Editora: L&PM Pocket
ISBN: 978-85-254-1942-2
Tradução: Sergio Faraco
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 384
Gravuras: Guadalupe Posada
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Sinopse: Ver Parte I
“A cultura do consumo, cultura do efêmero, condena tudo ao desuso
imediato. Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, posta a serviço da
necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos e são
substituídas por outras de vida não menos fugaz. Neste fim de século, em que só
a insegurança é permanente, as mercadorias, fabricadas para não durar, resultam
tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera. O
dinheiro voa na velocidade da luz, ontem estava lá, hoje está aqui, amanhã
ninguém sabe, e todo trabalhador é um desempregado em potência. Paradoxalmente,
os shopping centers, reinos da fugacidade, oferecem a mais bem-sucedida
ilusão de segurança. Eles existem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem
noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, muito além das
turbulências da perigosa realidade do mundo.
Nesses
santuários do bem-estar se pode fazer tudo, sem necessidade de se expor à
intempérie suja e ameaçadora. Até dormir se pode, segundo os últimos modelos de
shoppings, que em Los Angeles e Las Vegas incluem serviços de hotelaria
e ginásios. Os shoppings, que não estão sujeitos ao frio nem ao calor,
estão a salvo das contaminações e da violência. Michael A. Petti publica seus
conselhos científicos na imprensa mundial numa conhecida coluna chamada Viva
más. Nas cidades com má qualidade de ar, o doutor Petti aconselha a
quem quer viver mais: “Caminhe dentro de um centro comercial”. O cogumelo
atômico da contaminação pende sobre cidades como México, São Paulo e Santiago do
Chile, e nas esquinas o crime está à espreita; mas nesse neutro mundo fora do
mundo, ar asséptico, passeios vigiados, pode-se respirar e caminhar e comprar
sem riscos.
Os shoppings
são todos mais ou menos iguais, em Los Angeles ou em Bangkok, em Buenos Aires
ou em Glasgow. Esta unanimidade não os impede de competir na invenção de novos
atrativos para chamar clientes. No fim de 1991, a revista Veja exaltava
uma das novidades do shopping Praia de Belas, em Porto Alegre: “Para o
conforto dos bebês, são oferecidos carrinhos, facilitando assim o passeio
desses pequenos consumidores”. A segurança, contudo, é o artigo mais importante
que todos os shopping centers oferecem. A segurança, mercadoria de luxo,
está ao alcance de qualquer pessoa que penetre nesses bunkers. Em sua
infinita generosidade, a cultura do consumo nos proporciona o salvo-conduto
para a fuga do inferno das ruas. Rodeadas de imensas praias de estacionamento,
onde os automóveis esperam, essas ilhas oferecem espaços fechados e protegidos.
Ali pessoas se cruzam com pessoas, atraídas pelas vozes do consumo, como antes
pessoas se encontravam com pessoas, atraídas pelo prazer do encontro, nos cafés
ou nos espaços abertos das praças, nos parques e nos velhos mercados: em nossos
dias, esses lugares estão demasiadamente expostos aos riscos da violência
urbana. Nos shoppings não há perigo. A polícia pública e a polícia
particular, a polícia visível e a polícia invisível, conduzem os suspeitos à
rua ou à cadeia. Os pobres que não sabem disfarçar sua periculosidade
congênita, sobretudo os pobres de pele escura, podem ser culpados até que nunca
se prove sua inocência. E se são crianças, é pior. A periculosidade é
inversamente proporcional à idade. Já em 1979, um informe da polícia
colombiana, apresentado ao congresso policial sul-americano, explicava que
autoridade policial para a infância não tivera outro remédio senão abandonar
sua obra social para dedicar-se à “reprimir as perversidades” das crianças
perigosas e “evitar o estorvo que sua presença causa nos centros comerciais”.
Esses
gigantescos supermercados, transformados em cidades em miniatura, estão também
sob a vigilância de sistemas eletrônicos de controle, olhos que veem sem ser
vistos, câmeras ocultas que seguem os passos da multidão entre as mercadorias.
