Editora: WMF Martins Fontes
ISBN: 978-85-7326-410-4
Tradução: Artur M. Ferreira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 1456
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Sinopse: Ver Parte I
“Platão não leva muito a sério as dúvidas
formuladas sobre a missão política do filósofo. O exame dessas dúvidas
serve-lhe de pretexto para se desvencilhar de muitos daqueles que se arrogam o
nome de filósofos. Mas a par disso defende com o máximo rigor a verdadeira
filosofia e considera qualquer concessão feita aos críticos uma acusação contra
o mundo. A imagem por ele traçada do destino do filósofo converte-se numa
tragédia impressionante. Se nas obras de Platão há alguma página escrita com o
sangue do seu coração, é esta. Já não é só o destino de Sócrates, feito
símbolo, o que move a sua pena. Mistura-se a ele, aqui, a história da sua
própria ambição suprema e o “fracasso” das suas forças ante a missão que
outrora se julgara especificamente chamado a cumprir.
A rigor, a defesa começa logo antes da
crítica. Até aqui, Platão definira o filósofo apenas pelo objeto do seu saber338;
agora dá-nos uma definição da natureza filosófica339, indispensável
para a compreensão da sua tese sobre os governantes-filósofos, principalmente para
o leitor atual, que facilmente pode associar à palavra grega incorporada aos
nossos idiomas a ideia de erudito. O seu “filósofo” não é exatamente um
professor de Filosofia nem nenhum outro representante da “Faculdade” de
Filosofia, que se arrogue um título desses, baseado nos conhecimentos que tem
da sua especialidade (τεχνυ¿δριον)340. E ainda menos é um “pensador
original”, pois não seria possível existirem simultaneamente tantos pensadores
quanto os “filósofos” de que Platão precisa para governar o seu Estado. Apesar
de a palavra Filósofo possuir na linguagem platônica, como em seguida
veremos, um conteúdo tão grande de disciplina dialética da inteligência, apresenta
em primeiro plano um sentimento mais amplo e fundamental, que é o de “amante da
cultura”, designando-se desse modo a personalidade humana altamente cultivada.
Platão concebe o filósofo como um homem de grande memória, de percepção rápida
e sedento de saber. Tal homem despreza tudo o que é minúsculo, o seu olhar
eleva-se sempre ao aspecto global das coisas e abarca, de uma vigia altíssima,
a existência e o tempo. Não tem a vida em grande apreço nem sente grande apego aos
bens exteriores. É estranho a ele tudo o que seja gabolice. É grande em tudo,
mas sem por isso deixar de possuir um certo encanto. É amigo e parente
da verdade, da justiça, da valentia, do autodomínio. Platão acredita na
possibilidade de realizar esse tipo de homem, mediante uma seleção precoce e
ininterrupta, por obra de uma educação ideal e da maturidade dos anos341.
A sua imagem do filósofo não corresponde ao tipo do discípulo dos sofistas. O
“intelectual” cuja característica é a tendência a criticar os outros
continuamente é implacavelmente fustigado por Platão, que o expulsa do seu
templo342. Platão insiste na harmonia do espírito e do caráter e é
por isso que, resumindo tudo o anterior, apelida concisamente o seu filósofo de
kaloskagatbos343.
A censura da incapacidade desses homens
recai, na realidade, sobre aqueles que não sabem usar a sua capacidade. No entanto,
homens como estes não podem abundar e além disso estão expostos a perigos
inumeráveis no meio da massa e continuamente ameaçados de corrupção344.
Em parte, é dentro deles próprios que o perigo espreita. Cada um dos dotes
apontados (a bravura, a autodisciplina etc.), se é desenvolvido de forma
unilateral e desligado dos outros, torna-se um obstáculo a uma formação verdadeiramente
filosófica345. Outros obstáculos são a beleza, a energia física, os
parentescos influentes e outros bens desse tipo346. O
desenvolvimento são do Homem é condicionado por uma boa alimentação, pela estação
do ano e pela região; essa norma geral, que vigora para todas as plantas e
animais, afeta de maneira especial os temperamentos melhores e mais vigorosos347.
As almas mais bem-dotadas degeneram mais profundamente que as comuns, quando
uma má pedagogia as corrompe348. Um temperamento filosófico, que em
terreno propício é chamado a florescer maravilhosamente, produz como fruto o contrário
dos seus magníficos dotes, se é semeado ou plantado no solo de uma má educação,
a não ser que o venha salvar uma “týkhe divina”349.
Platão defende repetidas vezes, e
precisamente sempre sob esse ponto de vista, a ideia desse destino
inapreensível para a inteligência humana e que as mentes religiosas não
consideram fruto do mero acaso, mas antes obra de um poder miraculoso350.
É a expressão de uma interpretação religiosa de experiências cujo caráter
paradoxal e sentido elevado são por ele experimentados com força igual. Também
nas cartas de Platão essa mesma týkhe divina deixou os seus vestígios.
Por exemplo: é como týkhe divina que ele interpreta o fato de, durante a
sua primeira estadia na Sicília, conseguir atrair o jovem Díon, fazer dele um
partidário entusiasta da sua concepção sobre a missão educacional do Estado e
de, uns decênios depois, aquele homem se pôr à cabeça da revolução que derrubou
a ditadura de Dionísio. Na opinião dele, isso significa que, com a sua teoria, Platão
foi inconscientemente a causa deste acontecimento histórico prenhe de
consequências, o que levanta o problema de saber se isso se deveu simplesmente
ao acaso ou se o filósofo agiu como instrumento nas mãos de um poder mais
alto351. Posteriormente, depois do fracasso aparente de todas as suas
tentativas orientadas diretamente para a realização dos seus desígnios, esse
conjunto de circunstâncias adquiriu para ele a importância de um problema
religioso. Pois bem, é igualmente um pouco desse caráter de experiência vivida
que na República
tem a narração da maneira como os temperamentos filosóficos se salvam
milagrosamente de todos os obstáculos com que o ambiente corrupto ameaça desde
o primeiro instante a trajetória da sua formação. Segundo Platão, o que infunde
caráter trágico à existência do homem filosófico neste mundo é o fato de só
pelo influxo de uma graça ou týkhe divina especial ele poder sobrepujar os
obstáculos, e de a maioria dos homens dessa classe estar condenada a perecer
antes de alcançar o seu pleno desenvolvimento.”
338. Assim se faz na parte final do livro V.
339. Rep., 485 E ss. Cf. a breve
recapitulação das qualidades do “temperamento filosófico” em 487 A.
340. Rep., 475 E. Cf. 495 C 8-D.
341. Rep., 487 A 7. A experiência
(ε¹μπειρι¿α) sublinha-se também fortemente em 484 D e aparece na mesma linha da
cultura filosófica do espírito.
342. Cf. Rep., 500 B. As palavras de
Sócrates dizem assim: Não acreditas como eu, que os culpados da repugnância
que a maioria dos homens sentem pela Filosofia são aqueles que lhes irrompem
pela casa adentro como um enxame de ruidosos desordeiros, insultando-se uns aos
outros, cheios de ódio mútuo, e falando de pessoas, que é o menos adequado para
a filosofia?
343. Rep., 489 E. Na Ética eudemeia
de Aristóteles aparece caracterizado com o predicado da kalokagathía (VIII,
3, 1248 b 8), apesar de neste ponto, como em todos, encontrar-se muito próximo
de Platão, o representante da areté perfeita, na qual se associam todas
as “partes da areté”. Na Ética nicomaqueia, escrita mais tarde, Aristóteles prescinde também desse traço
platônico. Sobretudo para quem estiver habituado a conceber em Platão a
filosofia como paideía, é importante saber que o filósofo platônico
não é senão a forma do kaloskagathos, quer dizer, a forma do ideal
supremo de cultura do período grego clássico, renovada num sentido socrático.
