quinta-feira, 13 de outubro de 2022

De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso (Parte III), de Eduardo Galeano

Editora: L&PM Pocket

ISBN: 978-85-254-1942-2

Tradução: Sergio Faraco

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 384

Gravuras: Guadalupe Posada

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Sinopse: Ver Parte I



A cultura do consumo, cultura do efêmero, condena tudo ao desuso imediato. Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, posta a serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos e são substituídas por outras de vida não menos fugaz. Neste fim de século, em que só a insegurança é permanente, as mercadorias, fabricadas para não durar, resultam tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa na velocidade da luz, ontem estava lá, hoje está aqui, amanhã ninguém sabe, e todo trabalhador é um desempregado em potência. Paradoxalmente, os shopping centers, reinos da fugacidade, oferecem a mais bem-sucedida ilusão de segurança. Eles existem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, muito além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Nesses santuários do bem-estar se pode fazer tudo, sem necessidade de se expor à intempérie suja e ameaçadora. Até dormir se pode, segundo os últimos modelos de shoppings, que em Los Angeles e Las Vegas incluem serviços de hotelaria e ginásios. Os shoppings, que não estão sujeitos ao frio nem ao calor, estão a salvo das contaminações e da violência. Michael A. Petti publica seus conselhos científicos na imprensa mundial numa conhecida coluna chamada Viva más. Nas cidades com má qualidade de ar, o doutor Petti aconselha a quem quer viver mais: “Caminhe dentro de um centro comercial”. O cogumelo atômico da contaminação pende sobre cidades como México, São Paulo e Santiago do Chile, e nas esquinas o crime está à espreita; mas nesse neutro mundo fora do mundo, ar asséptico, passeios vigiados, pode-se respirar e caminhar e comprar sem riscos.

Os shoppings são todos mais ou menos iguais, em Los Angeles ou em Bangkok, em Buenos Aires ou em Glasgow. Esta unanimidade não os impede de competir na invenção de novos atrativos para chamar clientes. No fim de 1991, a revista Veja exaltava uma das novidades do shopping Praia de Belas, em Porto Alegre: “Para o conforto dos bebês, são oferecidos carrinhos, facilitando assim o passeio desses pequenos consumidores”. A segurança, contudo, é o artigo mais importante que todos os shopping centers oferecem. A segurança, mercadoria de luxo, está ao alcance de qualquer pessoa que penetre nesses bunkers. Em sua infinita generosidade, a cultura do consumo nos proporciona o salvo-conduto para a fuga do inferno das ruas. Rodeadas de imensas praias de estacionamento, onde os automóveis esperam, essas ilhas oferecem espaços fechados e protegidos. Ali pessoas se cruzam com pessoas, atraídas pelas vozes do consumo, como antes pessoas se encontravam com pessoas, atraídas pelo prazer do encontro, nos cafés ou nos espaços abertos das praças, nos parques e nos velhos mercados: em nossos dias, esses lugares estão demasiadamente expostos aos riscos da violência urbana. Nos shoppings não há perigo. A polícia pública e a polícia particular, a polícia visível e a polícia invisível, conduzem os suspeitos à rua ou à cadeia. Os pobres que não sabem disfarçar sua periculosidade congênita, sobretudo os pobres de pele escura, podem ser culpados até que nunca se prove sua inocência. E se são crianças, é pior. A periculosidade é inversamente proporcional à idade. Já em 1979, um informe da polícia colombiana, apresentado ao congresso policial sul-americano, explicava que autoridade policial para a infância não tivera outro remédio senão abandonar sua obra social para dedicar-se à “reprimir as perversidades” das crianças perigosas e “evitar o estorvo que sua presença causa nos centros comerciais”.