Mas a eletrônica não é usada apenas para vigiar e castigar os indesejáveis que
podem sucumbir à tentação do fruto proibido. A tecnologia moderna também serve
para que os consumidores consumam mais. Na era cibernética, quando o direito à
cidadania se fundamenta no dever do consumo, as grandes empresas espiam os
consumidores e os bombardeiam com sua publicidade. Os computadores oferecem uma
radiografia de cada cidadão. Pode-se saber quais são seus hábitos, seus gostos,
seus gastos, através do uso que cada cidadão faz dos cartões de crédito, dos
caixas automáticos e do correio eletrônico. De fato, assim ocorre cada vez mais
nos países desenvolvidos, onde a manipulação do universo on-line está
violando impunemente a vida privada para colocá-la a serviço do mercado.
Torna-se cada vez mais difícil, por exemplo, que um cidadão norte-americano
possa manter em segredo as compras que faz, as doenças de que sofre, o dinheiro
que tem e o que deve: partindo-se desses dados, não é difícil de se descobrir
os novos serviços que pode contratar, as novas dívidas que pode assumir e as
novas coisas que pode comprar.”
“Os donos do mundo usam o mundo como se ele fosse descartável: uma
mercadoria de vida efêmera, que se esgota como se esgotam, logo depois de
aparecer, as imagens que a televisão dispara como uma metralha, e como se esgotam
também as modas e os ídolos que a publicidade, sem trégua, lança no mercado.
Mas para que mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar na
história de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas porque, estando
de mau humor, resolveu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma
arapuca para bobos. Os que puxam os cordéis fingem ignorar, mas qualquer um que
tenha olhos pode ver que a grande maioria das pessoas consome necessariamente
pouco, pouquinho ou nada, para que se garanta a existência da pouca natureza
que nos resta. A injustiça social não é um erro a corrigir, um defeito a
superar: é uma necessidade essencial. Não há natureza capaz de alimentar um shopping
center do tamanho do planeta.
Os
presidentes dos países do sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo – um
passe de mágica que nos transformará em prósperos membros do reino do
esbanjamento – deveriam ser processados por fraude e por apologia do crime. Por
fraude, porque prometem o impossível. Se todos consumíssemos como consomem os
espremedores do mundo, ficaríamos sem mundo. E por apologia do crime: este
modelo de vida que nos é oferecido como um grande orgasmo da vida, estes
delírios de consumo que dizem ser a chave da felicidade, estão adoecendo nosso
corpo, envenenando nossa alma e nos deixando sem casa: aquela casa que o mundo
quis ser quando ainda não era.”
“A cibercomunidade nascente encontra refúgio na realidade virtual,
enquanto as cidades se transformam em imensos desertos cheios de gente, onde
cada qual vela por seu santo e está metido em sua própria bolha. Há quarenta
anos, segundo as pesquisas, seis de cada dez norte-americanos confiavam na
maioria das pessoas. Hoje a confiança murchou: só quatro de cada dez confiam
nos demais. Esse modelo de desenvolvimento desenvolve o desvinculação. Quanto
mais se sataniza a relação com as pessoas, que podem te passar a Aids, te tirar
o emprego ou te depenar a casa, mais se sacraliza a relação com as máquinas. A
indústria da comunicação, a mais dinâmica da economia mundial, vende os
abracadabras que dão acesso à Nova Era da história da humanidade. Mas esse
mundo comunicadíssimo está se parecendo demais com um reino de sozinhos e de
mudos.
Os
meios dominantes de comunicação estão em poucas mãos, que são cada vez menos
mãos e em regra atuam a serviço de um sistema que reduz as relações humanas ao
mútuo uso e ao mútuo medo.”
