sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Marxismo e filosofia (Parte II), de Karl Korsch

Editora: UFRJ

ISBN: 978-85-7108-329-5

Tradução e apresentação: José Paulo Netto

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 172

Sinopse: Ver Parte I


 

“A coincidência entre a consciência e o real caracteriza toda dialética e, também, a dialética materialista marxista; dela deriva que as relações materiais de produção da época capitalista só sejam o que são em relação às formas sob as quais eles se refletem na consciência tanto pré-científica quanto científica (burguesa) dessa época e que só possam subsistir na realidade graças a elas — e, sem tal coincidência, jamais a crítica da economia política poderia tornar-se o elemento mais importante de uma teoria da revolução social.

 

 

“Marx conclui a pesquisa para esclarecer o seu método dialético, na décima primeira tese das Teses sobre Feuerbach, da seguinte maneira: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”.89 Esta frase, contrariamente ao que imaginaram os epígonos, não equivale a declarar que toda filosofia é uma simples quimera; ela apenas exprime uma recusa categórica de toda teoria, filosófica ou científica, que não seja simultaneamente práxis, e práxis real, terrena, deste mundo, práxis humanamente sensível — recusa categórica da atividade especulativa da Ideia filosófica que, no fim das contas, apreende apenas a si mesma. Crítica teórica e revolução prática, concebidas como duas ações indissociáveis, não num sentido qualquer da palavra ação, mas como a transformação concreta e real do mundo concreto e real da sociedade burguesa: estas duas expressões exprimem do modo mais preciso possível o princípio do novo método materialista dialético do socialismo científico de Marx e de Engels.”

89 Ver a frase frequentemente citada que se encontra no fim do prefácio (1873) à segunda edição alemã de O capital [na ed. bras. cit., livro 1, v. 1, p. 17].

 

 

