segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Paideia: A formação do homem grego (Livro II), de Werner Jaeger

Editora: WMF Martins Fontes

ISBN: 978-85-7326-410-4

Tradução: Artur M. Ferreira

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 1456

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Sinopse: Ver Parte I



Livro II

 

“A nova sociedade civil e urbana tinha uma grande desvantagem em relação à aristocracia, porque, embora possuísse um ideal de Homem e de cidadão e o julgasse, em princípio, muito superior ao da nobreza, carecia de um sistema consciente de educação para atingir aquele ideal. A educação profissional, herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofício ou a indústria, não se podia comparar à educação total de espírito e de corpo do nobre καλοìς κα¹γαϑο¿ς, baseada numa concepção total do Homem. Cedo se fez sentir a necessidade de uma nova educação capaz de satisfazer os ideais do homem da pólis. Nisso, como em muitas outras coisas, o novo Estado não teve outro remédio senão imitar. Seguindo os passos da antiga nobreza, que mantinha rigidamente o princípio aristocrático da raça, tratou de realizar a nova areté, encarando como descendentes da estirpe ática todos os cidadãos livres do Estado ateniense e tornando-os membros conscientes da sociedade estatal e obrigados a se colocarem a serviço do bem da comunidade. Era uma simples ampliação do conceito de comunidade de sangue, com a única diferença de que a vinculação a uma estirpe substituíra o antigo conceito aristocrático do Estado patriarcal. Não era possível pensar em outro fundamento. Por mais forte que fosse o sentimento da individualidade, era impossível conceber que a educação se fundamentasse em outra coisa que não a comunidade da estirpe e do Estado. O nascimento da paideía grega é o exemplo e o modelo deste axioma capital de toda a educação humana. A sua finalidade era a superação dos privilégios da antiga educação para a qual a areté só era acessível aos que tinham sangue divino. O que não era difícil de alcançar, para o pensamento racional que ia prevalecendo. Só parecia haver um caminho para a consecução deste objetivo: a formação consciente do espírito, em cuja força ilimitada os novos tempos estavam inclinados a acreditar. Os motejos de Píndaro aos “que aprenderam” pouco podiam perturbá-la. A areté política não podia nem devia depender da nobreza do sangue, se não se quisesse considerar um caminho falso a admissão da massa no Estado, a qual se afigurava já impossível de travar. E se a moderna cidade-Estado se apropriara da areté física da nobreza, por meio da instituição da ginástica, por que não seria possível alcançar, através de uma educação consciente pela via espiritual, as inegáveis qualidades diretivas, que eram patrimônio daquela classe?

O Estado do século V é assim o ponto de partida histórico necessário do grande movimento educativo que imprime o caráter a este século e ao seguinte, e no qual tem origem a ideia ocidental da cultura. Como os gregos a viram, é integralmente político-pedagógica. Foi das necessidades mais profundas da vida do Estado que nasceu a ideia da educação, a qual reconheceu no saber a nova e poderosa força espiritual daquele tempo para a formação de homens, e a pôs a serviço dessa tarefa. Não tem importância para nós, agora, a apreciação da forma democrática da organização do Estado ático, da qual surgiu, no século V, esse problema. Fosse como fosse, não há dúvida de que o ingresso da massa na atividade política, causa originária e característica da democracia, é um pressuposto histórico necessário para se colocarem conscientemente os problemas eternos que com tanta profundidade o pensamento grego se colocou naquela fase da sua evolução e legou à posteridade. Nos nossos dias brotaram de análogo desenvolvimento e foi só por ele que voltaram a ganhar atualidade. Problemas como os da educação política do Homem e da formação de minorias dirigentes, da liberdade e da autoridade, só nesse grau da evolução espiritual podem surgir e só nele podem alcançar a sua plena urgência e importância para o destino. Nada têm a ver com uma forma primitiva da existência, a vida social formada por bandos e por estirpes, que desconhece qualquer individualização do espírito humano. Nenhum dos problemas nascidos da forma do século V restringe a sua importância à esfera da democracia da cidade grega. São os problemas do Estado apenas. Prova disso é o pensamento dos grandes educadores e filósofos nascido daquela experiência ter conseguido prontas soluções, que transcendem ousadamente as formas existentes do Estado e cuja fecundidade é inesgotável para qualquer outra situação análoga.

O caminho do movimento educacional, que agora passamos a considerar, parte da antiga cultura aristocrática e, depois de descrever um amplo círculo, volta de novo a ligar-se, em Platão, Isócrates e Xenofonte, à velha tradição aristocrática e à sua ideia de areté, que adquirem vida nova sobre um fundamento muito mais espiritualizado. Mas, no início e em meados do século V, ainda este regresso está muito longe. Era preciso, antes de mais nada, romper com a estreiteza das velhas concepções: o seu preconceito mítico das prerrogativas de sangue, o qual já só se podia justificar onde se firmava na preeminência espiritual e na força moral, isto é, na σοϕι¿α e na δικαιοσυ¹νη. Xenófanes mostra o quanto a “força espiritual” e a política se enlaçavam vigorosamente já desde o início na ideia da areté e se baseavam na ordem e no bem-estar da comunidade estatal. Também em Heráclito, se bem que em sentido diverso, a lei se fundamentava no “saber”, onde tinha origem; e o possuidor terrestre dessa sabedoria divina aspirava a uma posição especial na pólis ou com ela entrava em conflito. Sem dúvida, esses grandes exemplos manifestavam com a maior clareza o aparecimento do problema das relações Estado-espírito, pressuposto necessário à existência da sofística; tornam igualmente patente como a superação da velha nobreza do sangue e das suas aspirações por meio do espírito substitui o antigo por um novo problema. É o problema das relações das grandes personalidades espirituais com a comunidade, problema que preocupou todos os pensadores até o fim da cidade-Estado, sem que chegassem a entrar em acordo. No caso de Péricles, foi encontrada uma feliz solução para o indivíduo e para a sociedade.”

 

 

“O objetivo da educação sofista, a formação do espírito, encerra uma extraordinária multiplicidade de processos e de métodos. No entanto, podemos encarar essa diversidade pelo ponto de vista unitário da formação do espírito. Basta para tanto que nos figuremos o conceito de espírito na multiplicidade dos seus aspectos possíveis. Por um lado, o espírito é o órgão através do qual o Homem apreende o mundo das coisas e se refere a ele. Porém, se abstraímos de qualquer conteúdo objetivo (e essa é uma nova faceta do espírito, naquele tempo), também o espírito não é vazio, mas revela pela primeira vez a sua própria estrutura interna. É esse o espírito como princípio formal. De acordo com esses dois aspectos, deparamos nos sofistas com duas modalidades distintas de educação do espírito: a transmissão de um saber enciclopédico e a formação do espírito nos seus diversos campos. Claramente se vê que o antagonismo espiritual desses dois métodos de educação só pode alcançar unidade no conceito superior de educação espiritual. Ambas as formas de ensino sobreviveram até o presente, mais sob a forma de compromisso que na sua unilateralidade. Em grande parte, era o mesmo que acontecia na época dos sofistas. Mas não nos deve iludir a união dos dois métodos na atividade de uma mesma pessoa: trata-se de dois modos fundamentalmente distintos de educação do espírito. Ao lado da formação meramente formal do entendimento, existiu igualmente nos sofistas uma educação formal no mais alto sentido da palavra, a qual não consistia já numa estruturação do entendimento e da linguagem, mas partia da totalidade das forças espirituais. É Protágoras quem a representa. A poesia e a música eram para ele as principais forças modeladoras da alma, ao lado da gramática, da retórica e da dialética. É na política e na ética que mergulham as raízes desta terceira forma de educação sofística4. Distingue-se da formal e da enciclopédica, porque já não considera o homem abstratamente, mas como membro da sociedade. É dessa maneira que coloca a educação em sólida ligação com o mundo dos valores e insere a formação espiritual na totalidade da areté humana. Também sob essa forma é educação espiritual; simplesmente, o espírito não é considerado através do ponto de vista puramente intelectual, formal, ou de conteúdo, mas sim em relação com as suas condições sociais.

