Editora: UFRJ
ISBN: 978-85-7108-329-5
Tradução e
apresentação: José Paulo Netto
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 172
Sinopse: Ver Parte
I
“A coincidência
entre a consciência e o real caracteriza toda dialética e, também, a
dialética materialista marxista; dela deriva que as relações materiais de
produção da época capitalista só sejam o que são em relação às formas sob as
quais eles se refletem na consciência tanto pré-científica quanto científica
(burguesa) dessa época e que só possam subsistir na realidade graças a elas — e,
sem tal coincidência, jamais a crítica da economia política poderia tornar-se o
elemento mais importante de uma teoria da revolução social.”
“Marx conclui a pesquisa para esclarecer o seu
método dialético, na décima primeira tese das Teses
sobre Feuerbach, da seguinte maneira: “Os filósofos apenas interpretaram
o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”.89
Esta frase, contrariamente ao que imaginaram os epígonos, não equivale a
declarar que toda filosofia é uma simples quimera; ela apenas exprime uma
recusa categórica de toda teoria, filosófica ou científica, que não seja simultaneamente
práxis, e práxis real, terrena, deste mundo, práxis humanamente sensível —
recusa categórica da atividade especulativa da Ideia filosófica que, no fim das
contas, apreende apenas a si mesma. Crítica teórica e revolução prática,
concebidas como duas ações indissociáveis, não num sentido qualquer da palavra
ação, mas como a transformação concreta e real do mundo concreto e real da
sociedade burguesa: estas duas expressões exprimem do modo mais preciso
possível o princípio do novo método materialista dialético do socialismo
científico de Marx e de Engels.”
89 Ver a frase frequentemente citada que se
encontra no fim do prefácio (1873) à segunda edição alemã de O
capital [na ed. bras. cit., livro 1, v. 1, p. 17].
“Mostramos as
consequências reais que decorrem do princípio materialista dialético do
marxismo para a concepção das relações entre a consciência e a realidade e, ao
fazê-lo, trouxemos à luz o caráter inexato de todas as concepções abstratas e
não dialéticas, tão difundidas entre os marxistas vulgares de várias
tendências, no trato teórico e prático das realidades “espirituais”. Não é
somente às formas de consciência econômicas em sentido estrito, mas a todas as
formas sociais de consciência que se aplica a frase de Marx segundo a qual elas
não são simples quimeras, porém realidades sociais “muito práticas, muito
objetivas” que é preciso, “por consequência, suprimir de forma prática,
objetiva”. Apenas o ponto de vista do sólido bom senso burguês, que considera o
pensamento independentemente do ser e define a verdade como a concordância da
representação com um objeto situado fora dela e que nela se “reflete”, apenas
este ponto de vista ingenuamente metafísico pode sustentar que, se as formas de
consciência econômicas (as ideias econômicas da consciência pré e
extra-científica e da economia científica) têm uma significação objetiva, já
que lhes corresponde uma realidade (a realidade das relações materiais de
produção que elas apreendem), todas as representações superiores seriam
elucubrações sem objeto, destinadas — uma vez transformada a estrutura
econômica da sociedade e suprimida a superestrutura jurídica e política — à
dissolução no nada que já agora as constitui. Somente na aparência as
representações econômicas mantêm com a realidade das relações materiais de
produção da sociedade burguesa a relação da imagem com o objeto que ela
reflete; realmente, a sua relação é a de uma parte bem determinada de um todo
com uma outra parte deste todo. A economia burguesa pertence, tanto quanto as
relações materiais de produção, ao todo da sociedade burguesa. Mas a ele
pertencem, igualmente, as representações jurídicas e políticas e seus objetos
aparentes, que os juristas e os políticos burgueses — esses “ideólogos da propriedade
privada” (Marx) —, na sua perspectiva ideológica falseada (verkehrter),
tomam como essências autônomas. E àquele todo também pertencem, finalmente, as
ideologias de um nível ainda mais elevado, a arte, a religião e a filosofia da
