domingo, 19 de setembro de 2021

História da vida privada (I): do Império Romano ao ano mil (Parte I) — Philippe Ariès e Georges Duby (Org.)

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1378-1

Tradução: Hildegard Fiest

Organização: Paul Veiny

Opinião★★★★☆

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Páginas: 648

Sinopse: Prefaciado pelo historiador francês Georges Duby, que dirige a coleção ao lado de Philippe Ariès, este primeiro volume cobre um período de cerca de oito séculos, do declínio do Império Romano à Alta Idade Média ocidental e à Bizâncio dos séculos X e XI. O livro reúne ensaios que examinam a vida cotidiana de cidadãos e escravos, senhores e servos – sua sexualidade, o casamento, a família, as diversas formas de moradia, as atitudes religiosas e as práticas funerárias –, compondo um quadro dos comportamentos individuais e sociais no período abordado.

 

 

O livro é dividido em cinco partes, com estes respectivos autores:

1. O Império RomanoPaul Veyne

2. Antiguidade tardiaPeter Brown

3. Vida privada e arquitetura doméstica na África romanaYvon Thébert

4. Alta idade média ocidentalMichel Rouche

5. Bizâncio: séculos X-XIÉvelyne Patlagean

 

 

Partimos, portanto, da evidência de que, sempre e por toda parte, se exprimiu no vocabulário o contraste, claramente detectado pelo senso comum, que opõe o privado ao público, aberto à comunidade do povo e submetido à autoridade de seus magistrados. De que uma área particular, claramente delimitada, é atribuída a essa parte da existência que todas as línguas denominam privada, uma zona de imunidade oferecida ao recolhimento, onde todos podemos abandonar as armas e as defesas das quais convém nos munirmos quando nos arriscamos no espaço público; onde relaxamos, onde nos colocamos a vontade, livres da carapaça de ostentação que assegura proteção externa. Esse lugar é de familiaridade. Doméstico. Íntimo. No privado encontra-se o que possuímos de mais precioso, que pertence somente a nós mesmos, que não diz respeito a mais ninguém, que não deve ser divulgado, exposto, pois é muito diferente das aparências que a honra exige guardar em público.”

(Georges Duby – prefácio)

 

 

XXXXXXXXXXXXX

 

1. O Império RomanoPaul Veyne

 

“Chegamos a um ponto que parece importante e talvez o seja: uma particularidade do direito romano que surpreendia os gregos era que, púbere ou não, casado ou não, um menino permanecia sob a autoridade paterna e só se tornava inteiramente romano, “pai de família”, após a morte do pai; ainda mais: este era seu juiz natural e podia condená-lo à morte por sentença privada. Ademais, a capacidade de testador era quase infinita e o pai podia deserdar os filhos. Consequência: um jovem de dezoito anos e órfão institui a amante como herdeira, enquanto um homem de idade madura não pode realizar nenhum ato jurídico com sua própria autoridade se ainda tem pai vivo: “Tratando-se de um filho de família”, escreve um jurista, “as dignidades públicas nada contam: ainda que ele seja cônsul, não terá o direito de pedir dinheiro emprestado”. Essa é a teoria. E a prática? A prática é moralmente pior.

Juridicamente, sem dúvida, o poder paterno atenuava-se. Não é todo mundo que deserda os filhos, e para isso é necessário primeiro não morrer intestado; o filho privado da sucessão pode tentar anular o testamento nos tribunais; de qualquer modo, só pode ser deserdado em três quartas partes. Quanto à morte do filho por sentença paterna, que desempenha um grande papel na imaginação romana, os últimos exemplos datam de Augusto e indignaram a opinião pública. Continua verdadeiro que uma criança não tem fortuna própria e que tudo que ganha ou recebe em herança pertence ao pai. Mas o pai pode lhe conceder certo capital, o “pecúlio”, do qual disporá como quiser. E depois o pai pode simplesmente decidir emancipá-lo. O filho, portanto, tinha razões para esperar e meios para agir. Tais meios, porém, não passam de expedientes, e essas esperanças constituem outros tantos riscos; psicologicamente a situação de um adulto com pai vivo é insuportável. Ele não pode fazer um gesto sem o pai: concluir um contrato, libertar um escravo, elaborar seu testamento. Tudo que possui, a título precário, é seu pecúlio, exatamente como um escravo. A essas humilhações acrescenta-se o risco de ser deserdado, que é real.

Vamos folhear a correspondência de Plínio: “Fulano instituiu o irmão como seu herdeiro universal, em detrimento da própria filha”; “Sicrana deserdou o filho”; “Beltrano, deserdado pelo pai”… A opinião pública, tão poderosa sobre os espíritos da classe alta, veremos, não censurava automaticamente: julgava. “Tua mãe teve uma razão para te deserdar que era legítima”, escreve o mesmo Plínio. Sabemos qual é a demografia de toda sociedade antes de Pasteur: a mortalidade multiplica os viúvos, as viúvas, as mulheres mortas de parto e os novos casamentos; e, como o pai tem liberdade quase total de testar, os filhos do primeiro leito temem uma madrasta.