“Dois de cada três seres humanos vivem no chamado Terceiro Mundo, mas
dois de cada três correspondentes das agências noticiosas mais importantes
fazem seu trabalho na Europa e nos Estados Unidos. Em que consistem o livre
fluxo da informação e o respeito à pluralidade, que os tratados internacionais
afirmam e os discursos dos governantes invocam? A maioria das notícias que o
mundo recebe provém da minoria da humanidade e a ela se dirige. Isso é muito
conveniente do ponto de vista das agências, empresas comerciais dedicadas à
venda da informação, que arrecadam na Europa e nos Estados Unidos a parte do
leão de seus ganhos. Um monólogo do norte do mundo: as demais regiões e países
recebem pouca ou nenhuma atenção, salvo em caso de guerra ou catástrofe, e com
frequência os jornalistas, que transmitem o que acontece, não falam a língua do
lugar nem têm a menor ideia a respeito da história e da cultura locais. As
informações que divulgam costumam ser duvidosas e, nalguns casos, francamente
mentirosas. O sul fica condenado a olhar para si mesmo através de olhos que o
depreciam.
No
começo dos anos 80, a UNESCO patrocinou um projeto, nascido da certeza de que a
informação não é uma simples mercadoria, mas um direito social, e que a
comunicação tem a responsabilidade da função educativa que exerce. Aventou-se,
então, a possibilidade de se criar uma nova agência internacional de notícias,
para informar com independência e sem nenhum tipo de pressão, desde os países
que são tratados com indiferença pelas fábricas de informação e de opinião.
Embora o projeto tenha sido formulado em termos bem mais ambíguos e cuidadosos,
o governo norte-americano trovejou furiosamente diante desse atentado contra a
liberdade de expressão. Por que tinha de se imiscuir a UNESCO nos assuntos que
pertencem às forças vivas do mercado? Os Estados Unidos se retiraram da UNESCO
batendo a porta, retirou-se também a Grã-Bretanha, que costuma agir como se
fosse colônia daquela que foi sua colônia, e assim foi arquivada a
possibilidade de uma informação internacional desvinculada do poder político e
do interesse mercantil. Por tímido que seja, qualquer projeto de independência
é considerado ameaçador à divisão internacional do trabalho, que atribui a uns
poucos a função ativa de produzir notícias e opiniões e atribui a todos os
demais a função passiva de consumi-las.
Pouco
se informa sobre o sul do mundo, e nunca, ou quase nunca, de seu ponto de
vista: a informação massiva reflete, em regra, os preconceitos do olhar alheio,
que olha de cima e de fora. Entre comerciais e comerciais, a televisão costuma
introduzir imagens da fome e da guerra. Esses horrores, essas fatalidades,
vêm do submundo onde o inferno acontece e servem para destacar o caráter
paradisíaco da sociedade de consumo, que oferece automóveis para suprimir as
distâncias, cremes faciais para suprimir as rugas, tinturas para suprimir os
cabelos brancos, pílulas para suprimir a dor e muitos outros prodígios. A fome
africana é mostrada como uma catástrofe natural e as guerras africanas são coisas
de negros, sangrentos rituais de tribos que têm a selvagem tendência
de se esquartejar entre si. As imagens da fome jamais aludem, nem sequer de
passagem, ao saque colonial. Jamais se menciona a responsabilidade das
potências ocidentais, que ontem dessangravam a África através do tráfico de
escravos e do monocultivo obrigatório, e hoje perpetuam a hemorragia pagando
salários de fome e preços vis. O mesmo ocorre com a informação sobre as
guerras: sempre o mesmo silêncio sobre a herança colonial, sempre a mesma
impunidade para o amo branco que hipotecou a independência africana, deixando
em sua passagem burocracias corruptas, militares despóticos, fronteiras
artificiais e ódios mútuos; e sempre a mesma omissão de qualquer referência à
indústria da morte, que desde o norte vende as armas para que o sul se mate
brigando.