sociedade burguesa. Se, aparentemente, não vemos nessas representações o objeto
que poderiam refletir bem ou mal, por outro lado já compreendemos que as
representações econômicas, políticas e jurídicas absolutamente não possuem um
objeto específico, que existe independente e isoladamente dos outros fenômenos
da sociedade burguesa — opor-lhes tais objetos seria adotar um ponto de vista
burguês, abstrato e ideológico. Elas também apenas exprimem, à sua maneira
particular, o todo da sociedade burguesa, como o fazem, igualmente, a arte, a
religião e a filosofia. Constituem todas, em conjunto, a estrutura
espiritual da sociedade burguesa, que corresponde à sua estrutura
econômica, do mesmo modo que, sobre esta estrutura econômica, se eleva a
superestrutura jurídica e política desta sociedade. A crítica social
revolucionária do socialismo científico, materialista e dialética, que incide
sobre a totalidade da realidade social, deve criticá-las a todas na teoria e
revolucioná-las na prática, tal como deve fazer — e ao mesmo tempo — com a
estrutura econômica, jurídica e política.92 Assim como a ação
econômica da classe revolucionária não torna supérflua a ação política, a ação
econômica e política em conjunto não torna supérflua a ação espiritual: esta,
ao contrário, deve ser também conduzida a seu termo, na teoria e na prática,
enquanto crítica científica revolucionária e trabalho de agitação antes da
tomada do poder pelo proletariado e enquanto trabalho científico de organização
e ditadura ideológica após a conquista do poder. E o que vale em geral para a
ação espiritual contra as formas de consciência próprias à sociedade burguesa
tal como a conhecemos vale ainda mais para a ação filosófica em particular. A
consciência burguesa, que, necessariamente, se pretende autônoma em face do mundo,
como pura filosofia crítica e ciência imparcial, do mesmo modo como o Estado e
o direito burgueses, que parecem situados autonomamente acima da sociedade —
esta consciência deve igualmente ser combatida no plano filosófico pela
dialética materialista revolucionária, a filosofia da classe proletária, até
que seja, ao fim desse combate, totalmente superada e suprimida no plano
teórico, simultaneamente à total transformação, no plano prático, da sociedade
existente e de suas bases econômicas. “Não podeis superar a filosofia sem
realizá-la”.93”
92 Ver sobretudo as afirmações de Lenin, no seu artigo “Sob a bandeira
do marxismo” (Kommunistische Internationale, n. 21, outono de 1922, p. 8
e ss.). [Ver, infra, a nota 3, no capítulo “A concepção materialista da história”.]
93 [Ver, supra, a nota 63.]
“É em Kautsky que se manifesta mais
claramente esta estreiteza dogmática da ortodoxia marxista em face do
desenvolvimento histórico real do marxismo. Para ele, não foi somente a
transformação que as diversas correntes da Segunda Internacional impuseram à
teoria de Marx-Engels, mas também “o aperfeiçoamento do marxismo já realizado
por Marx e Engels desde o Manifesto inaugural (1864)15 até à
‘Introdução’ de Engels à nova edição (1895) de As lutas de classes na França,
de Marx”, o que permitiu “alargar” a teoria da revolução social do
proletariado e fazer dela uma teoria “válida não apenas para o estágio da
revolução, mas também para as épocas não revolucionárias” (ibid., p. 313).
Aqui, Kautsky, ainda que designando-a como um a “teoria da luta de classes”,
retira da teoria de Marx e Engels o seu caráter essencialmente revolucionário.
Mas ele não tardou em avançar ainda mais nesta direção e, na sua última grande
obra sobre A concepção materialista da história, fez tábula rasa da
relação fundamental entre a teoria marxista e a luta proletária. Ele protesta
contra a “acusação” de empobrecimento e vulgarização do marxismo que eu teria
supostamente levantado contra Marx e Engels em seu último período — porém, o
que pretende é, apenas, dissimular a sua própria tentativa para apoiar (de
novo, escolástica e dogmaticamente) sobre a “autoridade” de Marx e de Engels o
recente abandono, por ele e por outros, dos últimos vestígios, há muito quase
irreconhecíveis, da teoria marxista que outrora assumiram da boca para fora.