“Mostramos as consequências reais que decorrem do princípio materialista dialético do marxismo para a concepção das relações entre a consciência e a realidade e, ao fazê-lo, trouxemos à luz o caráter inexato de todas as concepções abstratas e não dialéticas, tão difundidas entre os marxistas vulgares de várias tendências, no trato teórico e prático das realidades “espirituais”. Não é somente às formas de consciência econômicas em sentido estrito, mas a todas as formas sociais de consciência que se aplica a frase de Marx segundo a qual elas não são simples quimeras, porém realidades sociais “muito práticas, muito objetivas” que é preciso, “por consequência, suprimir de forma prática, objetiva”. Apenas o ponto de vista do sólido bom senso burguês, que considera o pensamento independentemente do ser e define a verdade como a concordância da representação com um objeto situado fora dela e que nela se “reflete”, apenas este ponto de vista ingenuamente metafísico pode sustentar que, se as formas de consciência econômicas (as ideias econômicas da consciência pré e extra-científica e da economia científica) têm uma significação objetiva, já que lhes corresponde uma realidade (a realidade das relações materiais de produção que elas apreendem), todas as representações superiores seriam elucubrações sem objeto, destinadas — uma vez transformada a estrutura econômica da sociedade e suprimida a superestrutura jurídica e política — à dissolução no nada que já agora as constitui. Somente na aparência as representações econômicas mantêm com a realidade das relações materiais de produção da sociedade burguesa a relação da imagem com o objeto que ela reflete; realmente, a sua relação é a de uma parte bem determinada de um todo com uma outra parte deste todo. A economia burguesa pertence, tanto quanto as relações materiais de produção, ao todo da sociedade burguesa. Mas a ele pertencem, igualmente, as representações jurídicas e políticas e seus objetos aparentes, que os juristas e os políticos burgueses — esses “ideólogos da propriedade privada” (Marx) —, na sua perspectiva ideológica falseada (verkehrter), tomam como essências autônomas. E àquele todo também pertencem, finalmente, as ideologias de um nível ainda mais elevado, a arte, a religião e a filosofia da sociedade burguesa. Se, aparentemente, não vemos nessas representações o objeto que poderiam refletir bem ou mal, por outro lado já compreendemos que as representações econômicas, políticas e jurídicas absolutamente não possuem um objeto específico, que existe independente e isoladamente dos outros fenômenos da sociedade burguesa — opor-lhes tais objetos seria adotar um ponto de vista burguês, abstrato e ideológico. Elas também apenas exprimem, à sua maneira particular, o todo da sociedade burguesa, como o fazem, igualmente, a arte, a religião e a filosofia. Constituem todas, em conjunto, a estrutura espiritual da sociedade burguesa, que corresponde à sua estrutura econômica, do mesmo modo que, sobre esta estrutura econômica, se eleva a superestrutura jurídica e política desta sociedade. A crítica social revolucionária do socialismo científico, materialista e dialética, que incide sobre a totalidade da realidade social, deve criticá-las a todas na teoria e revolucioná-las na prática, tal como deve fazer — e ao mesmo tempo — com a estrutura econômica, jurídica e política.92 Assim como a ação econômica da classe revolucionária não torna supérflua a ação política, a ação econômica e política em conjunto não torna supérflua a ação espiritual: esta, ao contrário, deve ser também conduzida a seu termo, na teoria e na prática, enquanto crítica científica revolucionária e trabalho de agitação antes da tomada do poder pelo proletariado e enquanto trabalho científico de organização e ditadura ideológica após a conquista do poder. E o que vale em geral para a ação espiritual contra as formas de consciência próprias à sociedade burguesa tal como a conhecemos vale ainda mais para a ação filosófica em particular. A consciência burguesa, que, necessariamente, se pretende autônoma em face do mundo, como pura filosofia crítica e ciência imparcial, do mesmo modo como o Estado e o direito burgueses, que parecem situados autonomamente acima da sociedade — esta consciência deve igualmente ser combatida no plano filosófico pela dialética materialista revolucionária, a filosofia da classe proletária, até que seja, ao fim desse combate, totalmente superada e suprimida no plano teórico, simultaneamente à total transformação, no plano prático, da sociedade existente e de suas bases econômicas. “Não podeis superar a filosofia sem realizá-la”.93

92 Ver sobretudo as afirmações de Lenin, no seu artigo “Sob a bandeira do marxismo” (Kommunistische Internationale, n. 21, outono de 1922, p. 8 e ss.). [Ver, infra, a nota 3, no capítulo “A concepção materialista da história”.]

93 [Ver, supra, a nota 63.]

 

 

“É em Kautsky que se manifesta mais claramente esta estreiteza dogmática da ortodoxia marxista em face do desenvolvimento histórico real do marxismo. Para ele, não foi somente a transformação que as diversas correntes da Segunda Internacional impuseram à teoria de Marx-Engels, mas também “o aperfeiçoamento do marxismo já realizado por Marx e Engels desde o Manifesto inaugural (1864)15 até à ‘Introdução’ de Engels à nova edição (1895) de As lutas de classes na França, de Marx”, o que permitiu “alargar” a teoria da revolução social do proletariado e fazer dela uma teoria “válida não apenas para o estágio da revolução, mas também para as épocas não revolucionárias” (ibid., p. 313). Aqui, Kautsky, ainda que designando-a como um a “teoria da luta de classes”, retira da teoria de Marx e Engels o seu caráter essencialmente revolucionário. Mas ele não tardou em avançar ainda mais nesta direção e, na sua última grande obra sobre A concepção materialista da história, fez tábula rasa da relação fundamental entre a teoria marxista e a luta proletária. Ele protesta contra a “acusação” de empobrecimento e vulgarização do marxismo que eu teria supostamente levantado contra Marx e Engels em seu último período — porém, o que pretende é, apenas, dissimular a sua própria tentativa para apoiar (de novo, escolástica e dogmaticamente) sobre a “autoridade” de Marx e de Engels o recente abandono, por ele e por outros, dos últimos vestígios, há muito quase irreconhecíveis, da teoria marxista que outrora assumiram da boca para fora.