Esses gigantescos supermercados, transformados em cidades em miniatura, estão também sob a vigilância de sistemas eletrônicos de controle, olhos que veem sem ser vistos, câmeras ocultas que seguem os passos da multidão entre as mercadorias. Mas a eletrônica não é usada apenas para vigiar e castigar os indesejáveis que podem sucumbir à tentação do fruto proibido. A tecnologia moderna também serve para que os consumidores consumam mais. Na era cibernética, quando o direito à cidadania se fundamenta no dever do consumo, as grandes empresas espiam os consumidores e os bombardeiam com sua publicidade. Os computadores oferecem uma radiografia de cada cidadão. Pode-se saber quais são seus hábitos, seus gostos, seus gastos, através do uso que cada cidadão faz dos cartões de crédito, dos caixas automáticos e do correio eletrônico. De fato, assim ocorre cada vez mais nos países desenvolvidos, onde a manipulação do universo on-line está violando impunemente a vida privada para colocá-la a serviço do mercado. Torna-se cada vez mais difícil, por exemplo, que um cidadão norte-americano possa manter em segredo as compras que faz, as doenças de que sofre, o dinheiro que tem e o que deve: partindo-se desses dados, não é difícil de se descobrir os novos serviços que pode contratar, as novas dívidas que pode assumir e as novas coisas que pode comprar.”

 

 

Os donos do mundo usam o mundo como se ele fosse descartável: uma mercadoria de vida efêmera, que se esgota como se esgotam, logo depois de aparecer, as imagens que a televisão dispara como uma metralha, e como se esgotam também as modas e os ídolos que a publicidade, sem trégua, lança no mercado. Mas para que mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar na história de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas porque, estando de mau humor, resolveu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma arapuca para bobos. Os que puxam os cordéis fingem ignorar, mas qualquer um que tenha olhos pode ver que a grande maioria das pessoas consome necessariamente pouco, pouquinho ou nada, para que se garanta a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro a corrigir, um defeito a superar: é uma necessidade essencial. Não há natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.

Os presidentes dos países do sul que prometem o ingresso no Primeiro Mundo – um passe de mágica que nos transformará em prósperos membros do reino do esbanjamento – deveriam ser processados por fraude e por apologia do crime. Por fraude, porque prometem o impossível. Se todos consumíssemos como consomem os espremedores do mundo, ficaríamos sem mundo. E por apologia do crime: este modelo de vida que nos é oferecido como um grande orgasmo da vida, estes delírios de consumo que dizem ser a chave da felicidade, estão adoecendo nosso corpo, envenenando nossa alma e nos deixando sem casa: aquela casa que o mundo quis ser quando ainda não era.”

 

 

A cibercomunidade nascente encontra refúgio na realidade virtual, enquanto as cidades se transformam em imensos desertos cheios de gente, onde cada qual vela por seu santo e está metido em sua própria bolha. Há quarenta anos, segundo as pesquisas, seis de cada dez norte-americanos confiavam na maioria das pessoas. Hoje a confiança murchou: só quatro de cada dez confiam nos demais. Esse modelo de desenvolvimento desenvolve o desvinculação. Quanto mais se sataniza a relação com as pessoas, que podem te passar a Aids, te tirar o emprego ou te depenar a casa, mais se sacraliza a relação com as máquinas. A indústria da comunicação, a mais dinâmica da economia mundial, vende os abracadabras que dão acesso à Nova Era da história da humanidade. Mas esse mundo comunicadíssimo está se parecendo demais com um reino de sozinhos e de mudos.

Os meios dominantes de comunicação estão em poucas mãos, que são cada vez menos mãos e em regra atuam a serviço de um sistema que reduz as relações humanas ao mútuo uso e ao mútuo medo.”

 

 

Dois de cada três seres humanos vivem no chamado Terceiro Mundo, mas dois de cada três correspondentes das agências noticiosas mais importantes fazem seu trabalho na Europa e nos Estados Unidos. Em que consistem o livre fluxo da informação e o respeito à pluralidade, que os tratados internacionais afirmam e os discursos dos governantes invocam? A maioria das notícias que o mundo recebe provém da minoria da humanidade e a ela se dirige. Isso é muito conveniente do ponto de vista das agências, empresas comerciais dedicadas à venda da informação, que arrecadam na Europa e nos Estados Unidos a parte do leão de seus ganhos. Um monólogo do norte do mundo: as demais regiões e países recebem pouca ou nenhuma atenção, salvo em caso de guerra ou catástrofe, e com frequência os jornalistas, que transmitem o que acontece, não falam a língua do lugar nem têm a menor ideia a respeito da história e da cultura locais. As informações que divulgam costumam ser duvidosas e, nalguns casos, francamente mentirosas. O sul fica condenado a olhar para si mesmo através de olhos que o depreciam.