Mas, também aqui, comprova-se a inteira
solidariedade teórica entre a nova ortodoxia comunista e a velha ortodoxia
socialdemocrata. Quando os críticos do Partido Comunista me acusam de,
“mediante uma excessiva abstração e uma esquematização da problemática,
obscurecer conceitos como o de marxismo da Segunda Internacional” (Bammel,
ibid., p. 13), é preciso ver, sob essa argumentação, a tentativa para defender
dogmaticamente este mesmo marxismo do qual Lenin e os seus jamais recusaram a
herança espiritual, a despeito das palavras que pronunciaram no ardor do
combate. Como é usual entre os “teóricos” do Partido Comunista em casos
semelhantes, o meu crítico comunista se protege da responsabilidade pessoal de
fazer essa apologia do marxismo da Segunda Internacional — ele se abriga sob a
enorme sombra de Lenin. Para mostrar como, em Marxismo e filosofia, a
“abstração” e a “esquematização” obscurecem o conceito de “marxismo da Segunda
Internacional”, meu crítico, conforme um hábito escolástico bem estabelecido,
cita uma frase em que o grande tático Lenin reconheceu, numa conjuntura tática
particularmente complexa, “o mérito histórico da Segunda Internacional” no
desenvolvimento prático (e não teórico) do movimento operário moderno.16
Mas logo o teórico comunista se atrapalha: pressente que se poderia aplicar à
teoria socialdemocrata esta opinião de Lenin sobre os “lados bons” da práxis
socialdemocrata; porém, ao invés de concluir isto com clareza, ele balbucia
apenas, “de maneira excessivamente abstrata e obscura”, qualquer coisa como
“não seria difícil demonstrar que se poderia sustentar o mesmo, em alguma
medida, a propósito do fundamento teórico do marxismo” (ibid., p. 14).
Ora, a verdade (que, num de meus artigos
publicados alhures, contribuí para esclarecer) sobre o caso do “marxismo da
Segunda Internacional” é a seguinte: de fato, o movimento socialista,
despertado e fortalecido nas novas condições históricas do último terço do
século XIX, jamais adotou — como se pretendeu — o marxismo em sua
totalidade.17 Conforme a ideologia dos marxistas ortodoxos, e
dos seus adversários que se situam no mesmo terreno dogmático, “a adesão ao
marxismo”, nesta fase do movimento operário moderno, teria sido, tanto na
teoria quanto na prática, a adesão ao marxismo em sua totalidade·, na
realidade, tal adesão diz respeito, também teoricamente, a algumas “teorias”
econômicas, políticas e sociais cuja significação geral já vinha modificada
pelo fato de estarem desvinculadas da perspectiva revolucionária de Marx,
ademais de mutiladas e falsificadas em seu próprio conteúdo. E a ênfase sobre o
caráter rigorosamente “marxista” do programa e de toda a teoria deste
novo movimento operário socialdemocrata não se situa na época em que ele mais
se aproximava, na sua práxis, à teoria marxiana, época na qual este movimento
contava com a estreita colaboração dos “dois velhos de Londres” (e de Friedrich
Engels sozinho, após a morte de Marx, em 1883). Paradoxalmente, ela data do
período posterior, quando já surgiam, na práxis política e sindical, as novas
tendências que, em seguida, encontrarão a sua expressão ideológica no que se
designa por “revisionismo”. No momento mesmo em que a orientação prática do
movimento alcançava o seu mais alto ponto revolucionário — sob o contragolpe do
período de crises e depressões da década de 1870, sob a força da reação
política que se seguiu à derrota da Comuna de Paris, em 1871, sob o efeito da
lei antissocialista na Alemanha, do fracasso pós-1884 da nascente agitação
socialista na Áustria e da repressão às reivindicações em prol da jornada de
oito horas na América, em 1886 —, nesse momento a teoria do movimento era
essencialmente democrática, no sentido do “partido popular”, lassalliano,
dühringuiano; e só era marxista do modo mais esporádico.”’ Depois, a partir dos