Mas, também aqui, comprova-se a inteira solidariedade teórica entre a nova ortodoxia comunista e a velha ortodoxia socialdemocrata. Quando os críticos do Partido Comunista me acusam de, “mediante uma excessiva abstração e uma esquematização da problemática, obscurecer conceitos como o de marxismo da Segunda Internacional” (Bammel, ibid., p. 13), é preciso ver, sob essa argumentação, a tentativa para defender dogmaticamente este mesmo marxismo do qual Lenin e os seus jamais recusaram a herança espiritual, a despeito das palavras que pronunciaram no ardor do combate. Como é usual entre os “teóricos” do Partido Comunista em casos semelhantes, o meu crítico comunista se protege da responsabilidade pessoal de fazer essa apologia do marxismo da Segunda Internacional — ele se abriga sob a enorme sombra de Lenin. Para mostrar como, em Marxismo e filosofia, a “abstração” e a “esquematização” obscurecem o conceito de “marxismo da Segunda Internacional”, meu crítico, conforme um hábito escolástico bem estabelecido, cita uma frase em que o grande tático Lenin reconheceu, numa conjuntura tática particularmente complexa, “o mérito histórico da Segunda Internacional” no desenvolvimento prático (e não teórico) do movimento operário moderno.16 Mas logo o teórico comunista se atrapalha: pressente que se poderia aplicar à teoria socialdemocrata esta opinião de Lenin sobre os “lados bons” da práxis socialdemocrata; porém, ao invés de concluir isto com clareza, ele balbucia apenas, “de maneira excessivamente abstrata e obscura”, qualquer coisa como “não seria difícil demonstrar que se poderia sustentar o mesmo, em alguma medida, a propósito do fundamento teórico do marxismo” (ibid., p. 14).

Ora, a verdade (que, num de meus artigos publicados alhures, contribuí para esclarecer) sobre o caso do “marxismo da Segunda Internacional” é a seguinte: de fato, o movimento socialista, despertado e fortalecido nas novas condições históricas do último terço do século XIX, jamais adotou — como se pretendeu — o marxismo em sua totalidade.17 Conforme a ideologia dos marxistas ortodoxos, e dos seus adversários que se situam no mesmo terreno dogmático, “a adesão ao marxismo”, nesta fase do movimento operário moderno, teria sido, tanto na teoria quanto na prática, a adesão ao marxismo em sua totalidade·, na realidade, tal adesão diz respeito, também teoricamente, a algumas “teorias” econômicas, políticas e sociais cuja significação geral já vinha modificada pelo fato de estarem desvinculadas da perspectiva revolucionária de Marx, ademais de mutiladas e falsificadas em seu próprio conteúdo. E a ênfase sobre o caráter rigorosamente “marxista” do programa e de toda a teoria deste novo movimento operário socialdemocrata não se situa na época em que ele mais se aproximava, na sua práxis, à teoria marxiana, época na qual este movimento contava com a estreita colaboração dos “dois velhos de Londres” (e de Friedrich Engels sozinho, após a morte de Marx, em 1883). Paradoxalmente, ela data do período posterior, quando já surgiam, na práxis política e sindical, as novas tendências que, em seguida, encontrarão a sua expressão ideológica no que se designa por “revisionismo”. No momento mesmo em que a orientação prática do movimento alcançava o seu mais alto ponto revolucionário — sob o contragolpe do período de crises e depressões da década de 1870, sob a força da reação política que se seguiu à derrota da Comuna de Paris, em 1871, sob o efeito da lei antissocialista na Alemanha, do fracasso pós-1884 da nascente agitação socialista na Áustria e da repressão às reivindicações em prol da jornada de oito horas na América, em 1886 —, nesse momento a teoria do movimento era essencialmente democrática, no sentido do “partido popular”, lassalliano, dühringuiano; e só era marxista do modo mais esporádico.”’ Depois, a partir dos anos 1890, as coisas experimentam um novo impulso na Europa e particularmente na Alemanha; com a anistia aos cornmunards na França (1880) e a revogação da lei antissocialista na Alemanha (1890), surgem os primeiros indícios de um manejo “mais democrático” do poder estatal no continente europeu. É somente então que se vê surgir, neste contexto prático novo, uma espécie de defesa teórica e de consolação metafísica: a adesão formal a todo o marxismo. É neste sentido que se pode inverter a relação comumente aceita entre o “marxismo” de Kautsky e o “revisionismo” de Bernstein e, sobretudo, caracterizar a ortodoxia marxista de Kautsky como a outra face, o reverso teórico e o complemento simétrico do revisionismo de Bernstein.19

