Editora: WMF Martins Fontes
ISBN: 978-85-7326-410-4
Tradução: Artur M. Ferreira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 1456
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Sinopse: Ver Parte I
“A posição que Isócrates adota perante o
problema do valor educativo da retórica também é determinada, naturalmente, por
essa concepção da sua essência. Como obra de criação, furta-se nas suas mais
altas realizações à aprendizagem pedagógica. Se apesar disso Isócrates pretende
educar os homens por meio da retórica, é em razão de um critério pessoal acerca
da relação entre os três fatores que, segundo a pedagogia dos sofistas, são a base
de toda a educação: a natureza, o estudo e a prática. As esperanças exageradas
que o entusiasmo geral da época pela cultura e educação tinha despertado em
muitos70 já iam cedendo o passo a uma certa frieza, devida em parte
à crítica de princípios aos limites da educação, no estilo do que Sócrates
fazia71, e em parte porque a experiência havia notado que nem sempre
os que tinham desfrutado da educação sofística eram melhores que os que não
haviam tido acesso a ela72. É com muita cautela que Isócrates se
pronuncia acerca da utilidade da educação. Reconhece que o fator decisivo são
os dons naturais e confessa francamente que as pessoas de talento e sem cultura
chegam frequentemente mais longe que as pessoas cultas, mas sem talento, isso
supondo que se possa realmente falar de cultura sem algo que valha a pena
cultivar. O segundo fator, por ordem de importância, é a experiência, a prática73.
Dá a impressão de que os retóricos, embora reconhecendo, em teoria, a trindade
dos dons naturais, do estudo e da prática, colocavam até então praticamente em
primeiro plano a cultura e o estudo. Isócrates relega modestamente a paideusis
para a terceira posição. Ela pode chegar a grandes resultados, com a ajuda
dos outros fatores, o trabalho e a experiência. Dá aos homens consciência da
sua arte, desenvolve a inventiva e poupa muitos tateamentos e buscas inúteis. Pode
inclusive estimular e desenvolver espiritualmente homens pouco dotados, mas sem
nunca chegar a fazer deles oradores ou escritores eminentes74.”
68. Em Ant., 2, Isócrates compara-se
ao escultor Fídias e aos pintores Zêux e Parrásio, os maiores artistas da
Grécia. Platão procede da mesma forma na República, cf., acima, p. 575.
69. Também PLATÃO, Górg., 502 C,
considera a poesia uma espécie de retórica.
70. Sof., 1.
71. Cf., acima, pp. 844 s.
72. Sof., 1 e 8.
73. Sof., 14.
74. Sof., 15.
“É por isso que a repulsa de Isócrates pelo
amplo “rodeio”97 teórico de Platão cresce à medida que ambos mais
parecem coincidir no tocante ao fim prático da sua educação. Isócrates só
reconhece o caminho direto. A sua educação nada sabe da tensão interior que
existe no espírito de Platão entre a vontade propulsora que o incita a agir e o
retraimento proveniente da longa preparação teórica. É certo que Isócrates está
suficientemente afastado da política cotidiana e dos manejos dos estadistas do
seu tempo para compreender as objeções que Platão formula contra eles. O que
ele, homem do meio-termo, não compreende é a radical exigência ética da
socrática, que se intromete entre os indivíduos e o Estado. Procura melhorar a
vida política por um caminho diferente do da utopia. Sente indubitavelmente a
arraigada repugnância do cidadão culto e abastado contra as selvagens
degenerações tanto do domínio das massas como da tirania dos indivíduos, e tem
um forte senso íntimo da respeitabilidade. Não partilha, porém, o radical
espírito reformador de Platão e nada está mais longe do seu espírito que o
consagrar a vida inteira a tal missão. É por isso que não pode compreender a
imensa força educativa que a atitude de Platão encerra, e lhe mede o valor pela
possibilidade da sua direta aplicação aos problemas políticos concretos que a
ele mesmo preocupam. Esses problemas são a situação interna da Grécia e as
futuras relações dos Estados helênicos entre si, depois da grande guerra (do
Peloponeso). A guerra pusera em evidência que o anterior
estado de coisas era insustentável e urgia abordar uma reconstrução dos Estados
gregos. Quando escrevia a Helena, Isócrates já encetara o seu grande
manifesto, o Panegírico, que demonstraria aos contemporâneos a
capacidade da sua escola para assinalar novos objetivos numa linguagem nova,
não só para a vida moral do indivíduo, mas também para a Nação dos gregos em
conjunto.”
97. Cf., acima, pp. 872 ss., e, adiante, o
cap. “O Fedro”.
“A retórica é, em si, um meio de ação
política. No entanto, para se poder converter em favor de cultura política, é
preciso que evidencie a capacidade de apontar fins à política. Foi no seu
debate com a Filosofia que Isócrates chegou a essa convicção. Com efeito, o que
a crítica platônica ataca mais duramente é a indiferença moral da retórica e o
seu puro formalismo, que dela fazem um mero instrumento para a luta sem
escrúpulos da vida pública. É por isso que Platão sustenta que a Filosofia é a única
retórica verdadeira. Isócrates vê que a superioridade educativa da Filosofia
radica na posse de uma suprema meta moral; mas, como não acredita nem na
legitimidade do monopólio dessa meta nem na idoneidade dos meios pelos quais os
filósofos procuram atingi-la, propõe-se o objetivo de fazer da retórica a
verdadeira educação, dando-lhe como conteúdo as “coisas supremas”1.
Que tenha de ser necessariamente cultura política toda educação que pretenda
ser mais do que uma formação puramente especializada para o exercício de uma
profissão é coisa que lhe oferece tão poucas dúvidas como aos seus
predecessores sofísticos e retóricos, ou a Platão e a Aristóteles. O que
acontece é que a arte retórica ainda não se propôs a grande missão capaz de
libertar as forças educativas que dormitam no seu seio. O responsável por toda
a retórica parecer até hoje algo de artificiosamente amaneirado e vazio é, em
particular, o falso ponto de apoio que lhe foi dado. Os progressos do estilo e
da linguagem não são matéria técnica pura e simples. Em nenhuma parte a
tendência a l’art pour l’art tem menos razão de ser do que na arte da
expressão espiritual. Isócrates insiste constantemente em que tudo depende da
grandeza dos problemas humanos a que se pretenda dar expressão.