anos 1890, as coisas experimentam um novo impulso na Europa e particularmente
na Alemanha; com a anistia aos cornmunards na França (1880) e a
revogação da lei antissocialista na Alemanha (1890), surgem os primeiros indícios
de um manejo “mais democrático” do poder estatal no continente europeu. É
somente então que se vê surgir, neste contexto prático novo, uma espécie de
defesa teórica e de consolação metafísica: a adesão formal a todo o
marxismo. É neste sentido que se pode inverter a relação comumente aceita
entre o “marxismo” de Kautsky e o “revisionismo” de Bernstein e, sobretudo,
caracterizar a ortodoxia marxista de Kautsky como a outra face, o
reverso teórico e o complemento simétrico do revisionismo de Bernstein.19
Considerando esses fatos históricos,
evidencia-se que não são apenas injustificadas, mas carentes de sentido as
censuras dos críticos ortodoxos em face da minha pretensa predileção pela forma
“primitiva” da teoria de Marx e Engels, do meu suposto desprezo pelo
aperfeiçoamento realizado sobre esta forma original do marxismo — seja pelos
próprios Marx e Engels, seja pelos marxistas posteriores — no curso da segunda
metade do século XIX. O “marxismo da Segunda Internacional” — segundo os meus
críticos, desenvolvimento positivo da teoria original de Marx e Engels — é, na
realidade, uma forma histórica nova da teoria proletária de classe. Ela
nasceu da modificação das condições práticas da luta de classes numa época nova
e mantém com a teoria de Marx e Engels (seja na sua forma original ou na sua
forma ulterior, mais desenvolvida) relações inteiramente diferentes, muito mais
complexas do que imaginam aqueles que mencionam um aperfeiçoamento ou,
ao contrário, uma estagnação, uma regressão e uma atrofia da
teoria de Marx no marxismo da Segunda Internacional. O marxismo de Marx e de
Engels não é, pois, uma teoria socialista “ultrapassada” do ponto de vista do
movimento operário contemporâneo, como Kautsky o pretende (ele só o diz
expressamente a propósito da sua forma original, o “marxismo primitivo do Manifesto
comunista”, mas sua afirmação vale, de fato, para todos os elementos
revolucionários da teoria ulterior de Marx e Engels). Também não é, por outro
lado, uma teoria que, por força de algum prodígio, foi e permanece ainda por
longo tempo mais avançada que o desenvolvimento do movimento operário; nem este
continuaria, com a sua prática, atrasado (por assim dizer) em relação à sua
própria teoria, somente podendo progressivamente ocupar no futuro o lugar que
ela já lhe tinha reservado — tudo isso foi frequentemente sustentado, no início
do terceiro período (ou seja: no fim do século passado), pelos representantes
das tendências revolucionárias da ortodoxia marxista socialdemocrata e
ainda é sustentado por alguns marxistas contemporâneos.20 É
necessário compreender de um modo totalmente diverso a defasagem entre a teoria
“marxista” revolucionária, altamente desenvolvida, e uma práxis que permanece
muito atrasada em relação a ela e, em parte, chega a contradizê-la diretamente;
esta defasagem é real no Partido Socialdemocrata da Alemanha desde sua evolução
no sentido de tornar-se partido “marxista” (aproximadamente concluída com o Programa
de Erfurt, de Kautsky-Bernstein, de 1891) e foi progressiva e penosamente
sentida, no período seguinte, por todas as forças vivas do partido (de direita
e de esquerda!) — somente a ortodoxia marxista do centro a negou. Essa
defasagem deve-se simplesmente ao fato de que, desde o início, nesta fase
histórica, o “marxismo” não foi, para o movimento operário, que a ele aderira
apenas formalmente, uma verdadeira “teoria” — isto é, “expressão geral,
e nada mais, do movimento histórico real” (Marx) —, mas sim e somente uma “ideologia”,
trazida já pronta e acabada “de fora”.