Em todo o caso, é uma afirmação superficial dizer que aquilo que de novo e de único liga todos os sofistas é o ideal educativo da retórica ε,˜υ λε¿γειν: isso é comum a todos os representantes da sofística, ao passo que diferem na apreciação do resto das coisas, a ponto de ter havido sofistas, como Górgias, que só foram retóricos, e não ensinaram outra coisa5. Comum a todos é antes o fato de serem mestres da areté política6 e aspirarem a alcançá-la mediante o fomento da formação espiritual, qualquer que fosse a sua opinião sobre a maneira de realizá-la. Nunca podemos deixar de nos maravilhar diante da riqueza dos novos e perenes conhecimentos educativos que os sofistas trouxeram ao mundo. Foram os criadores da formação espiritual e da arte educativa que a ela conduz. É claro que, em contrapartida, a nova educação, precisamente porque ultrapassava o meramente formal e material e atacava os problemas mais profundos da moralidade e do Estado, se arriscava a cair nas maiores parcialidades, caso não se fundamentasse, numa investigação séria e num pensamento filosófico rigoroso, que buscassem a verdade por si mesma. Foi a partir desse ponto de vista que Platão e Aristóteles impugnaram mais tarde o sistema total da educação sofística e o abalaram nos próprios fundamentos.

Isso nos leva ao problema da posição dos sofistas na história da filosofia e da ciência gregas. É fato notável e curioso que tradicionalmente se tenha aceitado como evidente que a sofística constituía um membro orgânico do desenvolvimento filosófico, como fazem as histórias da filosofia grega. Não se pode invocar Platão, porque sempre que faz os sofistas intervirem nos seus diálogos é pela sua aspiração a serem mestres da areté, quer dizer, em ligação com a vida e com a prática, e não com a ciência. A única exceção é a crítica da teoria do conhecimento feita por Protágoras no Teeteto7. Existe aqui, de fato, uma conexão entre a sofística e a filosofia, mas limita-se a um só representante, e a ponte é bastante estreita. A história da filosofia que Aristóteles nos dá na Metafísica não inclui os sofistas. As mais recentes histórias da filosofia consideram-nos como fundadores do subjetivismo e do relativismo filosóficos. O esboço de uma teoria por parte de Protágoras não justifica tais generalizações e é um erro evidente de perspectiva histórica pôr os mestres da areté ao lado de pensadores do estilo de Anaximandro, Parmênides ou Heráclito.”

4. PLATÃO, Prot., 325 E ss. Platão faz o próprio Protágoras formular a sua posição e a da sua ideia política e ética da educação, contra a polimatia de Hípias de Élis, Prot., 318 E.

5. GOMPERZ, Sophistik und Rethorik. Das bildungsideal des ε,˜υ λε¿γειν in seinem Verhältnis zur Philosophie des 5. Jhrh. (Leipzig, 1912).

6. PLATÃO, Prot., 318 E ss.; Men., 91 A ss. e outros.

7. PLATÃO, Teeteto, 152, A.

 

 

“O que para os sofistas é decisivo é a ideia consciente da educação como tal. Se voltarmos os olhos para o caminho percorrido pelo espírito grego desde Homero até o período ático, não surgirá essa ideia como algo de surpreendente, mas sim como o fruto histórico necessário e amadurecido de toda aquela evolução. É a manifestação do esforço constante da poesia e do pensamento grego para conseguirem uma expressão normativa da forma do Homem. Este esforço essencialmente educativo tinha de levar, sobretudo num povo de consciência filosófica tão viva, à formação do ideal consciente da educação, no sentido elevado que aqui lhe descobrimos. Torna-se assim muito natural que os sofistas tenham vinculado o ideal da educação às antigas criações do espírito grego e as tenham considerado como conteúdo próprio dele. A força educativa da obra dos poetas era algo que se pressupunha sem contestação para o povo grego. A sua íntima interpenetração com o conteúdo total da educação tinha de operar-se forçosamente no instante em que a ação educativa (παιδευ¿ειν) deixou de limitar-se exclusivamente à infância (παιªς) e se passou a aplicar com especial vigor ao homem adulto, não deparando já com limites fixos na vida do homem. Foi então que pela primeira vez surgiu uma paideía do homem adulto. O conceito, que originariamente designava apenas o processo da educação como tal, estendeu ao aspecto objetivo e de conteúdo a esfera do seu significado, exatamente como a palavra alemã Bildung (formação) ou a equivalente latina cultura, do processo da formação passaram a designar o ser formado e o próprio conteúdo da cultura, e por fim abarcaram, na totalidade, o mundo da cultura espiritual: o mundo em que nasce o homem individual, pelo simples fato de pertencer ao seu povo ou a um círculo social determinado. A construção histórica desse mundo da cultura atinge o seu apogeu no momento em que se chega à ideia consciente da educação. Torna-se assim claro e natural o fato de os gregos, a partir do século IV, quando este conceito encontrou a sua cristalização definitiva, terem dado o nome de paideía a todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como nós o designamos por Bildung ou, com a palavra latina, cultura.

Os sofistas constituem, sob este ponto de vista, um fenômeno central. São os criadores da consciência cultural em que o espírito grego alcançou o seu télos e a íntima segurança da sua própria forma e orientação. O fato de terem contribuído para o aparecimento desse conceito e dessa consciência é muito mais importante que a circunstância de não terem alcançado a sua expressão definitiva. Num momento em que todas as formas tradicionais da existência se esboroavam, ganharam e deram ao povo a consciência de que a formação humana era a grande tarefa histórica que lhe fora confiada. Descobriram assim o centro em torno do que deve partir toda a estruturação consciente da vida. Adquirir consciência é uma grandeza, mas é a grandeza da posteridade. É este um outro aspecto do fenômeno sofístico. Talvez não seja preciso justificar a afirmação de que o período que vai da sofística a Platão e Aristóteles alcança uma vasta e permanente elevação na evolução do espírito grego; ainda assim, porém, conserva toda a sua força a frase de Hegel que diz que a coruja de Atena só levanta voo ao declinar o dia. Foi só à custa da sua juventude que o espírito grego, cujos mensageiros são os sofistas, alcançou o domínio do mundo. Assim se compreende que Nietzsche e Bachofen tenham visto na época de Homero ou na tragédia, antes do despertar da ratio, o apogeu dos tempos. Mas não se pode aceitar essa valoração absoluta e romântica dos tempos primitivos. O desenvolvimento do espírito das nações, como o dos indivíduos, segue uma lei inexorável, e tem de ser forçosamente divergente a sua impressão sobre a posteridade histórica. Sentimos com dor a perda que acarreta o desenvolvimento do espírito. Mas não podemos desprezar nenhuma das suas forças e sabemos muito bem que é só por isso que somos capazes de admirar sem restrições o primitivo. É necessariamente essa a nossa posição; encontramo-nos num estágio avançado da cultura, e em muitos aspectos procedemos também dos sofistas. Estão muito mais “próximos” de nós que Píndaro ou Ésquilo. Por isso é que precisamos tanto destes. Foi precisamente com os sofistas que ganhamos íntima consciência de que a “continuidade” dos estágios primitivos na estrutura histórica da cultura não é uma palavra vazia, pois não podemos afirmar e admirar os novos estágios sem que neles estejam assumidos os primeiros.”