Considerando esses fatos históricos, evidencia-se que não são apenas injustificadas, mas carentes de sentido as censuras dos críticos ortodoxos em face da minha pretensa predileção pela forma “primitiva” da teoria de Marx e Engels, do meu suposto desprezo pelo aperfeiçoamento realizado sobre esta forma original do marxismo — seja pelos próprios Marx e Engels, seja pelos marxistas posteriores — no curso da segunda metade do século XIX. O “marxismo da Segunda Internacional” — segundo os meus críticos, desenvolvimento positivo da teoria original de Marx e Engels — é, na realidade, uma forma histórica nova da teoria proletária de classe. Ela nasceu da modificação das condições práticas da luta de classes numa época nova e mantém com a teoria de Marx e Engels (seja na sua forma original ou na sua forma ulterior, mais desenvolvida) relações inteiramente diferentes, muito mais complexas do que imaginam aqueles que mencionam um aperfeiçoamento ou, ao contrário, uma estagnação, uma regressão e uma atrofia da teoria de Marx no marxismo da Segunda Internacional. O marxismo de Marx e de Engels não é, pois, uma teoria socialista “ultrapassada” do ponto de vista do movimento operário contemporâneo, como Kautsky o pretende (ele só o diz expressamente a propósito da sua forma original, o “marxismo primitivo do Manifesto comunista”, mas sua afirmação vale, de fato, para todos os elementos revolucionários da teoria ulterior de Marx e Engels). Também não é, por outro lado, uma teoria que, por força de algum prodígio, foi e permanece ainda por longo tempo mais avançada que o desenvolvimento do movimento operário; nem este continuaria, com a sua prática, atrasado (por assim dizer) em relação à sua própria teoria, somente podendo progressivamente ocupar no futuro o lugar que ela já lhe tinha reservado — tudo isso foi frequentemente sustentado, no início do terceiro período (ou seja: no fim do século passado), pelos representantes das tendências revolucionárias da ortodoxia marxista socialdemocrata e ainda é sustentado por alguns marxistas contemporâneos.20 É necessário compreender de um modo totalmente diverso a defasagem entre a teoria “marxista” revolucionária, altamente desenvolvida, e uma práxis que permanece muito atrasada em relação a ela e, em parte, chega a contradizê-la diretamente; esta defasagem é real no Partido Socialdemocrata da Alemanha desde sua evolução no sentido de tornar-se partido “marxista” (aproximadamente concluída com o Programa de Erfurt, de Kautsky-Bernstein, de 1891) e foi progressiva e penosamente sentida, no período seguinte, por todas as forças vivas do partido (de direita e de esquerda!) — somente a ortodoxia marxista do centro a negou. Essa defasagem deve-se simplesmente ao fato de que, desde o início, nesta fase histórica, o “marxismo” não foi, para o movimento operário, que a ele aderira apenas formalmente, uma verdadeira “teoria” — isto é, “expressão geral, e nada mais, do movimento histórico real” (Marx) —, mas sim e somente uma “ideologia”, trazida já pronta e acabada “de fora”.

