Editora: Companhia das
Letras
ISBN: 978-85-359-1378-1
Tradução: Hildegard
Fiest
Organização: Paul Veiny
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 648
Sinopse: Prefaciado pelo historiador francês Georges Duby, que dirige a coleção
ao lado de Philippe Ariès, este primeiro volume cobre um período de cerca de
oito séculos, do declínio do Império Romano à Alta Idade Média ocidental e à
Bizâncio dos séculos X e XI. O livro reúne ensaios que examinam a vida
cotidiana de cidadãos e escravos, senhores e servos – sua sexualidade, o
casamento, a família, as diversas formas de moradia, as atitudes religiosas e
as práticas funerárias –, compondo um quadro dos comportamentos individuais e
sociais no período abordado.
O livro é dividido em cinco partes, com estes
respectivos autores:
1. O Império Romano — Paul
Veyne
2. Antiguidade tardia — Peter
Brown
3. Vida privada e arquitetura
doméstica na África romana — Yvon Thébert
4. Alta idade média ocidental
— Michel Rouche
5. Bizâncio: séculos X-XI — Évelyne
Patlagean
“Partimos,
portanto, da evidência de que, sempre e por toda parte, se exprimiu no
vocabulário o contraste, claramente detectado pelo senso comum, que opõe o
privado ao público, aberto à comunidade do povo e submetido à autoridade de
seus magistrados. De que uma área particular, claramente delimitada, é
atribuída a essa parte da existência que todas as línguas denominam privada,
uma zona de imunidade oferecida ao recolhimento, onde todos podemos abandonar
as armas e as defesas das quais convém nos munirmos quando nos arriscamos no
espaço público; onde relaxamos, onde nos colocamos a vontade, livres da
carapaça de ostentação que assegura proteção externa. Esse lugar é de
familiaridade. Doméstico. Íntimo. No privado encontra-se o que possuímos de
mais precioso, que pertence somente a nós mesmos, que não diz respeito a mais
ninguém, que não deve ser divulgado, exposto, pois é muito diferente das
aparências que a honra exige guardar em público.”
(Georges Duby – prefácio)
XXXXXXXXXXXXX
1. O Império Romano — Paul
Veyne
“Chegamos a um ponto
que parece importante e talvez o seja: uma particularidade do direito romano
que surpreendia os gregos era que, púbere ou não, casado ou não, um menino
permanecia sob a autoridade paterna e só se tornava inteiramente romano, “pai
de família”, após a morte do pai; ainda mais: este era seu juiz natural e podia
condená-lo à morte por sentença privada. Ademais, a capacidade de testador era
quase infinita e o pai podia deserdar os filhos. Consequência: um jovem de
dezoito anos e órfão institui a amante como herdeira, enquanto um homem de
idade madura não pode realizar nenhum ato jurídico com sua própria autoridade
se ainda tem pai vivo: “Tratando-se de um filho de família”, escreve um
jurista, “as dignidades públicas nada contam: ainda que ele seja cônsul, não
terá o direito de pedir dinheiro emprestado”. Essa é a teoria. E a prática? A
prática é moralmente pior.
Juridicamente, sem
dúvida, o poder paterno atenuava-se. Não é todo mundo que deserda os filhos, e
para isso é necessário primeiro não morrer intestado; o filho privado da
sucessão pode tentar anular o testamento nos tribunais; de qualquer modo, só
pode ser deserdado em três quartas partes. Quanto à morte do filho por sentença
paterna, que desempenha um grande papel na imaginação romana, os últimos
exemplos datam de Augusto e indignaram a opinião pública. Continua verdadeiro
que uma criança não tem fortuna própria e que tudo que ganha ou recebe em
herança pertence ao pai. Mas o pai pode lhe conceder certo capital, o
“pecúlio”, do qual disporá como quiser. E depois o pai pode simplesmente
decidir emancipá-lo. O filho, portanto, tinha razões para esperar e meios para
agir. Tais meios, porém, não passam de expedientes, e essas esperanças
constituem outros tantos riscos; psicologicamente a situação de um adulto com pai
vivo é insuportável. Ele não pode fazer um gesto sem o pai: concluir um
contrato, libertar um escravo, elaborar seu testamento. Tudo que possui, a
título precário, é seu pecúlio, exatamente como um escravo. A essas humilhações
acrescenta-se o risco de ser deserdado, que é real.
Vamos folhear a
correspondência de Plínio: “Fulano instituiu o irmão como seu herdeiro
universal, em detrimento da própria filha”; “Sicrana deserdou o filho”;
“Beltrano, deserdado pelo pai”… A opinião pública, tão poderosa sobre os
espíritos da classe alta, veremos, não censurava automaticamente: julgava. “Tua
mãe teve uma razão para te deserdar que era legítima”, escreve o mesmo Plínio.
Sabemos qual é a demografia de toda sociedade antes de Pasteur: a mortalidade
multiplica os viúvos, as viúvas, as mulheres mortas de parto e os novos
casamentos; e, como o pai tem liberdade quase total de testar, os filhos do
primeiro leito temem uma madrasta.
Servidão final: o
filho não pode fazer carreira sem o consentimento do pai; sempre poderá ser
nomeado senador, se for nobre, e, sendo um simples notável, senador do Conselho
de sua cidade. Mas como pagar as consideráveis despesas que tais honras exigiam
numa época em que todo homem público fazia carreira pelo pão e pelo circo?