O tema da retórica devia ser, ou melhor,
devia continuar a ser a “política”; mas, precisamente naquela época, essa
palavra estava em via de alterar o seu antigo e singelo sentido. O seu significado
etimológico era aquilo que afeta, para bem ou para mal, a pólis. E,
embora esta continuasse sendo o espaço dentro do qual se processava toda a vida
pública, é indubitável que a evolução histórica do século V criara formas novas
e trouxera à luz novas necessidades. A falência do Estado de Péricles colocava um
problema: saber se Atenas, depois da sua lenta recuperação, devia enveredar de
novo pelo mesmo caminho de expansão imperialista (que já uma vez a levara à
beira do abismo) ou se entre a vencida rainha dos mares e o poder de Esparta, o
único a mandar na atualidade, surgia uma possibilidade de acordo que deixasse a
ambos os Estados margem para existir e lhes oferecesse uma missão comum, acima
dos seus interesses particulares. Enquanto a mentalidade dos políticos
profissionais continuava a seguir as rotas tradicionais da luta maquiavélica
pelo poder e a guerra de Corinto já deixava entrever, na década de 90, um
incipiente reagrupamento dos Estados gregos, cuja frente defensiva era
unanimemente dirigida contra Esparta, Isócrates esforçava-se por encontrar para
as forças excedentes dos gregos uma saída para o exterior. Esforçava-se por
descobrir uma possibilidade de expansão política e econômica que ao mesmo tempo
fosse capaz de superar as contradições existentes no interior da Grécia. Estava
muito longe de comungar a fé numa paz eterna. Mas os desastrosos efeitos da
guerra na vida de todos os Estados gregos, vencedores e vencidos, levavam todos
a considerar absurdo o ilimitado prolongamento desse dilaceramento interno da
nobre nação e pareciam impor à sua boa vontade e à sua consciência esclarecida
a necessidade de encontrar a solução que libertasse a Grécia desse pesadelo.
Que o imperialismo, caso fosse inevitável, se dirigisse contra outros povos, de
nível cultural inferior e inimigos naturais dos gregos; a sua perpetuação entre
os gregos constituía um espinho insuportável para a sensibilidade moral da
época, pois, com o tempo, ameaçava destruir não só o Estado vencido, mas toda a
raça.”
1. Paneg., 4. Cf. Helena,
12-13; Antíd., 3.
“O prólogo termina pois, adequadamente, por
um elogio à eloquência, encarada como força criadora de cultura. O Nicocles retoma
assim o tema do Panegírico, onde se celebrava Atenas como berço de toda
a cultura28. Essa força, que ali é chamada filosofia, aparece
também aqui como a característica distintiva entre o homem e o animal; e aqui
como ali se baseia, fundamentalmente, no dom do lógos29. Em
parte alguma é tão palpável a rivalidade entre a retórica e a poesia como no
elogio da palavra, considerada a força que faz do ser humano um homem, elogio que
vem a seguir. Não sei se já se terá notado que estamos perante um hino em prosa
inflamada, totalmente composto no rigoroso estilo da poesia. O exame
pormenorizado dos diversos testemunhos aduzidos por Isócrates acerca do caráter
e dos efeitos do discurso prova logo, pela própria forma da linguagem, que
estamos em presença de toda uma série de predicados de um ser contemplado e
personificado deus30. O seu nome vem, por fim, mencionado no
decorrer desse elogio: é o lógos, o criador de toda a cultura31.
Com efeito, os restantes dons que possuímos não nos tornam superiores aos
animais; pelo contrário, somos até inferiores a muitos destes em rapidez, em
força e em todas as demais qualidades. Mas a capacidade, em nós depositada, de
nos convencermos uns aos outros e de chegarmos a mútuo entendimento acerca de
tudo o que queremos, não só nos liberta do tipo de vida dos animais, mas
permite agruparmo-nos para vivermos em comum, fundarmos Estados, criarmos leis
e inventarmos artes. Foi o lógos que nos permitiu realizar quase tudo o que
criamos em matéria de civilização. Foi ele que estabeleceu normas sobre o justo
e o injusto, o belo e o feio, sem a ordenação das quais seríamos incapazes de
conviver com os outros. É ele que nos permite acusar os maus e reconhecer os
bons. É graças a ele que educamos os ignorantes e conhecemos os inteligentes. A
capacidade discursiva é, pois, o sinal mais importante da razão humana. O
emprego verdadeiro, justo e legal da palavra é a imagem de uma alma boa e digna
de confiança. É com o auxílio do lógos que discutimos o duvidoso e
investigamos o desconhecido. É que na nossa deliberação conosco próprios
necessitamos das mesmas razões de convicções com que persuadimos os outros; mas
chamamos retóricos aos homens em condições de falar diante de muitos e
denominamos homens de bom juízo os que são capazes de refletir com acerto no
seu foro íntimo. Se, em resumo, quiséssemos determinar esse poder, veríamos que
nada de quanto no mundo acontece de modo racional acontece sem o lógos,
mas é esse o guia de toda a ação e de todo o pensamento. E os que maior uso
fazem dele são os que têm mais espírito. Devemos, por isso, considerar tão
odiosos os que desprezam a educação e a cultura como os que se revoltam contra
os deuses.
Se queremos compreender a imensa influência
de Isócrates sobre os seus discípulos – pelos quais Nicocles aqui fala32
–, não nos resta outro remédio senão termos presente o páthos dessa solene
proclamação da força da cultura e da palavra. Essa concepção eleva a retórica
muito acima do nível dos seus representantes anteriores. É certo que com isso
não se resolve ainda em sentido filosoficamente satisfatório o problema
colocado por Platão no Górgias: o problema das relações da retórica com
a verdade e a moral. Mas esse problema fica momentaneamente ofuscado pelo
brilho superior da importância da retórica como criadora da cultura espiritual
e da comunidade humana. É certo que a realidade do ensino corrente praticado
pelos retóricos se mostra bastante mesquinha, quando contemplada à luz desse ideal.