Servidão final: o filho não pode fazer carreira sem o consentimento do pai; sempre poderá ser nomeado senador, se for nobre, e, sendo um simples notável, senador do Conselho de sua cidade. Mas como pagar as consideráveis despesas que tais honras exigiam numa época em que todo homem público fazia carreira pelo pão e pelo circo? Assim, ele só tratará de se tornar senador ou conselheiro com ordem do pai, que arcará com as despesas necessárias usando o patrimônio da família. Em muito edifício público da África romana, construído à custa dos conselheiros a título de suas honras, lê-se uma inscrição informando que o pai despendeu o dinheiro pelo filho. A consequência disso era que o pai decidia soberanamente entre os filhos; o número de postos no Senado e nos Conselhos das cidades era limitado, e poucas famílias podiam pretender que mais de um de seus filhos neles ingressassem; além do mais, a despesa era considerável. O filho que teria a custosa honra de fazer carreira era aquele que o pai escolhesse; não se deixava de exaltar o sacrifício dos outros, felizes por cederem lugar ao irmão. Cabe esclarecer que o direito de primogenitura não existia; em contrapartida, o costume ensinava os mais novos a se curvarem à anterioridade dos mais velhos.

 

TESTAMENTO

A morte do pai anunciava a herança dos filhos, exceto azar, e, em todo caso, o fim de uma espécie de escravidão; os filhos tornavam-se adultos e a filha, se não fosse casada ou divorciada, tornava-se herdeira, livre para casar-se com quem bem quisesse (pois o consentimento das moças ao casamento, requerido pelo direito, ao mesmo tempo sempre era pressuposto pelo direito, tanto que a filha só tinha de obedecer ao pai). Ainda era preciso que a herdeira não caísse sob outra autoridade, a do tio paterno; essa severa figura procurará proibi-la de ter amantes secretos e a ocupará nos trabalhos forçados da roca e do fuso. O poeta Horácio ternamente as lamenta.

Assim, não nos surpreenderemos com a obsessão pelo parricídio e sua relativa frequência: era um grande crime razoavelmente explicável, e não um prodígio freudiano. “Durante as guerras civis e suas proscrições”, conta o historiador Veleio, época em que choviam as denúncias, “a lealdade das esposas foi máxima, a dos libertos foi média, a dos escravos não foi nula e a dos filhos foi igual a zero, tanto é duro suportar o adiamento de uma esperança!”

Os romanos plenamente homens são, portanto, só os cidadãos livres que, órfãos ou emancipados, são “pais de família”, casados ou não, donos ou não de um patrimônio. O pai de família tem um lugar à parte na moral vigente, e Aulo Gélio diz isso, ao relatar a seguinte discussão: “‘Deve-se sempre obedecer ao pai? Alguns respondem: ‘Sim, sempre’. Mas e se vosso pai vos mandar trair a pátria? Outros respondem sutilmente que não obedecem jamais, pois é a moral que se obedece, moral cujas ordens ele exprime”. Aulo Gélio replica inteligentemente que existe uma terceira ordem de coisas, que não são nem impostas pelo bem nem imorais, tais como casar ou permanecer celibatário, abraçar este ou aquele ofício, ir ou ficar, procurar ou não as honras públicas. É sobre essa terceira ordem de coisas que se exerce a autoridade paterna.

A autoridade da família e a dignidade social dos pais de família têm o testamento como arma e como símbolo. Pois o testamento constitui uma espécie de confissão em que o homem social se revelava inteiramente e pelo qual seria julgado.

Havia nomeado como herdeiro o mais digno? Legara alguma coisa a todos os seus fiéis? Falava da mulher em termos que fossem para ela um certificado de boa esposa? “Quanto tempo passamos a deliberar em nosso foro íntimo para saber a quem legaremos os alguma coisa e quanto! Nunca vasculhamos tanto nossas decisões como nesse momento.” Todos os membros da família, próximos ou distantes, devem receber alguma coisa, e também o pessoal da casa: os escravos que o merecem são libertados pelo testamento, os libertos que permaneceram fiéis e os clientes não são esquecidos.

A leitura pública do testamento era o acontecimento público do momento, pois as disposições e heranças não eram tudo e o testamento adquiria valor de manifesto. O costume de designar “herdeiros substitutos”, que não tocariam num centavo (a não ser que o herdeiro principal recusasse a sucessão), permitia escrever todos os nomes próprios que o testador quisesse, cada qual aquinhoado com uma fração teórica da herança, que dava a medida da estima do defunto em relação a cada um deles. O falecido também podia insultar post-mortem aqueles a quem havia detestado secretamente e reconhecer os valores: os nobres tinham o hábito de deixar um legado aos grandes escritores do momento. Plínio, então um orador célebre, que ia a todas as aberturas de testamento, observava com satisfação que sempre lhe legavam a mesma soma destinada a seu rival e amigo, o orador Tácito (ele não mente, e os epigrafistas encontraram um testamento em que é nomeado). A política imiscuía-se: um senador sempre tido como homem sério perdeu tal reputação por causa de seu testamento, no qual tecia loas a Nero (evidentemente para evitar que lhe anulassem o testamento e confiscassem a sucessão); outros, ao contrário, insultavam os todo-poderosos ministros do soberano e até se referiam em termos pouco amenos ao próprio imperador, quer este se chamasse Nero ou Antonino Pio… Um testamento era algo tão grandioso, do qual todos se orgulhavam tanto, que muitos dificilmente resistiam ao desejo de iniciar a leitura depois de beber, para agradar de antemão aos legatários e se fazerem estimar.

Sabemos da importância que em outras sociedades tinham o ritual do leito de morte e o das últimas palavras. Em Roma substituíam-nos o testamento, em que se manifestava o indivíduo social, e depois, como veremos, o epitáfio, em que se manifestava o que devemos chamar de indivíduo público.”