Assim, ele só tratará de se tornar senador ou conselheiro com ordem do pai, que
arcará com as despesas necessárias usando o patrimônio da família. Em muito
edifício público da África romana, construído à custa dos conselheiros a título
de suas honras, lê-se uma inscrição informando que o pai despendeu o dinheiro
pelo filho. A consequência disso era que o pai decidia soberanamente entre os
filhos; o número de postos no Senado e nos Conselhos das cidades era limitado,
e poucas famílias podiam pretender que mais de um de seus filhos neles
ingressassem; além do mais, a despesa era considerável. O filho que teria a
custosa honra de fazer carreira era aquele que o pai escolhesse; não se deixava
de exaltar o sacrifício dos outros, felizes por cederem lugar ao irmão. Cabe
esclarecer que o direito de primogenitura não existia; em contrapartida, o
costume ensinava os mais novos a se curvarem à anterioridade dos mais velhos.
TESTAMENTO
A morte do pai
anunciava a herança dos filhos, exceto azar, e, em todo caso, o fim de uma
espécie de escravidão; os filhos tornavam-se adultos e a filha, se não fosse
casada ou divorciada, tornava-se herdeira, livre para casar-se com quem bem
quisesse (pois o consentimento das moças ao casamento, requerido pelo direito,
ao mesmo tempo sempre era pressuposto pelo direito, tanto que a filha só tinha
de obedecer ao pai). Ainda era preciso que a herdeira não caísse sob outra
autoridade, a do tio paterno; essa severa figura procurará proibi-la de ter
amantes secretos e a ocupará nos trabalhos forçados da roca e do fuso. O poeta
Horácio ternamente as lamenta.
Assim, não nos
surpreenderemos com a obsessão pelo parricídio e sua relativa frequência: era
um grande crime razoavelmente explicável, e não um prodígio freudiano. “Durante
as guerras civis e suas proscrições”, conta o historiador Veleio, época em que
choviam as denúncias, “a lealdade das esposas foi máxima, a dos libertos foi
média, a dos escravos não foi nula e a dos filhos foi igual a zero, tanto é
duro suportar o adiamento de uma esperança!”
Os romanos plenamente
homens são, portanto, só os cidadãos livres que, órfãos ou emancipados, são
“pais de família”, casados ou não, donos ou não de um patrimônio. O pai de
família tem um lugar à parte na moral vigente, e Aulo Gélio diz isso, ao
relatar a seguinte discussão: “‘Deve-se sempre obedecer ao pai? Alguns
respondem: ‘Sim, sempre’. Mas e se vosso pai vos mandar trair a pátria? Outros
respondem sutilmente que não obedecem jamais, pois é a moral que se obedece,
moral cujas ordens ele exprime”. Aulo Gélio replica inteligentemente que existe
uma terceira ordem de coisas, que não são nem impostas pelo bem nem imorais,
tais como casar ou permanecer celibatário, abraçar este ou aquele ofício, ir ou
ficar, procurar ou não as honras públicas. É sobre essa terceira ordem de
coisas que se exerce a autoridade paterna.
A autoridade da
família e a dignidade social dos pais de família têm o testamento como arma e
como símbolo. Pois o testamento constitui uma espécie de confissão em que o
homem social se revelava inteiramente e pelo qual seria julgado.
Havia nomeado como
herdeiro o mais digno? Legara alguma coisa a todos os seus fiéis? Falava da
mulher em termos que fossem para ela um certificado de boa esposa? “Quanto
tempo passamos a deliberar em nosso foro íntimo para saber a quem legaremos os
alguma coisa e quanto! Nunca vasculhamos tanto nossas decisões como nesse
momento.” Todos os membros da família, próximos ou distantes, devem receber
alguma coisa, e também o pessoal da casa: os escravos que o merecem são
libertados pelo testamento, os libertos que permaneceram fiéis e os clientes
não são esquecidos.
A leitura pública do
testamento era o acontecimento público do momento, pois as disposições e
heranças não eram tudo e o testamento adquiria valor de manifesto. O costume de
designar “herdeiros substitutos”, que não tocariam num centavo (a não ser que o
herdeiro principal recusasse a sucessão), permitia escrever todos os nomes
próprios que o testador quisesse, cada qual aquinhoado com uma fração teórica
da herança, que dava a medida da estima do defunto em relação a cada um deles.
O falecido também podia insultar post-mortem aqueles a quem havia
detestado secretamente e reconhecer os valores: os nobres tinham o hábito de
deixar um legado aos grandes escritores do momento. Plínio, então um orador
célebre, que ia a todas as aberturas de testamento, observava com satisfação
que sempre lhe legavam a mesma soma destinada a seu rival e amigo, o orador
Tácito (ele não mente, e os epigrafistas encontraram um testamento em que é
nomeado). A política imiscuía-se: um senador sempre tido como homem sério
perdeu tal reputação por causa de seu testamento, no qual tecia loas a Nero
(evidentemente para evitar que lhe anulassem o testamento e confiscassem a
sucessão); outros, ao contrário, insultavam os todo-poderosos ministros do
soberano e até se referiam em termos pouco amenos ao próprio imperador, quer
este se chamasse Nero ou Antonino Pio… Um testamento era algo tão grandioso, do
qual todos se orgulhavam tanto, que muitos dificilmente resistiam ao desejo de
iniciar a leitura depois de beber, para agradar de antemão aos legatários e se
fazerem estimar.
Sabemos da
importância que em outras sociedades tinham o ritual do leito de morte e o das
últimas palavras. Em Roma substituíam-nos o testamento, em que se manifestava o
indivíduo social, e depois, como veremos, o epitáfio, em que se manifestava o
que devemos chamar de indivíduo público.”
“O casamento,
portanto, era tido como um dever entre outros, uma opção. Não é o “fundamento
de um lar”, o eixo de uma vida, e sim uma das numerosas decisões dinásticas que
um senhor deverá tomar: entrar na carreira pública ou permanecer na vida
privada a fim de aumentar o patrimônio dinástico, tornar-se militar ou orador
etc. A esposa será menos a companheira desse senhor que o objeto de uma de suas
opções. Tanto será um objeto que dois senhores poderão repassá-la
amigavelmente: Catão da Útica, modelo de todas as virtudes, emprestou a esposa
a um amigo e mais tarde casou-se novamente com ela, abiscoitando de passagem
uma herança imensa; um certo Nero “prometeu” (era o termo consagrado) sua
esposa Lívia ao futuro imperador Augusto.