Quando, nesta situação, “marxistas ortodoxos” como Kautsky e Lenin sustentavam energicamente que o socialismo só podia ser introduzido no movimento operário “de fora” por intelectuais burgueses vinculados a este movimento,21 ou mesmo quando radicais de esquerda, como Rosa Luxemburg, vinculavam a “estagnação” verificada no marxismo, de uma parte, à criatividade espiritual de Marx, munido de todos os recursos que a cultura burguesa de classe pusera à sua disposição, e, de outra, às “condições sociais de existência do proletariado na sociedade atual”,22 que permanecem inalteradas durante toda a época capitalista — tudo isso significa simplesmente fazer da necessidade momentânea uma virtude eterna. A explicação materialista da contradição aparente entre teoria e práxis na Segunda Internacional “marxista”, e, ao mesmo tempo, a solução racional de todos os mistérios imaginados pela ortodoxia marxista da época para resolvê-la residem num fato histórico: adotando de modo puramente formal o marxismo como ideologia, o movimento operário de então permanecia, em sua práxis, sobre esta sua nova base, bem abaixo do nível de desenvolvimento geral (e teórico, em particular) atingido, sobre a base mais estreita de antes, por todo o movimento revolucionário e, com ele, pela luta de classe do proletariado em meados do século XIX, quando se esgotava o primeiro ciclo de desenvolvimento do capitalismo. Neste momento, o movimento operário, anteriormente elevado a um maior grau de evolução, experimentou uma estagnação provisória mais longa e, mesmo depois, quando outras condições objetivas se deram, despertou apenas gradualmente; a teoria que Karl Marx e Friedrich Engels conceberam em direta relação com a práxis do movimento revolucionário só pôde, então, desenvolver-se no plano teórico. É certo que este aperfeiçoamento ulterior jamais foi o simples produto de estudos “puramente teóricos”: era também resultante de novas experiências da luta de classes que renascia sob formas diversas. Mas é igualmente certo que esta teoria de Marx e Engels, avançando para um grau de elaboração cada vez mais alto, não estava mais diretamente ligada à práxis do movimento operário que lhe era contemporâneo. Ao contrário, estes dois processos — o desenvolvimento, em novas condições, da antiga teoria herdada de uma época finda e a nova práxis do movimento operário — evoluem lado a lado, mas de modo relativamente independente. É assim que se explica o nível elevado e “extemporâneo” (no pleno sentido da palavra) que a teoria marxista — tanto em seu conjunto quanto, particularmente, nos seus aspectos filosóficos — conservou, e até reforçou, no curso desse período, em Marx e Engels e nuns poucos discípulos seus. Também assim se explica, por outra parte, o fato de o movimento operário, despertado desde o último terço do século XIX, permanecer na total impossibilidade de aderir não apenas formal, mas efetivamente, a esta teoria marxista tão altamente desenvolvida.23

16 A frase é extraída de uma resposta escrita por Lenin, antes do Congresso de Lucerna da Internacional de Berna (julho de 1919), a um artigo do dirigente operário inglês Ramsay Macdonald (considerado então como um socialista de esquerda) sobre a “Terceira Internacional”, recentemente aparecida na cena do movimento operário com um manifesto inaugural. Em alemão, ela se encontra na revista Die kommunistische Internationale (A Internacional Comunista), n. 4-5, p. 52 e ss., à época publicada pelo Secretariado da Internacional Comunista para a Europa Ocidental.

A passagem invocada por Bammel para respaldar uma afirmação inteiramente diversa não tem, no contexto real em que Lenin a utiliza, rigorosamente nada a ver com a teoria marxista da Segunda Internacional — Lenin qualifica como “mérito histórico” e “conquistas imperecíveis” da Segunda Internacional, “incontestáveis para qualquer operário politicamente consciente”, pontos estritamente práticos, tais como “a organização das massas operárias, a criação de organizações cooperativas, sindicais ou políticas de massa, a utilização do parlamentarismo burguês e, em geral, de todas as instituições da democracia burguesa etc.” (ibid., p. 60).