 

 

“O casamento, portanto, era tido como um dever entre outros, uma opção. Não é o “fundamento de um lar”, o eixo de uma vida, e sim uma das numerosas decisões dinásticas que um senhor deverá tomar: entrar na carreira pública ou permanecer na vida privada a fim de aumentar o patrimônio dinástico, tornar-se militar ou orador etc. A esposa será menos a companheira desse senhor que o objeto de uma de suas opções. Tanto será um objeto que dois senhores poderão repassá-la amigavelmente: Catão da Útica, modelo de todas as virtudes, emprestou a esposa a um amigo e mais tarde casou-se novamente com ela, abiscoitando de passagem uma herança imensa; um certo Nero “prometeu” (era o termo consagrado) sua esposa Lívia ao futuro imperador Augusto.

O casamento é apenas um dos atos da vida, e a esposa não passa de um dos elementos da casa, que compreende igualmente os filhos, os libertos, os clientes e os escravos. “Se teu escravo, teu liberto, tua mulher ou teu cliente ousam replicar, tu te enraiveces”, escreve Sêneca. Os senhores, chefes de uma casa, resolvem as coisas entre si, como de poder a poder, e se um deles deve tomar uma grave decisão reúne o “conselho de amigos” em vez de discutir com a mulher.

Senhor e senhora formam um “casal”? O senhor permite que os visitantes vejam a senhora, como os ocidentais atuais, ou a senhora se retira rapidamente, como nos países islâmicos? E quando se convidar o senhor para jantar convém convidar também a senhora? As raras indicações dos documentos não me permitiram chegar a uma conclusão clara: a única coisa clara é que a senhora, bem acompanhada, tem o direito de visitar as amigas.

A mulher é uma criança grande da qual se deve cuidar por causa do dote e do nobre pai. Cícero e seus correspondentes comentam os caprichos dessas eternas adolescentes, que aproveitam, por exemplo, a ausência do marido, nomeado governador de uma província distante, para se divorciarem e casar de novo. Tais infantilidades desconcertantes são realidades que acarretam consequências nas relações políticas entre senhores. Não é preciso dizer que essas criaturinhas não colocariam em ridículo seu amo e senhor: o tema molieriano da infidelidade feminina era desconhecido e, se assim não fosse, Catão, César e Pompeu teriam sido cornudos ilustres. Um marido é senhor tanto da esposa como dos filhos e dos domésticos; o fato de sua mulher ser infiel não constitui um ridículo, e sim uma desgraça, nem maior nem menor do que se sua filha engravidasse ou um de seus escravos faltasse ao dever. Se a esposa o engana, criticam-no por falta de vigilância ou de firmeza e por deixar o adultério florescer na cidade. Assim como repreendemos os pais muito fracos e que mimam os filhos, os quais acabarão caindo na delinquência, aumentando a insegurança pública. O único meio de um marido ou um pai prevenir tal dano era ser o primeiro a denunciar publicamente a má conduta dos seus. O imperador Augusto detalhou num edito os amores de sua filha Júlia; Nero fez o mesmo com o adultério de sua esposa, Otávia. A fim de confirmar que não tinham “paciência” — ou seja, complacência — com o vício. A opinião pública se perguntava se devia admirar ou censurar o silêncio estoico de outros esposos.

Como os maridos enganados são mais ultrajados que ridículos e as divorciadas levam seu dote consigo, há na classe alta grande frequência de divórcios (César, Cícero, Ovídio, Cláudio casaram-se três vezes) e talvez também na plebe citadina. Em Juvenal, vemos uma mulher do povo consultar um adivinho itinerante para saber se deve deixar seu taberneiro para se casar com um comerciante de roupas usadas (profissão próspera nessa época, em que a vestimenta popular era comprada de segunda mão). Nada mais estranho aos romanos que o sentido bíblico da apropriação de uma carne; não os repugnava esposar uma divorciada ou, como o imperador Domiciano, aceitar de volta uma esposa que durante algum tempo havia sido a mulher de outro homem. Constituía um mérito conhecer somente um homem ao longo da vida, mas apenas os cristãos procurarão transformar isso em dever e tentarão impedir que as viúvas se casem novamente.”

 

 

CASTOS ESPOSOS

Além desse conformismo voluntarista em que se transformou, havia uma afinidade mais autêntica entre o estoicismo e a nova moral conjugal. Esta já não prescrevia executar com doçura certo número de tarefas conjugais, mas viver como casal ideal, por meio de um sentimento de amizade constantemente posto à prova que bastaria para ditar deveres. Ora, o estoicismo era uma doutrina da autonomia moral, do controle do indivíduo racional sobre si mesmo, do interior; só é preciso que esse indivíduo preste incessante atenção em todos os detalhes da rota da vida.

Disso decorrem duas consequências: o conformismo estoico vai retomar em todo o seu rigor a instituição matrimonial e agravá-la, exigindo dos esposos que controlem o menor gesto e que antes de ceder ao menor desejo possam demonstrar que tal desejo se fundamenta na razão.

Base da instituição: é preciso casar, ensina Antipater de Tarso, para dar cidadãos à pátria e porque a propagação da espécie humana está em conformidade com o plano divino do universo. O fundamento do matrimônio, ensina Musônio, é a procriação e a ajuda mútua entre os esposos. O adultério constitui um roubo, ensina Epicteto; roubar a mulher do próximo é tão indelicado quanto tirar a porção de porco servida ao vizinho de mesa. “Quanto às mulheres, é a mesma coisa: as porções foram distribuídas entre os homens.” O casamento, diz Sêneca, consiste em uma troca de obrigações, desiguais, talvez, mas diferentes, sendo a da mulher obedecer. Marco Aurélio, imperador estoico, congratula-se por haver encontrado na imperatriz “uma esposa tão obediente”. Sendo os dois cônjuges agentes morais e havendo um contrato mútuo, o adultério do marido será considerado tão grave quanto o da mulher (ao contrário da velha moral, que julgava as falhas não segundo o ideal moral, e sim de acordo com a realidade cívica, na qual se inscrevia o privilégio dos machos).