O casamento é apenas
um dos atos da vida, e a esposa não passa de um dos elementos da casa, que
compreende igualmente os filhos, os libertos, os clientes e os escravos. “Se
teu escravo, teu liberto, tua mulher ou teu cliente ousam replicar, tu te
enraiveces”, escreve Sêneca. Os senhores, chefes de uma casa, resolvem as
coisas entre si, como de poder a poder, e se um deles deve tomar uma grave
decisão reúne o “conselho de amigos” em vez de discutir com a mulher.
Senhor e senhora
formam um “casal”? O senhor permite que os visitantes vejam a senhora, como os
ocidentais atuais, ou a senhora se retira rapidamente, como nos países islâmicos?
E quando se convidar o senhor para jantar convém convidar também a senhora? As
raras indicações dos documentos não me permitiram chegar a uma conclusão clara:
a única coisa clara é que a senhora, bem acompanhada, tem o direito de visitar
as amigas.
A mulher é uma
criança grande da qual se deve cuidar por causa do dote e do nobre pai. Cícero
e seus correspondentes comentam os caprichos dessas eternas adolescentes, que
aproveitam, por exemplo, a ausência do marido, nomeado governador de uma
província distante, para se divorciarem e casar de novo. Tais infantilidades
desconcertantes são realidades que acarretam consequências nas relações
políticas entre senhores. Não é preciso dizer que essas criaturinhas não
colocariam em ridículo seu amo e senhor: o tema molieriano da infidelidade
feminina era desconhecido e, se assim não fosse, Catão, César e Pompeu teriam
sido cornudos ilustres. Um marido é senhor tanto da esposa como dos filhos e
dos domésticos; o fato de sua mulher ser infiel não constitui um ridículo, e
sim uma desgraça, nem maior nem menor do que se sua filha engravidasse ou um de
seus escravos faltasse ao dever. Se a esposa o engana, criticam-no por falta de
vigilância ou de firmeza e por deixar o adultério florescer na cidade. Assim
como repreendemos os pais muito fracos e que mimam os filhos, os quais acabarão
caindo na delinquência, aumentando a insegurança pública. O único meio de um
marido ou um pai prevenir tal dano era ser o primeiro a denunciar publicamente
a má conduta dos seus. O imperador Augusto detalhou num edito os amores de sua
filha Júlia; Nero fez o mesmo com o adultério de sua esposa, Otávia. A fim de
confirmar que não tinham “paciência” — ou seja, complacência — com o vício. A
opinião pública se perguntava se devia admirar ou censurar o silêncio estoico
de outros esposos.
Como os maridos
enganados são mais ultrajados que ridículos e as divorciadas levam seu dote
consigo, há na classe alta grande frequência de divórcios (César, Cícero,
Ovídio, Cláudio casaram-se três vezes) e talvez também na plebe citadina. Em
Juvenal, vemos uma mulher do povo consultar um adivinho itinerante para saber
se deve deixar seu taberneiro para se casar com um comerciante de roupas usadas
(profissão próspera nessa época, em que a vestimenta popular era comprada de
segunda mão). Nada mais estranho aos romanos que o sentido bíblico da
apropriação de uma carne; não os repugnava esposar uma divorciada ou, como o
imperador Domiciano, aceitar de volta uma esposa que durante algum tempo havia
sido a mulher de outro homem. Constituía um mérito conhecer somente um homem ao
longo da vida, mas apenas os cristãos procurarão transformar isso em dever e
tentarão impedir que as viúvas se casem novamente.”
“CASTOS ESPOSOS
Além desse
conformismo voluntarista em que se transformou, havia uma afinidade mais
autêntica entre o estoicismo
e a nova moral conjugal. Esta já não prescrevia executar com doçura certo
número de tarefas conjugais, mas viver como casal ideal, por meio de um
sentimento de amizade constantemente posto à prova que bastaria para ditar
deveres. Ora, o estoicismo
era uma doutrina da autonomia moral, do controle do indivíduo racional sobre si
mesmo, do interior; só é preciso que esse indivíduo preste incessante atenção
em todos os detalhes da rota da vida.
Disso decorrem duas
consequências: o conformismo estoico vai retomar em todo o seu rigor a
instituição matrimonial e agravá-la, exigindo dos esposos que controlem o menor
gesto e que antes de ceder ao menor desejo possam demonstrar que tal desejo se
fundamenta na razão.
Base da instituição:
é preciso casar, ensina Antipater de Tarso, para dar cidadãos à pátria e porque
a propagação da espécie humana está em conformidade com o plano divino do
universo. O fundamento do matrimônio, ensina Musônio, é a procriação e a ajuda
mútua entre os esposos. O adultério constitui um roubo, ensina Epicteto; roubar
a mulher do próximo é tão indelicado quanto tirar a porção de porco servida ao
vizinho de mesa. “Quanto às mulheres, é a mesma coisa: as porções foram
distribuídas entre os homens.” O casamento, diz Sêneca, consiste em uma troca
de obrigações, desiguais, talvez, mas diferentes, sendo a da mulher obedecer.
Marco Aurélio, imperador estoico, congratula-se por haver encontrado na
imperatriz “uma esposa tão obediente”. Sendo os dois cônjuges agentes morais e
havendo um contrato mútuo, o adultério do marido será considerado tão grave
quanto o da mulher (ao contrário da velha moral, que julgava as falhas não
segundo o ideal moral, e sim de acordo com a realidade cívica, na qual se
inscrevia o privilégio dos machos).