À
primeira vista, como diz o escritor Wole Soyinka, o mapa da África parece “a
criação de um tecelão demente que não prestou nenhuma atenção à urdidura, à cor
ou ao desenho da manta que tecia”. Muitas das fronteiras que rasgaram a África
negra em mais de quarenta pedaços só se explicam como conveniências do controle
militar ou comercial e não têm absolutamente nada a ver com as raízes
históricas e tampouco com a natureza. As potências coloniais, que inventaram as
fronteiras, também foram hábeis na manipulação das contradições étnicas. Divide
et impera: um bom dia o rei da Bélgica decidiu que tutsis eram todos os que
possuíam mais de oito vacas e hutus os que possuíam menos, no espaço que agora
ocupam Ruanda e Burundi. Embora os tutsis, pastores, e os hutus, plantadores,
tivessem origens diferentes, haviam compartilhado vários séculos de história
comum no mesmo território, falavam a mesma língua e conviviam pacificamente.
Eles não sabiam que eram inimigos, mas acabaram acreditando nisso com tanto
fervor que, durante 1994 e 1995, as matanças entre eles causaram mais de meio
milhão de vítimas. Nas informações sobre essa carnificina nem por casualidade
se ouviu, e raras vezes se leu, qualquer menção à obra colonial da Alemanha e
da Bélgica contra a tradição de convivência dos dois povos irmãos, nem à
participação da França, que depois forneceu armas e ajuda militar para o mútuo
extermínio.”
“As horas de televisão superam amplamente as horas de aula – quando as
horas de aula existem – na vida cotidiana das crianças de nosso tempo. É a
unanimidade universal: com ou sem escola, as crianças encontram nos programas de
tevê sua fonte primordial de informação, encontrando também seus temas
principais de conversação. O predomínio da pedagogia da televisão ganha
alarmante importância nos países latino-americanos, face à deterioração da
educação pública nos últimos anos. Nos discursos, os políticos morrem pela
educação e nos fatos a matam, liberando-a para as aulas de consumo e violência
que a telinha ministra. Nos discursos, os políticos denunciam a praga da
delinquência e exigem mão de ferro; nos fatos, estimulam a colonização mental
das novas gerações: desde muito cedo, as crianças são adestradas para
reconhecer sua identidade nas mercadorias que simbolizam o poder e para
conquistá-las a balaços.
Os
meios de comunicação refletem a realidade ou a moldam? O que vem do quê? O ovo
ou a galinha? Como metáfora zoológica, não seria mais adequada a da cobra que
morde o rabo? Oferecemos às pessoas o que as pessoas querem, dizem os meios de
comunicação, e assim se absolvem, mas tal oferta, que responde à demanda, gera
cada vez mais demanda da mesma oferta: faz-se costume, cria sua própria
necessidade, transforma-se em soma. Nas ruas há tanta violência quanto na
televisão, dizem os meios de comunicação. Mas a violência deles, que expressa a
violência do mundo, também contribui para multiplicá-la.
A
Europa fez saudáveis experiências em matéria de comunicação de massa. Em vários
países europeus, a televisão e o rádio alcançaram um alto nível de qualidade
como serviços públicos, dirigidos não pelo Estado, mas diretamente pelas
organizações que representam as diversas expressões da sociedade civil. Essas
experiências, que hoje em dia atravessam momentos difíceis face à investida da
concorrência comercial, dão exemplos de uma comunicação realmente comunicativa
e democrática, capaz de dirigir-se ao cidadão respeitando sua dignidade humana
e seu direito à informação e ao conhecimento. Mas não é este o modelo que se
internacionalizou. O mundo foi invadido pelo mortal coquetel de sangue, valium
e publicidade ministrado pela televisão privada dos Estados Unidos: impôs-se um
modelo baseado na premissa de que é bom tudo aquilo que dá mais lucro com menos
custo, e mau tudo aquilo que não dá dividendos.