É sobretudo como expressão da vontade que o anima que as palavras de Isócrates
devem ser apreciadas. Mas, pela maneira como definem a essência da retórica,
deixam ao mesmo tempo transparecer uma autocrítica, que tem evidentemente
presentes as objeções de Platão e procura contestá-las, focando a missão da
cultura retórica de modo mais profundo do que até ali vinha sendo feito.
Reconhece-se, nas entrelinhas, que o papel da retórica não seria por certo
muito brilhante, se não pudesse oferecer mais do que os seus censores
filosóficos lhe concedem: uma rotina formal destinada a convencer a multidão
ignorante33. Isócrates forceja por libertá-la dessa vinculação à
prática da demagogia. Para ele, a sua verdadeira essência não reside na técnica
da condução das massas, mas sim naquele ato espiritual, fundamental e muito
simples, que todos os homens realizam diariamente perante si próprios, quando
meditam no seu íntimo e para consigo mesmos, acerca do seu próprio bem e mal34.
Nesse ato, não se podem distinguir artificialmente forma e conteúdo, mas a capacidade
de julgar – que é do que se trata – consiste em saber adotar a decisão
acertada para cada situação35. É claro que assim o acento desloca-se
da forma estilística para a própria natureza e para a exatidão do conselho dado
pelo próprio orador; e é precisamente isso o que Isócrates quer36. A
cultura por este preconizada não é uma cultura unilateralmente estilística e
formal; a forma brota nela diretamente do objeto. Esse objeto é o mundo ético e
político. A finalidade da cultura retórica de Isócrates é criar o estado de
perfeição da vida humana a que ele dá, com os filósofos, o nome de eudaimonía,
isto é, um bem objetivo supremo, e não a obtenção de influência com fins
subjetivos arbitrários37. A hipóstase dessa ideia da cultura no conceito
divinizado do lógos é um meio feliz para iluminar o fim visado: é que lógos
significa linguagem no sentido de linguagem racional e mútuo entendimento,
que sempre corresponde a certos valores últimos comuns, quaisquer que sejam.
Isócrates apoia-se precisamente nesse aspecto do lógos, que converte assim
no verdadeiro expoente da vida social38.
É dessa filosofia do lógos que a
atitude legislativa e educativa de Isócrates deriva, atitude que a palavra
retórica, de variadíssimos significados, não exprime com toda a fidelidade e
plenitude. É como fruto dessa filosofia que agora vamos procurar compreender o
discurso A Nicocles (προìς Νικοκλε¿α). Esse discurso parte de uma
reflexão acerca do melhor dom que se possa dar a um príncipe39. Para
Isócrates, esse dom consiste em definir exatamente a conduta por meio da qual
um monarca pode governar melhor o seu país. Muitos são os fatores que concorrem
para a educação de um cidadão comum: a limitação das condições externas em que
vive, as leis a que se deve ajustar e a crítica declarada de amigos e inimigos
pelos erros em que incorre. Os poetas do passado legaram-nos também exortações
acerca da maneira como se deve viver. Tudo isso contribui para elevar o Homem e
torná-lo melhor40. Mas os príncipes e os tiranos não podem contar
com nada disso. Eles, mais do que ninguém precisados de educação, não ouvem
nenhuma crítica a partir do momento em que sobem ao trono. A maioria dos homens
está isolada deles e só os aduladores os rodeiam. Assim se explica que façam
mau uso dos grandes recursos de poder de que dispõem; e muitos homens duvidam
com razão se a vida de um simples particular praticante do direito não será
preferível à vida do tirano41. É certo que quase todos julgam
desejáveis a riqueza, as armas e o poder que o governo dá; mas, quando se pensa
no temor e no perigo em que continuamente vivem os poderosos e se tem presente
que uns morrem estrangulados pelos seus amigos mais íntimos, e outros se sentem
impelidos a atentar contra os seus próprios parentes, chega-se à conclusão de
que até a vida mais humilde é melhor do que ser, em tão trágicos enredos, rei de
toda a Ásia42. Essa última expressão alude claramente às palavras de
Sócrates no Górgias de Platão, quando afirma que não pode ajuizar se o
rei da Pérsia viverá feliz ou não, visto ignorar quais são as suas paideía e
justiça43. A paideía baseada na justiça é, assim, elevada
pela primeira vez a norma para julgar a vida e a obra de um governante, ao
mesmo tempo que exprime a ideia fundamental da educação dos príncipes.
Provavelmente antes do próprio Platão abordar na República o problema da
explanação desse postulado para convertê-lo num sistema acabado de governantes,
Isócrates procura realizar à sua maneira esse mesmo pensamento, no discurso
exortativo a Nicocles.”
28. Paneg., 47-50.
29. Cf. Paneg., 48 e Nic., 6.
30. Cf. as inovadoras investigações de E.
NORDEN em Agnostos Theos (Leipzig, 1913), especialmente pp. 163 ss.,
sobre a forma estilística do hino e suas diversas influências nas literaturas
grega e romana. O melhor exemplo que conheço em forma de hino, de glorificação
e deificação de uma potência “abstrata” (a nosso ver) como a do lógos, é
o louvor à eunomía, à ordem jurídica e aos seus benéficos efeitos, na Eunomía
de Sólon, como pude mostrar em Solons Eunomie, in: Berliner
Akademie, 1926, pp. 82-4.
31. Nic., 5 (2.ª metade), 9.
32. Que o lógos, aqui concebido como
deus, é a suma e o compêndio da ideia isocrática da paideía (cultura),
depreende-se de Nic., 8 e 9 e já se proclamara expressamente no Paneg.,
48. Acerca do lógos como “símbolo da paideusis” (συ¿μβολον τηªς
παιδευ¿σεως), cf. acima, pp. 1118-9.
33. PLATÃO, Górg., 454 B, 462 B-C.
34. Nic., 8.
35. Isócrates diz no c. 8: chamamos
retórico a um homem, quando ele sabe se exprimir nas assembleias. A quem sabe
aconselhar a si próprio em qualquer tema discutível denominamos homem de bom
conselho. Com isso quer dizer que a essência da questão é nos dois casos a
mesma, ainda que usemos expressões diferentes.