Agravamento da
instituição, como vemos. Pois, sendo o casamento uma amizade, os esposos devem
fazer amor apenas para ter filhos e sem se acariciarem demais; não se deve
tratar a esposa como amante, assevera Sêneca, depois citado e aprovado por são
Jerônimo. E seu sobrinho Lucano era da mesma opinião. Escreveu uma epopeia,
espécie de romance histórico realista, em que relata, a sua maneira, a guerra
civil entre César e Pompeu. Mostra Catão, modelo de estoico, despedindo-se da
esposa (a mesma que fora emprestada temporariamente a um amigo), pois parte
para a guerra: na véspera de tal separação, não fazem amor — Lucano tem o
cuidado de registrar e explicar o significado doutrinal. E o próprio Pompeu,
quase grande homem, também não se deita com a esposa no momento da despedida,
embora não fosse estoico. Por que tal abstinência? Porque um homem de bem não
vive de maneira inconsequente e vigia seus menores gestos; ora, ceder ao desejo
é um gesto imoral; só há um motivo razoável para se deitarem juntos: a
concepção. Trata-se menos de ascetismo que de racionalismo. A razão se
pergunta: “Por que fazer isso?”. Contraria sua natureza planificadora dizer:
“Afinal, por que não fazer?”. O planismo estoico tem, portanto, enganosa
semelhança com a ascese cristã. No entanto o cristianismo não é um monólito; em
seus primeiros séculos evoluiu muito mais que o estoicismo. Além disso, é muito
diverso. O cristão Clemente de Alexandria foi influenciado pelo estoicismo a
ponto de recopiar prescrições conjugais do estoico Musônio, sem mencionar o
verdadeiro autor. São Jerônimo teria achado essa doutrina demasiadamente
sensual. Quanto a santo
Agostinho, um dos mais prodigiosos inventores de ideias que o mundo já
conheceu, achou mais simples inventar sua própria doutrina do casamento.
Como vemos, não é
preciso raciocinar por imagens e opor a moral do paganismo à moral cristã; as
verdadeiras cisões estão alhures: entre uma moral de deveres matrimoniais e uma
moral interiorizada do casal; esta última, nascida não se sabe onde no interior
do paganismo, é comum ao paganismo a partir do século II de nossa era e à parte
do cristianismo que se acha sob influência estoica; o estoicismo julgou que
essa moral, sendo a moral por excelência, era necessariamente a sua. Afirmar,
com razão, a identidade da moral pagã tardia e de quase toda a moral cristã não
significa confundir paganismo e cristianismo, mas volatilizá-los a um e outro;
não se deve refletir sobre essas grandes máquinas de imagens, e sim abri-las
para ver funcionar no seu interior os mecanismos mais ardilosos, que não
concordam com os cortes tradicionais.
Há mais: uma moral
não se reduz ao que manda fazer; mesmo que as regras conjugais de uma parte do
paganismo e de uma parte do cristianismo sejam textualmente as mesmas, o jogo
não se realizou. Em certa época, pagãos e cristãos igualmente dizem: “Não
façais amor a não ser para ter filhos”. Tal proclamação no entanto não tem as
mesmas consequências se é feita por uma doutrina de sabedoria que dá a
indivíduos livres, para sua autonomia neste mundo, conselhos que seguirão como
pessoas autônomas, caso os achem convincentes; e se a mesma proclamação é feita
por uma Igreja todo-poderosa que entende governar as consciências para sua
salvação no além e deseja legislar sobre todos os homens, sem exceção, estejam
eles convencidos ou não.”
“LOUVÁVEL
OCIOSIDADE
A economia romana
comportava um importante setor servil; havia também a prisão por dívidas, em
que um credor sequestrava o devedor com a mulher e os filhos para fazê-los
trabalhar; e um setor do Estado em que os condenados, os escravos do fisco (ou
seja, de inumeráveis domínios imperiais) penavam sob as chibatadas dos guardas;
muitos cristãos conheceram tal destino. Mas o setor principal continuava juridicamente
livre. Pequenos camponeses independentes penavam para pagar os impostos; como
escreveu Peter Brown, “o Império Romano deixava o terreno livre para as
oligarquias locais de notáveis e confiava-lhes o cuidado de garantir as tarefas
administrativas; exigia-lhes pouca coisa pela via fiscal e evitava mostrar-se
muito curioso quanto à maneira como os impostos eram extorquidos do
campesinato; é a espécie de governo displicente que constituiu o princípio de
muita dominação colonial num período recente”. Outros camponeses eram meeiros
desses notáveis. Trabalhadores agrícolas, assalariados, artesãos cujos serviços
eram comprados para determinada tarefa tinham com os empregadores um pacto de
compromisso que raramente assumia a forma de contrato escrito (à exceção de
casos em que havia um contrato de aprendizagem). Assim como o Código
Napoleônico acata a palavra do senhor nas contestações relativas aos salários
dos criados, assim também um empregador romano faz justiça se os assalariados o
roubam, como se fossem escravos. As cidades são essencialmente os lugares onde
os notáveis, como a “nobreza citadina” da Renascença italiana, distribuem os
lucros da terra: oposição completa com a Idade Média francesa e sua nobreza de
castelões. Ao redor desses notáveis urbanos vivem artesãos e comerciantes que
são os fornecedores de tais ricos; era isso uma “cidade” romana (que com uma
cidade moderna só tem em comum o nome). Como se reconhecia uma cidade? Pela
presença de uma classe ociosa, a dos notáveis. A ociosidade é a peça principal
de sua “vida privada”; a Antiguidade foi a época da ociosidade tida como
mérito.
