Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3591-123-7
Tradução: Davi Arrigucci Jr.
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 174
Sinopse: Ficções
– publicado originalmente em 1944 pelas Ediciones Sur – é a obra que trouxe o reconhecimento
universal para Jorge Luis Borges, graças, entre outros motivos, ao caráter fora
do comum de seus temas, abertos para o fantástico, e à inesperada dimensão filosófica
do tratamento.
Ficções reúne os contos publicados por Borges em 1941 sob o título de O jardim de veredas que se bifurcam (com
exceção de “A aproximação a Almotásim”, incorporado a outra obra) e outras dez narrativas
com o subtítulo de Artifícios. Nesses
textos, o leitor se defronta com um narrador inquisitivo que expõe, com elegância
e economia de meios, de forma paradoxal e lapidar, suas conjecturas e perplexidades
sobre o universo, retomando motivos recorrentes em seus poemas e ensaios desde o
início de sua carreira: o tempo, a eternidade, o infinito. Os enredos são como múltiplos
labirintos e se desdobram num jogo infindável de espelhos, especulações e hipóteses,
às vezes com a perícia de intrigas policiais e o gosto da aventura, para quase sempre
desembocar na perplexidade metafísica. Chamam a atenção a frase enxuta, o poder
de síntese e o rigor da construção, que tem algo da poesia e outro tanto da prosa
filosófica, sem nunca perder o humor desconcertante.
Em Ficções estão
alguns de seus textos mais famosos, como “Funes, o Memorioso”, cujo protagonista
tinha “mais lembranças do que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo”;
“A biblioteca de Babel”, em que o universo é equiparado a uma biblioteca eterna,
infinita secreta e inútil; “Pierre Menard, autor do Quixote”, cuja “admirável ambição
era produzir páginas que coincidissem palavra por palavra e linha por linha com
as de Miguel de Cervantes”; e “As ruínas circulares”, em que o protagonista quer
sonhar um homem “com integridade minuciosa e impô-lo à realidade e no final compreende
que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando”.
“Bioy Casares tinha jantado comigo naquela
noite e nos reteve uma vasta polêmica sobre a elaboração de um romance em
primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos, incorrendo em
diversas contradições, capazes de permitir a uns poucos leitores — a muito
poucos leitores — adivinhar uma realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do
corredor, o espelho nos espreitava. Descobrimos (noite alta essa descoberta se
torna inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Bioy Casares lembrou então que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos
e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.”
“Aqui dou fim à parte pessoal de minha
narração. O restante está na memória (quando não na esperança e no temor) de
todos os meus leitores.”
““Meu propósito é meramente assombroso”,
escreveu-me de Bayonne, no dia 30 de setembro de 1934. “O termo final de uma
demonstração teológica ou metafísica — o mundo exterior, Deus, a casualidade,
as formas universais — não é menos anterior e comum que meu divulgado romance.
A única diferença é que os filósofos publicam em agradáveis volumes as etapas
intermediárias de seu trabalho e eu resolvi perdê-las.” Com efeito, não resta
um só rascunho que testemunhe esse esforço de anos.”
“‘Minha empresa não é difícil, essencialmente’,
leio noutro trecho da carta. “Bastaria que eu fosse imortal para levá-la a cabo’.”
“Não há exercício intelectual que não seja
afinal inútil. Uma doutrina filosófica é no início uma descrição verossímil do
universo; passam os anos e é um mero capítulo — quando não um parágrafo ou um
nome — da história da filosofia. Na literatura, essa caducidade final é mesmo
mais notória. “O Quixote”, disse-me Menard, “foi antes de tudo um livro
agradável; agora é uma ocasião para brindes patrióticos, soberba gramatical,
obscenas edições de luxo. A glória é uma incompreensão e, quem sabe, a pior
delas”.”
“Às vezes, inquietava-o uma impressão de que
tudo aquilo já acontecera... Em geral, seus dias eram felizes; ao fechar os
olhos, pensava: “Agora estarei com meu filho”. Ou, mais raramente: “O filho que
gerei me espera e não existirá se eu não for”.”
“Conheci o que os gregos ignoram: a
incerteza.”
“Volto a dizer: basta que um livro seja
possível para que exista. Somente fica excluído o impossível.”
“Depois refleti que todas as coisas sempre
acontecem precisamente a alguém, precisamente agora. Séculos de séculos e só no
presente ocorrem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e no mar, e tudo
o que realmente acontece acontece a mim...”
“Disse a mim mesmo que meu duelo já estava
contratado e que eu ganhara o primeiro assalto, ao enganar, ainda que por
quarenta minutos, ainda que por um favor do acaso, o ataque de meu adversário.
