segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Ficções, de Jorge Luis Borges

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-3591-123-7

Tradução: Davi Arrigucci Jr.

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 174

Sinopse: Ficções – publicado originalmente em 1944 pelas Ediciones Sur – é a obra que trouxe o reconhecimento universal para Jorge Luis Borges, graças, entre outros motivos, ao caráter fora do comum de seus temas, abertos para o fantástico, e à inesperada dimensão filosófica do tratamento.

Ficções reúne os contos publicados por Borges em 1941 sob o título de O jardim de veredas que se bifurcam (com exceção de “A aproximação a Almotásim”, incorporado a outra obra) e outras dez narrativas com o subtítulo de Artifícios. Nesses textos, o leitor se defronta com um narrador inquisitivo que expõe, com elegância e economia de meios, de forma paradoxal e lapidar, suas conjecturas e perplexidades sobre o universo, retomando motivos recorrentes em seus poemas e ensaios desde o início de sua carreira: o tempo, a eternidade, o infinito. Os enredos são como múltiplos labirintos e se desdobram num jogo infindável de espelhos, especulações e hipóteses, às vezes com a perícia de intrigas policiais e o gosto da aventura, para quase sempre desembocar na perplexidade metafísica. Chamam a atenção a frase enxuta, o poder de síntese e o rigor da construção, que tem algo da poesia e outro tanto da prosa filosófica, sem nunca perder o humor desconcertante.

Em Ficções estão alguns de seus textos mais famosos, como “Funes, o Memorioso”, cujo protagonista tinha “mais lembranças do que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo”; “A biblioteca de Babel”, em que o universo é equiparado a uma biblioteca eterna, infinita secreta e inútil; “Pierre Menard, autor do Quixote”, cuja “admirável ambição era produzir páginas que coincidissem palavra por palavra e linha por linha com as de Miguel de Cervantes”; e “As ruínas circulares”, em que o protagonista quer sonhar um homem “com integridade minuciosa e impô-lo à realidade e no final compreende que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando”.


 

“Bioy Casares tinha jantado comigo naquela noite e nos reteve uma vasta polêmica sobre a elaboração de um romance em primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos, incorrendo em diversas contradições, capazes de permitir a uns poucos leitores — a muito poucos leitores — adivinhar uma realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, o espelho nos espreitava. Descobrimos (noite alta essa descoberta se torna inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Bioy Casares lembrou então que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.”

 

 

“Aqui dou fim à parte pessoal de minha narração. O restante está na memória (quando não na esperança e no temor) de todos os meus leitores.”

 

 

““Meu propósito é meramente assombroso”, escreveu-me de Bayonne, no dia 30 de setembro de 1934. “O termo final de uma demonstração teológica ou metafísica — o mundo exterior, Deus, a casualidade, as formas universais — não é menos anterior e comum que meu divulgado romance. A única diferença é que os filósofos publicam em agradáveis volumes as etapas intermediárias de seu trabalho e eu resolvi perdê-las.” Com efeito, não resta um só rascunho que testemunhe esse esforço de anos.”

 

 

“‘Minha empresa não é difícil, essencialmente’, leio noutro trecho da carta. “Bastaria que eu fosse imortal para levá-la a cabo’.”

 

 

“Não há exercício intelectual que não seja afinal inútil. Uma doutrina filosófica é no início uma descrição verossímil do universo; passam os anos e é um mero capítulo — quando não um parágrafo ou um nome — da história da filosofia. Na literatura, essa caducidade final é mesmo mais notória. “O Quixote”, disse-me Menard, “foi antes de tudo um livro agradável; agora é uma ocasião para brindes patrióticos, soberba gramatical, obscenas edições de luxo. A glória é uma incompreensão e, quem sabe, a pior delas”.”

 

 

“Às vezes, inquietava-o uma impressão de que tudo aquilo já acontecera... Em geral, seus dias eram felizes; ao fechar os olhos, pensava: “Agora estarei com meu filho”. Ou, mais raramente: “O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for”.”

 

 

“Conheci o que os gregos ignoram: a incerteza.”

 

 

“Volto a dizer: basta que um livro seja possível para que exista. Somente fica excluído o impossível.”

 

 

“Depois refleti que todas as coisas sempre acontecem precisamente a alguém, precisamente agora. Séculos de séculos e só no presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e no mar, e tudo o que realmente acontece acontece a mim...”

