindade e não sabia como agradecer, senão
pela via das velhas cerimônias. E, ao ver sua serva oferecer um bolo aos gênios
protetores do lar, compreendia que representava o que ele mesmo acabara por
pensar: apesar dos ateus, os Acasos do mundo são também uma Providência que
deseja que nos conformemos ao Bem.”
“SEITAS
FILOSÓFICAS
Num livro célebre,
porém mais erudito que perspicaz, Max Pohlenz surpreende-se com o fato de a
filosofia dos antigos, diferentemente daquela dos modernos, ter feito a
obrigação moral repousar sobre um fim interessado, a felicidade. Estranha falta
de senso histórico; não se percebe muito bem como os antigos poderiam ter feito
de outro modo, pois o que entendiam por filosofia não se propunha, como em Kant,
investigar o fundamento da moral: uma filosofia propunha-se dar aos indivíduos
um método de felicidade. Uma seita não era uma escola aonde se ia aprender
ideias gerais; aderia-se a ela porque se buscava um método racional de
tranquilização. A moralidade fazia parte dos remédios prescritos por algumas
seitas, que explicavam a receita racionalmente; donde a confusão dos modernos.
A seita epicurista
e a dos estoicos
propunham a mesma coisa a seus adeptos: uma receita baseada na natureza das
coisas (quer dizer, filosoficamente baseada) para viver sem temer os homens, os
deuses, o acaso e a morte, e para tornar a felicidade individual independente
dos caprichos da sorte: para resumir seu objetivo idêntico, as duas seitas
proclamavam que queriam fazer dos homens os iguais mortais dos deuses, tão
tranquilos como estes. As diferenças estavam nas nuanças e nas metafísicas que justificavam
esses remédios. O estoicismo — que só tem o nome em comum com o que Vigny
entenderá por isso — prescrevia que, à força de exercícios de pensamento, o
adepto se instalasse num estado de espírito heroico e inatingível; o epicurismo
considerava que o indivíduo precisa basicamente se libertar de angústias
ilusórias. Ao desdém da morte as duas medicinas acrescentam os dos desejos
vãos; o dinheiro e as honras, bens perecíveis, não podem proporcionar uma
segurança inquebrantável. O epicurismo
ensinava a se liberar de falsas necessidades; recomendava viver de amizade e
água fresca. Os estoicos
justificavam seu método pela existência de uma razão e de uma providência que
constituem suas bases, enquanto o atomismo epicurista libertava o homem dos
medos vãos que nascem de suas superstições. Outra diferença era a seguinte:
para os estoicos nossa natureza nos dita uma afeição inata pela família e pela
cidade, tanto que, se não cumpríssemos nossos deveres para com elas, seríamos
mutilados e infelizes; para os epicuristas, ao contrário, nossa felicidade só
nos prescreve respeitar os pactos de amizade que firmamos por um cálculo de
interesse bem compreendido. Uma e outra seita preveem que, se um homem enfermo
ou perseguido não pode mais levar uma existência humana em seu grupo ou em sua
cidade, o suicídio é o remédio autorizado ou até mesmo recomendado.
As seitas não
impunham a seus membros imperativos morais: elas lhes prometiam a felicidade;
um letrado teria aderido livremente a uma seita se nela não encontrasse uma
vantagem pessoal? Pela mesma razão, estoicismo e epicurismo eram
intelectualismos: como tornar o homem heroico, como livrá-lo de suas angústias
e de seus desejos vãos? Convencendo-lhe o intelecto. Sua vontade seguirá se lhe
derem boas razões. Com efeito, não percebemos bem que autoridade um diretor de
consciência antigo poderia exercer sobre seus livres discípulos senão aquela da
verdadeira persuasão: eles não eram submetidos a sua disciplina.”
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