36. Falar ou agir “com lógos”
equivale, portanto, para ele, a falar ou agir de “maneira refletida e racional”
(ϕρονι¿μως). Cf.
c. 9
37. É o conceito de eudaimonía que
serve de base ao pensamento político (ϕιλοσοϕι¿α) de
Isócrates. Cf., por exemplo, De Pace, 19, onde expressamente se
reconhece a eudaimonía como meta das suas aspirações políticas. Para
mais exata determinação desse conceito, cf. adiante, nota 59 deste cap.
38. Por meio dessa ϕιλοσοϕι¿α, Isócrates sente-se à parte da retórica forense dos velhos
“tecnógrafos”. Radicando o lógos no conceito de phrónesis e eudaimonía,
pretende-se evidentemente desvirtuar a censura de Platão à falta de meta
objetiva da retórica.
39. A Nic., 1.
40. A Nic., 2-3.
41. A Nic., 4. Desde muito cedo estas
dúvidas começam a se manifestar na literatura grega. Cf. em Arquíloco (frag.
22, acima, p. 274-5) o carpinteiro filósofo, que não aspira ao trono do tirano;
ou a renúncia de Sólon ao domínio absoluto (frag. 23). Contudo, é visivelmente
aos socráticos que Isócrates aqui alude. Já na Helena, 8, troçara dos
que se atreviam a escrever que a vida dos mendigos e fugitivos era mais
invejável que a dos restantes homens. Era natural que essa ideia se
desdobrasse com mais amplitude num discurso como o dirigido a Nicocles, em que
se procurava infundir um conteúdo novo ao bíos do monarca.
42. A Nic., 5-6.
43. PLATÃO, Górg., 470 E (cf., acima,
pp. 663 s.). Talvez essa intuição aparecesse também em outros socráticos, como
Antístenes.
“A serem certas essas observações, o discurso
do Areópago não seria o balanço feito depois de consumada a bancarrota da liga
marítima, mas antes uma derradeira tentativa para impedi-la. Eis o ponto de
vista a partir do qual devemos apreciar as suas propostas dirigidas a
transformar a democracia ateniense. Todos os perigos que segundo Isócrates a
ameaçam nascem, para ele, da estrutura interna do Estado ático. Alcançamos
grandes êxitos, graças à sorte ou ao gênio de um indivíduo, mas não soubemos pôr-nos
em condições de conservar o que obtivemos – tal é, pouco mais ou menos, o seu
raciocínio. Sob o comando de Cononte, e principalmente sob o do seu filho Timóteo,
logramos a hegemonia sobre toda a Grécia; mas não tardamos a perdê-la outra
vez, por não termos a constituição de que precisávamos para defendê-la16.
A constituição é a alma do Estado. Desempenha nele função igual à do espírito e
da razão no Homem. É a constituição que modela o caráter dos cidadãos privados
como dos dirigentes políticos, e com ela se conforma a sua conduta17.
Repete-se aqui, em sentido negativo, a ideia que já encontramos no discurso A
Nicocles18. Isócrates apresenta como um fato todos os
atenienses serem unânimes em opinar que nunca sob a democracia estiveram tão
malgovernados como agora. Onde quer que na praça pública o povo fale e discuta
não se ouve falar de outra coisa. Contudo, ninguém está disposto a fazer nada
para mudar a situação e todos preferem a forma degenerada de vida política
atualmente em vigor à constituição criada pelos nossos antepassados19.
Essa crítica de Isócrates coloca diante de
nós o problema da causa a que essas contradições obedecem. É evidente que o Estado
dessa época é para a maioria dos seus cidadãos, mesmo os que o consideram
necessitado de reformas, um meio cômodo de satisfazerem as suas ambições.
Embora imponha a cada um certas limitações, limita igualmente os excessos dos
demais. Gera-se assim uma espécie de equilíbrio de diversas ambições, que em
última análise permite a cada um satisfazer um número suficiente de desejos
pessoais, assim tornando-se indispensável. A maioria dos impulsos naturais cuja
satisfação nesse tipo de convivência interessa ao homem são, indubitavelmente,
os verdadeiros fatores formadores de homens da época, como unanimemente o
proclamam os pensadores políticos de todas as tendências. Nessas épocas, a paideía,
a formação dos homens, fica degradada ao papel de mera educação exterior, sem
conseguir opor um contrapeso efetivo às forças que empurram para baixo. E se
quiser obter mais só terá dois caminhos: renunciar a formar o povo como um todo
e retirar-se para a estreiteza das escolas e conventículos, como fazem os
filósofos, ou então procurar influir somente em determinadas personalidades
governantes ou, no caso de Estados governados democraticamente, tentar reformar
certas instituições do Estado, para influenciá-lo no sentido que julgue
proveitoso. Tal é a ideia educativa de Isócrates. O primeiro caminho ele o
seguiu no discurso A Nicocles, sobre os deveres impostos pela missão do
monarca; o segundo, segue-o no Areopagítico.
Neste, parte-se da consciência de que o mal
fundamental da política reside no problema da transformação dos homens e procura-se
chegar a esse resultado através da transformação das instituições políticas.
Segundo a conclusão a que Isócrates chega, os homens eram diferentes nos tempos
de Sólon ou de Clístenes; portanto, o único meio de livrá-los do seu
individualismo exagerado é restaurar a constituição do Estado que vigorava
naquele século20. Com a mudança da “alma” da pólis, mudarão
também os indivíduos que a formam. Contudo, a formosa frase que diz ser a
constituição a alma da pólis21 oculta um difícil problema. Aceitamos
que em tempos dos antepassados, no século VI, ela era realmente a alma da
cidade ou, por outras palavras, a expressão espiritual do ser real do Homem, a
forma da sua vida coletiva, criada de dentro para fora; mas continuaria sendo
no tempo de Isócrates? Não aparenta ser, até na maneira como ele a concebe, um
simples meio, uma organização jurídica destinada a restaurar aquela forma
interior destruída por certas forças negativas? A tarefa de formar os homens
desloca-se, assim, do campo da existência espiritual para o da educação
exterior, em que o Estado se converte autoritariamente em agente externo da missão
educativa. Dessa forma, a paideía torna-se mecânica, e esse defeito ressalta
com maior força do contraste entre o modo puramente técnico como Isócrates
pretende realizá-la e a concepção romântica do passado, que ele assim aspira a
fazer ressurgir. Revela-se aqui de modo bem visível a diferença entre Isócrates
e Platão: é que este, embora simplifique também e faça retroceder a vida, de
modo aparentemente romântico, no seu Estado, o melhor dos Estados, é
perfeitamente objetivo quanto ao ponto de partida, pois se apoia exclusivamente
na formação real da alma. É nesta que assenta por inteiro a paideía platônica.