344. Rep., 490 D ss.
345. Rep.,491 B. Cf. a enumeração das
diferentes virtudes em 487 A e acima, pp. 806 ss.
346. Rep., 491 C.
347. Rep., 491 D.
348. Rep., 491 E.
349. Rep., 492 A, 492 E.
350. Cf. a dissertação de doutoramento, na
Universidade de Chicago, de E. BERRY, The History of the Concept of θει¿α
μοιªρα e θει¿α τυ¿χη down to Plato (Chicago, 1940), que foi sugerida por
mim.
351. Carta VII, 326 E.
“Desse modo, Platão opõe simultaneamente o
seu próprio humanismo ao tipo sofista, que não continha nenhum desses ideais
humanos e cuja característica fundamental acabou de definir como a adaptação
espiritual ao Estado real vigente em cada caso. Esse humanismo platônico não é
apolítico por princípio; não é, porém, da realidade do mundo empírico que ele
tira o seu ponto de vista político, mas sim da Ideia, a verdadeira realidade
para ele. Persevera na sua disposição permanente e de certo modo escatológica
de se entregar como força auxiliar ao mundo divinamente perfeito que pertence
ao “porvir”. Não pode, contudo, renunciar ao seu direito de crítica perante nenhuma
das formas da realidade do Estado, pois não é nenhum modelo temporal, mas sim o
modelo eterno, que o seu olhar contempla391. No átrio da paideía dos
governantes, Platão coloca simbolicamente a imagem do “humano” ou do
“semelhante ao humano” como o conteúdo autêntico e o autêntico sentido do
verdadeiro Estado. Sem uma imagem ideal do Homem, é impossível a cultura
humana. A “formação pessoal”, a que de momento efetivamente se reduz a paideía
filosófica, ganha o seu sentido social mais alto, ao ser referida ao Estado
ideal, cujo caminho prepara. Não é à maneira de um “como se”, de uma simples ficção,
que Platão concebe essa referência; afirma expressamente, aqui também, que o
Estado ideal é um Estado possível, embora de difícil realização392.
Desse modo, protege o conceito de “porvir”, para o qual o filósofo se forma, do
perigo de escorregar para o imaginário; e, com a possibilidade de a todo momento
ganhar corpo na prática, dá à “vida teórica” do filósofo uma tensão maravilhosa
de que a ciência fundamentalmente “pura” carece. É essa posição intermediária –
que ele ocupa entre a pura investigação, desligada de todo fim ético e prático,
e a cultura meramente pragmática, política, dos sofistas – que faz o humanismo
platônico ser realmente superior a ambas.”
391. A relação entre a Filosofia e o Estado
constitui o paralelo grego da relação entre os profetas e os reis de Israel.
392. Rep., 499 C-D.
“Hegel
escreveu a frase famosa de que o caminho do espírito é o desvio. Aparentemente,
o caminho natural é aquele que conduz diretamente à meta. Mas às vezes separa-o
desta um profundo abismo, oculto talvez à vista de quem o contempla, ou
colocam-se diante dela outros obstáculos que impedem de a atingir diretamente.
A superação desses obstáculos por meio de um desvio consciente que torna a meta
acessível, ainda que não raras vezes por grandes dificuldades, constitui a
essência de toda a investigação metódica, e especialmente do pensamento
filosófico.”
“Para o realismo platônico, a Ideia do Bem é
boa por si mesma; mais ainda, na sua forma mais perfeita, o bom, tal como a ideia
do Belo, é belo em si; e, ainda mais, é o mais belo de tudo o que existe. Pois
bem, para Platão, o Bem e a felicidade são uma e a mesma coisa46a.
E, para o pensamento religioso dos gregos a felicidade é o mais importante dos
atributos da essência da divindade. Os deuses homéricos são “os
bem-aventurados” por antonomásia.”
46a. Aristóteles reconhece nesta fórmula a
essência do platonismo. Cf. a sua “elegia do altar” e a explicação da poesia na
minha obra Aristóteles, pp. 127 ss.
“A tensão secreta constante, que desde o
princípio nos diálogos de Platão enche os esforços de Sócrates e dos seus
interlocutores dirigidos ao conhecimento da virtude e do Bem em si, cede ao
chegar a esse ponto. É aqui que ela alcança o seu objetivo, embora de fato não
possa chegar a um estado de posse constante e de inerte contentamento consigo
própria. Encarada do ponto de vista do indivíduo, a Filosofia é, na sua
essência mais íntima, um esforço continuamente ocupado, de olhos no paradigma
contido no existente82. Contudo, na concepção ideal de um Estado
que se concebe como inteiramente baseado nessa phrónesis e no qual esta
aparece como princípio arquitetônico, a Filosofia tem necessariamente de se
apresentar como algo definitivo e imperioso. O conhecimento da “causa última do
universo”83, que é o fundamento de tudo o que há de bom no mundo, torna-se
para esse tipo de Estado a base e a meta do Governo. À parte a maneira de se
exprimir, não existe nenhuma diferença entre esse princípio e a tese
fundamental das Leis, segundo a qual Deus é a medida de todas as coisas84.
O Estado das Leis é um Estado teônomo, não em oposição ao Estado da República,
mas pelo contrário à sua imagem e semelhança. Guarda esse princípio supremo,
ainda que ele apareça nas Leis aplicado de maneira diferente e não deixe
ao conhecimento filosófico senão a margem que corresponde ao grau inferior do
Ser, sobre o qual assenta. Platão diz no Fédon
que a descoberta do Bem e da causa final constitui a encruzilhada histórica
dos caminhos da concepção da natureza, onde se separam o mundo pré-socrático
e o mundo pós-socrático85. No primeiro livro da Metafísica,
Aristóteles coloca essa ideia no centro da sua história da Filosofia86.
Contudo, a tese vale tanto para a filosofia do Estado como para a natureza. Em
relação à natureza, a feição socrática leva Platão a uma suprema filosofia, que
é a teoria das ideias, a qual é, em última instância, teologia, dissociada da
física. No campo da política, o conhecimento do Bem, encarado como meta de
todos os atos, conduz ao reinado dos filósofos, isto é, dos representantes da
nova religião do espírito, no Estado da ideia pura.
Não pode haver a menor dúvida de que os
discípulos viram na proclamação platônica do Bem como causa última do mundo – e
assim o prova a elegia do altar de Philía, em Aristóteles – a fundação
de uma religião nova e, ao menos uma vez neste mundo, viram realizada na pessoa
do seu mestre, à guisa de exemplo, a fé platônica na identidade do bem e da
felicidade87. Seguindo a tradição da Academia e apoiando-se nos fins
que Platão assinalava à Filosofia, Aristóteles chamou teologia à sua “filosofia
primeira”88; e teologia é também, realmente, a essência da sabedoria
que o discípulo de Platão, Filipe de Opunte, põe em apêndice à sua edição das Leis89.