No começo dos anos 80, a UNESCO patrocinou um projeto, nascido da certeza de que a informação não é uma simples mercadoria, mas um direito social, e que a comunicação tem a responsabilidade da função educativa que exerce. Aventou-se, então, a possibilidade de se criar uma nova agência internacional de notícias, para informar com independência e sem nenhum tipo de pressão, desde os países que são tratados com indiferença pelas fábricas de informação e de opinião. Embora o projeto tenha sido formulado em termos bem mais ambíguos e cuidadosos, o governo norte-americano trovejou furiosamente diante desse atentado contra a liberdade de expressão. Por que tinha de se imiscuir a UNESCO nos assuntos que pertencem às forças vivas do mercado? Os Estados Unidos se retiraram da UNESCO batendo a porta, retirou-se também a Grã-Bretanha, que costuma agir como se fosse colônia daquela que foi sua colônia, e assim foi arquivada a possibilidade de uma informação internacional desvinculada do poder político e do interesse mercantil. Por tímido que seja, qualquer projeto de independência é considerado ameaçador à divisão internacional do trabalho, que atribui a uns poucos a função ativa de produzir notícias e opiniões e atribui a todos os demais a função passiva de consumi-las.

Pouco se informa sobre o sul do mundo, e nunca, ou quase nunca, de seu ponto de vista: a informação massiva reflete, em regra, os preconceitos do olhar alheio, que olha de cima e de fora. Entre comerciais e comerciais, a televisão costuma introduzir imagens da fome e da guerra. Esses horrores, essas fatalidades, vêm do submundo onde o inferno acontece e servem para destacar o caráter paradisíaco da sociedade de consumo, que oferece automóveis para suprimir as distâncias, cremes faciais para suprimir as rugas, tinturas para suprimir os cabelos brancos, pílulas para suprimir a dor e muitos outros prodígios. A fome africana é mostrada como uma catástrofe natural e as guerras africanas são coisas de negros, sangrentos rituais de tribos que têm a selvagem tendência de se esquartejar entre si. As imagens da fome jamais aludem, nem sequer de passagem, ao saque colonial. Jamais se menciona a responsabilidade das potências ocidentais, que ontem dessangravam a África através do tráfico de escravos e do monocultivo obrigatório, e hoje perpetuam a hemorragia pagando salários de fome e preços vis. O mesmo ocorre com a informação sobre as guerras: sempre o mesmo silêncio sobre a herança colonial, sempre a mesma impunidade para o amo branco que hipotecou a independência africana, deixando em sua passagem burocracias corruptas, militares despóticos, fronteiras artificiais e ódios mútuos; e sempre a mesma omissão de qualquer referência à indústria da morte, que desde o norte vende as armas para que o sul se mate brigando.

À primeira vista, como diz o escritor Wole Soyinka, o mapa da África parece “a criação de um tecelão demente que não prestou nenhuma atenção à urdidura, à cor ou ao desenho da manta que tecia”. Muitas das fronteiras que rasgaram a África negra em mais de quarenta pedaços só se explicam como conveniências do controle militar ou comercial e não têm absolutamente nada a ver com as raízes históricas e tampouco com a natureza. As potências coloniais, que inventaram as fronteiras, também foram hábeis na manipulação das contradições étnicas. Divide et impera: um bom dia o rei da Bélgica decidiu que tutsis eram todos os que possuíam mais de oito vacas e hutus os que possuíam menos, no espaço que agora ocupam Ruanda e Burundi. Embora os tutsis, pastores, e os hutus, plantadores, tivessem origens diferentes, haviam compartilhado vários séculos de história comum no mesmo território, falavam a mesma língua e conviviam pacificamente. Eles não sabiam que eram inimigos, mas acabaram acreditando nisso com tanto fervor que, durante 1994 e 1995, as matanças entre eles causaram mais de meio milhão de vítimas. Nas informações sobre essa carnificina nem por casualidade se ouviu, e raras vezes se leu, qualquer menção à obra colonial da Alemanha e da Bélgica contra a tradição de convivência dos dois povos irmãos, nem à participação da França, que depois forneceu armas e ajuda militar para o mútuo extermínio.”