Agravamento da instituição, como vemos. Pois, sendo o casamento uma amizade, os esposos devem fazer amor apenas para ter filhos e sem se acariciarem demais; não se deve tratar a esposa como amante, assevera Sêneca, depois citado e aprovado por são Jerônimo. E seu sobrinho Lucano era da mesma opinião. Escreveu uma epopeia, espécie de romance histórico realista, em que relata, a sua maneira, a guerra civil entre César e Pompeu. Mostra Catão, modelo de estoico, despedindo-se da esposa (a mesma que fora emprestada temporariamente a um amigo), pois parte para a guerra: na véspera de tal separação, não fazem amor — Lucano tem o cuidado de registrar e explicar o significado doutrinal. E o próprio Pompeu, quase grande homem, também não se deita com a esposa no momento da despedida, embora não fosse estoico. Por que tal abstinência? Porque um homem de bem não vive de maneira inconsequente e vigia seus menores gestos; ora, ceder ao desejo é um gesto imoral; só há um motivo razoável para se deitarem juntos: a concepção. Trata-se menos de ascetismo que de racionalismo. A razão se pergunta: “Por que fazer isso?”. Contraria sua natureza planificadora dizer: “Afinal, por que não fazer?”. O planismo estoico tem, portanto, enganosa semelhança com a ascese cristã. No entanto o cristianismo não é um monólito; em seus primeiros séculos evoluiu muito mais que o estoicismo. Além disso, é muito diverso. O cristão Clemente de Alexandria foi influenciado pelo estoicismo a ponto de recopiar prescrições conjugais do estoico Musônio, sem mencionar o verdadeiro autor. São Jerônimo teria achado essa doutrina demasiadamente sensual. Quanto a santo Agostinho, um dos mais prodigiosos inventores de ideias que o mundo já conheceu, achou mais simples inventar sua própria doutrina do casamento.

Como vemos, não é preciso raciocinar por imagens e opor a moral do paganismo à moral cristã; as verdadeiras cisões estão alhures: entre uma moral de deveres matrimoniais e uma moral interiorizada do casal; esta última, nascida não se sabe onde no interior do paganismo, é comum ao paganismo a partir do século II de nossa era e à parte do cristianismo que se acha sob influência estoica; o estoicismo julgou que essa moral, sendo a moral por excelência, era necessariamente a sua. Afirmar, com razão, a identidade da moral pagã tardia e de quase toda a moral cristã não significa confundir paganismo e cristianismo, mas volatilizá-los a um e outro; não se deve refletir sobre essas grandes máquinas de imagens, e sim abri-las para ver funcionar no seu interior os mecanismos mais ardilosos, que não concordam com os cortes tradicionais.

Há mais: uma moral não se reduz ao que manda fazer; mesmo que as regras conjugais de uma parte do paganismo e de uma parte do cristianismo sejam textualmente as mesmas, o jogo não se realizou. Em certa época, pagãos e cristãos igualmente dizem: “Não façais amor a não ser para ter filhos”. Tal proclamação no entanto não tem as mesmas consequências se é feita por uma doutrina de sabedoria que dá a indivíduos livres, para sua autonomia neste mundo, conselhos que seguirão como pessoas autônomas, caso os achem convincentes; e se a mesma proclamação é feita por uma Igreja todo-poderosa que entende governar as consciências para sua salvação no além e deseja legislar sobre todos os homens, sem exceção, estejam eles convencidos ou não.”

 

 

LOUVÁVEL OCIOSIDADE

A economia romana comportava um importante setor servil; havia também a prisão por dívidas, em que um credor sequestrava o devedor com a mulher e os filhos para fazê-los trabalhar; e um setor do Estado em que os condenados, os escravos do fisco (ou seja, de inumeráveis domínios imperiais) penavam sob as chibatadas dos guardas; muitos cristãos conheceram tal destino. Mas o setor principal continuava juridicamente livre. Pequenos camponeses independentes penavam para pagar os impostos; como escreveu Peter Brown, “o Império Romano deixava o terreno livre para as oligarquias locais de notáveis e confiava-lhes o cuidado de garantir as tarefas administrativas; exigia-lhes pouca coisa pela via fiscal e evitava mostrar-se muito curioso quanto à maneira como os impostos eram extorquidos do campesinato; é a espécie de governo displicente que constituiu o princípio de muita dominação colonial num período recente”. Outros camponeses eram meeiros desses notáveis. Trabalhadores agrícolas, assalariados, artesãos cujos serviços eram comprados para determinada tarefa tinham com os empregadores um pacto de compromisso que raramente assumia a forma de contrato escrito (à exceção de casos em que havia um contrato de aprendizagem). Assim como o Código Napoleônico acata a palavra do senhor nas contestações relativas aos salários dos criados, assim também um empregador romano faz justiça se os assalariados o roubam, como se fossem escravos. As cidades são essencialmente os lugares onde os notáveis, como a “nobreza citadina” da Renascença italiana, distribuem os lucros da terra: oposição completa com a Idade Média francesa e sua nobreza de castelões. Ao redor desses notáveis urbanos vivem artesãos e comerciantes que são os fornecedores de tais ricos; era isso uma “cidade” romana (que com uma cidade moderna só tem em comum o nome). Como se reconhecia uma cidade? Pela presença de uma classe ociosa, a dos notáveis. A ociosidade é a peça principal de sua “vida privada”; a Antiguidade foi a época da ociosidade tida como mérito.