Que nessa teologia (que de acordo com a sua escola só pôde redigir e
publicar com as Leis, como apêndice)90 ele não estabelece
como princípio sobre o qual assenta o Estado constitucional a teoria da ideia
do Bem, mas a teologia astronômica dos “deuses visíveis” do Timeu91
– embora aquela tivesse de lhe saltar nitidamente aos olhos –, isso corresponde
pura e simplesmente à fase mais empírica do Ser, representado pelas Leis,
em relação à da phrónesis pura, representada pela República. Assim
é, de fato; Platão é o criador do conceito de teologia, e a obra em que pela
primeira vez na História universal aparece esse conceito revolucionário é a República,
onde, com vistas a aplicar à educação o conhecimento de Deus (concebido como
bem), são traçadas as linhas fundamentais da Teologia92. A Teologia,
isto é, o estudo dos problemas supremos pela inteligência filosófica, é um
produto especificamente grego. É um fruto da suprema audácia do espírito, e os
discípulos de Platão bateram-se contra o preconceito pan-helênico, na realidade
um preconceito popular, segundo o qual a inveja dos deuses negava ao Homem a
possibilidade de compreender essas coisas tão elevadas. Não eram apoiados na
autoridade de uma revelação divina, na posse da qual se julgassem encontrar, que
lutavam contra ele, mas sim em nome do conhecimento da ideia do Bem, que Platão
lhes ensinara e cuja essência é a total ausência de inveja93.
A Teologia aparece aqui como uma fase mais
elevada e mais pura do espírito, em face de tudo o que seja uma religião, quer
dizer, em face da adoração dos deuses pela massa, baseada em representações
míticas da fé. Sobre ela, numa fase primitiva da cultura humana, erigira-se a
ordem do Estado. Embora já minada pelas dúvidas da inteligência, a piedade era
ainda considerada, no tempo de Platão, uma das virtudes cívicas cardeais da
cidade-Estado. É nessa tradição político-religiosa que Platão a recolhe,
juntamente com as outras três virtudes. Desde as primeiras obras ela é objeto
do seu interesse filosófico. Pouco depois da morte de Sócrates, dedica-lhe um
diálogo especial, o Eutífron. Neste, vemos já como o conceito
tradicional da piedade é medido pela pauta socrática do Bem, a qual serve para
medir todas as coisas, tanto as da Terra como as do céu94. Não é sem
razão que o Eutífron é a obra platônica onde se exprime pela primeira vez
o conceito da “ideia”95. Na República, a eusébeiá aparece
na primeira fase da paideía, na educação dos “guardiões”, como uma das
“chamadas virtudes”96. Essa virtude desaparece, ao chegar à fase
superior do Ser, que é a cultura filosófica dos governantes. Juntamente com as
outras três virtudes é aqui absorvida pela superior unidade da sabedoria,
a qual é de per si uma parte divina da alma, que conhece o divino na sua forma
pura como ideia do Bem97. Ao chegar a essa fase, a piedade popular cede
o lugar à forma filosófica da religiosidade, tal qual a plasmaram os gregos: à
Teologia, erigida agora em princípio do Estado. Podemos muito bem adotar o
título de Espinosa e chamar à República – a obra fundamental de Platão,
na qual se assentam as bases ideais da paideía – Tractatus
Theologico-Politicus. O Helenismo, apesar de o seu Estado encontrar-se
intimamente relacionado com a religião, nunca chegou a conhecer um Governo teocrático
baseado em dogmas. Mas o Estado platônico representa na Grécia um digníssimo
ideal paralelo à teocracia sacerdotal do Oriente: a audaciosa imagem de um
reinado dos filósofos, baseado na capacidade do espírito investigador do Homem para
conseguir conhecer o Bem divino. Embora Platão sentisse o seu Estado como pólis
grega, já acima apontamos que a helenidade foi apenas o material excelente
que lhe serviu para a construção da sua república98. À medida que a
ideia divina do Bem se exprime através dessa matéria como princípio que serve
para a modelar, expande-se no Estado grego o elemento racional ativo que se
revela logo desde o aparecimento da ideia do Estado de direito, e que tende
para o absoluto, para a suprema universalidade. O seu símbolo visível é a
comparação do Bem com o Sol, que ilumina todo o universo.”
82. Teeteto, 176 E. Essa passagem fala
de dois “paradigmas implícitos no existente” e contraditórios, um divino e
outro não divino (o bom e o mau), o primeiro dos quais é o da suprema
felicidade e o outro o do infortúnio supremo. Isso lembra a passagem de Rep.,
472 C, onde Platão opõe como modelo (παραδει¿γματος εàνεκα) a ideia da justiça
e do perfeito justo à ideia da injustiça e do perfeito injusto. Já mais acima
(veja-se nota 49) fazíamos notar que o conceito da areté como
“semelhança de Deus”, com que deparamos na passagem do Teeteto, já
aparece também na República (613 B).
83. Rep., 511 B: τηìν τουª μαντοςì
α¹ρχη¿ν.
84. Leis, 716 C.
85. Fédon, 96 A 55, 99 A 55.
86. ARISTÓTELES, Metaf., A 3, 984 B
855. e A 6, 987 b 1.
87. Cf. a minha obra Aristóteles, p.
130, e ainda o estudo “Aristotle’s Verses in Praise of Plato”, em Classical
Quartely, t. XXI (1927), pp. 13 ss., onde mostro com todo detalhe que a
posição que Aristóteles, nessa poesia, atribui ao seu mestre só pode ser
comparada à do fundador de uma religião.
88. ARISTÓTELES, Metaf., E 1, 1026 a
19. Cf. sobre isso a minha obra Aristóteles, pp. 161 s.
89. A Epínomis trata, em primeiro
lugar, dos chamados “deuses visíveis” do Timeu e das Leis – os
deuses-astros. A característica do Deus que é tema da teologia das Leis é
a de Deus como a causa da mudança e do movimento.
90. DIÓGENES LAÉRCIO, III, 37. Não citamos
aqui a bibliografia sobre o problema da autenticidade da Epínomis. Cf.,
adiante, livro IV.
91. Cf. Timeu, 40 D.
92. Rep., 379 A.
93. Epínomis, 988 A; ARISTÓTELES, Metaf.,
A 2, 982 b 28-983 a 11. Et. Nic., X 7, 1177 b 30-33.
94. Eutífron, 11 E. Cf. também a
alternativa flagrantemente formulada em 10 A: o objeto da piedade (οàσιον) é
amado pelos deuses por causa do seu próprio valor, ou é objeto de piedade
(simplesmente) por ser amado pelos deuses? O problema gira em torno da
equiparação do divino com aquilo que é bom.
95. Eutífron, 6 D.
96. Cf., acima, pp. 783 ss.
97. Cf., acima, nota 30.
98. Cf., acima, pp. 832-4.
“Por mais sedutoras que sejam as cores com
que Platão e Aristóteles pintam a vida do conhecimento puro, essa vida continua
a ter relação com a prática, de acordo com a ideia, e é essa relação que a
justifica. É precisamente no momento da sua tensão máxima que o sentido político
originário de toda a paideía grega triunfa no conteúdo ético e
espiritual que Platão lhe infunde de novo. Reservam-se para determinação mais
detalhada o como e o quando desse dever, mas como princípio deixam-se logo
afirmados de antemão: o filósofo deve descer outra vez à caverna103.