Por volta de 1820,
dizia um astrólogo ao jovem herói de A cartuxa de Parma: “Dentro de
talvez um século não se há mais de querer ociosos”. Tinha razão. Em nosso século
XX ninguém confessa de bom grado que vive de rendas. Desde Marx
e Proudhon
a noção de trabalho tornou-se um valor social Universal, um conceito
filosófico. Tanto que o antigo desprezo pelo trabalho, as declarações de desdém
não disfarçado pelos que trabalham com as próprias mãos, a exaltação do ócio
como condição necessária para uma vida de homem “liberal” digno do nome de
homem, tudo isso nos choca. O trabalhador era não apenas socialmente inferior
mas também visto como um tanto ignóbil. A partir disso muitas vezes concluímos
que uma sociedade que desconhecia a tal ponto os verdadeiros valores devia ser
uma sociedade mutilada, obrigada a pagar o preço de sua mutilação: não seria o
desprezo pelo trabalho que explicaria o atraso econômico dos antigos, sua
ignorância das máquinas? A menos que uma praga se explique por outra praga e o
desprezo pelo trabalho tenha sua explicação nesse outro escândalo que foi a
escravidão…
E, no entanto, se
formos sinceros encontraremos em nós uma das chaves desse enigma. Sim, o
trabalho nos parece respeitável e não ousaríamos nos gabar de ser ociosos; isso
não impede que sejamos muito sensíveis às distinções de classe e, sem
confessar, vejamos os operários e artesãos como gentinha; não gostaríamos que
nós e nossos filhos caíssemos a esse nível e nos envergonhamos um pouco de tal
sentimento.
Essa é a primeira das
seis chaves das atitudes antigas diante do trabalho: o desdém pelo valor
trabalho era desdém social pelos trabalhadores. Esse desdém perdurou até a
época de A cartuxa de Parma, mais ou menos; depois, para manter a
hierarquia das classes sociais reduzindo os conflitos de classes, foi preciso
enaltecer no trabalho um valor verdadeiro e o valor de todos; foi a paz social
dos corações hipócritas. O mistério do desprezo antigo pelo trabalho consiste
simplesmente no fato de que os acasos da guerra social não conduziram a esse
provisório armistício da hipocrisia. Uma classe social orgulhosa de sua
superioridade canta a própria glória (é isso a ideologia).”
“UMA CLASSE INCLASSIFICÁVEL
Só quem trabalhava
era a gentinha; as pessoas de bem exerciam em todas as coisas uma atividade de
direção, chamada cura ou epimeleia, que poderíamos traduzir por
“governo” no sentido em que Olivier de Serres falava do governo doméstico de um
domínio. Era a única atividade digna de um homem livre, pois constituía o
exercício de um comando. Dizia-se isso sobre a gestão do patrimônio pelo pai de
família, sobre uma missão pública confiada a um delegado e até sobre o governo
imperial — pelo menos o diziam os pensadores que gostavam de imaginar o
imperador como um soberano patriarcal. Pouco importava que, governando suas
terras, Cipião, o Africano, tivesse manobrado pessoalmente a charrua, como
Cincinato no passado: nem por isso deixava de ser o senhor. Em tal condição,
constituía um mérito ser “trabalhador” enérgico; esse qualificativo, porém,
indicava uma qualidade moral, não uma identidade. Quando Virgílio escreve que o
trabalho triunfa sobre tudo, não diz que é a santa lei do mundo, mas que um zelo
intenso rompe todos os obstáculos. Não ser preguiçoso era uma virtude nascida
das necessidades; de todas as necessidades: nunca se ativar, negligenciar os
amigos, os cuidados com a própria glória e com os negócios públicos é viver
como uma ostra, diz Plutarco. Um alto funcionário é um homem enérgico que, da
manhã à noite, passa seu ano de trabalho examinando linha por linha as contas
do fisco. Não se deixar enferrujar: uma máxima de Catão, esse verdadeiro grande
homem. Como vemos, é impossível encontrar um equivalente medieval ou moderno
para essa classe que, na falta de termo melhor, chamamos de notáveis, nobres, middle
class ou gentry; altivos como nossos nobres, universalistas como os
burgueses, negocistas como eles, proprietários de terras como nossa nobreza,
trabalhadores, mas considerando-se classe ociosa. E há mais. No mundo romano
não encontramos a equivalência que nos é familiar entre classes sociais e
atividades econômicas; não existiu burguesia romana porque a classe que possuía
o solo também realizava, sem se vangloriar, atividades mais burguesas; se
procurarmos em Roma uma classe de negociantes, fabricantes, especuladores, usurários,
agricultores em geral, nós a encontraremos em toda parte: entre os libertos,
entre os cavaleiros e também entre os notáveis municipais e entre os senadores.
Para saber se Catão, o Velho, participava do comércio marítimo ou se tal
família de grandes notáveis municipais fazia negócios até nas fronteiras do
Danúbio, precisamos investigar não a classe social a que pertencem, mas seus
caprichos individuais e também a geografia, pois as heterogeneidades pessoais e
regionais eram consideráveis; o senador Catão, por seu turno, “investiu
capitais em negócios sólidos e seguros: comprou lagos piscosos, fontes de água
termal, terrenos para instalar estabelecimentos de pisoeiros, fábricas de
resina, terras com prados naturais e florestas; também praticou o empréstimo
marítimo, que é a mais execrada forma de usura: consistia em formar uma
companhia de cerca de cinquenta pessoas e tomar uma parte de capital por
intermédio de seu liberto Quintio”. A essas iniciativas pessoais devemos
acrescentar as tradições locais; tal cidade vive encerrada em si mesma e não
passa de um amontoado de camponeses, como vemos hoje no sul da Itália ou na
Hungria; mas, a vinte quilômetros, a cidade de Aquileia é uma Veneza ou uma
Gênova da Antiguidade, tem como notáveis negociantes marítimos e mantém
relações com o extremo do mundo.