Por volta de 1820, dizia um astrólogo ao jovem herói de A cartuxa de Parma: “Dentro de talvez um século não se há mais de querer ociosos”. Tinha razão. Em nosso século XX ninguém confessa de bom grado que vive de rendas. Desde Marx e Proudhon a noção de trabalho tornou-se um valor social Universal, um conceito filosófico. Tanto que o antigo desprezo pelo trabalho, as declarações de desdém não disfarçado pelos que trabalham com as próprias mãos, a exaltação do ócio como condição necessária para uma vida de homem “liberal” digno do nome de homem, tudo isso nos choca. O trabalhador era não apenas socialmente inferior mas também visto como um tanto ignóbil. A partir disso muitas vezes concluímos que uma sociedade que desconhecia a tal ponto os verdadeiros valores devia ser uma sociedade mutilada, obrigada a pagar o preço de sua mutilação: não seria o desprezo pelo trabalho que explicaria o atraso econômico dos antigos, sua ignorância das máquinas? A menos que uma praga se explique por outra praga e o desprezo pelo trabalho tenha sua explicação nesse outro escândalo que foi a escravidão…

E, no entanto, se formos sinceros encontraremos em nós uma das chaves desse enigma. Sim, o trabalho nos parece respeitável e não ousaríamos nos gabar de ser ociosos; isso não impede que sejamos muito sensíveis às distinções de classe e, sem confessar, vejamos os operários e artesãos como gentinha; não gostaríamos que nós e nossos filhos caíssemos a esse nível e nos envergonhamos um pouco de tal sentimento.

Essa é a primeira das seis chaves das atitudes antigas diante do trabalho: o desdém pelo valor trabalho era desdém social pelos trabalhadores. Esse desdém perdurou até a época de A cartuxa de Parma, mais ou menos; depois, para manter a hierarquia das classes sociais reduzindo os conflitos de classes, foi preciso enaltecer no trabalho um valor verdadeiro e o valor de todos; foi a paz social dos corações hipócritas. O mistério do desprezo antigo pelo trabalho consiste simplesmente no fato de que os acasos da guerra social não conduziram a esse provisório armistício da hipocrisia. Uma classe social orgulhosa de sua superioridade canta a própria glória (é isso a ideologia).”

 

 

UMA CLASSE INCLASSIFICÁVEL

Só quem trabalhava era a gentinha; as pessoas de bem exerciam em todas as coisas uma atividade de direção, chamada cura ou epimeleia, que poderíamos traduzir por “governo” no sentido em que Olivier de Serres falava do governo doméstico de um domínio. Era a única atividade digna de um homem livre, pois constituía o exercício de um comando. Dizia-se isso sobre a gestão do patrimônio pelo pai de família, sobre uma missão pública confiada a um delegado e até sobre o governo imperial — pelo menos o diziam os pensadores que gostavam de imaginar o imperador como um soberano patriarcal. Pouco importava que, governando suas terras, Cipião, o Africano, tivesse manobrado pessoalmente a charrua, como Cincinato no passado: nem por isso deixava de ser o senhor. Em tal condição, constituía um mérito ser “trabalhador” enérgico; esse qualificativo, porém, indicava uma qualidade moral, não uma identidade. Quando Virgílio escreve que o trabalho triunfa sobre tudo, não diz que é a santa lei do mundo, mas que um zelo intenso rompe todos os obstáculos. Não ser preguiçoso era uma virtude nascida das necessidades; de todas as necessidades: nunca se ativar, negligenciar os amigos, os cuidados com a própria glória e com os negócios públicos é viver como uma ostra, diz Plutarco. Um alto funcionário é um homem enérgico que, da manhã à noite, passa seu ano de trabalho examinando linha por linha as contas do fisco. Não se deixar enferrujar: uma máxima de Catão, esse verdadeiro grande homem. Como vemos, é impossível encontrar um equivalente medieval ou moderno para essa classe que, na falta de termo melhor, chamamos de notáveis, nobres, middle class ou gentry; altivos como nossos nobres, universalistas como os burgueses, negocistas como eles, proprietários de terras como nossa nobreza, trabalhadores, mas considerando-se classe ociosa. E há mais. No mundo romano não encontramos a equivalência que nos é familiar entre classes sociais e atividades econômicas; não existiu burguesia romana porque a classe que possuía o solo também realizava, sem se vangloriar, atividades mais burguesas; se procurarmos em Roma uma classe de negociantes, fabricantes, especuladores, usurários, agricultores em geral, nós a encontraremos em toda parte: entre os libertos, entre os cavaleiros e também entre os notáveis municipais e entre os senadores. Para saber se Catão, o Velho, participava do comércio marítimo ou se tal família de grandes notáveis municipais fazia negócios até nas fronteiras do Danúbio, precisamos investigar não a classe social a que pertencem, mas seus caprichos individuais e também a geografia, pois as heterogeneidades pessoais e regionais eram consideráveis; o senador Catão, por seu turno, “investiu capitais em negócios sólidos e seguros: comprou lagos piscosos, fontes de água termal, terrenos para instalar estabelecimentos de pisoeiros, fábricas de resina, terras com prados naturais e florestas; também praticou o empréstimo marítimo, que é a mais execrada forma de usura: consistia em formar uma companhia de cerca de cinquenta pessoas e tomar uma parte de capital por intermédio de seu liberto Quintio”. A essas iniciativas pessoais devemos acrescentar as tradições locais; tal cidade vive encerrada em si mesma e não passa de um amontoado de camponeses, como vemos hoje no sul da Itália ou na Hungria; mas, a vinte quilômetros, a cidade de Aquileia é uma Veneza ou uma Gênova da Antiguidade, tem como notáveis negociantes marítimos e mantém relações com o extremo do mundo.