Isócrates, em contrapartida, julga poder consegui-la no Estado ateniense do seu
tempo, só reintegrando o Areópago nos seus direitos. Por conseguinte, faz do
Estado uma simples autoridade inspetora, como corresponde à sua maneira de
conceber a paideía.
É elucidativo reparar como a imagem ideal do
passado que Isócrates traça para caracterizar o espírito da educação a que
aspira se vai inadvertidamente convertendo num sonho utópico, em que se esfumam
todas as cores do presente e se resolvem todos os problemas. Essa estranha
maneira de encarar a História só se compreende, quando se vê que todos os
louvores tributados ao passado são simplesmente concebidos como a negação de um
mal correlativo do presente. A forma radical da democracia ateniense do século
IV representava um problema insolúvel para vastos círculos da opinião, nos
quais a crítica fervilhava. É o problema do governo das massas, tal como é
descrito no Areopagítico e em outros discursos de Isócrates, com todos
os fenômenos concomitantes: a demagogia, o regime de delação, a arbitrariedade e
o despotismo da maioria sobre a minoria mais culta, etc. No tempo dos pais da
democracia ateniense, Sólon e Clístenes, ainda não se confundia o desenfreio
com a democracia, a arbitrariedade com a liberdade, a licenciosidade da palavra
com a igualdade, a absoluta falta de domínio do comportamento com a suprema
felicidade; ao contrário, os indivíduos desse jaez eram castigados e existia a
preocupação de tornar melhores os homens22. A igualdade a que
naquele tempo se aspirava não era a igualdade mecânica de todos, mas sim a
igualdade proporcional que dá a cada um o que lhe cabe23. Também o
regime eleitoral não estava ainda naquele tempo mecanizado em sistema de
sorteio, o que equivalia a substituir os juízos de valor pelo mero acaso. Os
funcionários, em vez de serem diretamente escolhidos entre o conjunto da
população, eram eleitos indiretamente a partir de um grupo de indivíduos,
antecipadamente selecionados e perfeitamente aptos para o desempenho das suas
funções24. O lema continuava a ser trabalhar e poupar, e
ainda não se desprezava a economia doméstica para se enriquecer com bens
alheios25. Ainda não era prática sancionada pelo costume a população
alimentar-se das rendas públicas do Estado, mas, ao contrário, sacrificava-se a
própria fortuna à comunidade. Ser cidadão não era ainda negócio, mas dever26.
E, para que esse elogio feito à qualidade da nobreza não o sujeitasse a
aparecer como inimigo do povo, Isócrates acrescenta que naquele tempo era ainda
o dêmos quem mandava, quem empossava os funcionários e elegia os seus
servidores públicos dentre a camada social dos proprietários, os que dispunham
de tempo para tais tarefas27. A competência era um fator mais
importante para a eleição do que o mero acaso ou quaisquer considerações de
política partidária28.
Essas frases soam como um programa da minoria
conservadora e abastada de Atenas, no tempo da decadência da segunda liga
marítima. São as manifestações da oposição, que subiu ao poder depois de
perdida a guerra dos confederados, as que nos dão a conhecer, melhor do que
qualquer outra coisa, a crítica dessa minoria ao Estado atual.”
15. Cf. JAEGER, Areopagiticus, pp. 432
ss.
16. Areop., 12.
17. Areop., 14. No seu último
discurso, o Panatenaico, Isócrates volta a tratar o problema central da
constituição ateniense, levado pela mesma ideia, a saber: que a constituição é
a alma do Estado.
18. Cf. adiante, pp. 1181 ss.
19. Areop., 15.
20. Areop., 16.
21. Areop., 14; repetido em Panat.,
138.
22. Segundo Areop., 20, é a pólis,
isto é, a coletividade social, que, através da completa corrupção de todas as
ideias de valor, perverte o pensamento e o modo de expressão dos cidadãos. Para
designar essa influência formadora ou, antes, deformadora do Homem, Isócrates
escolhe o termo παιδευ¿ειν. Isto prova que estava absolutamente convencido de
que não era nos programas educacionais de diversos reformadores, mas nas
circunstâncias totais da época, que se devia procurar os fatores verdadeiramente
culturais. A época da decomposição da forma só conhece a paideía no
sentido negativo da corrupção que se transmite do conjunto a cada um dos
membros. Isócrates apresenta em termos semelhantes a paideía negativa
que nasce da ambição de poder da polis e faz variar o espírito dos
cidadãos (De Pace, 77). Essa consciência tinha por força que infundir
nele o sentimento da impotência de tudo quanto fosse mera educação. Mas é
característico da época o fato de a paideía em sentido positivo só ser
possível na forma de reação consciente dos indivíduos isolados contra as
tendências gerais da evolução.
23. Areop., 21.
24. Areop., 22. A esse tipo de
eleições chamava-se προκρι¿νειν ou αι¸ρειªσθαι ε¹κ προκρι¿των.
25. Areop., 24. É interessante que
este mesmo lema trabalhar e poupar – pois se trata visivelmente de um
lema muito comum nascido da luta dos partidos no século IV – apareça em PLATÃO,
Rep., 553 C, para caracterizar o homem oligárquico. Dificilmente
Isócrates teria tirado dessa caricatura as cores para pintar a sua imagem
ideal: é por isso que é tanto mais interessante a sua coincidência com Platão
nesse ponto. Sobre a inclinação de Isócrates para as concepções políticas da
camada dominante, cf. o resto do capítulo.
26. Areop., 25.
27. Areop., 26.
28. Areop., 27, cf. as palavras
τουìς... δυνατωτα¿τους ε¹πιì ταìς πρα¿ξεις καθιστα¿σης, que enviam ao período
melhor da democracia e o contrapõem aos maus hábitos presentes.