 

 

“Na paz, mais facilmente se dão ouvidos à razão, porque os homens não estão oprimidos por necessidades prementes. A guerra, porém, restringe em muito as possibilidades exteriores da vida e força a massa a adaptar as suas convicções às necessidades de momento. No decurso das revoluções que a guerra acarreta, mudam bruscamente as opiniões e sucedem-se as conjuras de atos de vingança; e a recordação das revoluções passadas e das paixões associadas a elas aumenta a gravidade dos nossos próprios transtornos.

A esse propósito, Tucídides fala da transformação dos valores vigentes, revelada na total mudança do significado das palavras. Palavras que antigamente designavam os mais altos valores passam a significar, no uso corrente, ideias e ações vergonhosas, e outras que exprimiam coisas reprováveis fazem agora carreira e chegam a designar os mais nobres predicados. Agora, considera-se coragem e lealdade a temeridade insensata, e a reserva prudente é considerada como covardia disfarçada em belas palavras. A circunspecção é pretexto para a fraqueza, e a reflexão, falta de energia e de eficiência. A loucura decidida é encarada como sinal de autêntica virilidade, a reflexão madura, como hábil evasão. Quanto mais alto alguém insulta e injuria, tanto mais leal é considerado, e logo se olha como suspeito quem se atreve a contradizê-lo. A intriga sagaz é tida por inteligência política e quem a consegue tecer é o gênio supremo. Aquele que prudentemente se esforça por não precisar fazer apelo a esses meios é acusado de falta de espírito de grupo e de medo perante o inimigo. O parentesco de sangue é considerado um laço mais frágil que o pertencimento a um partido. Assim os camaradas de partido estão mais dispostos à aventura desenfreada. Não é para apoiar as leis existentes que associações como essas entram em concordância, mas sim para ir contra todo o direito e aumentar o poder e a riqueza pessoal. Até os juramentos que unem os membros do mesmo partido valem menos pelo seu caráter sagrado do que pela consciência do crime comum. Em nenhum lugar existe uma centelha de lealdade e de confiança entre os homens. Quando os partidos contendores veem-se forçados por esgotamento ou por circunstâncias desfavoráveis a concluir pactos e a selá-los com o juramento, todos sabem que isso é só um sinal de fraqueza e que não se devem sentir ligados por eles, mas que o inimigo se servirá do juramento apenas para se reforçar, e aproveitará a primeira ocasião para atacar com maior segurança o seu adversário incauto e inerme. Os chefes, tanto democratas como aristocratas, tinham na boca as grandes palavras do seu partido, mas, na realidade, não era por um alto ideal que se batiam. Os únicos móveis da ação eram o poder, a ambição e o orgulho, e mesmo quando invocavam os antigos ideais políticos só se tratava de palavras.

A decomposição da sociedade era apenas a aparência exterior da íntima decomposição do Homem. A própria dureza da guerra atua de modo completamente diverso num povo interiormente são e numa nação cujas escalas de valor estejam corroídas pelo individualismo. Assim, nunca a formação estética e intelectual atingiu um nível tão alto como na Atenas daquele tempo.”

1. TUCÍDIDES, III, 82.

 

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Livro III

 

“Para Platão, ao contrário dos grandes filósofos da natureza da época pré-socrática, não é o desejo de resolver o enigma do universo como tal que justifica todos os seus esforços pelo conhecimento da verdade, mas sim a necessidade do conhecimento para a conservação e estruturação da vida. Platão aspira a realizar a verdadeira comunidade, como o espaço dentro do qual se deve consumar a suprema virtude do Homem. A sua obra de reformador está animada do espírito educador da socrática, que não se contenta em contemplar a essência das coisas, mas quer criar o bem. Toda a obra escrita de Platão culmina nos dois grandes sistemas educacionais que são a República e as Leis, e o seu pensamento gira constantemente em torno do problema das premissas filosóficas de toda educação, e tem consciência de si próprio como a suprema força educadora de homens.”

 

 

“O problema central da República, que mais tarde se revelará como o ponto culminante da obra educativa de Platão – o conhecimento da ideia do Bem – projeta os seus resplendores para trás, até as primeiras obras deste autor.

Só examinando nesse enquadramento as primeiras obras de Platão descobriremos o significado que têm para o seu autor, no conjunto da sua filosofia. Reconhecemos agora que tudo o que desde o primeiro instante ele tem em mente não é outra coisa senão o Estado. Na sua obra política essencial, Platão fundamenta a pretensão dos filósofos a reger o Estado no fato de serem eles quem possuem o conhecimento do Bem, e portanto o conhecimento da norma suprema fundamental para a edificação da sociedade humana, para a qual se deve orientar toda a vida do Homem. O fato de já os seus primeiros escritos, partindo de pontos diferentes, convergirem todos com precisão matemática para esse centro revela-nos como traço fundamental de todo o pensamento platônico a projeção arquitetônica em direção a uma meta, o que distingue a obra de escritor do filósofo-poeta daquela de qualquer poeta não filósofo22. O objetivo é claro para Platão, e aos olhos do autor o problema ergue-se já nos seus contornos gerais, quando ele empunha a pena para escrever o primeiro dos seus diálogos socráticos. Já nos seus escritos mais antigos se desenha com clareza total a enteléquia da República. A forma como o autor plasma os seus pensamentos é absolutamente nova e peculiar. É uma das maiores revelações da capacidade orgânica de modelação do espírito grego. Guiada por uma inteligência soberana que, sem nunca perder de vista a meta suprema, parece entregar-se, como se jogasse, à plena liberdade do seu capricho criador na modelação dos pormenores, aquela capacidade podia, no seu conjunto, comparar-se ao crescimento seguro de uma planta. Ante essa forma de produção, nada seria mais enganoso do que equiparar o aspecto dos primeiros planos, que a cada passo se revelam nessas cenas mutáveis, à vastidão total do horizonte platônico nessa época. A maior censura que se pode fazer a muitos representantes do método histórico-evolutivo, tanto no que se refere à sua defeituosa concepção artística como quanto à sua deficiente concepção filosófica, é partirem da hipótese de que, em todas e cada uma das suas obras, Platão diz tudo o que sabe e pensa23. O efeito incomparavelmente profundo que até o menor diálogo exerce sobre o leitor obedece precisamente a que a investigação de um problema isolado e delimitado, que nele se desenvolve em conceitos exatos e que por si parece algo de sóbrio e modesto, aponta sempre, por cima dessa investigação, para o amplo horizonte filosófico no qual se projeta.