17 Ver meu último texto, Die materialistische Geschichtsauffassung. Eine Auseinandersetzung mit Karl Kautsky (A concepção materialista da história. Uma polêmica com Karl Kautsky) (citado, na sequência, como Auseinandersetzung mit Kautsky [Polêmica com Kautsky]), particularmente o último capítulo, sobre a significação histórica do kautskysmo (não reproduzido na reedição parcial do Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der Arbeiterbewegung [Arquivo de História do Socialismo e do Movimento dos Trabalhadores], de Grünberg, n. 14, p. 179 e ss.).

18 Ver a correspondência da época entre Marx e Engels, reproduzida na minha edição das Glosas marginais ao programa do Partido Operário Alemão e as notas a ela pertinentes na minha introdução, p. 6 e ss. As Cartas de F. Engels a Bernstein (1881-1895), posteriormente publicadas (Berlim, 1925), contêm outros esclarecimentos importantes relativos a esta questão.

19 Ver em particular, na Volkswirtschaftlehre in Selbstdarstellungen (Auto-representações da teoria econômica popular) (Leipzig, 1924), a exposição concordante que agora fazem Bernstein (p. 12 e ss.) e Kautsky (p. 134 e ss.) da mudança ocorrida àquela época em suas respectivas relações com a teoria marxista, ao mesmo tempo em que em suas relações teóricas recíprocas. Essa exposição retifica completamente a lenda acerca do caráter “marxista” que marcaria a teoria socialdemocrata antes da sua “revisão” por Bernstein.

20 A despeito de sua fórmula célebre (“Quanto a mim, não sou marxista”), o próprio Marx contribuiu ocasionalmente para esta concepção algo dogmática e idealista das relações entre a sua teoria marxista e os aspectos ulteriores reais do movimento operário. Ver, por exemplo, nas Glosas marginais ao programa do Partido Operário Alemão, de 1875, seus reiterados queixumes acerca do “retrocesso teórico que causa real indignação” desse projeto de programa em face do nível superior de conhecimento já alcançado e a propósito do “atentado monstruoso contra uma concepção tão difundida entre a massa do Partido” cometido pelos autores do projeto. Mas os adversários radicais de esquerda do revisionismo e da ortodoxia centrista ergueram mais tarde, a partir dessa concepção, um sistema com a ajuda do qual tentaram explicar a “estagnação” que constatavam no desenvolvimento teórico do marxismo. É assim, por exemplo, que Rosa Luxemburg, em seu artigo do Vorwärts (14 de março de 1903), afirma, com a maior seriedade, que, se a teoria do movimento está agora em “ponto morto”, isto não se deve “a que nós, em nosso combate prático, tenhamos superado Marx, mas, ao contrário, deve-se a que Marx, em sua obra científica, tenha avançado mais que nós, partido militante de luta; não se deve a que Marx não responda mais às nossas exigências, mas ao fato de que nossas exigências ainda não são o bastante grandes para que possamos nos beneficiar do pensamento de Marx”. E o erudito marxista Riazanov, que reeditou esse artigo em 1928, na antologia K. Marx als Denker, Mensch und Revolutionär [ed. bras.: D. Riazanov. Marx: o homem, o pensador, o revolucionário. São Paulo: Global, 1984], complementa, do ponto de vista contemporâneo, as pontuações que haviam sido feitas quase trinta anos atrás por Rosa Luxemburg, com esta singela observação: “A práxis da Revolução Russa mostrou que cada fase nova e superior da luta proletária pode sempre extrair do inesgotável arsenal da teoria marxista [!] as armas exigidas pelo novo estágio da luta emancipadora da classe operária” (ibid., p. 7). Não se pode afirmar que a relação entre teoria e práxis, que Rosa Luxemburg colocara de cabeça para baixo, esteja assim reposta sobre seus pés.