Posse de terra,
investimentos individuais, empresas familiares: nesse povo tão ávido de ganho,
precisamos levar em conta ainda a empresa ocasional, praticada pelos mais ricos
e não pelos pequenos comerciantes; se um nobre romano é informado pelos amigos
de que há um modo de ganhar muito dinheiro, imediatamente se põe a agir, mesmo
que deva improvisar em tal negócio e nunca tenha praticado esse gênero de
tráfico: agarrará a oportunidade que uma informação confidencial lhe fornece ou
encarregará disso um de seus escravos. A falta de mercado geral multiplicava as
oportunidades de realizar tais negócios, assim como a circulação sofrível de
informação e a importância dos apoios políticos: havia, na classe dirigente e proprietária,
uma cumplicidade de especuladores que tinham por privilégios a informação e a
influência, mais poderosas que as leis do mercado. A economia patrimonial não
era precisamente patriarcal e muito menos liberal.
A natureza das
atividades econômicas depende evidentemente da riqueza, mas, em lugar de se
especializar em classes sociais, varia de acordo com os indivíduos, os lugares
e os momentos. Por fim, como saber de que se compunha a fortuna de um romano?
Duas hipóteses. Suponhamos que Juvenal fale satiricamente de um boiadeiro, que
o jovem Virgílio zombe de um muleteiro; não devemos concluir disso que o
primeiro tocasse os bois com a própria mão e o segundo puxasse uma mula pela
rédea: a sequência do texto prova que um dirigia uma empresa de serviços de
transporte feito com mulas pelos caminhos lamacentos da planície do Pó e o
outro era proprietário de vastos rebanhos. Assim também, M. de Charlus,
desdenhoso da burguesa América, falava da sra. Singer como de uma mulher que
com as próprias mãos fabricava máquinas de costura. Se o boiadeiro em questão
tivesse apenas um boi ou dois, os textos nem falariam dele, pelo menos não para
caçoar.
EMPRESÁRIOS
Segunda hipótese: um
texto fala de um romano designando-o por seu nome próprio, sem classificá-lo
numa profissão. De que se compõe então o patrimônio desse notável e de onde
provém? De todos os lados, pois a economia patrimonial é também uma economia
não completamente profissionalizada; para ser mais exato, um rico “pai de
família” tem como intermediários alguns de seus libertos e também seus
escravos: concedeu estes últimos uma autonomia financeira e uma capacidade
jurídica que lhes permitem atuar nos negócios como homens livres, mas por conta
do senhor. Esse estado-maior negocista passa o tempo ampliando o patrimônio do
senhor; assim eram os verdadeiros homens de negócios dessa época; acrescentemos
outro herói balzaquiano: o administrador, livre e geralmente escravo, que
dirige as terras, vende os produtos do solo e até gere a totalidade das
atividades econômicas do senhor. A economia romana repousava sobre eles.
Frequentemente o
administrador nasceu livre e se vendeu como escravo a fim de fazer carreira. O
senhor confiava nele. A contabilidade da época não era a nossa; o administrador
não prestava contas a intervalos determinados: o senhor e ele ficavam anos sem
fazer um balanço. Seu dever era manter uma anotação honesta das entradas e
saídas para prestar contas quando por qualquer razão resolvessem pedi-las:
morte do senhor e sucessão, afastamento do escravo, venda, fúria do dono. Azar
do administrador que nesse dia não pudesse apresentar uma soma líquida
significativa da diferença entre o total das entradas e o total das saídas! Se,
ao contrário, estivesse em condições de equilibrar o balanço (pariari),
merecia o belo nome de pariator, que figuraria em seu epitáfio. Também
com os arrendatários o proprietário ficava anos sem acertar contas; com sua
morte, ou se havia vendido seus bens, era preciso calcular o restante devido (reliqua
colonorum). Não que os arrendatários estivessem sistematicamente
endividados: as contas é que não estavam em dia. Método semelhante era
certamente favorável à ideia de que a dívida constitui um laço de clientela e o
devedor que pretende saldá-la é um infiel que deseja se separar de seu
benfeitor.
Um notável é
onipresente na vida econômica. Pode ser o chefe de uma empresa rural ou
comercial (alguns não hesitavam em transformar sua residência em loja e expor
aos compradores as mercadorias que acabavam de receber). Como proprietário, pode
ser uma espécie de financiador das empresas de seu administrador. Pode
participar nas firmas de comércio ou no recebimento dos impostos públicos. Pode
por fim, mais humildemente, atuar sozinho; o médico Galeno tinha entre seus
pacientes um homem que não se preocupava em adquirir cultura e andava pelas
ruas a fazer negócios; “comprava, vendia e frequentemente brigava, tanto que
tinha uma transpiração por demais abundante”.