Já o próprio Sócrates considerava uma missão política a educação na areté que ele preconizava, pois aquilo com que ele se preocupava era a “virtude cívica”. Nesse sentido, Platão não precisava dar feição nova à dialética de Sócrates; ao contrário, quando desde as suas primeiras obras encarava a sua tarefa moral de educador como um trabalho de edificação do próprio Estado, não fazia mais do que seguir diretamente a senda da concepção do mestre. Na Apologia, esse labor é apresentado como um serviço prestado à cidade pátria de Atenas24, e no Górgias é igualmente a grandeza de Sócrates como estadista e educador que nos dá a pauta pela qual se devem medir as realizações dos políticos de Atenas25. Platão, porém, segundo o seu próprio testemunho exarado na Carta VII – que tem a esse respeito um valor inestimável para nós –, já nessa primeira fase havia chegado à conclusão radical de que as aspirações de Sócrates não se podiam vir a realizar plenamente em nenhum dos Estados existentes26.

Platão e seus irmãos Gláucon e Adimanto, que ele, de modo muito significativo, apresenta precisamente na República como discípulos e interlocutores de Sócrates, pertenciam evidentemente, como Crítias e Alcibíades, àquela juventude da antiga nobreza ática que, de acordo com as tradições familiares, sentia-se chamada a dirigir o Estado e buscava em Sócrates o mestre da virtude política. Era de bom grado que os jovens aristocratas, criados num ambiente de crítica severa à forma da democracia vigente em Atenas, davam ouvidos a uma mensagem que, como aquela, pretendia melhorar moralmente a pólis. Mas, enquanto para homens como Alcibíades e Crítias essa doutrina não fazia mais do que atiçar a fogueira dos seus ambiciosos planos de golpes de Estado, para Platão, que o seu tio Crítias convidou a colaborar no novo Estado autocrático, após a derrocada da constituição democrática vigente, era visível a incompatibilidade daquele regime com as ideias de Sócrates, e foi por isso que ele se negou a cooperar27. O conflito suscitado entre o próprio Sócrates e o Governo dos Trinta, e a proibição de aquele continuar a sua obra de ensino eram para Platão sintomas infalíveis da podridão moral do novo Estado28. Depois da restauração da democracia e da queda dos Trinta, observamos nele uma segunda tentativa de participação na vida política; e foi de novo o conflito entre Sócrates e o Estado democrático, com o seu trágico desfecho, que inibiu Platão, após um breve período, de seguir esse caminho, e o levou a abster-se de qualquer ação política29. A duplicidade desse acontecimento gerou nele a certeza de que não foram a constituição democrática ou oligárquica, como tais, mas sim única e exclusivamente a degenerescência moral do Estado vigente, fossem quais fossem as suas formas, o que o arrastou a um conflito mortal com o mais justo dos seus cidadãos.

Platão julgava agora dar-se conta de que, por mais profunda que fosse, a visão de um indivíduo isolado nunca podia melhorar a situação, se ele não contasse com amigos e companheiros de ideias idênticas às dele. É no tempo daquelas experiências por ele vividas que na Carta sétima situa a origem da profunda resignação que doravante seria o estado de ânimo fundamental e dominante da sua vida diante do problema que considerava supremo: o problema do Estado. Chegara à convicção de que para um homem como ele, plenamente possuído da vontade educacional de Sócrates, seria um absurdo esbanjamento de si próprio imiscuir-se ativamente na vida política de Atenas, pois lhe parecia que o Estado existente, e não só o ateniense mas todos eles, estava condenado a desaparecer, se não o salvasse um milagre divino30. Sócrates vivera única e exclusivamente devotado à sua paixão de educador, sem para nada se preocupar com o poder, que outros disputavam; é que o Estado (αυ¹τηì η¸ πο¿λις) para o qual ele vivia e agia era uma ordem ideal puramente ética31.

E essa ordem só se podia impor por si própria. Platão tinha de si o autêntico instinto político, e a nova feição imprimida por Sócrates ao seu pensamento e à sua vontade não foi nunca tal que chegasse a embotar o seu sentido político inato. Sócrates absteve-se de agir na vida política, porque a sua capacidade para ajudar o Estado assentava num campo diferente32. Platão afastou-se do Estado porque compreendeu que não dispunha do poder necessário para pôr em prática o que a sua consciência lhe ditava como sendo bom33. Mas a sua aspiração continuou sempre a visar o objetivo de realizar de qualquer modo o melhor dos Estados e conjugar duas coisas que na Terra estão geralmente divorciadas: o poder e a sabedoria34. Foi isto e a sua experiência vivida do choque de Sócrates com o Estado o que cedo lhe inspirou a ideia política fundamental da sua vida: a de que nem o Estado nem a vida da sociedade humana melhorariam, enquanto os filósofos não se fizessem governantes ou os governantes não se convertessem em filósofos.”

23. Sobre essa questão, cf. as minhas exposições em “Platos Stellung im Aufbau der griechischen Bildung”, em Die Antike (1928, vol. IV, p. 92).

24. Cf. a nota 198 do cap. II.

25. Górgias, 517 C, 519 A, 521 D.

26. Carta VII, 326 A-B.

22. Isso não foi levado em conta por WILAMOWITZ, vol. I, pp. 122 ss., na sua imagem de Platão como poeta.

27. Carta VII, 325 D.

28. Carta VII, 324 D-E. Cf. o muito que se diz sobre isso em XENOFONTE, Mem., I, 2, 31-37.

29. Carta VII, 325 A ss.

30. Carta VII, 325 E, 326 B. Cf. a famosa passagem em Rep., 473 D. Que essa concepção não é precisamente resultado da sua evolução posterior, mas sim que já vivia nele desde o princípio, prova-o a Apol., 31 E, e a recapitulação dos mesmos pontos em Apol., 36 B.

31. Apol., 36 C.

32. Apol., 36 B.

33. Carta VII, 325 E ss.

34. Carta VII, 325 E, 326 A. Na República, 499 C, insiste também na possibilidade de chegar a realizar o melhor Estado possível, ainda que de momento faltasse o kairós para ele.

 

 

“Se a nossa interpretação não erra, Platão julgava captar, com a sua teoria das ideias, o sentido e a essência da dialética socrática e tentava formular claramente as suas premissas teóricas. Essa teoria tem implícito um novo conceito de conhecimento, substancialmente diverso da percepção sensorial, e um novo conceito do Ser ou do real, distinto do que tinham os antigos filósofos da natureza. Quando Platão aponta dentro do múltiplo o uno, que o método dialético procura captar como forma ou, dito em grego, como ideia ou eîdos, apoia-se na terminologia da Medicina do seu tempo, que, no aspecto metódico, tantas vezes invoca como modelo47. Do mesmo modo que o médico agrupa toda uma série de casos concretos diversos, porém do mesmo caráter essencial, na categoria de uma única forma ou eîdos da doença, assim a investigação dialética dos problemas éticos, da valentia por exemplo, deve agrupar numa unidade os diversos casos aos quais se aplica aquele predicado. Partindo daqui, vemos como o movimento dialético se vai elevando já nos primeiros diálogos até chegar à virtude em si, na unidade da qual Sócrates sintetizava as várias virtudes particulares. A investigação da virtude particular leva constantemente, não a distingui-la das outras, como a princípio poderia parecer, mas sim àquela unidade superior a tudo o que é virtude, ao bem em si e ao seu conhecimento.