Quando, nesta situação, “marxistas ortodoxos”
como Kautsky e Lenin sustentavam energicamente que o socialismo só podia ser
introduzido no movimento operário “de fora” por intelectuais burgueses
vinculados a este movimento,21 ou mesmo quando radicais de esquerda,
como Rosa Luxemburg, vinculavam a “estagnação” verificada no marxismo, de uma
parte, à criatividade espiritual de Marx, munido de todos os recursos que a
cultura burguesa de classe pusera à sua disposição, e, de outra, às “condições
sociais de existência do proletariado na sociedade atual”,22 que
permanecem inalteradas durante toda a época capitalista — tudo isso significa
simplesmente fazer da necessidade momentânea uma virtude eterna. A explicação
materialista da contradição aparente entre teoria e práxis na Segunda
Internacional “marxista”, e, ao mesmo tempo, a solução racional de todos os
mistérios imaginados pela ortodoxia marxista da época para resolvê-la residem
num fato histórico: adotando de modo puramente formal o marxismo como
ideologia, o movimento operário de então permanecia, em sua práxis, sobre esta
sua nova base, bem abaixo do nível de desenvolvimento geral (e teórico,
em particular) atingido, sobre a base mais estreita de antes, por todo o
movimento revolucionário e, com ele, pela luta de classe do proletariado em
meados do século XIX, quando se esgotava o primeiro ciclo de desenvolvimento do
capitalismo. Neste momento, o movimento operário, anteriormente elevado a um
maior grau de evolução, experimentou uma estagnação provisória mais longa e,
mesmo depois, quando outras condições objetivas se deram, despertou apenas
gradualmente; a teoria que Karl Marx e Friedrich Engels conceberam em direta
relação com a práxis do movimento revolucionário só pôde, então, desenvolver-se
no plano teórico. É certo que este aperfeiçoamento ulterior jamais foi o
simples produto de estudos “puramente teóricos”: era também resultante de novas
experiências da luta de classes que renascia sob formas diversas. Mas é
igualmente certo que esta teoria de Marx e Engels, avançando para um
grau de elaboração cada vez mais alto, não estava mais diretamente ligada à
práxis do movimento operário que lhe era contemporâneo. Ao contrário, estes
dois processos — o desenvolvimento, em novas condições, da
antiga teoria herdada de uma época finda e a nova práxis do movimento
operário — evoluem lado a lado, mas de modo relativamente independente. É
assim que se explica o nível elevado e “extemporâneo” (no pleno sentido da
palavra) que a teoria marxista — tanto em seu conjunto quanto, particularmente,
nos seus aspectos filosóficos — conservou, e até reforçou, no curso desse
período, em Marx e Engels e nuns poucos discípulos seus. Também assim se
explica, por outra parte, o fato de o movimento operário, despertado desde o
último terço do século XIX, permanecer na total impossibilidade de aderir não
apenas formal, mas efetivamente, a esta teoria marxista tão altamente
desenvolvida.23”
16 A frase é extraída de uma resposta escrita
por Lenin, antes do Congresso de Lucerna da Internacional de Berna (julho de
1919), a um artigo do dirigente operário inglês Ramsay Macdonald (considerado
então como um socialista de esquerda) sobre a “Terceira Internacional”,
recentemente aparecida na cena do movimento operário com um manifesto
inaugural. Em alemão, ela se encontra na revista Die kommunistische
Internationale (A Internacional Comunista), n. 4-5, p. 52 e ss., à
época publicada pelo Secretariado da Internacional Comunista para a Europa
Ocidental.
A passagem invocada por Bammel para respaldar
uma afirmação inteiramente diversa não tem, no contexto real em que Lenin a
utiliza, rigorosamente nada a ver com a teoria marxista da Segunda
Internacional — Lenin qualifica como “mérito histórico” e “conquistas
imperecíveis” da Segunda Internacional, “incontestáveis para qualquer operário
politicamente consciente”, pontos estritamente práticos, tais como “a
organização das massas operárias, a criação de organizações cooperativas,
sindicais ou políticas de massa, a utilização do parlamentarismo burguês e, em
geral, de todas as instituições da democracia burguesa etc.” (ibid., p. 60).