NEGOCISMO NOBRE
Trata-se, pois, de
uma economia com instituições e sociologia tão diferentes da nossa que a
diríamos arcaica; teve um nível de produção elevado e era tão dinâmica e dura
quanto o capitalismo, pois esses aristocratas, que se distinguiam pela cultura
e pelo gosto do conhecimento, tinham a paixão do ganho. Os senhores mais
importantes falavam de negócios; o senador Plínio, em suas cartas que se
pretendem exemplares, cita como exemplo sua própria conduta de rico
proprietário. Se um senhor desejar se livrar de velhos móveis ou de material de
construção, organizará um leilão público desse excesso (pois o leilão era, para
os particulares, a maneira normal de vender seus objetos usados, e os próprios
imperadores organizavam leilões no palácio, quando queriam se livrar de um
mobiliário indesejável). O dinheiro precisava trabalhar. Tudo era a juros:
amigos e parentes emprestavam a juros entre si (mas constituía um mérito não
fazê-lo); um genro cobrava juros do sogro que demorasse a lhe entregar o dote
combinado. A usura fazia parte da vida cotidiana de todos, e nossos
antissemitas poderiam tomar a Roma antiga, mais que os judeus, como tema
obsessional e pela mesma razão: em Roma o empréstimo a juros e o comércio não
eram exclusivamente atividades de profissionais nem restritas a determinada
classe social. Todo esforço merecia salário, mesmo que fosse um prazer. Um
traço pitoresco dos costumes galantes era o seguinte: na mais alta sociedade
toda ligação amorosa acarretava um pagamento da amada pelo amante; a matrona
que enganava o marido recebia do amante uma grande soma, quando o galã não lhe
concedia uma renda anual. Havia uns grosseirões que retiravam a doação em caso
de rompimento, e os juristas se viam obrigados a intervir. Não se tratava de
prostituição, mas de salário: a matrona não se dava porque lhe pagavam, mas
recebia porque se dera, e a mais amorosa era a mais bem recompensada.
Assim as mulheres
perseguiam o salário do adultério, enquanto os homens corriam atrás dos dotes.
Esse negocismo
universal eliminava não só os limites entre classes sociais ou “ordens”
cívicas, mas também as distinções entre categorias econômicas. Os mesmos homens
se dedicavam tanto a empresas ocasionais como a atividades habituais:
simultaneamente especuladores e profissionais (com ou sem o nome); os mesmos
homens enriqueciam tanto se apoderando de fortunas já constituídas — o que é um
procedimento arcaico — quanto criando novas riquezas através de investimentos —
o que é bem moderno. Enriqueciam por vias econômicas, produção e venda, ou por
processos extraeconômicos, legais ou não: herança, dote, propina, violência,
trapaça; apoiavam-se tanto na lei da oferta e da procura quanto na influência
política e nas cumplicidades entre “gente da sociedade”. E, como os notáveis
eram os principais proprietários de bens de raiz, seu negocismo fazia com que
houvesse, de um lado, um imenso campesinato pobre e, de outro, uma rica classe
urbana com atividades múltiplas que confere à nossa imagem da vida antiga sua
diversidade e seu brilho. Na época em que medicina custava caro, Galeno tinha
como clientes apenas notáveis, ainda por cima do sexo masculino; moravam na
cidade, supervisionando o administrador, suavam nos negócios, exerciam, como o
próprio Galeno, alguma profissão, participavam da direção dos assuntos públicos
da cidade, ficavam em casa para ler ou copiar os textos filosóficos de sua
seita favorita; quando velhos, retiravam-se para suas terras. E, ao morrerem,
verificava-se que sua sucessão comportava três componentes principais: imóveis
(terras ou construções), seus instrumentos agrícolas ou o mobiliário e créditos
(nomina de bitorum). Quanto à conta bancária, conhecida na República e
no Baixo Império, não há testemunho no Alto Império.
Os usurários da época
não eram banqueiros, mas notáveis e senadores. Todo pai de família tinha em
casa um cofre, chamado kalendarium, contendo um calendário dos
pagamentos, títulos de crédito e também as somas destinadas a empréstimos a
juros e à espera de quem as pedisse: “destinar uma soma a empréstimos” era
“colocá-la no kalendarium”. Cada um tinha sua estratégia: emprestar uma
parte grande ou pequena do patrimônio, emprestar pouco a muitos ou muito a
alguns grandes devedores. Os créditos facilmente passavam de mão em mão, fosse
por dação formal, fosse, mais simplesmente, por uma venda pura e simples;
constituíam um instrumento de liberação de um débito e um objeto de
especulação. Uma espécie de moeda escritural. Podia-se legar o kalendarium
e, junto, os direitos sobre os devedores, assim como os capitais destinados à
usura.
OUTROS MEIOS DE
ENRIQUECER
Pois a usura era tida
como uma maneira nobre de enriquecer, da mesma forma que a agricultura, os
dotes e também os legados. Cortejar um velho rico na expectativa de seu
testamento era uma conduta tão comum como é, entre nós, ser atencioso com um
patrão ou um superior: todo mundo caçoava disso, e todo mundo adotava tal
conduta. Vimos que a decência queria que um testador multiplicasse os legados,
para honrar todos os amigos, recompensar todos os fiéis; graças a esse costume
vivia cercado de uma corte de gente atenciosa sem a qual um verdadeiro romano
não poderia se ter na conta de um homem com alguma importância.
Um homem ou uma
mulher lucram não tendo filhos, diz Tácito: eles são mais rodeados de
amabilidades. Ora, os demógrafos nos ensinam que, no Ancien Regime, uma
família francesa média tinha quatro ou cinco filhos, dos quais apenas dois
chegavam à idade de vinte anos; a família romana média tinha em geral três
filhos. Deduzimos que os velhos que viram morrer todos os filhos e filhas não
constituíam, portanto, raridade: as presas eram numerosas; tanto mais que a
liberdade do testador, segundo a lei e o costume, era grande. A cada geração
punha-se em jogo novamente uma fração importante do patrimônio nacional: quem a
receberia? Povo versado em trapaças, os romanos sabiam como agir. Uma mãe
divorciada institui o filho herdeiro, mas, sabendo que o ex-marido é um
indivíduo pouco recomendável, determina que o filho só receberá a herança sob a
condição de não estar sob o poder do pai no momento de abrir-se a sucessão
(pois nesse caso a herança passaria ao pai); em outros termos, o filho só
herdará se o pai já tiver morrido. Infelizmente este ainda vive, porém encontra
uma boa solução: emancipa o filho, que assim escolhe a sucessão. Esse pai vale
mais que sua reputação? A história não terminou: ele se põe a bajular o próprio
filho, a cobri-lo de brinquedos e animais domésticos — em suma, a caçar-lhe o
testamento — e vence: o filho mimado morre deixando-lhe a célebre herança.