Num escrito posterior, Platão descreve a essência do processo dialético do conhecimento como uma sinopse48, a síntese do diverso na unidade da ideia. E é isto precisamente o que se faz nos diálogos menores. A pergunta o que é a valentia?, discutida no Laques, parece tender à definição desta virtude concreta; porém, o que na realidade se faz não é definir a valentia, mas sim levar-nos à unidade dessa virtude com as demais, à virtude em geral. Portanto, o “resultado negativo” do diálogo está relacionado com o caráter sinóptico da investigação como tal. A pergunta o que é a valentia? não tende na realidade à definição do “conceito” de valentia, mas sim à virtude em si, isto é, à ideia do bem. E não é só na argumentação metódica desenrolada dentro de cada diálogo que se manifesta o caráter sinóptico da dialética dos primeiros diálogos, orientados para a síntese do múltiplo na ideia; esse caráter é acusado com maior força ainda no método concêntrico já referido e usado por Platão em todo esse grupo de diálogos. Partindo da investigação de cada virtude, em separado, Platão demonstra que toda tentativa de definir cada uma delas em si própria leva necessariamente à sintetização de todas numa só virtude, a partir da qual é possível conhecê-las todas.

Em vista disso, tem uma importância meramente secundária o fato de a palavra ideia ou eîdos, com a qual Platão designa tecnicamente esse ponto de vista, aparecer ou não nos diálogos a que nos estamos referindo49. Assim como nessas obras de iniciação Platão não dá a entender que a investigação das diversas virtudes concretas que nelas são examinadas e a descoberta da nova ideia de um conhecimento do bem em si tendem a levantar sobre essa base o novo edifício do Estado, também não podemos esperar que logo desde o primeiro instante assuste o leitor com um sistema cerrado como o da teoria das ideias. É que o que ele busca principalmente é chamar-lhe a atenção para o problema. Nenhuma das suas obras contém uma completa exposição da teoria das ideias, nesse sentido, nem sequer na época em que a existência dessa teoria se pode comprovar por meio de repetidas referências a ela. Nos próprios diálogos do período intermediário, essa teoria é simplesmente exposta à luz de exemplos concretos ou dada como suposta, ou então apontam-se apenas alguns dos seus traços fundamentais, acessíveis até a inteligência do leitor não iniciado. São poucas as passagens em que Platão entra no exame dos problemas mais espinhosos da teoria das ideias. Pelas informações pormenorizadas de Aristóteles sobre a chamada fase matemática da teoria das ideias, na qual Platão procura explicar as ideias com a ajuda dos números, verificamos com assombro que ele e os seus discípulos elaboraram na Academia uma doutrina de cuja existência os diálogos daquele período nem sequer nos permitem suspeitar, ao passo que a ajuda de Aristóteles nos põe em condições de descobrirmos ao menos alguns indícios isolados da sua influência neles50. É aqui, porém, que reconhecemos a rigorosa linha divisória entre uma discussão esotérica da escola e aquele aspecto da filosofia platônica que era mostrado ao mundo exterior. O retraimento de Platão, nos primeiros diálogos, em relação à teoria das ideias tem outro sentido, dado que já naquele momento Platão tinha de compreender claramente que essa base do seu pensamento ético-político, de momento ainda esotérica, haveria de desvendar ao mundo os seus traços fundamentais, em escritos posteriores. Aliás, nem é certo que as primeiras obras de Platão não contivessem qualquer alusão à existência da teoria das ideias, pois já no Eutífron, que todos os autores classificam entre os diálogos da primeira fase, fala-se do objeto da investigação dialética como de uma ideia; e referências semelhantes a esta encontramos também em outros diálogos do mesmo período51.

A imagem assim obtida da obra escrita de Platão dos anos seguintes à morte de Sócrates revela-nos com a maior clareza a unidade orgânica existente entre toda a sua produção e o seu pensamento filosófico. Os diálogos menores surgem assim como uma introdução ao problema central do pensamento platônico, nos seus dois aspectos: o intrínseco e o formal. Esse problema é o do melhor Estado possível. Platão projeta sobre ele a convicção socrática de que a virtude consiste no conhecimento do bem. Se não é ilusória essa convicção, deduz-se daqui que a edificação da comunidade humana sobre essa base, por meio da educação, constitui uma exigência necessária, onde se devem concentrar todas as energias. Platão, ainda antes de fixar os olhos dos seus leitores nessa meta, inicia-os, com as primeiras obras, na formulação do problema que é um pressuposto para a consecução daquele objetivo, o problema da virtude e do saber, embora seja certo que só nos dois diálogos seguintes, o Protágoras e o Górgias, leva-nos ao conhecimento pleno da importância de tal problema. É aqui que ele o formula e o expõe dentro da grande concatenação em que o vê enquadrado. Por conseguinte, o leitor que não passar dos diálogos menores não chegará a ver completamente claro. Sentir-se-á, porém, irresistivelmente empurrado para diante e procurará, mediante um exame de conjunto, chegar às conclusões que ainda lhe faltam. Veremos confirmada nos escritos posteriores essa concepção da obra platônica. Na elaboração das suas obras, desde a Apologia até o Górgias e deste até a República, Platão teve necessariamente de se propor como plano ir elevando o Homem de degrau em degrau até a vigia mais alta donde poderia abarcar, enfim, todo o horizonte da sua filosofia. Seria afirmar demais dizer que cada uma das suas obras já estava preconcebida nessa época e tinha de antemão designado o seu lugar no plano de conjunto traçado pelo autor. O que se pode assegurar, sim, porque é evidente, é que a tendência histórico-evolutiva do século XIX liga pouco demais para as numerosas linhas de conexão que Platão traça entre umas e outras obras, e por meio das quais nos dá a entender que todas elas vão gradualmente cobrindo um grande problema de conjunto e formam uma grande unidade em que o primeiro passo só é plenamente explicado pelo último52.

Se olharmos em conjunto essa obra escrita e dela subirmos até o seu início, iremos vê-la animada por uma ideia fundamental, exposta sob a forma do diálogo socrático, a qual consiste em fazer com que o leitor vá paulatinamente penetrando, cada vez mais, nas entranhas da filosofia, e se dê conta do entrecruzamento dos diversos problemas entre si. A ideia de semelhante empreendimento corresponde à concepção pedagógica da essência do método filosófico cuja imagem as obras de Platão nos apresentam e advogam. E o fator pedagógico não reside apenas na força do diálogo, dirigido a estimular o leitor, para que se adiante ao autor com o seu pensamento ou então o acompanhe, desencadeando assim a sua própria produtividade. O repetido fracasso dos esforços empregados em descobrir a verdade e presenciados pelo leitor faz com que este compreenda pouco a pouco, com clareza cada vez maior, a dificuldade de chegar a um conhecimento real e adquira a consciência das premissas que até então admitia como evidentes e que constituem o fundamento da própria existência. Descobre as fontes de erro do seu pensamento e dá-se conta do caráter discutível da opinião dominante, compreendendo que é um preceito supremo de pureza intelectual fundamentar os seus juízos e exigir que os outros os fundamentem também. E não é só nos diálogos filosóficos que ele aplica estas verdades, pois reconhece a importância que têm para o conjunto da vida e da conduta do homem. Assim, tem por força de ir amadurecendo nele o desejo de cimentar nestas bases a sua própria existência, dando-lhe desse modo uma estrutura interna e uma orientação firme. O poder educador de Sócrates, que Platão conhecera por experiência própria, iria encarnar nos diálogos deste último e conquistar o mundo, fazendo-lhe compreender claramente, através de uma ampla reflexão, a sua própria essência e o seu próprio fim.”