Concluí que essa vitória mínima prefigurava a vitória total. Concluí que não
era mínima, já que, sem essa diferença preciosa que o horário dos trens me concedia,
eu estaria na prisão, ou morto. Concluí (não menos sofisticamente) que minha
felicidade covarde provava que eu era um homem capaz de levar a cabo a
aventura. Dessa fraqueza tirei forças que não me abandonaram. Prevejo que o
homem se resignará cada dia mais a empresas mais atrozes; logo não haverá senão
guerreiros e bandidos; dou-lhes este conselho: “O executor de uma empresa atroz
deve imaginar que já a cumpriu, deve se impor um futuro que seja irrevogável
como o passado”.”
“A verdade é que vivemos adiando tudo o que é
adiável.”
“Dormir é distrair-se do mundo.”
“Pensar é esquecer diferenças, é generalizar,
abstrair.”
“Então compreendi que a covardia de Moon era irremediável.
Pedi-lhe sem jeito que se cuidasse e me despedi. Aquele homem com medo me
envergonhava, como se fosse eu o covarde, não Vincent Moon. O que um homem faz
é como se todos os homens o fizessem. Por isso não é injusto que uma
desobediência num jardim contamine a todos; por isso não é injusto que a
crucificação de um único judeu baste para salvar todo o gênero humano. Talvez
Schopenhauer tenha razão: eu sou os outros, qualquer homem é todos os homens,
Shakespeare é de algum modo o miserável John Vincent Moon.”
“No dia 4, às 11 horas e 3 minutos a.m., um
redator da Yiddische Zeitung chamou-o pelo telefone; o doutor
Yarmolinsky não respondeu; encontraram-no em seu quarto, com o rosto já
levemente escuro, quase nu sob uma grande capa anacrônica. Jazia não longe da
porta que dava para o corredor; uma punhalada profunda lhe perfurara o peito.
Um par de horas depois, no mesmo quarto, no meio de jornalistas, fotógrafos e
gendarmes, o comissário Treviranus e Lönnrot debatiam com serenidade o problema.
— Não se deve procurar chifre em cabeça de
cavalo — dizia Treviranus, brandindo um imperioso charuto. — Todos nós sabemos
que o Tetrarca da Galiléia possui as melhores safiras do mundo. Alguém, para
roubá-las, terá penetrado aqui por engano. Yarmolinsky levantou-se; o ladrão
teve de matá-lo. Que lhe parece?
— Possível, mas não interessante — respondeu
Lönnrot. — O senhor replicará que a realidade não tem a menor obrigação de ser
interessante. Eu lhe replicarei que a realidade pode prescindir dessa obrigação,
mas não as hipóteses. Na que o senhor improvisou, o acaso intervém fartamente.
Eis aqui um rabino morto; eu preferiria uma explicação puramente rabínica, não
os imaginários percalços de um imaginário ladrão.
Treviranus retrucou com mau humor:
— As explicações rabínicas não me interessam;
o que me interessa é a captura do homem que apunhalou este desconhecido.
— Não tão desconhecido — corrigiu Lönnrot. —
Aqui estão suas obras completas. — Indicou no armário uma fila de altos
volumes: uma Vindicação da cabala; um Exame da filosofia de Robert
Flood; uma tradução literal da Sepher Yezirah; uma Biografia de
Baal Shem; uma História da seita dos hassidim; uma monografia (em
alemão) sobre o Tetragrámaton; outra, sobre a nomenclatura divina do
Pentateuco. O comissário olhou para eles com temor, quase com repulsa. Logo
começou a rir.
— Sou um pobre cristão — retrucou. — Leve com
você, se quiser, todos esses calhamaços; não tenho tempo para perder com
superstições judaicas.
— Pode ser que este crime pertença à história
das superstições judaicas — murmurou Lönnrot.
— Como o cristianismo — atreveu-se a
completar o redator da Yiddische Zeitung. Era míope, ateu e muito
tímido.
Ninguém lhe respondeu.”
“Não há homem que, fora de sua especialidade,
não seja crédulo.”
“Logo refletiu que a realidade não costuma
coincidir com as previsões; com lógica perversa inferiu que prever um detalhe
circunstancial é impedir que este aconteça.”
“Aqueles que percorrerem este artigo, deverão
levar em conta igualmente que ele registra apenas as conclusões de Runeberg,
não sua dialética e suas provas. Alguém poderá observar que a conclusão
precedeu, sem dúvida, as “provas”. Quem se resigna a procurar provas de algo em
que não crê ou cuja prédica não lhe importa?”
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