 

 

As horas de televisão superam amplamente as horas de aula – quando as horas de aula existem – na vida cotidiana das crianças de nosso tempo. É a unanimidade universal: com ou sem escola, as crianças encontram nos programas de tevê sua fonte primordial de informação, encontrando também seus temas principais de conversação. O predomínio da pedagogia da televisão ganha alarmante importância nos países latino-americanos, face à deterioração da educação pública nos últimos anos. Nos discursos, os políticos morrem pela educação e nos fatos a matam, liberando-a para as aulas de consumo e violência que a telinha ministra. Nos discursos, os políticos denunciam a praga da delinquência e exigem mão de ferro; nos fatos, estimulam a colonização mental das novas gerações: desde muito cedo, as crianças são adestradas para reconhecer sua identidade nas mercadorias que simbolizam o poder e para conquistá-las a balaços.

Os meios de comunicação refletem a realidade ou a moldam? O que vem do quê? O ovo ou a galinha? Como metáfora zoológica, não seria mais adequada a da cobra que morde o rabo? Oferecemos às pessoas o que as pessoas querem, dizem os meios de comunicação, e assim se absolvem, mas tal oferta, que responde à demanda, gera cada vez mais demanda da mesma oferta: faz-se costume, cria sua própria necessidade, transforma-se em soma. Nas ruas há tanta violência quanto na televisão, dizem os meios de comunicação. Mas a violência deles, que expressa a violência do mundo, também contribui para multiplicá-la.

A Europa fez saudáveis experiências em matéria de comunicação de massa. Em vários países europeus, a televisão e o rádio alcançaram um alto nível de qualidade como serviços públicos, dirigidos não pelo Estado, mas diretamente pelas organizações que representam as diversas expressões da sociedade civil. Essas experiências, que hoje em dia atravessam momentos difíceis face à investida da concorrência comercial, dão exemplos de uma comunicação realmente comunicativa e democrática, capaz de dirigir-se ao cidadão respeitando sua dignidade humana e seu direito à informação e ao conhecimento. Mas não é este o modelo que se internacionalizou. O mundo foi invadido pelo mortal coquetel de sangue, valium e publicidade ministrado pela televisão privada dos Estados Unidos: impôs-se um modelo baseado na premissa de que é bom tudo aquilo que dá mais lucro com menos custo, e mau tudo aquilo que não dá dividendos.

Na Grécia, nos tempos de Péricles, havia um tribunal que julgava as coisas: castigava uma faca, digamos, que tinha sido instrumento de um crime, e a sentença determinava que fosse partida em pedaços ou lançada no fundo das águas. Hoje em dia, seria justo condenar, talibanamente, o televisor? Pode-se dizer que o caluniam aqueles que lhe atribuem maus bofes ou o chamam de caixa boba: a televisão comercial reduz a comunicação ao negócio, mas, por óbvio que seja dizê-lo, o televisor é inocente do uso e do abuso que dele se faz. No entanto, isso não impede que se diga o que é mais do que evidente: esse adorado totem de nosso tempo é o meio que com mais êxito se usa para impor, nos quatro pontos cardeais, os ídolos, os mitos e os sonhos que os engenheiros de emoções desenham e as fábricas de almas produzem em série.”

 

 

Elogio da imaginação

Algum tempo atrás, a BBC perguntou às crianças britânicas se preferiam a televisão ou o rádio. Quase todas escolheram a televisão, o que foi algo assim como constatar que os gatos miam e os mortos não respiram. Mas entre as poucas crianças que escolheram o rádio, houve uma que explicou:

Gosto mais do rádio, porque pelo rádio vejo paisagens mais bonitas.