Deve combinar-se a persuasão e a coação para movê-lo a ajudar os que com ele
partilharam o cativeiro. É esse forte sentimento de responsabilidade social que
distingue da filosofia dos pensadores pré-socráticos o ideal platônico da
suprema cultura espiritual. O paradoxo histórico é que esses sábios, mais
preocupados com o conhecimento da natureza do que com o Homem, tiveram uma ação
política prática mais intensa do que Platão, apesar de todo o pensamento deste
girar em torno dos problemas práticos104. No seu sentido pleno, o
dever de atuar perante a coletividade, bem como a possibilidade da educação e
atuação dos filósofos como estadistas, só existe para Platão dentro do Estado
ideal. Não sente nenhum dever de gratidão ativa para com o Estado degenerado da
realidade, porque, embora também nele possam nascer filósofos, não é pelo fato
de a opinião pública ou os órgãos desse Estado os estimularem que eles nascem
lá105. Em contrapartida, é isso que acontece no Estado perfeito.
Aqui o filósofo deve à comunidade a sua paideía e com ela o seu ser
espiritual, o que o obriga a reembolsá-la do que ela “inverteu para o educar”.
Ainda que contra a vontade, não terá outro remédio senão aceitar, por motivos
de gratidão, a missão que lhe é confiada e consagrar ao Estado o melhor das
suas forças. Por conseguinte, sempre se reconhecerá o Estado ideal por nele não
governarem os ambiciosos de poder, mas antes precisamente aqueles que menos
desejo têm de exercê-lo106.”
102. Rep., 519 C 5. Cf. 540 B, onde,
no entanto, “ir para as Ilhas dos Bem-Aventurados e morar lá” significa a
verdadeira separação do filósofo deste mundo, e a sua vida depois da morte. É a
vida do herói que, uma vez cumprida a sua obra, desfruta a bem-aventurança
nesse lugar escolhido. Num sentido análogo, Górg., 526 C. Em Rep.,
519 C 5, a imagem religiosa significa, em vez disso, o θεωρητικο¿ς βι¿ος, a
atividade contemplativa do espírito filosófico “nesta vida”, sentido que
Aristóteles recolheu. Cf. o meu Aristóteles, p. 120. A imagem palpita
ainda, de modo sensível, na descrição da bem-aventurança da vida contemplativa
que se faz na Ética a nicomaqueia, X, 7.
102a. Cf. o meu Aristóteles, pp. 91 s.
103. Rep., 519 D-520 A.
104. Cf. o meu estudo “Ueber Ursprung und
Kreislauf des philosophischen Lebensideals”, em Berichte der Berliner
Akademie, 1928, p. 414. Demonstra-se nesse estudo que uma parte dos antigos
historiadores da Filosofia apresentava os pensadores mais antigos precisamente
como modelos da devida associação da ação e da ideia, ao passo que os filósofos
posteriores se foram consagrando cada vez mais à teoria pura.
105. Rep., 520 B. Como temos chamado a
atenção já várias vezes, nos Estados gregos do século IV não se vela
publicamente pela cultura superior. Cf. ARISTÓTELES, Et. Nic., X, 10,
1180 a 26, que diz que quanto à educação e à cultura reina, contudo, na maioria
das cidades, o primitivo Estado ciclópico em que cada qual dirige por sua conta
a sua mulher e filhos. No Críton, Sócrates expressava um sentimento de
profunda dedicação para com o Estado ateniense pela educação que tinha recebido
sob a proteção das suas leis. Se essa foi verdadeiramente a atitude do Sócrates
histórico, a posição de Platão na República, que é completamente oposta,
torna-se ainda mais significativa.
106. Rep., 519A-D, 521 B.
“O caráter (τρο¿πος) da dialética só se pode determinar se for relacionado
com os demais tipos do saber humano. Há várias maneiras de abordar
metodicamente o problema, quando se quer chegar a compreender as coisas e a sua
essência. As chamadas tékhnai, ou disciplinas empíricas, têm relação com
as opiniões e os anseios dos homens e servem para produzir algum objeto ou para
cuidar (θεραπει¿α) do que provém da natureza ou é criado pelo artifício do
Homem164. De certo modo, as disciplinas matemáticas já se aproximam
mais do verdadeiro Ser, mas só o alcançam como em sonhos; são incapazes de
vê-lo acordadas. Como já se disse, partem de hipóteses que são incapazes de
justificar. Por conseguinte, o seu “princípio” é algo que elas ignoram, e assim
tudo o mais que faz parte das matemáticas está “entretecido” de um certo quê de
ignorância. É indubitável que tal aproximação (ο¸μολογι¿α) não pode a rigor ser
chamada saber (ε¹πιστη¿μη), apesar de a linguagem usual nos ter habituado a
esta palavra165. A dialética é a ciência que “revoga” as premissas
de todos os demais tipos do saber e dirige lentamente para o alto os olhos
da alma, mergulhados nos pântanos da barbárie, para o que se serve das
matemáticas como instrumento auxiliar166. Assim, é o seguinte o
sentido da proporção entre as fases do Ser e do conhecer, com as quais Platão
ilustrava anteriormente esse objetivo da sua paideía: o pensamento está
para as opiniões como o Ser está para o devir; e o verdadeiro saber
(ε¹πιστη¿μη) e a inteligência matemática têm para com a simples evidência
transmitida pelos sentidos (πι¿στις) e para com as sombras dos objetos visíveis,
respectivamente, a mesma relação que o pensamento tem para com as opiniões167.
Em outras palavras, o saber conferido pela dialética é tão superior ao “saber”
matemático, quanto ao conteúdo do Ser, como as coisas reais do mundo visível o
são quanto as suas sombras ou imagens refletidas. Por conseguinte, o dialético
é o homem que compreende a essência de cada coisa e sabe dar conta dela168.
E, do mesmo modo, deve estar em condições de discernir (α¹ϕελειν) a Ideia do Bem dentre tudo o mais,
isto é, de separar o “Bem-em-si” das diversas coisas, pessoas, atos, etc. que
chamamos boas e de o delimitar por meio do lógos, rompendo caminho através
de todas as refutações como numa batalha, e aguentando-se valentemente em pé,
sem que o seu pensamento se extravie, até o combate findar169. A
verdadeira força dessa paideía que ensina a perguntar e a responder
cientificamente170 é o perfeito estado de vigilância que instala
na consciência. É por isso que Platão a considera a cultura própria dos
“guardiões” no sentido superior dessa palavra, quer dizer, como a cultura
própria dos governantes. O nome de “guardiões” – em si estranho –, dado por
Platão à classe dominante, foi escolhido, ao que parece, na previsão da virtude
filosófica desse supremo estado de vigilância espiritual em que se trata de
educá-los171. O nome de “guardiões”, que a princípio se dava à
totalidade do escalão dos guerreiros, limita-se, no decurso da seleção, aos
governantes172; e é esse punhado de homens que participa da educação
superior. Quem não a possui não faz mais do que sonhar a sua vida, e antes de
despertar nesta vida já entrou no sono eterno do Hades173. Dentro do
sistema das ciências, a dialética é a fronteira (θριγκο¿ς) que delimita o saber
humano por cima e exclui a possibilidade de acrescentar outro saber superior a
ela174. O conhecimento do sentido é a meta final do conhecimento do
Ser.”
164. Rep., 533 B 1-6.
165. Rep., 533 B 6-C 5. Cf., acima,
pp. 887 ss.