Posse de terra, investimentos individuais, empresas familiares: nesse povo tão ávido de ganho, precisamos levar em conta ainda a empresa ocasional, praticada pelos mais ricos e não pelos pequenos comerciantes; se um nobre romano é informado pelos amigos de que há um modo de ganhar muito dinheiro, imediatamente se põe a agir, mesmo que deva improvisar em tal negócio e nunca tenha praticado esse gênero de tráfico: agarrará a oportunidade que uma informação confidencial lhe fornece ou encarregará disso um de seus escravos. A falta de mercado geral multiplicava as oportunidades de realizar tais negócios, assim como a circulação sofrível de informação e a importância dos apoios políticos: havia, na classe dirigente e proprietária, uma cumplicidade de especuladores que tinham por privilégios a informação e a influência, mais poderosas que as leis do mercado. A economia patrimonial não era precisamente patriarcal e muito menos liberal.

A natureza das atividades econômicas depende evidentemente da riqueza, mas, em lugar de se especializar em classes sociais, varia de acordo com os indivíduos, os lugares e os momentos. Por fim, como saber de que se compunha a fortuna de um romano? Duas hipóteses. Suponhamos que Juvenal fale satiricamente de um boiadeiro, que o jovem Virgílio zombe de um muleteiro; não devemos concluir disso que o primeiro tocasse os bois com a própria mão e o segundo puxasse uma mula pela rédea: a sequência do texto prova que um dirigia uma empresa de serviços de transporte feito com mulas pelos caminhos lamacentos da planície do Pó e o outro era proprietário de vastos rebanhos. Assim também, M. de Charlus, desdenhoso da burguesa América, falava da sra. Singer como de uma mulher que com as próprias mãos fabricava máquinas de costura. Se o boiadeiro em questão tivesse apenas um boi ou dois, os textos nem falariam dele, pelo menos não para caçoar.

 

EMPRESÁRIOS

Segunda hipótese: um texto fala de um romano designando-o por seu nome próprio, sem classificá-lo numa profissão. De que se compõe então o patrimônio desse notável e de onde provém? De todos os lados, pois a economia patrimonial é também uma economia não completamente profissionalizada; para ser mais exato, um rico “pai de família” tem como intermediários alguns de seus libertos e também seus escravos: concedeu estes últimos uma autonomia financeira e uma capacidade jurídica que lhes permitem atuar nos negócios como homens livres, mas por conta do senhor. Esse estado-maior negocista passa o tempo ampliando o patrimônio do senhor; assim eram os verdadeiros homens de negócios dessa época; acrescentemos outro herói balzaquiano: o administrador, livre e geralmente escravo, que dirige as terras, vende os produtos do solo e até gere a totalidade das atividades econômicas do senhor. A economia romana repousava sobre eles.

Frequentemente o administrador nasceu livre e se vendeu como escravo a fim de fazer carreira. O senhor confiava nele. A contabilidade da época não era a nossa; o administrador não prestava contas a intervalos determinados: o senhor e ele ficavam anos sem fazer um balanço. Seu dever era manter uma anotação honesta das entradas e saídas para prestar contas quando por qualquer razão resolvessem pedi-las: morte do senhor e sucessão, afastamento do escravo, venda, fúria do dono. Azar do administrador que nesse dia não pudesse apresentar uma soma líquida significativa da diferença entre o total das entradas e o total das saídas! Se, ao contrário, estivesse em condições de equilibrar o balanço (pariari), merecia o belo nome de pariator, que figuraria em seu epitáfio. Também com os arrendatários o proprietário ficava anos sem acertar contas; com sua morte, ou se havia vendido seus bens, era preciso calcular o restante devido (reliqua colonorum). Não que os arrendatários estivessem sistematicamente endividados: as contas é que não estavam em dia. Método semelhante era certamente favorável à ideia de que a dívida constitui um laço de clientela e o devedor que pretende saldá-la é um infiel que deseja se separar de seu benfeitor.

Um notável é onipresente na vida econômica. Pode ser o chefe de uma empresa rural ou comercial (alguns não hesitavam em transformar sua residência em loja e expor aos compradores as mercadorias que acabavam de receber). Como proprietário, pode ser uma espécie de financiador das empresas de seu administrador. Pode participar nas firmas de comércio ou no recebimento dos impostos públicos. Pode por fim, mais humildemente, atuar sozinho; o médico Galeno tinha entre seus pacientes um homem que não se preocupava em adquirir cultura e andava pelas ruas a fazer negócios; “comprava, vendia e frequentemente brigava, tanto que tinha uma transpiração por demais abundante”.

 