 

 

Talvez o mais adequado símbolo da época seja a bomba de nêutrons, que respeita as coisas e torra os seres vivos. Triste sorte da condição humana, tempo dos envoltórios sem conteúdo e das palavras sem sentido. A ciência e a técnica, postas a serviço do mercado e da guerra, põem-nos a seu serviço: somos instrumentos de nossos instrumentos. Os aprendizes de feiticeiro desencadearam forças que já não podem conhecer nem conter. O mundo, labirinto sem centro, está se rompendo e rompendo seu próprio céu. Os meios e os fins se divorciaram, ao longo do século, pelo mesmo sistema de poder que divorcia a mão humana do fruto de seu trabalho, obriga o perpétuo desencontro da palavra e do ato, esvazia a realidade de sua memória e faz de cada pessoa competidora e inimiga das demais.

Despojada de raiz e de vínculo, a realidade se transforma no reino do preço e da depreciação: o preço, que nos deprecia, define o valor das coisas, das pessoas e dos países. Os objetos de luxo causam inveja aos indivíduos que o mercado ningueniza, num mundo onde o mais digno de respeito é aquele que tem mais cartões de crédito. Os ideólogos da neblina, os pontífices do obscurantismo que agora está na moda, dizem-nos que a realidade é indecifrável, o que quer dizer que a realidade é imutável. A globalização reduz o internacionalismo à humilhação, e o cidadão exemplar é aquele que vive a realidade como fatalidade: se assim é, é porque assim foi; se assim foi, assim será. O século XX nasceu sob o signo das esperanças de mudança e logo foi sacudido pelos furacões da revolução social. Agora, no fim de seus dias, o século parece vencido pelo desalento e pela resignação.”

 

 

A santa mais chorada do fim do século, a princesa Diana, encontrou sua vocação na caridade, depois de ter sido abandonada pela mãe, atormentada pela sogra, enganada pelo marido e traída pelos amantes. Quando morreu, Diana presidia 81 organizações de caridade pública. Se estivesse viva, poderia muito bem assumir o Ministério da Economia de qualquer governo do sul do mundo. Por que não? Afinal, a caridade consola, mas não questiona.

Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo – disse o arcebispo brasileiro Hélder Câmara. – E quando pergunto por que eles não têm comida, me chamam de comunista.

Diferentemente da solidariedade, que é horizontal e praticada de igual para igual, a caridade é praticada de cima para baixo, humilha quem a recebe e jamais altera um milímetro as relações de poder: na melhor das hipóteses, um dia poderá haver justiça, mas lá no céu. Aqui na terra, a caridade não perturba a injustiça. Só se propõe a disfarçá-la.

Nasceu o século sob o signo da revolução e morre marcado pela desesperança. Aventura e naufrágio das tentativas de criação de sociedades solidárias: padecemos de uma crise universal da fé na capacidade humana de mudar a história. Parem o mundo, que eu quero descer: nestes tempos de desmoronamento, multiplicam-se os arrependidos, arrependidos da paixão política e arrependidos de toda paixão. Agora abundam os galos de rinha transformados em pacíficas galinhas, enquanto os dogmáticos, que se acreditavam a salvo da dúvida e do desalento, refugiam-se na nostalgia da nostalgia que evoca a nostalgia, ou se paralisam no estupor. Quanto tínhamos todas as respostas, mudaram as perguntas, escreveu uma mão anônima num muro da cidade de Quito.”

 

 

Durante boa parte do século XX, a existência do bloco do leste, o chamado Socialismo real, favoreceu as aventuras de independência de alguns países que quiseram tirar o pé da ratoeira da divisão internacional do trabalho. Mas os Estados socialistas do leste da Europa tinham muito de Estados e pouco ou nada de socialistas. Quando ocorreu o desmoronamento, fomos todos convidados para os funerais do Socialismo. Os coveiros se enganaram de defunto.