47. Cf., adiante, liv. IV, cap. I.

48. Rep., II, 537 C: o verdadeiro dialético é o sinóptico, capaz de abarcar as coisas no conjunto. A mesma descrição do dialético aparece no Fedro, 265 D.

49. O cotejo do emprego dos conceitos eîdos e idéa nos diálogos de Platão, para chegar a resultados concludentes, teria de abarcar também outras palavras e expressões usadas para descrever o uno no múltiplo, tais como ο¸πο¿τε ε¹στι¿ν, αυ¹τοì οà ε¹στι¿ν e outras do mesmo estilo.

50. ARISTÓTELES, Metaf., M e N.

51. Eutífron, 6 E. Cf. a lista de exemplos das palavras eîdos e idéa que CRITER dá em Neue Untersuchungen über Platon (Munique, 1910), pp. 228-326.

52. É essa a verdade permanente da interpretação de Platão por Schleiermacher perante a de todos os que vêm depois dele. Há que reconhecer em Paul SHOREY, The Unity of Plato’s Thought (Chicago, 1904), o mérito de ter persistido firmemente nesse ponto de vista numa época em que a teoria da evolução ameaçava desintegrar por completo essa unidade. O próprio Shorey expôs com toda a clareza (p. 88) que unity does not preclude development.

 

 

“Nosso conceito de arte não reflete adequadamente o sentido da palavra grega. Esta tem em comum com a arte a tendência à aplicação e ao aspecto prático. Por outro lado, em oposição à tendência individual criadora não submetida à nenhuma regra (para muitos implícita hoje na palavra arte), acentua o fator concreto do saber e da aptidão, que para nós estão ligados ao conceito de especialidade. A palavra tékhne tem em grego um raio de ação muito mais extenso que a nossa palavra arte. Designa toda profissão prática baseada em determinados conhecimentos especializados e, portanto, não só a pintura, a escultura, a arquitetura e a música, mas também, e talvez com maior razão ainda, a medicina, a estratégia militar ou a arte da navegação. Aquela palavra significa que essas tarefas práticas ou essas atividades profissionais não correspondem a mera rotina, mas baseiam-se em regras gerais e conhecimentos sólidos; nesse sentido, o grego tékhne corresponde frequentemente, na terminologia filosófica de Platão e Aristóteles, à moderna palavra teoria, sobretudo nos passos em que se contrapõe à mera experiência20. Tékhne, por sua vez, distingue-se, como teoria, da “teoria” no sentido platônico de “ciência pura”, já que aquela teoria (a tékhne) é sempre concebida em função de uma prática21. (...)

(Para Platão) as características essenciais do conceito de tékhne são: primeira, é um saber baseado no conhecimento da verdadeira natureza do seu objeto; segunda, é capaz de dar conta das suas atividades sempre que tem consciência das razões, segundo as quais procede; finalmente, tem por missão servir a parte melhor do objeto de que se ocupa.”

20. ARISTÓTELES, Metaf., A 1, 981 a 5, entende por tékhne a hipótese geral (υ¸πο¿ληψις), formulada a partir de casos análogos, depois de numerosas observações da experiência.

21. A tékhne partilha com a empeiría (experiência) o caráter prático. Cf. ARISTÓTELES, loc. cit., 981 a 12.

 

 

“A objeção mais forte e mais ao alcance da mão que Polo tem para opor ao pouco apreço em que Sócrates (como personagem do livro Górgias de Platão) tem a retórica é a enorme influência que ela realmente exerce na vida política35. A ânsia de poder é uma tendência enraizada fundo demais na natureza humana para que a possamos arrancar com facilidade. Mas, se o poder é uma coisa grande, terá de se reconhecer que a força que nos ajuda a obtê-lo tem suma importância também. Por aqui se vê que o problema, que parecia um problema científico, meramente interno, de saber se a retórica tem ou não um saber exato e especializado, impele-nos a decisões de grande alcance. Obriga-nos a firmar posição no problema da essência e valor do poder. Em face desse problema, Polo não adota posição diferente daquela da massa. Tal como no Protágoras, Platão pretende aqui demonstrar que os sofistas e retóricos, embora tenham aperfeiçoado até o requinte os meios técnicos de cultura e de influência sobre os homens, continuam a dar guarida às ideias mais primitivas, quanto à finalidade visada por esses meios36. A concepção que dessa finalidade se tiver dependerá, segundo Platão, do que se pensar a respeito da natureza humana. Platão opõe um novo humanismo ao humanismo dos sofistas e retóricos. Os grandes retóricos partem praticamente de uma concepção da natureza humana, baseada no mero instinto. A sua grande ilusão é poderem fazer dos seus semelhantes o que lhes der na cabeça. Ainda que a maioria deles atue politicamente em Estados democráticos, o seu ideal coincide com os dos tiranos, que é o de dispor de um poder total sobre a vida e sobre a morte, dentro do Estado37. Até o cidadão mais modesto tem dentro de si essa necessidade de poder e sente no seu íntimo uma grande admiração por quem consegue alcançá-lo neste grau supremo38. O carpinteiro filósofo de Arquíloco, que exclama, de mão sobre o coração: Eu não aspiro ao poder dos tiranos, constitui sem dúvida a exceção que confirma a regra39. O próprio Sólon, quando, depois de pôr fim à sua obra de legislador, restituiu ao povo o seu poder absoluto e ilimitado, nos diz na sua defesa que todos o julgavam tolo por não se fazer tirano; e não só os seus companheiros da nobreza, ávidos de poder, mas também o povo, ansioso de “liberdade”40. Assim pensa também Polo, que não consegue compreender como Sócrates pode não julgar apetecível o poder do tirano41. E resta-lhe ainda o último trunfo, que ele joga, ao perguntar se porventura não se deve julgar ditoso o rei dos persas. E, como Sócrates responde: Não sei, pois ignoro qual é a sua paideia e a sua justiça, Polo, sem se poder conter, atira-lhe esta pergunta surpreendente: Como? É nisso que se baseia toda a felicidade?42.

Não é por mero capricho que nesse deslindar de duas concepções do mundo diametralmente opostas se enfrentam com tanta nitidez os conceitos de poder e de paideía. Embora esses conceitos não tenham, aparentemente, quaisquer relações um com o outro, eles representam para Platão, como revela precisamente essa passagem, duas concepções antagônicas da felicidade humana, que é o mesmo que dizer da natureza humana.

Temos de optar entre a filosofia do poder e a filosofia da educação. É essa uma passagem muito indicada para a propósito dela explicar o que Platão entende por paideía. Não se trata de uma simples estação de trânsito na evolução do Homem e em que desabrocham determinados dotes do seu espírito43, mas tem importância muito maior, pois exprime o aperfeiçoamento geral do Homem, conforme o destino da sua própria natureza. A filosofia do poder é uma doutrina baseada na violência. Em toda parte, na natureza e na vida do Homem, vê luta e opressão, e por isso considera sancionada a violência. O seu sentido e razão de ser só se pode estribar na obtenção do máximo poder que seja alcançável44. A filosofia da educação, ao contrário, aponta ao Homem outro objetivo, o da kalokagathía. Platão define a essência desta filosofia por oposição à injustiça e à maldade; concebe-a, portanto, em sentido essencialmente ético45. Todavia, a formação humana com base na kalokagathía não é de modo nenhum para ele algo que se oponha à natureza; corresponde, sim, a uma concepção diferente da natureza humana, que Sócrates desenvolve minuciosamente. É aqui que se revela o fundamento da sua crítica da retórica. Segundo esta concepção, não é a violência, mas sim a cultura, a paideía, que constitui o verdadeiro sentido da natureza humana.