A opinião pública não
condenava um tipo de conduta proveitosa; limitava-se a matizar suas
apreciações. “Depois de viver cercado de caçadores de herança, Fulano morreu
deixando tudo a filha e aos netos; a opinião pública hesita: uns o consideram
hipócrita, ingrato, esquecido dos amigos; outros, ao contrário, ficam
encantados com esse velho que frustrou as esperanças de pessoas interesseiras”
— é um senador quem diz isso, e portanto tem razão.
A busca da riqueza
por vezes seguia caminhos bem mais difíceis. O mundo romano não contava com uma
verdadeira polícia; soldados do imperador (como o centurião Cornélio, do qual
fala o Evangelho) reprimiam os tumultos e acossavam os briguentos, mas não se ocupavam
da insegurança cotidiana, que ofendia menos a “imagem distintiva” que o Estado
romano queria dar de sua autoridade soberana; quando necessário, os notáveis
das cidades organizavam milícias cívicas. A vida cotidiana era a mesma do
faroeste americano: sem polícia nas ruas, sem guardas nos campos, sem promotor
público. Cada um que se defendesse e fizesse justiça, e o único meio eficaz
para os pequenos e os menos grandes era colocar-se sob a proteção de um grande.
Mas quem protegia esse grande e quem protegia os grandes uns dos outros?
Sequestros, usurpações, prisões privadas para devedores eram moeda corrente;
cada cidade vivia com medo dos tiranetes locais ou regionais, às vezes
protegidos o bastante para se atreverem a desafiar um personagem tão poderoso
quanto o governador da província. Um poderoso não hesitava em tomar posse da
terra de um de seus pobres vizinhos; e não hesitaria em atacar a fazenda de
outro grande liderando seus escravos. O que fazer contra esse homem que
enriqueceu à custa de outros? As probabilidades de obter justiça dependiam da
boa vontade de um governador de província muito ocupado, obrigado a poupar os
poderosos por razões de Estado e aliado a esses poderosos por uma rede de
amizades e interesses. Sua justiça, se a exercia, seria um episódio da guerra
dos clãs, uma reviravolta das relações de força.
A violência pura e
simples se acrescentava a violência judiciária. Os romanos passam por
inventores do direito; é verdade que escreveram muitos livros de direito
notáveis e achavam glorioso e aprazível conhecer e praticar os enigmas e os
meandros do direito civil; era uma cultura, um esporte e um tema de orgulho
nacional. Disso não podemos deduzir que a legalidade efetivamente reinava em
sua vida cotidiana; o legalismo apenas introduzia no caos uma complicação
suplementar e até uma arma: a trapaça. Em país grego sob o Império a chantagem
Judiciária e as extorsões paralegais levavam o velho nome de “sicofantismo”.
Suponhamos que as
terras de um grande senhor despertam a inveja de outro senhor e que o primeiro
desagrada à família Imperial; o segundo terá o recurso de acusar o primeiro de
crime de lesa-majestade: pela delação, receberá uma parte do patrimônio do
outro, previamente executado. Suponhamos agora que longe do palácio um notável
vê se frustrarem as esperanças que colocara no testamento de um velho rico;
terá o recurso de afirmar que o velho não morreu de boa morte, mas suicidou-se
ou, ainda, foi envenenado e seus herdeiros não perseguiram o assassino nem
trataram de vingar o sangue de seu benfeitor. Em ambos os casos, anulava-se o
testamento e a sucessão revertia ao fisco, menos o prêmio devido ao delator.
Muito mais que um fiscalismo, o fisco era o conjunto dos domínios que o
imperador confiscara como sucessões vacantes ou irregulares; o fisco tinha sua
própria jurisdição, na qual era juiz e parte; por esse meio, o imperador
rapidamente se tornou o maior proprietário de seu império. O fisco, portanto,
estava muito disposto a acreditar nos delatores, que lhe davam a oportunidade de
confiscar mais uma sucessão. Tanto se sabia disso que alguns testadores,
desejosos de frustrar seus herdeiros, inscreviam o imperador como coerdeiro: o
fisco agia de modo a se apoderar da herança inteira. Em suma, o direito
tornava-se uma arma na luta pelos patrimônios; a posse e a transmissão pacífica
dos bens nunca eram garantidas. Se um recém-casado está deslumbrado com o dote
da esposa, parentes invejosos o acusarão de ter usado de magia negra para
seduzi-la.
As vias de
enriquecimento mais propriamente econômicas também nos fazem pensar num modo
desordenado onde tudo é possível: obter dos poderes públicos algum direito de
exploração, comumente acompanhado de um monopólio; serpentear por entre as
incoerências de um mundo econômico caótico; montar uma empresa de transportes
da qual todos precisavam e para a qual ninguém tomara a iniciativa, por falta
ou de capital ou de interesse… Esse é o espetáculo que oferece hoje mais de uma
economia do Terceiro Mundo. Não nos surpreenderemos ao ver muito notável à frente
de uma variedade de negócios e explorações perfeitamente incoerentes reunidos
em suas mãos pelo acaso das boas oportunidades: bens de raiz, venda de tecido,
tinturaria, transporte de mercadorias pelo Reno; agricultura, transporte
marítimo pelo mar Egeu e… ensino da retórica mediante honorários, importações
de produtos do Egito para Atenas. Não imaginemos um alto personagem dessa época
como a pura imagem de um senhor, simples como a paz dos campos e dos trabalhos
rudes; tal personagem tem o colorido de um notável sul-americano, mas, como
ele, nessa sociedade que brutalmente opõe os ricos — os senhores — à massa dos
pobres, tem um porte nobre e não se assemelha a suas vias de enriquecimento.”
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