NEGOCISMO NOBRE

Trata-se, pois, de uma economia com instituições e sociologia tão diferentes da nossa que a diríamos arcaica; teve um nível de produção elevado e era tão dinâmica e dura quanto o capitalismo, pois esses aristocratas, que se distinguiam pela cultura e pelo gosto do conhecimento, tinham a paixão do ganho. Os senhores mais importantes falavam de negócios; o senador Plínio, em suas cartas que se pretendem exemplares, cita como exemplo sua própria conduta de rico proprietário. Se um senhor desejar se livrar de velhos móveis ou de material de construção, organizará um leilão público desse excesso (pois o leilão era, para os particulares, a maneira normal de vender seus objetos usados, e os próprios imperadores organizavam leilões no palácio, quando queriam se livrar de um mobiliário indesejável). O dinheiro precisava trabalhar. Tudo era a juros: amigos e parentes emprestavam a juros entre si (mas constituía um mérito não fazê-lo); um genro cobrava juros do sogro que demorasse a lhe entregar o dote combinado. A usura fazia parte da vida cotidiana de todos, e nossos antissemitas poderiam tomar a Roma antiga, mais que os judeus, como tema obsessional e pela mesma razão: em Roma o empréstimo a juros e o comércio não eram exclusivamente atividades de profissionais nem restritas a determinada classe social. Todo esforço merecia salário, mesmo que fosse um prazer. Um traço pitoresco dos costumes galantes era o seguinte: na mais alta sociedade toda ligação amorosa acarretava um pagamento da amada pelo amante; a matrona que enganava o marido recebia do amante uma grande soma, quando o galã não lhe concedia uma renda anual. Havia uns grosseirões que retiravam a doação em caso de rompimento, e os juristas se viam obrigados a intervir. Não se tratava de prostituição, mas de salário: a matrona não se dava porque lhe pagavam, mas recebia porque se dera, e a mais amorosa era a mais bem recompensada.

Assim as mulheres perseguiam o salário do adultério, enquanto os homens corriam atrás dos dotes.

Esse negocismo universal eliminava não só os limites entre classes sociais ou “ordens” cívicas, mas também as distinções entre categorias econômicas. Os mesmos homens se dedicavam tanto a empresas ocasionais como a atividades habituais: simultaneamente especuladores e profissionais (com ou sem o nome); os mesmos homens enriqueciam tanto se apoderando de fortunas já constituídas — o que é um procedimento arcaico — quanto criando novas riquezas através de investimentos — o que é bem moderno. Enriqueciam por vias econômicas, produção e venda, ou por processos extraeconômicos, legais ou não: herança, dote, propina, violência, trapaça; apoiavam-se tanto na lei da oferta e da procura quanto na influência política e nas cumplicidades entre “gente da sociedade”. E, como os notáveis eram os principais proprietários de bens de raiz, seu negocismo fazia com que houvesse, de um lado, um imenso campesinato pobre e, de outro, uma rica classe urbana com atividades múltiplas que confere à nossa imagem da vida antiga sua diversidade e seu brilho. Na época em que medicina custava caro, Galeno tinha como clientes apenas notáveis, ainda por cima do sexo masculino; moravam na cidade, supervisionando o administrador, suavam nos negócios, exerciam, como o próprio Galeno, alguma profissão, participavam da direção dos assuntos públicos da cidade, ficavam em casa para ler ou copiar os textos filosóficos de sua seita favorita; quando velhos, retiravam-se para suas terras. E, ao morrerem, verificava-se que sua sucessão comportava três componentes principais: imóveis (terras ou construções), seus instrumentos agrícolas ou o mobiliário e créditos (nomina de bitorum). Quanto à conta bancária, conhecida na República e no Baixo Império, não há testemunho no Alto Império.

Os usurários da época não eram banqueiros, mas notáveis e senadores. Todo pai de família tinha em casa um cofre, chamado kalendarium, contendo um calendário dos pagamentos, títulos de crédito e também as somas destinadas a empréstimos a juros e à espera de quem as pedisse: “destinar uma soma a empréstimos” era “colocá-la no kalendarium”. Cada um tinha sua estratégia: emprestar uma parte grande ou pequena do patrimônio, emprestar pouco a muitos ou muito a alguns grandes devedores. Os créditos facilmente passavam de mão em mão, fosse por dação formal, fosse, mais simplesmente, por uma venda pura e simples; constituíam um instrumento de liberação de um débito e um objeto de especulação. Uma espécie de moeda escritural. Podia-se legar o kalendarium e, junto, os direitos sobre os devedores, assim como os capitais destinados à usura.

 

OUTROS MEIOS DE ENRIQUECER

Pois a usura era tida como uma maneira nobre de enriquecer, da mesma forma que a agricultura, os dotes e também os legados. Cortejar um velho rico na expectativa de seu testamento era uma conduta tão comum como é, entre nós, ser atencioso com um patrão ou um superior: todo mundo caçoava disso, e todo mundo adotava tal conduta. Vimos que a decência queria que um testador multiplicasse os legados, para honrar todos os amigos, recompensar todos os fiéis; graças a esse costume vivia cercado de uma corte de gente atenciosa sem a qual um verdadeiro romano não poderia se ter na conta de um homem com alguma importância.

Um homem ou uma mulher lucram não tendo filhos, diz Tácito: eles são mais rodeados de amabilidades. Ora, os demógrafos nos ensinam que, no Ancien Regime, uma família francesa média tinha quatro ou cinco filhos, dos quais apenas dois chegavam à idade de vinte anos; a família romana média tinha em geral três filhos. Deduzimos que os velhos que viram morrer todos os filhos e filhas não constituíam, portanto, raridade: as presas eram numerosas; tanto mais que a liberdade do testador, segundo a lei e o costume, era grande. A cada geração punha-se em jogo novamente uma fração importante do patrimônio nacional: quem a receberia? Povo versado em trapaças, os romanos sabiam como agir. Uma mãe divorciada institui o filho herdeiro, mas, sabendo que o ex-marido é um indivíduo pouco recomendável, determina que o filho só receberá a herança sob a condição de não estar sob o poder do pai no momento de abrir-se a sucessão (pois nesse caso a herança passaria ao pai); em outros termos, o filho só herdará se o pai já tiver morrido. Infelizmente este ainda vive, porém encontra uma boa solução: emancipa o filho, que assim escolhe a sucessão. Esse pai vale mais que sua reputação? A história não terminou: ele se põe a bajular o próprio filho, a cobri-lo de brinquedos e animais domésticos — em suma, a caçar-lhe o testamento — e vence: o filho mimado morre deixando-lhe a célebre herança.