Na
Grécia, nos tempos de Péricles, havia um tribunal que julgava as coisas:
castigava uma faca, digamos, que tinha sido instrumento de um crime, e a
sentença determinava que fosse partida em pedaços ou lançada no fundo das
águas. Hoje em dia, seria justo condenar, talibanamente, o televisor? Pode-se
dizer que o caluniam aqueles que lhe atribuem maus bofes ou o chamam de caixa
boba: a televisão comercial reduz a comunicação ao negócio, mas, por óbvio
que seja dizê-lo, o televisor é inocente do uso e do abuso que dele se faz. No
entanto, isso não impede que se diga o que é mais do que evidente: esse adorado
totem de nosso tempo é o meio que com mais êxito se usa para impor, nos quatro
pontos cardeais, os ídolos, os mitos e os sonhos que os engenheiros de emoções
desenham e as fábricas de almas produzem em série.”
“Elogio da
imaginação
Algum
tempo atrás, a BBC perguntou às crianças britânicas se preferiam a televisão ou
o rádio. Quase todas escolheram a televisão, o que foi algo assim como
constatar que os gatos miam e os mortos não respiram. Mas entre as poucas
crianças que escolheram o rádio, houve uma que explicou:
– Gosto mais do rádio, porque pelo
rádio vejo paisagens mais bonitas.”
“Talvez o mais adequado símbolo da época seja a bomba de nêutrons, que
respeita as coisas e torra os seres vivos. Triste sorte da condição humana,
tempo dos envoltórios sem conteúdo e das palavras sem sentido. A ciência e a
técnica, postas a serviço do mercado e da guerra, põem-nos a seu serviço: somos
instrumentos de nossos instrumentos. Os aprendizes de feiticeiro desencadearam
forças que já não podem conhecer nem conter. O mundo, labirinto sem centro,
está se rompendo e rompendo seu próprio céu. Os meios e os fins se divorciaram,
ao longo do século, pelo mesmo sistema de poder que divorcia a mão humana do
fruto de seu trabalho, obriga o perpétuo desencontro da palavra e do ato,
esvazia a realidade de sua memória e faz de cada pessoa competidora e inimiga
das demais.
Despojada
de raiz e de vínculo, a realidade se transforma no reino do preço e da
depreciação: o preço, que nos deprecia, define o valor das coisas, das pessoas
e dos países. Os objetos de luxo causam inveja aos indivíduos que o mercado
ningueniza, num mundo onde o mais digno de respeito é aquele que tem mais
cartões de crédito. Os ideólogos da neblina, os pontífices do obscurantismo que
agora está na moda, dizem-nos que a realidade é indecifrável, o que quer dizer
que a realidade é imutável. A globalização reduz o internacionalismo à
humilhação, e o cidadão exemplar é aquele que vive a realidade como fatalidade:
se assim é, é porque assim foi; se assim foi, assim será. O século XX nasceu
sob o signo das esperanças de mudança e logo foi sacudido pelos furacões da
revolução social. Agora, no fim de seus dias, o século parece vencido pelo
desalento e pela resignação.”
“A santa mais chorada do fim do século, a princesa Diana, encontrou sua
vocação na caridade, depois de ter sido abandonada pela mãe, atormentada pela
sogra, enganada pelo marido e traída pelos amantes. Quando morreu, Diana
presidia 81 organizações de caridade pública. Se estivesse viva, poderia muito
bem assumir o Ministério da Economia de qualquer governo do sul do mundo. Por
que não? Afinal, a caridade consola, mas não questiona.
– Quando
dou comida aos pobres, me chamam de santo – disse o arcebispo brasileiro
Hélder Câmara. – E quando pergunto por que eles não têm comida, me chamam de
comunista.
Diferentemente
da solidariedade, que é horizontal e praticada de igual para igual, a caridade
é praticada de cima para baixo, humilha quem a recebe e jamais altera um
milímetro as relações de poder: na melhor das hipóteses, um dia poderá haver
justiça, mas lá no céu. Aqui na terra, a caridade não perturba a injustiça. Só
se propõe a disfarçá-la.