17 Ver meu último texto, Die
materialistische Geschichtsauffassung. Eine Auseinandersetzung mit Karl Kautsky
(A concepção materialista da história. Uma polêmica com Karl Kautsky)
(citado, na sequência, como Auseinandersetzung mit Kautsky [Polêmica com
Kautsky]), particularmente o último capítulo, sobre a significação histórica do
kautskysmo (não reproduzido na reedição parcial do Archiv für die Geschichte
des Sozialismus und der Arbeiterbewegung [Arquivo de História do Socialismo e
do Movimento dos Trabalhadores], de Grünberg, n. 14, p. 179 e ss.).
18 Ver a correspondência da época entre Marx
e Engels, reproduzida na minha edição das Glosas
marginais ao programa do Partido Operário Alemão e as notas a ela
pertinentes na minha introdução, p. 6 e ss. As Cartas de F. Engels a
Bernstein (1881-1895), posteriormente publicadas (Berlim, 1925), contêm
outros esclarecimentos importantes relativos a esta questão.
19 Ver em particular, na Volkswirtschaftlehre
in Selbstdarstellungen (Auto-representações da teoria econômica popular)
(Leipzig, 1924), a exposição concordante que agora fazem Bernstein (p. 12 e
ss.) e Kautsky (p. 134 e ss.) da mudança ocorrida àquela época em suas
respectivas relações com a teoria marxista, ao mesmo tempo em que em suas
relações teóricas recíprocas. Essa exposição retifica completamente a lenda
acerca do caráter “marxista” que marcaria a teoria socialdemocrata antes da sua
“revisão” por Bernstein.
20 A despeito de sua fórmula célebre (“Quanto
a mim, não sou marxista”), o próprio Marx contribuiu ocasionalmente para esta
concepção algo dogmática e idealista das relações entre a sua teoria marxista e
os aspectos ulteriores reais do movimento operário. Ver, por exemplo, nas Glosas
marginais ao programa do Partido Operário Alemão, de 1875, seus reiterados
queixumes acerca do “retrocesso teórico que causa real indignação” desse
projeto de programa em face do nível superior de conhecimento já alcançado e a
propósito do “atentado monstruoso contra uma concepção tão difundida entre a
massa do Partido” cometido pelos autores do projeto. Mas os adversários
radicais de esquerda do revisionismo e da ortodoxia centrista ergueram mais
tarde, a partir dessa concepção, um sistema com a ajuda do qual tentaram
explicar a “estagnação” que constatavam no desenvolvimento teórico do marxismo.
É assim, por exemplo, que Rosa Luxemburg, em seu artigo do Vorwärts (14
de março de 1903), afirma, com a maior seriedade, que, se a teoria do movimento
está agora em “ponto morto”, isto não se deve “a que nós, em nosso combate
prático, tenhamos superado Marx, mas, ao contrário, deve-se a que Marx, em sua
obra científica, tenha avançado mais que nós, partido militante de luta;
não se deve a que Marx não responda mais às nossas exigências, mas ao fato de
que nossas exigências ainda não são o bastante grandes para que possamos nos
beneficiar do pensamento de Marx”. E o erudito marxista Riazanov, que reeditou
esse artigo em 1928, na antologia K. Marx als Denker, Mensch und
Revolutionär [ed. bras.: D. Riazanov. Marx: o homem, o pensador, o
revolucionário. São Paulo: Global, 1984], complementa, do ponto de vista
contemporâneo, as pontuações que haviam sido feitas quase trinta anos atrás por
Rosa Luxemburg, com esta singela observação: “A práxis da Revolução Russa
mostrou que cada fase nova e superior da luta proletária pode sempre extrair do
inesgotável arsenal da teoria marxista [!] as armas exigidas pelo novo estágio
da luta emancipadora da classe operária” (ibid., p. 7). Não se pode afirmar que
a relação entre teoria e práxis, que Rosa Luxemburg colocara de cabeça para
baixo, esteja assim reposta sobre seus pés.
21 Ver a polêmica de Kautsky (em Neue
Zeit, n. 21, p. 68 e ss.) contra o projeto de uma nova redação do programa
de Heinfeld, apresentado em 1901 ao congresso do Partido austríaco (Viena).