A opinião pública não condenava um tipo de conduta proveitosa; limitava-se a matizar suas apreciações. “Depois de viver cercado de caçadores de herança, Fulano morreu deixando tudo a filha e aos netos; a opinião pública hesita: uns o consideram hipócrita, ingrato, esquecido dos amigos; outros, ao contrário, ficam encantados com esse velho que frustrou as esperanças de pessoas interesseiras” — é um senador quem diz isso, e portanto tem razão.

A busca da riqueza por vezes seguia caminhos bem mais difíceis. O mundo romano não contava com uma verdadeira polícia; soldados do imperador (como o centurião Cornélio, do qual fala o Evangelho) reprimiam os tumultos e acossavam os briguentos, mas não se ocupavam da insegurança cotidiana, que ofendia menos a “imagem distintiva” que o Estado romano queria dar de sua autoridade soberana; quando necessário, os notáveis das cidades organizavam milícias cívicas. A vida cotidiana era a mesma do faroeste americano: sem polícia nas ruas, sem guardas nos campos, sem promotor público. Cada um que se defendesse e fizesse justiça, e o único meio eficaz para os pequenos e os menos grandes era colocar-se sob a proteção de um grande. Mas quem protegia esse grande e quem protegia os grandes uns dos outros? Sequestros, usurpações, prisões privadas para devedores eram moeda corrente; cada cidade vivia com medo dos tiranetes locais ou regionais, às vezes protegidos o bastante para se atreverem a desafiar um personagem tão poderoso quanto o governador da província. Um poderoso não hesitava em tomar posse da terra de um de seus pobres vizinhos; e não hesitaria em atacar a fazenda de outro grande liderando seus escravos. O que fazer contra esse homem que enriqueceu à custa de outros? As probabilidades de obter justiça dependiam da boa vontade de um governador de província muito ocupado, obrigado a poupar os poderosos por razões de Estado e aliado a esses poderosos por uma rede de amizades e interesses. Sua justiça, se a exercia, seria um episódio da guerra dos clãs, uma reviravolta das relações de força.

A violência pura e simples se acrescentava a violência judiciária. Os romanos passam por inventores do direito; é verdade que escreveram muitos livros de direito notáveis e achavam glorioso e aprazível conhecer e praticar os enigmas e os meandros do direito civil; era uma cultura, um esporte e um tema de orgulho nacional. Disso não podemos deduzir que a legalidade efetivamente reinava em sua vida cotidiana; o legalismo apenas introduzia no caos uma complicação suplementar e até uma arma: a trapaça. Em país grego sob o Império a chantagem Judiciária e as extorsões paralegais levavam o velho nome de “sicofantismo”.

Suponhamos que as terras de um grande senhor despertam a inveja de outro senhor e que o primeiro desagrada à família Imperial; o segundo terá o recurso de acusar o primeiro de crime de lesa-majestade: pela delação, receberá uma parte do patrimônio do outro, previamente executado. Suponhamos agora que longe do palácio um notável vê se frustrarem as esperanças que colocara no testamento de um velho rico; terá o recurso de afirmar que o velho não morreu de boa morte, mas suicidou-se ou, ainda, foi envenenado e seus herdeiros não perseguiram o assassino nem trataram de vingar o sangue de seu benfeitor. Em ambos os casos, anulava-se o testamento e a sucessão revertia ao fisco, menos o prêmio devido ao delator. Muito mais que um fiscalismo, o fisco era o conjunto dos domínios que o imperador confiscara como sucessões vacantes ou irregulares; o fisco tinha sua própria jurisdição, na qual era juiz e parte; por esse meio, o imperador rapidamente se tornou o maior proprietário de seu império. O fisco, portanto, estava muito disposto a acreditar nos delatores, que lhe davam a oportunidade de confiscar mais uma sucessão. Tanto se sabia disso que alguns testadores, desejosos de frustrar seus herdeiros, inscreviam o imperador como coerdeiro: o fisco agia de modo a se apoderar da herança inteira. Em suma, o direito tornava-se uma arma na luta pelos patrimônios; a posse e a transmissão pacífica dos bens nunca eram garantidas. Se um recém-casado está deslumbrado com o dote da esposa, parentes invejosos o acusarão de ter usado de magia negra para seduzi-la.

As vias de enriquecimento mais propriamente econômicas também nos fazem pensar num modo desordenado onde tudo é possível: obter dos poderes públicos algum direito de exploração, comumente acompanhado de um monopólio; serpentear por entre as incoerências de um mundo econômico caótico; montar uma empresa de transportes da qual todos precisavam e para a qual ninguém tomara a iniciativa, por falta ou de capital ou de interesse… Esse é o espetáculo que oferece hoje mais de uma economia do Terceiro Mundo. Não nos surpreenderemos ao ver muito notável à frente de uma variedade de negócios e explorações perfeitamente incoerentes reunidos em suas mãos pelo acaso das boas oportunidades: bens de raiz, venda de tecido, tinturaria, transporte de mercadorias pelo Reno; agricultura, transporte marítimo pelo mar Egeu e… ensino da retórica mediante honorários, importações de produtos do Egito para Atenas. Não imaginemos um alto personagem dessa época como a pura imagem de um senhor, simples como a paz dos campos e dos trabalhos rudes; tal personagem tem o colorido de um notável sul-americano, mas, como ele, nessa sociedade que brutalmente opõe os ricos — os senhores — à massa dos pobres, tem um porte nobre e não se assemelha a suas vias de enriquecimento.”

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