“A sua crítica à democracia ateniense do seu
tempo, que se manifesta abertamente nas Memoráveis, levava-o, apesar da
sua lealdade de cidadão para com a cidade-pátria, a admirar em Esparta (a
inimiga política de Atenas) muitas coisas que ele considerava a solução,
inspirada por uma sabedoria consciente, de muitos problemas fundamentais não
resolvidos pelo Estado ateniense. Segundo parece, brotavam de uma única fonte
todos os males da democracia do seu tempo: do exagerado ímpeto de afirmação
pessoal do indivíduo, que parecia não reconhecer deveres, mas apenas direitos
ao cidadão, e via precisamente nisso a essência da liberdade que o Estado lhe devia
garantir. Era natural que quem professava, como Xenofonte, o ideal de soldado que
vimos, considerasse especialmente deplorável essa falta de disciplina
consciente da sua responsabilidade. Não era dos postulados ideais do indivíduo,
mas sim das condições externas impostas pela existência da coletividade, que o
seu pensamento político partia. A falta de capacidade e de energia guerreira
dos cidadãos atenienses, também salientada constantemente por outros críticos
contemporâneos, como Platão, Isócrates e Demóstenes, tinha de parecer a um
homem como ele uma frivolidade pueril e inconcebível, destinada a acarretar a
curto prazo, no meio de um mundo de inimigos e invejosos, a perda da famosa liberdade
de que tanto se gloriava a democracia ateniense. Sem dúvida a disciplina
espartana não era fruto da livre decisão de uma maioria cívica. Fazia parte da
estrutura legislativa fundamental do Estado, na qual Xenofonte via a obra
genial de um só homem, a figura meio mítica de Licurgo65. É
indubitável que Xenofonte não ignorava as condições históricas próprias da
longa sobrevivência em Esparta do regime primitivo de uma vida de acampamento
militar, da coexistência de várias raças (uma dominadora e outra dominada)
dentro do mesmo Estado, da perduração de um estado de guerra quase sempre
latente entre ambas, ao longo de muitos séculos; não faz referência a eles,
porém, e concebe antes o cosmo espartano como obra de arte política estática,
cuja originalidade enaltece e cuja imitação por parte de outros considera
desejável66. Essa imitação, não a imaginava ele, evidentemente, como
uma cópia servil de todas as instituições, mas os escritos de Platão sobre o
Estado são o melhor comentário ao que a mentalidade grega entendia por
imitação. Os gregos tendiam menos do que nós a encarar na sua individualidade única
uma criação coerente consigo própria, mesmo quando determinada pelas condições
da sua essência; e, quando se viam em via de ter de reconhecer as virtudes de
um sistema, fossem elas quais fossem, preferiam imitar o que lhes parecia bom e
útil. Para Xenofonte, Esparta é um estado que realiza perfeitamente aquele
ideal de soldado que ele conheceu na vida do acampamento, na campanha de Ciro.”
65. Const. dos Laced., I, 1; II, 2;
II, 13, etc.
66. Cf. ibid., 1, 2, sobre o caráter
original da reforma do Estado por Licurgo; e IX, 1; X, 4; XI, 1 e outras
passagens sobre o caráter admirável das instituições espartanas. Ninguém as
imita, mas todos as enaltecem: X, 8.
“É ainda a partir de outro ponto de vista que
Platão esclarece a necessidade para o orador de adquirir também uma cultura de
fundo. O orador tem de influir sobre a alma; não é tanto sobre o mero ornato
formal do discurso que a sua verdadeira arte versa; é antes sobre a psykhagogía61.
O paralelo que se apresenta mais à mão é o do médico, que já no Górgias Platão
comparara ao retórico62. É o próprio Hipócrates que Platão cita como
personificação da autêntica arte da medicina63. Para ele, a
característica essencial dessa atitude de espírito consiste em o médico não perder
nunca de vista o conjunto da natureza, o cosmos, ao tratar o corpo
humano (acima, pp. 1038 ss.). De igual modo, se quiserem dirigir acertadamente
o leitor ou o auditório, o escritor ou o orador deverão conhecer o mundo da
alma humana com todas as suas emoções e com todas as suas forças64.
E, assim como o médico deve saber também com precisão se a natureza de uma coisa
é simples ou multiforme e como ela age ou, no segundo caso, como agem
mutuamente as diversas formas, assim o orador deve conhecer as formas da alma e
a sua origem, e as formas do discurso a elas adequadas65. Essas
formas do discurso ou ideias do lógos já tinham sido ensinadas
pela retórica66. Mas o que esse projeto de uma retórica em sentido
platônico encerra de novo parece ser a tendência a reduzir diretamente as
formas do discurso a formas de atitude da alma e a interpretá-las como expressão
necessária destas67. Com isso, todo o peso da formação se faz
assentar no interior do Homem.
É notável a consciência que Platão tem da
verdadeira força do seu espírito. Aqui como em toda a obra, é no conhecimento de
tudo quanto se refere à alma que essa força radica. A consciência de
determinadas formas de expressão estarem condicionadas por determinadas funções
anímicas converte-se aqui para ele num postulado prático: o de que homens com
um determinado estado de espírito ou dotados de caráter firme só podem ser
levados a agir em determinado sentido, por meio de recursos oratórios
escolhidos e de acordo com a sua maneira de ser68. Descobrir através
da linguagem esses fundamentos psicológicos de toda a influência sobre os
homens era uma missão para a qual Platão se encontrava, como ninguém,
predestinado por natureza. É significativo que ele não se contente com a
exigência teórica de elaborar um sistema universal de categorias psicológicas
em vista do seu emprego na retórica, mas seja ele próprio a insistir na prova
da aplicação prática desses conhecimentos ao caso concreto, e de maneira
determinada69. E outra coisa não podíamos esperar depois de vermos
como Platão atribuía na República
à experiência prática e à formação do espírito tanto valor e lhes concedia
tanto tempo como à pura cultura do espírito70.”
61. Cf. já no Fedro, 261 A, e
desenvolvido com mais detalhe em 271 C-D.
62. Fedro, 279 B. Cf. acima, pp. 658
s.
63. Fedro, 270 C.
64. Fedro, 271 A.
65. Fedro, 271 D.
66. ISÓCRATES, Sof., 16-17. Cf.,
acima, pp. 1094 ss.