Nasceu
o século sob o signo da revolução e morre marcado pela desesperança. Aventura e
naufrágio das tentativas de criação de sociedades solidárias: padecemos de uma
crise universal da fé na capacidade humana de mudar a história. Parem o mundo,
que eu quero descer: nestes tempos de desmoronamento, multiplicam-se os
arrependidos, arrependidos da paixão política e arrependidos de toda paixão.
Agora abundam os galos de rinha transformados em pacíficas galinhas, enquanto
os dogmáticos, que se acreditavam a salvo da dúvida e do desalento, refugiam-se
na nostalgia da nostalgia que evoca a nostalgia, ou se paralisam no estupor. Quanto
tínhamos todas as respostas, mudaram as perguntas, escreveu uma mão anônima
num muro da cidade de Quito.”
“Durante boa parte do século XX, a existência do bloco do leste, o
chamado Socialismo real, favoreceu as aventuras de independência de
alguns países que quiseram tirar o pé da ratoeira da divisão internacional do
trabalho. Mas os Estados socialistas do leste da Europa tinham muito de Estados
e pouco ou nada de socialistas. Quando ocorreu o desmoronamento, fomos todos
convidados para os funerais do Socialismo. Os coveiros se enganaram de defunto.
Em
nome da justiça, esse presumido Socialismo sacrificava a liberdade. Reveladora
simetria: em nome da liberdade, o Capitalismo, todos os dias, sacrifica a
justiça. Estamos todos obrigados a nos ajoelhar diante de um desses dois
altares? Quem não acredita que a injustiça seja o nosso destino inevitável, não
há de identificar-se ao despotismo de uma minoria negadora da liberdade, que
não prestava contas a ninguém, que tratava o povo como menor de idade e que
confundia unidade com unanimidade e a diversidade com a traição. Aquele poder
petrificado estava divorciado das pessoas. Isso explica, talvez, a facilidade
com que desmoronou, sem pena nem glória, e a rapidez com que se impôs o poder
novo, com os mesmos personagens: os burocratas deram um salto acrobático e,
subitamente, transformaram-se em empresários de sucesso e chefes mafiosos.
Moscou tem agora duas vezes mais cassinos do que Las Vegas, enquanto os salários
caem pela metade e, nas ruas, a criminalidade cresce como os cogumelos depois
da chuva.
Estes
tempos são de trágica e quem sabe também saudável crise das certezas. Crise dos
que acreditaram em Estados que diziam ser de todos e eram de poucos, e terminaram
sendo de ninguém; crise dos que acreditaram nas fórmulas mágicas da luta
armada; crise dos que acreditaram na via eleitoral, através de partidos que
passaram da palavra ardente aos discursos de água e sal: partidos que começaram
prometendo combater o sistema e terminaram administrando-o. São muitos os que
pedem desculpas por ter acreditado que se podia conquistar o céu; são muitos os
que fervorosamente se dedicam a apagar suas próprias pegadas e desmontam da
esperança, como se a esperança não passasse de um cavalo cansado.
Fim
do século, fim do milênio: fim do mundo? Quantos ares não envenenados ainda nos
restam? Quantas terras não arrasadas, quantas águas não mortas? Quantas almas
não enfermas? Em sua versão hebraica, a palavra enfermo significa “sem
projeto” e esta é a mais grave enfermidade entre as muitas pestes deste tempo.
Mas alguém, sabe-se lá quem, andou escrevendo num muro da cidade de Bogotá: Deixemos
o pessimismo para tempos melhores.
Em
língua castelhana, quando queremos dizer que ainda temos esperança, dizemos:
abrigamos a esperança. Bela expressão, belo desafio: abrigá-la, para que não
morra de frio nas implacáveis intempéries dos tempos que correm. Segundo uma
pesquisa recente, realizada em dezessete países latino-americanos, três de cada
quatro pessoas dizem que sua situação está estagnada ou piorando. Deve-se
aceitar a desgraça como se aceitam o inverno e a morte? Já está na hora de nos
perguntarmos, nós, os latino-americanos, se vamos nos resignar com o sofrimento
e com nossa condição de caricatura do norte. Não mais do que um espelho que
multiplica as deformações da imagem original? O salve-se quem puder agravado
até o morra quem não puder? Multidões de perdedores numa corrida que expulsa a
maioria da pista? O crime transformado em morticínio, a histeria urbana elevada
à loucura total? Não temos outra coisa para dizer, para viver?”