21 Ver a polêmica de Kautsky (em Neue Zeit, n. 21, p. 68 e ss.) contra o projeto de uma nova redação do programa de Heinfeld, apresentado em 1901 ao congresso do Partido austríaco (Viena). Numa parte qualquer desse projeto, diz-se que o proletariado se alça à consciência da possibilidade e da necessidade do socialismo através das lutas que lhe são impostas pelo desenvolvimento capitalista. Kautsky precisa muito pertinentemente o sentido dessa afirmação ao observar: “Consequentemente, a consciência socialista seria o resultado necessário, direto, da luta de classe proletária”; prossegue, porém, textualmente: “Mas isto é completamente falso. Como doutrina, é evidente que o socialismo tem as suas raízes nas relações econômicas atuais, exatamente do mesmo modo que a luta de classe do proletariado e, tal como esta, o socialismo deriva da luta das massas contra a pobreza e a miséria, pobreza e miséria geradas pelo capitalismo. Mas o socialismo e a luta de classes surgem um ao lado do outro e não derivam um do outro; surgem de premissas diferentes. A consciência socialista moderna não pode surgir senão na base de profundos conhecimentos científicos. Com efeito, a ciência econômica contemporânea é tanto uma condição da produção socialista quanto, por exemplo, a técnica moderna, e o proletariado, por mais que o deseje, não pode criar nem uma nem outra — ambas surgem do processo social contemporâneo. Mas o portador da ciência não é o proletariado: são-no os intelectuais burgueses; foi do cérebro de alguns membros desta camada que surgiu o socialismo moderno, e foram eles que o transmitiram aos proletários intelectualmente mais desenvolvidos, os quais, por sua vez, introduzem-no na luta de classe do proletariado onde as condições o permitem. Deste modo, a consciência socialista é algo introduzido de fora na luta de classe do proletariado e não algo que surge espontaneamente no seu seio. De acordo com isto, já o velho programa de Heinfeld dizia, com toda a razão, que a tarefa da socialdemocracia é levar ao proletariado a consciência da sua situação e da sua missão. Ora, isso não seria necessário se tal consciência derivasse automaticamente da luta de classes” (ibid., p. 79). No ano seguinte (1902), Lenin desenvolveu o essencial das ideias de Kautsky no seu célebre programa político Que fazer?. Aí, reproduz textualmente essas “palavras profundamente justas e importantes de Kautsky” e delas extrai a expressa consequência de “que nem sequer se pode falar de uma ideologia independente elaborada pelas próprias massas operárias no curso do seu movimento” [V. I. Lenin. Obras escolhidas. Lisboa: Avante!; Moscou: Progresso, 1977, v. 1, p. 107]. A mesma ideia reaparece em várias outras passagens do seu livro. Por exemplo, nestas palavras inequívocas: “A história de todos os países testemunha que a classe operária, exclusivamente com as suas próprias forças, só é capaz de desenvolver uma consciência trade-unionista, quer dizer, a convicção de que é necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, exigir do governo estas ou aquelas leis necessárias aos operários etc. Por seu lado, a doutrina do socialismo nasceu de teorias filosóficas, históricas e econômicas elaboradas por representantes instruídos das classes possuidoras, por intelectuais” (ibid., p. 101).

22 Ibid., p. 63 e ss. Na sua obra Literatura e revolução, publicada em russo nos finais de 1923 e um ano depois em alemão (Verlagfür Literatur und Politik. Viena, 1924) [ed. bras.: Literatura e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1969], Leon Trotski retoma e desenvolve por sua própria conta a tese luxemburguista de que “a classe operária não poderá elaborar uma ciência e uma arte próprias senão quando estiver completamente emancipada da sua atual situação de classe” (ibid., p. 80-81, 113 e ss. e sobretudo 12,7 e ss.) e que, especificamente, o método de pesquisa de Marx só se tornará plenamente apropriado pelo proletariado — que, então, não mais existirá como tal — na sociedade socialista.

23 Para indicações mais detalhadas sobre esta questão, ver o meu Auseiuader-setzung mit Kautsky, p. 119 e ss.

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