Ao dar o epíteto de “naturalismo” à filosofia do poder (como nos sentimos inclinados a fazer, do ponto de vista do Cristianismo), concedemos, no critério de Platão, demasiada honra a essa filosofia46. Seria inconcebível para o pensador grego que pretendessem opô-lo à natureza, que é para ele a pauta e a norma supremas. Ainda que se sustentasse, porém, que, segundo a elevada concepção grega, a missão do educador não é rebaixar a natureza, e sim sublimá-la, nem sequer esse ponto de vista correspondia bem ao modo de ver de Platão. A natureza não é para ele, como é para a pedagogia dos sofistas, a matéria concreta na qual o educador tem de modelar a sua obra de arte47; ela é o nome dado à própria areté no seu grau mais elevado, a qual só imperfeitamente se manifesta no homem individual48. A posição adotada por Platão em face do poder também não é pura e simplesmente a de condená-lo, sem mais, como algo de reprovável. Nesse terreno, como nos demais, a dialética platônica enfoca de dentro, no seu sentido e valor positivo, o conceito que analisa criticamente, e o transforma. Polo entende por poder a capacidade que o retórico ou o governante têm de fazer no Estado o que lhes parecer melhor49. Sócrates, ao contrário, parte do critério de que o poder tem de constituir um bem real para que o Homem deva aspirar a ele, e que agir como a cada um pareça melhor não é nenhum bem, quer se trate de um retórico quer de um tirano, porque não se baseia na razão50. Sócrates distingue, pois, os desejos arbitrários e a vontade. Quem faz só aquilo que lhe apraz corre atrás de um bem apenas aparente, que é o que o seu capricho pede. A nossa vontade, ao contrário, só pode ter como objeto um bem autêntico, pois, enquanto o conceito de desejo deixa perfeitamente margem a ilusões sobre o valor do que se deseja, ninguém pode “querer” conscientemente o que é mau e nocivo. Sócrates faz ainda distinção entre o fim e os meios51. Quem age não quer exatamente o que faz, mas aquilo por que o faz. E esse fim é por natureza o bom e o salutar, não o que é mau e pernicioso. A execução, o desterro e o confisco de bens, principais manifestações do poder do tirano, não podem constituir um fim, mas são apenas meios; e não poderemos “querê-los” no verdadeiro sentido da palavra, se não representarem um bem e forem só prejudiciais. Portanto, todo aquele que mandar matar, desterrar ou confiscar os bens, arbitrariamente e a seu bel-prazer, não fará o que quer, mas apenas o que julga apetecível. E assim, se o poder é um bem para quem o tem, aquele que domina pela violência não exerce um autêntico poder51a. Longe disso, será absolutamente infeliz, sempre que a eudaimonía for considerada como a verdadeira perfeição da natureza humana e o seu genuíno valor. E mais infeliz ainda será, sem dúvida, aquele que faltar à justiça, sem que a sua iniquidade seja castigada52. A injustiça, com efeito, é um estado patológico da alma, e a justiça a sua saúde. Segundo a concepção absolutamente médica que Platão tem da arte política, a justiça penal, que obriga o delinquente a prestar contas, tem para com a legislação as mesmas relações que a terapêutica do homem enfermo tem para com a dieta do homem são. A pena, ao contrário do que pretendia a antiga concepção jurídica dos gregos, não é expiação, mas curativo53. O único mal verdadeiro é a injustiça. Esse mal, porém, só afeta a alma de quem o comete, não de quem o padece54. E, se se pretende justificar a necessidade do poder com a afirmação de que serve para “nos proteger das injustiças”, Sócrates, no Górgias, opõe a tal o critério, inesperado entre os gregos, de que padecer uma injustiça é mal menor que praticá-la.”

33. Cf., acima, pp. 526 s.

34. Górg., 481 C. Se tu, Sócrates, falas a sério e é verdade o que dizes, não deveríamos chegar à conclusão de que a nossa vida humana caiu por terra, e de que somos em tudo visivelmente o contrário do que deveríamos ser?

35. Górg., 466 B ss. A capacidade que tem a retórica de conferir poder já se fazia ressaltar no discurso de Górgias: 451 D, 452 D, 456 A ss.

36. Cf., acima, p. 650.

37. Em Górg., 466 B 11 ss., toma-se como base essa definição do conceito do poder por Polo, que Sócrates refuta. O termo grego para expressar o conceito de poder nesse sentido era δυ¿ναμις, με¿γα δυ¿νασϑαι. Cf. 466 B 4, 466 D 7, 467 A 8, 469 D 2. Platão opõe na República o poder e o espírito, a dýnamis e a phrónesis. Dýnamis é poder no sentido físico; kratos, poder no sentido legal, político-jurídico.

38. Platão manifesta-se constantemente nesse sentido. Cf. Górg., 466 B 11, 466 D 7, 467 A 8, 469 C 3, 469 D 2 etc.

39. ARQUÍLOCO, frag. 22 (Diehl). Cf., acima, pp. 160 s.

40. SÓLON, frag. 23 (Diehl).

41. Górg., 469 C.

42. Górg., 470 E.

43. Isso se destaca de um modo expresso em Rep., 498 A 1 s.

44. Expõe-se isso com uma franqueza crua no discurso do enviado ateniense às negociações com a pequena ilha de Melos, que procura forçar ao abandono da sua neutralidade. TUCÍDIDES, V, 104-105. Cf., acima, pp. 459 ss. E, de modo semelhante, no discurso do embaixador em Esparta, TUCÍDIDES, I, 75-76. Cf., acima, p. 459.

45. Górg., 470 E 9.

46. Seria historicamente falso equiparar simplesmente a essa baixa concepção da “natureza” do homem em geral o ponto de vista cristão, que aparece plasmado em tantas formas e modalidades distintas.

47. Cf., acima, p. 363.

48. Levar-nos-ia muito longe citar todas as passagens que apoiam essa afirmação. A passagem principal no que se refere à equiparação da areté com o que é conforme à natureza humana (παραì ϕυ¿σιν) e do que é mau com o contrário à natureza (παραì ϕυ¿σιν) é Rep., 444 C-E. A areté é a saúde da alma; é portanto o estado normal, a verdadeira natureza do Homem. É nesse ponto decisiva a concepção médica que Platão possui da natureza como uma realidade que traz em si mesma a própria norma.

49. Górg., 466 C.

50. Sobre o que se segue, cf. Górg., 466 B ss., especialmente 467 A.

51. Górg., 467 C 5-468 C.

51a. Uma transmutação semelhante do conceito do poder, e da tendência para o poder (πλεονεξι¿α) em sentido moral, encontramos em Isócrates, no discurso da paz, 33. Cf., adiante, liv. IV. E foi tomada do Górgias e da República de Platão, com toda a argumentação da parte 31-35 desse discurso.

52. Górg., 472 E.

53. Cf. Prot., 324 A-B. Diz-se aqui que já no tempo dos sofistas se tinha abandonado a antiga concepção do castigo como retribuição (τοìν δρα¿σαντα παθειªν) sendo considerado como um meio de educação (teoria teleológica, não causal, da pena). Platão interpreta-o no sentido da sua concepção médica da arte do Estado e concebe a pena como processo de cura.