166. Rep., 533 C-D.
167. Rep., 534. A.
168. Rep., 534 B.
169. Rep., 534 B 8-C.
170. Rep., 534 D 8-10.
171. Rep., 534 C 6.
172. Rep., 413 B. Cf. 412 C.
173. Rep., 534 C 7.
174. Rep., 534 E.
“O contrário de um Estado normal é a variedade das formas anômalas do
Estado. A sua investigação requer outro método, um método meio racional meio
empírico, que mais tarde servirá a Aristóteles de ponto de apoio para
prosseguir na elaboração dos elementos empíricos contidos no platonismo. O fato
de ser precisamente essa parte da política platônica que Aristóteles desenvolve
demonstra suficientemente até que ponto é fecunda essa mescla de ideia e
realidade com que Platão opera. No entanto, o desenvolvimento aristotélico só
em parte esclarece a intenção que move Platão, quando este traça a teoria das
formas degeneradas do Estado. A teoria platônica das formas do Estado não é
primordialmente uma teoria constitucional; tal como a sua teoria do Estado
perfeito, é sobretudo uma teoria do Homem. Com base no paralelismo entre o
Estado e o Homem, o qual transparece ao longo de toda a obra, e de acordo com
as formas estatais da timocracia, da oligarquia, da democracia e da tirania, Platão
distingue um tipo de homem timocrático, oligárquico, democrático e tirânico; e
entre esses tipos de Homem, tal como entre as diversas formas de Estado,
estabelece diferentes graus de valor, até chegar ao tirano, último grau da
escala e reverso do homem justo236. Todavia, assim como no Estado
perfeito não existe apenas uma relação de extremo paralelismo entre o Estado e
o Homem, mas o Estado não é senão a superfície límpida na qual se projetará a
imagem do homem justo, igual a ele, também nas demais formas do Estado este não
é, em si, nada sem o Homem. Quando se fala do variado “espírito das
constituições”, subentende-se que a fonte desse espírito é o éthos do
tipo de homem criado a partir de dentro pela forma de Estado que lhe está
adequada237. Isso não impede que, uma vez estruturada, a forma da
comunidade humana imprima por sua vez o seu caráter nos indivíduos que vivem
dentro dela. Mas o fato de ser possível, como a experiência histórica ensina,
sair desse círculo estritamente delimitado e passar a outra forma de Estado,
quer dizer que a causa disso não se deve procurar em nenhum tipo de
circunstâncias exteriores, mas antes no interior do Homem, que muda a sua
“estrutura anímica” (καασκευηì ψυχηªς)238. Encarada por esse prisma,
a teoria platônica das formas de Estado representa uma patologia da
personalidade humana. Quem vir na héxis normal do Homem um produto da
cultura adequada239 tem logicamente que imputar à educação a culpa
que lhe cabe em cada um dos desvios surgidos em relação à norma. Mesmo que todos
os habitantes de um Estado se desviem da norma num sentido determinado, não é
na natureza, que por si pende para o bem, mas na educação, que se deverá
procurar a causa do mal. Por conseguinte, a teoria das formas do Estado deve
ser considerada ao mesmo tempo uma patologia da educação240.”
236. Rep., 544 D-545 A.
237. Rep., 544 D.
238. Rep., 544 E 5.
239. Rep., 443 E 6, 444 E 1.
240. Este ponto de vista domina a
interpretação que segue no texto. Diremos já aqui que, na maioria dos casos, os
expositores não o têm na devida conta.
“Platão justificara a sua minuciosa exposição das diversas formas de
Estado e dos diversos tipos de homem correspondentes a elas alegando que a
verdadeira finalidade do diálogo era saber se a justiça representava um bem em
si mesma e a injustiça um mal382. O seu propósito é demonstrar que o
homem perfeitamente justo, isto é, o homem que segundo a definição dada acima
está na posse da areté perfeita383, possui também a
verdadeira felicidade e que, em contrapartida, o homem injusto é desgraçado. Com
efeito, segundo a interpretação platônica, é este o verdadeiro sentido da
palavra eudaimonía: não quer dizer que o Homem goza de bem-estar
exterior, mas que tem realmente, como a palavra indica, um bom daímon.
Esse conceito religioso era um conceito
suscetível de mudanças e aprofundamento infinitos. Daímon é o deus na
sua ação e significado voltados para o Homem. Para a massa, o homem que “tem um
bom daímon” é o que foi abençoado com bens abundantes e é feliz nesse
sentido. A acepção grega comum da palavra aparece magnificamente caracterizada,
no momento em que no drama de Ésquilo o rei dos persas põe frivolamente em jogo
o seu velho daímon para alcançar novo poder e maior riqueza384.
Apresenta aqui ao mesmo tempo o conteúdo material e o autêntico sentido
original de favor dos deuses. Embora na mentalidade do século IV vá adquirindo
força cada vez maior, ou predomine até de modo exclusivo, o sentido material da
eudaimonía385, essa palavra, que recorda a origem do daímon,
é de per si suscetível a todo instante de voltar a ligar-se com a concepção
religiosa que lhe serve de base. O conceito do daímon, como tal,
desenvolvera-se havia muito tempo, até adquirir um significado mais interior,
independentemente da acepção especial de eudaimonía, que àquela época
lhe era muito frequentemente ligada. Daí ele apresentar para nós um sentido
mais familiar na frase de Heráclito: o caráter (ηθος) é o daímon do
Homem. O daímon não é aqui algo que viva fora do Homem, mas a
relação que aparece estabelecida entre o divino e sua ação, e o Homem como
agente do destino faz com que esse destino forme uma unidade com a essência interior
daquele e com os seus condicionalismos especiais. Não há grande distância entre
isso e a ideia platônica de que é a areté moral interior do Homem, a “personalidade”,
como hoje dizemos, a fonte única da sua eudaimonía; ou, para exprimi-lo
com a frase com que Aristóteles, na sua elegia do altar, resume a doutrina de
Platão, é só a areté, isto é, o valor interior próprio, que torna o
Homem feliz386.”
377. Rep., 578 B 6-C.
378. Górg., 466 B-468 E. Cf., acima,
pp. 662 ss.
379. Rep., 567 B.
380. Rep., 579 D-E.
381. Rep., 578 E-579 D.
382. Rep., 544 A.
383. Rep., 443 C-444 A.
384. ÉSQUILO, Os persas, 852. Cf. p.
280.
385. Assim, por exemplo, na expressão πο¿λις
μεγα¿λη καιì ευ¹δαι¿μωγ, frequente em Xenofonte e em outros autores.
386. Cf. o meu Aristóteles, p. 127.
“O ataque de Platão é dirigido principalmente
contra a poesia imitativa. Mas o que é a imitação? Platão esclarece-o pelo processo
habitual, partindo da hipótese das ideias17, que designam a unidade
na pluralidade, operada no pensamento. As coisas que os sentidos nos transmitem
são reflexos das ideias, isto é, as cadeiras ou as mesas são reflexos ou
imitações da ideia de cadeira ou de mesa, que é sempre única. O carpinteiro
cria os seus produtos, tendo presente a ideia, como modelo. O que ele produz é
a mesa ou a cadeira, não a sua ideia18. Uma terceira fase da
realidade, além das da ideia e da coisa transmitida pelos sentidos, é a que
representa o produto da arte pictórica, quando um pintor pinta um objeto19.
É precisamente com essa fase que Platão compara a relação que existe entre a
poesia e a verdade e entre a poesia e o Ser. O pintor toma como modelo as mesas
ou as cadeiras perceptíveis aos sentidos feitas pelo carpinteiro, e imita-as no
seu quadro. Tal como alguém que pretendesse criar um segundo mundo, colocando a
imagem deste no espelho, assim o pintor se limita a traçar a simples imagem
refletida das coisas e da sua realidade aparente20. Portanto,
encarado como criador de mesas e cadeiras, é inferior ao carpinteiro, que
fabrica mesas e cadeiras de verdade. E o carpinteiro é, por seu turno, inferior
a quem criou a ideia eterna da mesa ou da cadeira, a qual serve de modelo para
fabricar todas as mesas e cadeiras do mundo. É Deus o criador último da ideia21.