67. Como sempre acontece no Fedro, o
que Platão diz a esse respeito não é mais do que o esboço típico da teoria psicológica
das ideias (ψυχηª ς ειÓδη) para uso da retórica. Renuncia à aplicação técnica
do pensamento numa obra de forma artística como é o diálogo platônico e quer
que sirvam de exemplo, como já dissemos acima, os dois discursos de Sócrates
sobre o eros, com o seu rico conteúdo psicológico. Cf., acima, pp. 1279
ss.
68. Fedro, 271 D-E.
69. Fedro, 272 A-B.
70. Cf., acima, pp. 925 ss.
“As alusões da Carta sétima indicam
claramente que a formação de governante que Platão queria dar a Dionísio não
consistia num mero ensino técnico dos assuntos de governo: visava a
transformação do homem inteiro e da sua vida, e o conhecimento em que se
fundamentava era apenas o do paradigma supremo que na República Platão
estabelece como norma e como medida para o governante: o paradigma do Bem
divino60. O caminho para alcançá-lo é também o da República:
as matemáticas e a dialética. Não parece que nas suas conversas com o tirano
Platão tenha ido além de uma exposição dos traços gerais dessa paideía;
é indubitável, porém, que não estava disposto a conceder nada das suas severas exigências.
Não é precisamente por um caminho régio que se atinge a meta de uma arte régia.
O tirano provou, com o seu comportamento em relação ao que Platão lhe ensinou,
que o seu espírito não era capaz de mergulhar até a profundidade em que se
encontram as verdadeiras raízes da missão que tão inutilmente se esforçava por
desempenhar.”
60. Rep., 500 E.
“Afirmou-se que o erro de Platão provinha de
uma absoluta carência de capacidade para compreender as “condições” da vida e
da ação política, carência derivada do próprio caráter do ideal platônico do Estado.
Já Isócrates, no Filipe, falava com ironia daqueles que traçavam normas
políticas e leis absolutamente inaplicáveis à vida real66. Isso,
escrevia-o Isócrates no ano de 346, isto é, pouco antes da morte de Platão, e
sem dúvida pensava proferir com isso a última palavra sobre os esforços de
Platão para resolver a questão do Estado. Sentia-se especialmente orgulhoso por
as suas ideias, apesar de transcenderem bastante o ponto de vista dos políticos
cotidianos, serem aplicáveis e fecundas no campo da política realista. Mas na
realidade não é a Platão que tal crítica se pode fazer. Medeia um profundo
abismo de princípio entre o seu Estado perfeito e a realidade política, mas o
filósofo tem consciência disso e insiste nisso constantemente67. Só
uma espécie de milagre poderia associar ao poder terreno essa sabedoria. Sem
dúvida o fracasso da empresa da Sicília, por ele acometida com tão grandes
reservas, tinha forçosamente de o fazer desesperar da possibilidade de ver o
seu ideal posto em prática, durante a sua vida ou num futuro qualquer. Isso,
porém, não impedia que para ele continuasse a ser o ideal e a norma absoluta. É
absurdo acreditar que só com um pouco mais de psicologia das multidões e de
maleabilidade palaciana, Platão tivesse conseguido tornar mais aceitável para o
mundo (que ele olhava como um médico olha um doente grave) aquilo que
considerava o mais alto e o mais santo. Nesse sentido, nada tinha de político o
seu interesse pelo Estado. Assim o provou, acima de qualquer dúvida, a nossa
análise da estrutura espiritual da República e da sua concepção do homem
de Estado. Portanto, a catástrofe de Siracusa tampouco veio jogar por terra o
sonho de uma vida, e muito menos destruir a mentira de uma vida, como se
procurou apresentar a preocupação que Platão sempre mostrou pelo Estado e o seu
postulado do império da Filosofia.”
65. Carta VII, 350 D (final).
66. ISÓCRATES, Fil., 12.
67. Cf. especialmente Rep., 501 A.
“Platão não quer discutir com ninguém acerca
do termo paideía; o que lhe interessa é pura e simplesmente que a ação legislativa
tenha por fundamento a concepção exata do que seja a paideía. É que para
ele é indiscutível que os indivíduos que recebem uma boa educação se tornam, em
geral, homens excelentes. De modo nenhum se deve desprezar a verdadeira
cultura, pois ela constitui para os melhores dentre os homens o valor ideal
supremo (πρωªτον τωªν καλλι¿στων). E, se acaso essa educação faltou e se pode
suprir, todo homem deverá consagrar a vida inteira e todas as energias a
alcançar esse resultado.
Com essas palavras, Platão define a si
próprio e define a obra da sua vida. Diz-nos aqui claramente como via a
situação que lhe deparou. A autêntica paideía, que sempre fora a
formação do Homem na areté total, surgia desintegrada numa série de aptidões
especiais, sem um objetivo que as unificasse71. É esse objetivo que
a filosofia platônica se propõe restituir à vida dos homens, para dessa forma
dar novo sentido e unidade a todos os campos concretos, desarticulados, da
existência. Tinha por força de se dar conta de que a sua época, apesar da
assombrosa riqueza de aptidões e conhecimentos especializados que acumulara, acusava,
na realidade, um rebaixamento da cultura. Ele mesmo esclarece o que entende por
restauração72 da cultura quando à mera instrução profissional e
especializada opõe a verdadeira formação do Homem, que o seu esforço visa.
Recuperar para a sua época essa totalidade da areté, que é o mesmo que
dizer a totalidade do homem e da vida, era a mais difícil das missões, a qual,
pela sua importância, não sofria comparação com nenhuma contribuição de
conhecimentos especiais que o espírito filosófico pudesse dar. É na República
que melhor se vê como ele concebia essa solução, pois toda a estrutura
dessa obra assenta nessa base; a ideia do Bem, o princípio originário de todos
os valores, ocupa um lugar predominante no centro do cosmos. Este deve girar em
redor da ideia do Bem, como centro do seu sistema solar. Eis por que nesse
passo das Leis a verdadeira paideía aparece referida ao divino,
como diz Platão73. É característico nessa obra, como em todas as
posteriores à República, falar muito do “divino” ou de Deus; isso se
explica ou por Platão ter mais tarde abandonado a primitiva prevenção contra o
uso dessa palavra para designar o seu princípio, ou por a sua aplicação sem
reservas indicar aqui outra fase de conhecimento mais próxima da dóxa. No
entanto, nesse passo, como em geral em toda a obra, Platão mostra-se muito
interessado na concatenação psicológica através da qual o princípio supremo
atua na alma do homem. E ilustra-a por meio da imagem (eikón) do teatro de
fantoches, em que o homem é o fantoche que atua no palco da vida74.