 

 

“Disse a mim mesmo que meu duelo já estava contratado e que eu ganhara o primeiro assalto, ao enganar, ainda que por quarenta minutos, ainda que por um favor do acaso, o ataque de meu adversário. Concluí que essa vitória mínima prefigurava a vitória total. Concluí que não era mínima, já que, sem essa diferença preciosa que o horário dos trens me concedia, eu estaria na prisão, ou morto. Concluí (não menos sofisticamente) que minha felicidade covarde provava que eu era um homem capaz de levar a cabo a aventura. Dessa fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se resignará cada dia mais a empresas mais atrozes; logo não haverá senão guerreiros e bandidos; dou-lhes este conselho: “O executor de uma empresa atroz deve imaginar que já a cumpriu, deve se impor um futuro que seja irrevogável como o passado”.”

 

 

“A verdade é que vivemos adiando tudo o que é adiável.”

 

 

“Dormir é distrair-se do mundo.”

 

 

“Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.”

 

 

“Então compreendi que a covardia de Moon era irremediável. Pedi-lhe sem jeito que se cuidasse e me despedi. Aquele homem com medo me envergonhava, como se fosse eu o covarde, não Vincent Moon. O que um homem faz é como se todos os homens o fizessem. Por isso não é injusto que uma desobediência num jardim contamine a todos; por isso não é injusto que a crucificação de um único judeu baste para salvar todo o gênero humano. Talvez Schopenhauer tenha razão: eu sou os outros, qualquer homem é todos os homens, Shakespeare é de algum modo o miserável John Vincent Moon.”

 

 

“No dia 4, às 11 horas e 3 minutos a.m., um redator da Yiddische Zeitung chamou-o pelo telefone; o doutor Yarmolinsky não respondeu; encontraram-no em seu quarto, com o rosto já levemente escuro, quase nu sob uma grande capa anacrônica. Jazia não longe da porta que dava para o corredor; uma punhalada profunda lhe perfurara o peito. Um par de horas depois, no mesmo quarto, no meio de jornalistas, fotógrafos e gendarmes, o comissário Treviranus e Lönnrot debatiam com serenidade o problema.

— Não se deve procurar chifre em cabeça de cavalo — dizia Treviranus, brandindo um imperioso charuto. — Todos nós sabemos que o Tetrarca da Galiléia possui as melhores safiras do mundo. Alguém, para roubá-las, terá penetrado aqui por engano. Yarmolinsky levantou-se; o ladrão teve de matá-lo. Que lhe parece?

— Possível, mas não interessante — respondeu Lönnrot. — O senhor replicará que a realidade não tem a menor obrigação de ser interessante. Eu lhe replicarei que a realidade pode prescindir dessa obrigação, mas não as hipóteses. Na que o senhor improvisou, o acaso intervém fartamente. Eis aqui um rabino morto; eu preferiria uma explicação puramente rabínica, não os imaginários percalços de um imaginário ladrão.

Treviranus retrucou com mau humor:

— As explicações rabínicas não me interessam; o que me interessa é a captura do homem que apunhalou este desconhecido.

— Não tão desconhecido — corrigiu Lönnrot. — Aqui estão suas obras completas. — Indicou no armário uma fila de altos volumes: uma Vindicação da cabala; um Exame da filosofia de Robert Flood; uma tradução literal da Sepher Yezirah; uma Biografia de Baal Shem; uma História da seita dos hassidim; uma monografia (em alemão) sobre o Tetragrámaton; outra, sobre a nomenclatura divina do Pentateuco. O comissário olhou para eles com temor, quase com repulsa. Logo começou a rir.

— Sou um pobre cristão — retrucou. — Leve com você, se quiser, todos esses calhamaços; não tenho tempo para perder com superstições judaicas.

— Pode ser que este crime pertença à história das superstições judaicas — murmurou Lönnrot.

— Como o cristianismo — atreveu-se a completar o redator da Yiddische Zeitung. Era míope, ateu e muito tímido.

Ninguém lhe respondeu.”

 

 

“Não há homem que, fora de sua especialidade, não seja crédulo.”

 

 

“Logo refletiu que a realidade não costuma coincidir com as previsões; com lógica perversa inferiu que prever um detalhe circunstancial é impedir que este aconteça.”

 

 

“Aqueles que percorrerem este artigo, deverão levar em conta igualmente que ele registra apenas as conclusões de Runeberg, não sua dialética e suas provas. Alguém poderá observar que a conclusão precedeu, sem dúvida, as “provas”. Quem se resigna a procurar provas de algo em que não crê ou cuja prédica não lhe importa?”

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