O artífice produz só o reflexo da ideia. O pintor é, assim, o criador imitativo
de um produto que, à luz da verdade, ocupa o terceiro lugar. O poeta pertence à
mesma categoria: cria um mundo de mera aparência22.”
14. Rep., 595 A 5.
15. Rep., 592 A 11-B.
16. Rep., 595 B 6.
17. Rep., 595 C ss.
18. Rep., 596 B.
19. Rep., 596 E-597 B.
20. Rep., 596 D.
21. Rep., 597 etg B-D.
22. Rep., 597 D-E. Cf. 599 A, 599 D 2.
“Para Platão, o Estado perfeito significa
apenas o círculo de vida ideal onde a personalidade humana se pode desenvolver livremente,
de acordo com a lei moral que lhe é inata, e desse modo realizar ao mesmo tempo
dentro de si própria a finalidade do Estado48. Segundo Platão, isso
não é possível em nenhum dos Estados existentes. Em todos eles surgem
inevitavelmente certos conflitos entre o espírito do Estado e o éthos do
homem que na sua alma alberga o “Estado perfeito” e se esforça por viver de
acordo com ele, o éthos do homem perfeitamente justo49. Se
encararmos o Estado platônico por esse prisma, veremos que ele não é tanto um
projeto orientado para a reforma prática do Estado, como uma construção social,
que submete todas as outras considerações da paideía à formação da
personalidade moral e espiritual. Tudo nele tende para a felicidade do Homem; porém
não assenta nos seus desejos ou critérios individualistas, mas sim na saúde
interior da alma, que é a justiça. No final do livro IX, Platão reparte os
prêmios entre os representantes dos diversos tipos de alma e forma de vida
declarando o homem justo o único verdadeiramente feliz. Com isso respondia ao
mesmo tempo à pergunta de Gláucon que servira de ponto de partida ao diálogo
fundamental: a de se a justiça em si, independentemente do seu reconhecimento
social, podia tornar os homens felizes50. Sem embargo, nem sequer
isso constitui a última palavra acerca do seu valor e da paideía que
conduz a essa meta. O troféu dessa luta é mais alto, e o valor aqui em jogo,
superior a qualquer um dos fins suscetíveis de serem alcançados no breve
período que a vida de um homem abarca51. Não é através do tempo, mas
da eternidade, que devemos contemplar o ser da alma. Trata-se da sua salvação
perpétua neste mundo e no outro. Se a vida terrena do justo é um único e
incessante processo da educação para o verdadeiro Estado, que vive como as
ideias no céu52, toda a educação é, por sua vez, uma preparação para
um estado superior da alma, em que ela já não existe sob a forma complexa de um
monstro de muitas cabeças, de um leão ou de um homem, mas sim na sua forma
pura.”
47. Cf. Rep., 607 E-608 B.
Temos de atentar nesta frase η¸ τοιαυ¿τη ποι¿ησις, que aparece duas vezes e que
significa: toda a poesia desse gênero (mimética): fica assim aberta a porta a
outros tipos de poesia. Cf. 607 A 4. Uma referência renovada ao “Estado em
nós”, como meta e norma por que se deverá medir a admissibilidade da poesia,
vem em 608 B 1, como já vinha antes em 605 B 7.
48. Cf., acima, pp. 981 ss.
49. Cf. Rep., 591 E-592 B.
50. Rep., 488 B ss.
51. Rep., 608 C.
52. Rep., 592 B: O verdadeiro Estado
existe no céu, como paradigma.
“O único saber com valor é saber escolher,
pois dá ao Homem a capacidade de adotar a verdadeira decisão. É esse o sentido do
mito, que o próprio Platão explica. O grande risco por todos corrido é a
escolha do destino da vida, que para o filósofo é sinônimo de forma de vida ou
de ideal de vida. É por isso que ele deve se esforçar por adquirir o saber que
o habilita a realizar essa escolha, sem se preocupar com nenhuma outra coisa73.
Esse ponto de vista esclarece definitivamente o que é a paideía. A
extraordinária seriedade com que Platão concebe esse problema e o converte no
único assunto que verdadeiramente domina toda a existência do Homem exprime-se
na exigência de o Homem se preparar com todas as suas forças nesta vida para
poder realizar a escolha que terá de fazer na outra, quando, após uma
peregrinação milenar, se dispuser a descer à Terra novamente, a fim de viver
uma vida superior ou inferior74. Agora não é um ser livre no pleno
sentido da palavra, principalmente se as suas antigas culpas lhe embaraçam a
subida. Não obstante, porém, pode trabalhar na obra da sua libertação, sempre
que lutar para seguir a via ascendente75. Se o Homem se esforçar
por caminhar sempre para cima, a sua libertação consumar-se-á numa outra
vida.”
72. Rep., 620 C.
73. Rep., 618 B.
74. Rep., 615 A, 621 D.
75. Rep., 621 C 5.
XXXXXXXXXXXXXXXXX
Livro IV
“Em todo lado e em todas as épocas houve
médicos, mas a Medicina grega só se tornou uma arte consciente e metódica sob a
ação da filosofia jônica da natureza. E de modo nenhum deve obnubilar a
consciência desse fato a atitude nitidamente antifilosófica da escola de
Hipócrates, em cujas obras a Medicina grega nos vem ao encontro pela primeira
vez6. A Medicina jamais teria conseguido chegar a ciência sem as
investigações dos primeiros filósofos jônicos da natureza, que procuravam uma explicação
natural para todos os fenômenos, sem a sua tendência a reduzir todo efeito a
uma causa e a comprovar na relação de causa a efeito a existência de uma ordem
geral e necessária, e sem a sua fé inquebrantável em chegarem a descobrir a
chave de todos os mistérios do mundo, pela observação imparcial das coisas e a
força do conhecimento racional. Há um certo tempo podemos consultar os
apontamentos do colégio de médicos da corte dos faraós egípcios, que são do
século III a.C.: é com assombro e admiração que neles vemos o alto grau de
capacidade de observação que aqueles médicos já possuíam e que de vez em quando
verificamos certas tentativas notáveis de generalizações teóricas e de raciocínios
causais7. Não podemos deixar de interrogar-nos: por que uma Medicina
tão desenvolvida como aquela não chegou a tornar-se uma ciência tal como nós a
concebemos? Aos médicos egípcios não faltava por certo especialização, muito
acentuada entre eles, nem empirismo. A solução do enigma não pode ser mais
simples: reside pura e simplesmente no fato de aqueles homens não terem do
conjunto da natureza o ponto de vista filosófico que os jônios tinham. Sabemos hoje
que a Medicina egípcia já era bastante forte para superar a fase de magia e de
bruxaria que a metrópole grega ainda conheceu no mundo arcaico que rodeava
Píndaro. Mas foram os médicos gregos, disciplinados pelo conceito de lei dos
filósofos seus precursores, os primeiros a serem capazes de criar um sistema
teórico que pudesse servir de base de sustentação a um movimento científico.”
6. Cf. adiante, pp. 699 ss. Anteriormente, ao
contrário, era de Tales que se fazia partir a história da Medicina grega, de
acordo com a teoria de CELSO (I Proem., 6), segundo a qual a filosofia
onicientífica abarcava primitivamente todas as ciências. Isso é uma construção
histórica romântica da época helenística. Nos seus inícios, a Medicina era uma
arte puramente prática, ainda que fortemente atraída pela nova concepção da
natureza dos investigadores jônicos. A literatura médica dos gregos chegada até
nós parte da reação gerada contra essa influência.