Numa parte qualquer desse projeto, diz-se que o proletariado se alça à
consciência da possibilidade e da necessidade do socialismo através das lutas
que lhe são impostas pelo desenvolvimento capitalista. Kautsky precisa muito
pertinentemente o sentido dessa afirmação ao observar: “Consequentemente, a
consciência socialista seria o resultado necessário, direto, da luta de classe
proletária”; prossegue, porém, textualmente: “Mas isto é completamente falso.
Como doutrina, é evidente que o socialismo tem as suas raízes nas relações
econômicas atuais, exatamente do mesmo modo que a luta de classe do
proletariado e, tal como esta, o socialismo deriva da luta das massas contra a
pobreza e a miséria, pobreza e miséria geradas pelo capitalismo. Mas o socialismo
e a luta de classes surgem um ao lado do outro e não derivam um do outro;
surgem de premissas diferentes. A consciência socialista moderna não pode
surgir senão na base de profundos conhecimentos científicos. Com efeito, a
ciência econômica contemporânea é tanto uma condição da produção socialista
quanto, por exemplo, a técnica moderna, e o proletariado, por mais que o
deseje, não pode criar nem uma nem outra — ambas surgem do processo social
contemporâneo. Mas o portador da ciência não é o proletariado: são-no os intelectuais
burgueses; foi do cérebro de alguns membros desta camada que surgiu o
socialismo moderno, e foram eles que o transmitiram aos proletários
intelectualmente mais desenvolvidos, os quais, por sua vez, introduzem-no na
luta de classe do proletariado onde as condições o permitem. Deste modo, a
consciência socialista é algo introduzido de fora na luta de classe do
proletariado e não algo que surge espontaneamente no seu seio. De acordo com
isto, já o velho programa de Heinfeld dizia, com toda a razão, que a tarefa da
socialdemocracia é levar ao proletariado a consciência da sua situação e
da sua missão. Ora, isso não seria necessário se tal consciência derivasse
automaticamente da luta de classes” (ibid., p. 79). No ano seguinte (1902),
Lenin desenvolveu o essencial das ideias de Kautsky no seu célebre programa
político Que fazer?. Aí, reproduz textualmente essas “palavras
profundamente justas e importantes de Kautsky” e delas extrai a expressa
consequência de “que nem sequer se pode falar de uma ideologia independente
elaborada pelas próprias massas operárias no curso do seu movimento” [V. I.
Lenin. Obras escolhidas. Lisboa: Avante!; Moscou: Progresso, 1977, v. 1,
p. 107]. A mesma ideia reaparece em várias outras passagens do seu livro. Por
exemplo, nestas palavras inequívocas: “A história de todos os países testemunha
que a classe operária, exclusivamente com as suas próprias forças, só é capaz
de desenvolver uma consciência trade-unionista, quer dizer, a convicção de que
é necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, exigir do
governo estas ou aquelas leis necessárias aos operários etc. Por seu lado, a
doutrina do socialismo nasceu de teorias filosóficas, históricas e econômicas
elaboradas por representantes instruídos das classes possuidoras, por
intelectuais” (ibid., p. 101).
22 Ibid., p. 63 e ss. Na sua obra Literatura
e revolução, publicada em russo nos finais de 1923 e um ano depois em
alemão (Verlagfür Literatur und Politik. Viena, 1924) [ed. bras.: Literatura
e revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1969], Leon Trotski retoma e desenvolve
por sua própria conta a tese luxemburguista de que “a classe operária não
poderá elaborar uma ciência e uma arte próprias senão quando estiver
completamente emancipada da sua atual situação de classe” (ibid., p. 80-81, 113
e ss. e sobretudo 12,7 e ss.) e que, especificamente, o método de pesquisa de
Marx só se tornará plenamente apropriado pelo proletariado — que, então, não
mais existirá como tal — na sociedade socialista.
23 Para indicações mais detalhadas sobre esta
questão, ver o meu Auseiuader-setzung mit Kautsky, p. 119 e ss.
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