54. Górg., 477 A ss.

 

 

“Sócrates sempre se detivera no não saber. Platão, ao contrário, sente-se impetuosamente impelido a ir avançando até alcançar o saber. Apesar disso, é na ausência de saber que ele vê o sinal da verdadeira grandeza de Sócrates, pois Platão interpreta-a como as dores do parto de um tipo completamente novo de saber, que Sócrates trazia nas suas entranhas.”

 

 

“Os deuses não filosofam nem aprendem, porque estão na posse de toda a sabedoria. Por sua vez, os tolos e os ignorantes não aspiram a adquirir conhecimento, pois o verdadeiro mal da incultura reside precisamente em que, sem nada saber, julga saber muito. Só o filósofo aspira a conhecer, pois sabe que não conhece e sente necessidade de conhecer.” (Banquete, de Platão).

 

 

“Ora, o que significa para Platão o Estado? A sua República não é uma obra de direito político ou administrativo, de legislação ou de política, no sentido atual. Platão não parte de um povo histórico existente, como Atenas ou Esparta. Ainda quando se refere conscientemente às condições vigentes na Grécia, não se sente vinculado a um determinado torrão nem a uma cidade determinada. Na sua obra não há a mínima alusão aos fundamentos concretos do Estado. No âmbito da obra a que nos referimos, isto não interessa a Platão nem em sentido geográfico, nem em sentido antropológico. A criação de um tipo elevado de Homem, de que nos fala o Estado platônico, nada tem a ver com o povo em conjunto, concebido como raça. A grande massa da população, as suas vicissitudes, os seus costumes e nível de vida, são coisas que ficam à margem do estudo platônico ou só aparecem na sua periferia. Talvez as queiramos descobrir no “terceiro escalão” de que Platão fala, mas trata-se apenas de um objeto passivo do Governo5 que nem sequer nessa acepção ele julga digno de uma investigação mais demorada. (...)

Grandioso tema para os juristas, não só do nosso tempo, mas também da época de Platão, que pela primeira vez fez surgir a ciência comparada do Estado! Mas nem sequer sob este ponto de vista a atenção do filósofo incide sobre a vida jurídica real; é na teoria das “partes da alma” que desemboca a investigação do problema do que é justo6. O Estado de Platão versa, em última análise, sobre a alma do Homem. O que ele nos diz do Estado como tal e da sua estrutura, a chamada concepção orgânica do Estado, onde muitos veem a medula da República platônica, não tem outra função senão apresentar-nos a “imagem reflexa ampliada” da alma e da sua estrutura respectiva. E nem é numa atitude primariamente teórica que Platão se situa diante do problema da alma, mas antes numa atitude prática: na atitude do modelador de almas. A formação da alma é a alavanca com a qual ele faz o seu Sócrates mover todo o Estado7. O sentido do Estado, tal qual a sua obra fundamental o revela, não é diferente daquele que podíamos esperar, depois dos diálogos que a precederam, o Protágoras e o Górgias. É, se nos apoiamos na sua essência superior, a educação. E, depois de tudo o que já sabemos, nada de surpreendente pode apresentar este método de exposição do filósofo. Platão ilumina filosoficamente na comunidade estatal um dos pressupostos existenciais permanentes da paideía grega8. Mas sob a forma da paideía coloca ao mesmo tempo em primeiro plano aquele aspecto do Estado cujo descuido constitui a seu ver a razão principal da desvalorização e degenerescência da vida política do seu tempo. Desse modo, a politeía e a paideía, entre as quais muita gente devia ver, já naquele tempo, apenas relações muito vagas, tornam-se os pontos cardeais da obra de Platão.”

5. Isto se encontra relacionado com o rigoroso paralelo entre o Estado e a alma: a Platão, “o terceiro escalão” interessa unicamente como imagem reflexa do aspecto instintivo da alma do Homem.

6. Platão está pensando nas diferentes funções morais da alma, nas diferentes formas (ειãδη) que a sua atividade moral adota.

7. O intérprete neoplatônico Porfírio sublinhava acertadamente que a teoria das partes da alma em Platão não é psicologia no sentido corrente, mas sim psicologia moral. Aristóteles não a adota na sua obra de psicologia, mas usa-a nos trabalhos éticos. O seu significado é pedagógico. Ver o meu Nemesios von Emesa (Berlim, 1913), p. 61.

8. Repetidas vezes temos considerado assim a pólis. Cf. acima, pp. 106-7, 138, 374. No entanto, para Platão não se trata aqui das relações da paideía como um Estado historicamente dado, que a assuma como processo político, mas sim da sua projeção sobre a meta divina, a ideia do Bem, que se levanta no “centro” do “Estado perfeito”.

 

 

“A educação que Platão quer que seja dada aos seus “guardiões” antecipa-se, na forma interior inconsciente com que as obras das musas educam o Homem, aos conhecimentos supremos que a educação filosófica do seu tipo de governantes mais tarde porá em relevo de modo consciente. Platão aponta assim para um segundo tipo superior de cultura e já deixa transparecer claramente, ao mesmo tempo, os limites da educação pelas musas, o único tipo de cultura superior do espírito, na Grécia antiga. Essa educação adquire, além disso, um novo significado, como fase prévia irrecusável para o conhecimento filosófico puro, que sem a base da cultura musical ficaria flutuando no ar.

O conhecedor profundo dessas coisas advertirá que não se trata aqui precisamente de uma expressão psicológica sutil, mas mais ou menos fortuita; ao contrário, trata-se de um fundamental corolário pedagógico da teoria platônica do conhecimento. Segundo a teoria de Platão, por mais arguta que seja a inteligência, não tem acesso direto ao mundo dos valores, que, em última instância, é o que interessa à filosofia platônica. Na Carta sétima, o processo de conhecer é descrito como um processo gradual que se vai desenvolvendo ao longo da vida inteira e que faz a alma parecer-se cada vez mais com a essência dos valores que aspira a conhecer. O Bem não se pode conceber como algo de formal e conceptual situado fora de nós, sem previamente termos participado da sua natureza; o conhecimento do Bem só se desenvolve no Homem à medida que se vai tornando realidade e ganhando forma no próprio Homem128. Para Platão, pois, a educação do caráter é a via que conduz à educação dos olhos da inteligência, e que, sem o Homem ter consciência disso, modifica de tal maneira a sua natureza, pela ação das forças espirituais mais vigorosas – poesia, harmonia e ritmo –, que lhe é possível, finalmente, alcançar o princípio supremo, por meio de um processo que o vai aproximando da sua própria essência. Com a sua familiaridade habitual, Sócrates compara ao ensino elementar da leitura e da escrita a essência desse longo e trabalhoso processo educacional que forma o éthos do Homem129. É quando conhecemos as letras do alfabeto em todas as palavras e combinações que elas podem formar que dominamos a escrita, no pleno sentido da palavra. De igual modo podemos dizer que só temos uma cultura musical, no sentido pleno do termo, quando sabemos captar e apreciar devidamente, sempre e em todas as suas manifestações, no pequeno e no grande, as “formas” do domínio de si próprio e da prudência, da valentia e da generosidade, da distinção e de tudo o que se relaciona com eles, bem como as suas imagens130.”

128. Carta VII, 343 E-344 B.

129. Rep., 402 A.

130. Rep., 402 C.

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