7. Cf. J. H. BREASTED, The Edwin Smith
Surgical Papyrus publisched in Facsimile and Hieroglyphic Transliteration with
Translation and Commentary (2 vols., Chicago, 1930). Cf. Abel REY, La
Science Orientale avant les Grecs (Paris, 1930), pp. 314 ss. Sobre a
literatura acerca do caráter científico dessa fase da Medicina, cf. MEYERHOF,
“Ueber den Papyrus Edwin Smith, das älteste chirurgiebuch der Welt” in
Deutsche Zeitschrift für Chirurgie, t. 231 (1931), pp. 645-90.
“A maioria dos médicos assemelha-se aos maus navegantes:
quando o tempo é bom ou razoável não se veem os seus erros de navegação; mas
quando os surpreende uma tempestade rija fica patente a todos a sua
incapacidade.”
“A vida é breve, a arte longa, a ocasião
fugidia, a experimentação arriscada, e o juízo difícil.”
(Frase inicial do Livro
dos Aforismos, de Hipócrates)
“Quando Platão compara a ciência médica à Filosofia, é baseado sobretudo
no caráter normativo daquela que ele o faz. Põe por isso o navegante ao lado do
médico, como exemplo desse tipo de saber, e outro tanto faz Aristóteles. Ambos
tiram essa comparação da obra Da medicina antiga, que é a primeira a
usá-la em relação ao problema de que nos ocupamos57. Mas, enquanto Platão,
ao recolher esta imagem, pensa antes no conhecimento da norma como tal, em
Aristóteles é em outro sentido que o médico é tomado como modelo. Um dos
maiores problemas da ética aristotélica é saber como é que a norma, tendo
embora caráter universal, se pode aplicar à vida do indivíduo e ao caso concreto
que momentaneamente parece furtar-se a qualquer regra universal. Isso tem
importância decisiva principalmente no que se refere à educação. Por isso é que
Aristóteles distingue essencialmente entre a educação individual e a coletiva,
apoiando-se para isso no exemplo da Medicina58. Mas a Medicina
também ajuda o filósofo a resolver o problema de saber como o indivíduo irá
encontrar a verdadeira pauta da sua conduta, ensinando-o a descobrir o
comportamento moral adequado ao justo meio entre o excesso e o defeito, por
analogia com uma dieta física saudável.
Para melhor se compreenderem essas
expressões, bastará lembrar que para Aristóteles a ética versa sobre a
regulação dos impulsos humanos do prazer e da dor. Já Platão aplicara os
conceitos médicos de plenitude e vazio à teoria das sensações de prazer e as
incluíra no gênero em que há um mais e um menos, que precisa ser
regulado59. Aristóteles define esse critério como o do justo meio;
não o concebe, porém, como um ponto matemático fixo entre os extremos nem como
o centro absoluto da escala, mas sim como o meio justo para o indivíduo de cuja
conduta se trata. Por conseguinte, o comportamento moral é a tendência a concentrar-se
no justo meio que para cada qual existe entre o excesso e o defeito60.
Os termos aqui usados por Aristóteles, o conceito de excesso e de defeito, de
ponto médio e de justa medida, o de visar οτοχα¿ζεσθαι e o do tato seguro (αÓισθησις),
a recusa de uma regra absoluta e a exigência de uma norma adequada às
características de cada caso concreto, são tudo termos e critérios tirados
diretamente da Medicina, e certamente serviu-lhe até de modelo a obra Da
medicina antiga61.”
57. Por exemplo, PLATÃO, Rep., 299 C;
ARISTÓTELES, Et. Nic., II, 2, 1104 a 9; III, 5, 1112 b 5 e De Vet.
Med., 9, segunda metade.
58. Cf. ARISTÓTELES, Et. Nic.,
X, 10, 1180 b 7.
59. PLATÃO, Fil., 34 E-35 B ss.
60. ARISTÓTELES, Et. Nic., II,
5, 1106 a 26-32; b 27. Cf. De Vet. Med., 9, citado acima, nota 39 deste
cap.
61. Ecos da passagem De Vet. Med., 9,
encontramo-los também na literatura médica do século IV; cf. Díocles de
Caristo, frag. 138 (ed. Wellmann) e a polêmica que figura na obra Da dieta,
I, 2 (ed. Littré, t. VI, p. 470, segunda metade). O autor discute a
possibilidade de adaptar com exatidão a regra geral à natureza individual do
paciente. E vê aqui a inevitável falha de toda a arte da medicina.
“De nada serviria ao nosso propósito examinar com igual minúcia o
conteúdo e o caráter da Medicina dos gregos. Grande parte dela está constituída
por simples pormenores de tipo profissional, que não têm interesse direto para
o fim que temos em vista. Todavia, além do que anteriormente dissemos, a
Medicina dos séculos V e IV traz para o grande processo espiritual da formação do
homem helênico uma contribuição direta cuja importância a ciência médica
moderna só de há pouco tempo a essa parte reconheceu e explorou: a doutrina
referente à conservação da saúde do Homem. É essa a verdadeira criação do
espírito hipocrático em matéria de educação. Para o compreendermos, temos de
projetá-la sobre o fundo da imagem total da natureza, traçada pelas obras de
ciência médica daquele tempo. Como vimos mais acima, o conceito de natureza é
um conceito onipresente no pensamento dos médicos gregos. Qual era, porém, o
seu conteúdo concreto? Como é que o espírito investigador da escola hipocrática
concebia a ação do que se chamava phýsis? Ainda não se fez até hoje
nenhuma tentativa sistemática para definir o conceito de natureza na antiga
literatura médica dos gregos, apesar da importância que isso teria para toda a
história do espírito no mundo de então e na posteridade. O verdadeiro médico
surge sempre como o homem que nunca separa a parte do todo, mas sempre a encara
nas suas relações de interdependência com o conjunto. E de novo podemos tomar
como ponto de referência o juízo emitido no Fedro sobre Hipócrates63.
Com as suas palavras, Platão tem em mente o que nós denominamos a concepção
orgânica da natureza. Com a sua referência ao método da Medicina, propõe-se pôr
em relevo a necessidade de em todos os campos se compreender, primeiro que
tudo, com exatidão, a função da parte no todo, determinando assim o que é mais
adequado ao tratamento da parte. E a Medicina é precisamente a ciência que
serve de modelo a esse método de investigação. Platão censura no Fédon a
antiga filosofia da natureza64, por não ter tido em conta o fator,
imanente no cosmo, da adequação a um fim, fator relacionado da forma mais
estreita com o método orgânico de investigação. O que nos filósofos da natureza
faltava encontrava-o ele na ciência médica.”
63. PLATÃO, Fedro, 270 C-D. Cf.,
acima, pp. 1039-40.
64. PLATÃO, Fédon, 96 A ss.
“Com efeito, a paideía é aqui concebida como uma disciplina e uma
domesticação puramente exteriores, ao passo que na concepção hipocrática a paideía
tem já o seu caminhar inconsciente e espontâneo na própria natureza e na
sua ação teleológica. Esse ponto de vista espiritualiza o natural e naturaliza
o espiritual. É dessa raiz que brota o uso genial de analogias espirituais para
explicar o físico e de analogias materiais para interpretar o espiritual. É
valendo-se de tais analogias que o autor do livro Das epidemias cunha
expressões tão lapidares e impressionantes como esta: O esforço físico é alimento
para os membros e para os músculos, o sono o é para as entranhas. Pensar é para
o Homem o passeio da alma82.