“A
história oficial, memória mutilada, é uma longa cerimônia de autoelogio dos
mandachuvas do mundo. Seus refletores, que iluminam os topos, deixam a base na
obscuridade. Na melhor das hipóteses, os invisíveis de sempre integram o
cenário, como os extras de Hollywood. Mas são eles, os negados, mentidos,
escondidos protagonistas da realidade passada e presente, que encarnam o
esplêndido leque de outra realidade possível. Ofuscada pelo elitismo, pelo
racismo, pelo machismo e pelo militarismo, a América continua ignorando a
plenitude que contém. E isto é duas vezes certo para o sul: a América Latina
conta com a mais fabulosa diversidade humana e vegetal do planeta. Ali residem
sua fecundidade e sua promessa. Como disse o antropólogo Rodolfo Stavenhagen,
“a diversidade cultural é para a espécie humana o que a diversidade biológica é
para a riqueza genética do mundo”. Para que essas energias possam expressar as possíveis
maravilhas das gentes e da terra, seria preciso não confundir a identidade com
a arqueologia, nem a natureza com a paisagem. A identidade não está quieta nos
museus, nem a ecologia se reduz à jardinagem.
Há
cinco séculos, a gente e a terra das Américas foram incorporadas ao mercado
mundial na condição de coisas. Uns poucos conquistadores, os conquistadores
conquistados, foram capazes de intuir a pluralidade americana, e nela, e por
ela, viveram. Mas a conquista, empresa cega e cegante como toda invasão
imperial, só podia reconhecer os indígenas e a natureza como objetos de
exploração ou como obstáculos. A diversidade cultural foi considerada como
ignorância e castigada como heresia, em nome do deus único, da língua única e
da verdade única, enquanto a natureza, besta feroz, era domada e obrigada a
transformar-se em dinheiro. A comunhão dos indígenas com a terra constituía a
certeza essencial de todas as culturas americanas e este pecado da idolatria
mereceu a pena do açoite, da forca e do fogo.
Já
não se fala em submeter a natureza: agora os verdugos preferem dizer que
é preciso protegê-la. Num e noutro caso, antes e agora, a natureza está fora
de nós: a civilização que confunde os relógios com o tempo, também confunde a
natureza com os cartões postais. Mas a vitalidade do mundo, que zomba de
qualquer classificação e está além de qualquer explicação, nunca fica quieta. A
natureza se realiza em movimento e também nós, seus filhos, que somos o que
somos e ao mesmo tempo somos o que fazemos para mudar o que somos. Como dizia
Paulo Freire, o educador que morreu aprendendo: “Somos andando”.
A
verdade está na viagem, não no porto. Não há mais verdade do que a busca da
verdade. Estamos condenados ao crime? Bem sabemos que os bichos humanos andamos
muito dedicados a devorar o próximo e a devastar o planeta, mas também sabemos
que não estaríamos aqui se nossos remotos avós do paleolítico não tivessem
sabido adaptar-se à natureza, da qual faziam parte, e não tivessem sido capazes
de compartilhar o que colhiam e caçavam. Viva onde viva, viva como viva, viva
quando viva, cada pessoa contém muitas pessoas possíveis e é o sistema de
poder, que nada tem de eterno, que a cada dia convida para entrar em cena
nossos habitantes mais safados, enquanto impede que os outros cresçam e os
proíbe de aparecer. Embora estejamos malfeitos, ainda não estamos terminados; e
é a aventura de mudar e de mudarmos que faz com que valha a pena esta piscadela
que somos na história do universo, este fugaz calorzinho entre dois gelos.”
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