Mas, quer tenhamos sido criados para simples joguete de Deus quer para uma
elevada finalidade – e isso não o podemos saber por nós próprios –, o certo é
que os impulsos e as representações da nossa alma são os fios que de nós partem
em várias direções75. A perspectiva de gozar um prazer ou sofrer uma
dor move a nossa vida instintiva na forma de sentimentos de coragem e de medo;
a reflexão (λογισμο¿ς) valorativa indica-nos qual dessas sensações é melhor ou
pior. Quando esta reflexão constitui um acordo comum da pólis, damos-lhe
o nome de lei76. A alma só se deve deixar levar pelo fio macio e
dourado com que o lógos a puxa e não pelos duros e férreos fios dos instintos.
Quanto mais suave e menos violenta for a ação com que a reflexão guia a nossa
alma, mais ela necessita de cooperação interior77. Ora, como vimos,
o fio do lógos não é senão o que governa o Estado, sob o título de lei.
Deus ou quem O conhece dá o lógos à pólis, que o instaura como
lei, a qual em seguida regula as relações da pólis com ela própria e com
os outros Estados78. A obediência da alma ao lógos é o que
denominamos domínio de si. Com isto fica também esclarecido o que é a paideía:
é a direção da vida humana pelo fio do lógos, manejado por Deus79.
Ao chegar aqui, porém, salta aos olhos uma diferença essencial entre as Leis
e a República. Na República, a ideia do bem era concebida
como o paradigma que o governante-filósofo traz na sua própria alma80.
Nas Leis, o autor sente-se impelido a concretizar mais. Essa obra
pressupõe uma Humanidade que quer saber exatamente o como e o quê,
uma Humanidade que precisa de leis para todos e cada um dos detalhes da sua conduta.
Nessa altura levanta-se o problema de saber como é que aquele lógos divino
encontrará o caminho para descer até o Homem e converter-se em instituição
política. Platão parece pensar, indubitavelmente, em qualquer forma de
assentimento da coletividade81, mas para ele é decisivo que se faça
legislador da pólis um indivíduo que conheça o divino. Nisso não faz
mais do que seguir o exemplo dos grandes legisladores do passado. Os gregos
costumavam apelidá-los de homens divinos, título que cedo foi conferido
ao próprio Platão. No tempo deste, mais de uma cidade grega pediu a algum
filósofo para elaborar leis para o Estado. O protótipo desses legisladores,
intermediários entre os deuses e os homens, é Minos, que falava com Deus. A
sabedoria dos legisladores gregos está muito próxima da revelação82.”
71. A verdadeira paideía, que opõe à
simples formação profissional, chama ele η¸ προìς α¹ρετηìν παιδει¿α, isto é, o
cultivo da perfeição humana. Por areté deve aqui entender-se “a areté
total”, de que tanto se fala nos primeiros diálogos de Platão e que ele
opõe nas Leis, 630 D, às virtudes puramente guerreiras dos espartanos.
Essa areté é a única norma verdadeira de toda a legislação: 630 E. A
valentia ocupa o quarto lugar na hierarquia das quatro virtudes cívicas de
Platão. Cf. Leis, 630 C 8.
72. ε¹πανοροθουσθαι Leis, 644 B
3.
73. Cf. Leis, 643 A 5-7, sobre o
caminho da paideía para chegar à sua meta, que é Deus.
74. Leis, 644 C s.
75. Leis, 644 D 7-E 3. A ideia de que
o homem é um joguete (παι¿γνιον) nas mãos de Deus repete-se no livro VII (803
C), e bem assim a ideia do boneco movido por um fio (θαυ¿ματα) 804 B 3. Ambas
as ideias têm uma íntima relação com a concepção platônica da paideía,
defendida nas Leis, sendo portanto essenciais para o seu pensamento.
76. Leis, 645 A.
77. Leis, 645 A 4-7.
78. Leis, 645 B. Nessa passagem
revela-se claramente a consciência de legislador que Platão tem de si próprio.
Em última instância, é o próprio Deus que é o legislador. É Dele que as Leis
deste recebem autoridade. Tal era a base sobre a qual a antiga pólis grega
edificara a sua legislação. Platão restaura esse princípio, mas a sua ideia de
Deus é nova e o espírito da nova ideia enforma a totalidade das suas leis.
79. Leis, 645 B 8-C 3. Platão não
explana por si próprio, em detalhe, essas conclusões derivadas das suas
premissas, mas limita-se a dizer que o leitor pode agora ver claramente o que
são a areté e a maldade, e o que é a paideía.
80. Rep., 540 A 9; cf. 484 C 8.
81. Cf. Leis, 645 B 7: πο¿λιν δεì...
λογ¿ ον παραλαβουσª αν, νομ¿ ον θεμεν¿ ην. No Político, 293 A, afirmara
que o assentimento dos governados não era essencial para a forma absolutamente
melhor de governo, imaginada por ele como uma monarquia ou uma aristocracia.
Nas Leis, porém, prevê a necessidade desse requisito, uma vez que ele
está implícito no conceito de um domínio vinculado à lei.
82. Fica, naturalmente, de pé a afirmação de
que o órgão através do qual recebe o conhecimento do divino não é outro senão a
sua razão (νουªς, ϕρο¿νησις). Cf.
631 C 6, 632 C, 645 A-B. A sua visão não brota do êxtase, e os conceitos
religiosos de inspiração e entusiasmo que Platão usa em outras obras
para descrever o estado de espírito do filósofo, são por ele modificados no
sentido de uma visão espiritual que constitui a meta final da trajetória
dialética. Contudo, do ponto de vista daqueles que, sem serem filósofos, têm o
dever de aceitar como lei o conhecimento do governante filósofo, esse tipo de
argumentação mal se distingue da revelação divina.
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