À luz dessa imagem da natureza como força espontânea
e inconscientemente teleológica, podemos compreender a tese do autor da obra Da
dieta: A natureza basta a todos em todas as coisas83. Mas,
assim como o médico facilita com a sua arte a obra da natureza, quando se
altera o equilíbrio dela, também é essa mesma concepção que incute a esse autor
o dever de prevenir o perigo que espreita e de velar pela conservação do estado
normal. O médico antigo, como o moderno ainda até há poucas décadas, era mais
médico de sãos do que de enfermos. Essa parte da Medicina resume-se sob o nome
de higiene (ταì υ¸γυει¿α). Os cuidados da higiene incidem sobre a dieta. Os
gregos entendem por dieta não só a regulamentação dos alimentos do
enfermo, mas também todo o regime de vida do Homem e especialmente a ordenação
dos alimentos e dos esforços impostos ao organismo. Nesse aspecto, o ponto de
vista teleológico em relação ao organismo humano devia impor ao médico uma
grande missão educativa. A sanidade antiga só em muito pequena parte era incumbência
pública; fundamentalmente, dependia do nível cultural do indivíduo, do seu grau
de consciência, das suas necessidades e dos seus meios. E, como é natural,
estava desde o início relacionada com a ginástica. Esta tinha um lugar
importante nas ocupações do homem grego médio. Baseava-se por seu turno numa
longa experiência higiênica e exigia um constante domínio do corpo e dos seus
atos. É pois explicável que o ginasta, como conselheiro experiente no cuidado
do corpo, fosse o precursor do médico. E nem por sombra foi afastado, quando apareceu
a teoria da dieta, mas conservou sempre a sua posição ao lado daquele. Embora a
Medicina tentasse a princípio invadir o campo da ginástica, as obras dietéticas
que se conservam atestam que não tardou a estabelecer-se uma divisão de
jurisdições, em que o médico se submetia para certas coisas à autoridade do
ginasta.”
82. Epid., VI, 5,5. DIEHGRAEBER, op.
cit. (acima, nota 16 deste cap.), interpreta-o assim: o passeio da alma (pelo
corpo aparece) ao homem (como o) pensamento. Mas ψυχηªς
περι¿πατος ϕροντι¿ς
α¹νθρω¿ποισι não pode significar isso. Também em De Victu, II, 61, o
pensar (με¿ριμνα) se inclui entre os “exercícios”. A nota nova consiste em
tornar os “exercícios” extensivos do corpo à alma.
83. De Alim., 15.
“Platão combina em unidade harmônica as três
virtudes físicas, saúde, beleza e força, com as virtudes da alma, a piedade, a
valentia, a moderação e a justiça. Todas elas proclamam por igual a simetria
“do Universo”, a qual se reflete na vida física e intelectual do Homem. A
cultura física, tal qual os médicos e os ginastas gregos a concebem, é também
algo de espiritual. Incute ao Homem, como norma suprema, a rigorosa observância
do nobre e são equilíbrio das forças físicas. E, como a igualdade e a harmonia
constituem a essência da saúde e de toda a perfeição física em geral, o
conceito de são é ampliado até formar um conceito normativo universal aplicável
ao mundo e a quanto nele vive, visto serem as suas bases, a igualdade e a
harmonia, as potências que, segundo a concepção de que se parte aqui, criam o
que é bom e justo em todos os níveis da vida; e o que o destrói é a pleonexía.
A Medicina grega é simultaneamente raiz e fruto dessa concepção do mundo,
que constitui o seu alvo constante; e, apesar de toda a individualização
espiritual dos homens e das estirpes, é ela a concepção comum ao Helenismo
clássico. Se a Medicina pôde conquistar uma posição tão representativa no
conjunto da cultura grega, foi por ter sabido proclamar no campo mais próximo ao
da experiência imediata do Homem a vigência inviolável dessa ideia fundamental
da alma grega. É nesse elevado sentido que podemos afirmar que o ideal helênico
da cultura humana era o ideal do homem são.”
“Todos os traços característicos do
platonismo que são evidentes para uma inteligência mediana são aqui habilmente
resumidos em pouco espaço: o estranho método polêmico das perguntas e das
respostas; a importância quase mística atribuída à phrónesis, isto é, ao
conhecimento dos valores, qual órgão especial da razão; o vigoroso intelectualismo,
que espera toda salvação do saber, e a quase religiosa transcendência da
promessa de eudaimonía feita pelo filósofo. Isócrates refere-se,
evidentemente, às características terminológicas do novo estilo filosófico, características
que ele sabe captar com a fina intuição do conhecedor da língua para descobrir
o que deverá chocar ou parecer ridículo à maioria das pessoas cultas; e além
disso, ao pôr a virtude total (παªσα α¹ρετη¿), que devia ser a meta do
conhecimento socrático do Bem-em-si41, em paralelo com os
modestos honorários em troca dos quais os filósofos vendem a sua sabedoria, consegue
que o senso comum ponha completamente em dúvida se o que a juventude pode
aprender deles vale realmente muito mais do que o pouco que paga pelo seu ensino.
E, com a desconfiança acerca da honradez dos seus discípulos da qual dão prova
os regulamentos da sua escola, os próprios filósofos demonstram quão pouco
acreditam nessa virtude perfeita que dizem aspirar a realizar nos seus
discípulos. Com efeito, os regulamentos exigem que os honorários sejam de
antemão depositados num banco ateniense42. Sem dúvida essa medida é
muito boa no que toca à sua segurança pessoal; mas como conciliar essa
exigência com a pretensão a educarem os homens na justiça e no domínio de si? É
um argumento que parece de mau gosto mas que não deixa de ser engenhoso. Também
Platão no Górgias argumentava maliciosamente e em termos parecidos
contra os retóricos que se queixavam de que os seus discípulos abusavam da arte
oratória, sem verem que com isso era na realidade a si próprios que acusavam,
pois, se fosse certo que a retórica tornava os discípulos melhores, seria
inconcebível que estes abusassem do que tinham aprendido43. De fato,
o seu caráter amoral era a pior censura que se fazia à retórica. Em várias
passagens das suas obras, Isócrates adere ao critério, defendido por Górgias em
Platão, de que é para o discípulo fazer bom uso dela que o mestre lhe transmite
a sua arte e que, portanto, não deve ser censurado, se o discípulo a utiliza
para maus fins44. Não compartilha, por isso, a crítica de Platão,
mas é com Górgias que se mostra totalmente de acordo. Dando um passo adiante,
porém, ataca aqui os filósofos, procurando provar-lhes que pecam por desconfiança
contra os seus próprios discípulos. É, pois, provável que ele já conhecesse o Górgias
de Platão e se referisse a esse diálogo no seu escrito programático.”
39. Sof., 2.
40. Sof., 2-4.
41. A virtude total opõe-se em Platão
às virtudes concretas, como a justiça, valentia, domínio de si, etc.
Aquela é também designada com o nome de virtude em si (αυ¹τηì η¸
α¹ρετη¿). Era uma expressão um tanto nova e insólita para os tempos de Platão.
42. Sof., 5.
43. Cf. Górg., 456 E-457 C, 460 D-461
A.
44. Em Antíd., 215 ss., Isócrates
procura livrar os mestres de retórica da censura de que os seus discípulos
aprendem deles o mal. Cf. também Nic., 2 ss.
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