Em nome da justiça, esse presumido Socialismo sacrificava a liberdade. Reveladora simetria: em nome da liberdade, o Capitalismo, todos os dias, sacrifica a justiça. Estamos todos obrigados a nos ajoelhar diante de um desses dois altares? Quem não acredita que a injustiça seja o nosso destino inevitável, não há de identificar-se ao despotismo de uma minoria negadora da liberdade, que não prestava contas a ninguém, que tratava o povo como menor de idade e que confundia unidade com unanimidade e a diversidade com a traição. Aquele poder petrificado estava divorciado das pessoas. Isso explica, talvez, a facilidade com que desmoronou, sem pena nem glória, e a rapidez com que se impôs o poder novo, com os mesmos personagens: os burocratas deram um salto acrobático e, subitamente, transformaram-se em empresários de sucesso e chefes mafiosos. Moscou tem agora duas vezes mais cassinos do que Las Vegas, enquanto os salários caem pela metade e, nas ruas, a criminalidade cresce como os cogumelos depois da chuva.

Estes tempos são de trágica e quem sabe também saudável crise das certezas. Crise dos que acreditaram em Estados que diziam ser de todos e eram de poucos, e terminaram sendo de ninguém; crise dos que acreditaram nas fórmulas mágicas da luta armada; crise dos que acreditaram na via eleitoral, através de partidos que passaram da palavra ardente aos discursos de água e sal: partidos que começaram prometendo combater o sistema e terminaram administrando-o. São muitos os que pedem desculpas por ter acreditado que se podia conquistar o céu; são muitos os que fervorosamente se dedicam a apagar suas próprias pegadas e desmontam da esperança, como se a esperança não passasse de um cavalo cansado.

Fim do século, fim do milênio: fim do mundo? Quantos ares não envenenados ainda nos restam? Quantas terras não arrasadas, quantas águas não mortas? Quantas almas não enfermas? Em sua versão hebraica, a palavra enfermo significa “sem projeto” e esta é a mais grave enfermidade entre as muitas pestes deste tempo. Mas alguém, sabe-se lá quem, andou escrevendo num muro da cidade de Bogotá: Deixemos o pessimismo para tempos melhores.

Em língua castelhana, quando queremos dizer que ainda temos esperança, dizemos: abrigamos a esperança. Bela expressão, belo desafio: abrigá-la, para que não morra de frio nas implacáveis intempéries dos tempos que correm. Segundo uma pesquisa recente, realizada em dezessete países latino-americanos, três de cada quatro pessoas dizem que sua situação está estagnada ou piorando. Deve-se aceitar a desgraça como se aceitam o inverno e a morte? Já está na hora de nos perguntarmos, nós, os latino-americanos, se vamos nos resignar com o sofrimento e com nossa condição de caricatura do norte. Não mais do que um espelho que multiplica as deformações da imagem original? O salve-se quem puder agravado até o morra quem não puder? Multidões de perdedores numa corrida que expulsa a maioria da pista? O crime transformado em morticínio, a histeria urbana elevada à loucura total? Não temos outra coisa para dizer, para viver?”

 

 

“A história oficial, memória mutilada, é uma longa cerimônia de autoelogio dos mandachuvas do mundo. Seus refletores, que iluminam os topos, deixam a base na obscuridade. Na melhor das hipóteses, os invisíveis de sempre integram o cenário, como os extras de Hollywood. Mas são eles, os negados, mentidos, escondidos protagonistas da realidade passada e presente, que encarnam o esplêndido leque de outra realidade possível. Ofuscada pelo elitismo, pelo racismo, pelo machismo e pelo militarismo, a América continua ignorando a plenitude que contém. E isto é duas vezes certo para o sul: a América Latina conta com a mais fabulosa diversidade humana e vegetal do planeta. Ali residem sua fecundidade e sua promessa. Como disse o antropólogo Rodolfo Stavenhagen, “a diversidade cultural é para a espécie humana o que a diversidade biológica é para a riqueza genética do mundo”. Para que essas energias possam expressar as possíveis maravilhas das gentes e da terra, seria preciso não confundir a identidade com a arqueologia, nem a natureza com a paisagem. A identidade não está quieta nos museus, nem a ecologia se reduz à jardinagem.

Há cinco séculos, a gente e a terra das Américas foram incorporadas ao mercado mundial na condição de coisas. Uns poucos conquistadores, os conquistadores conquistados, foram capazes de intuir a pluralidade americana, e nela, e por ela, viveram. Mas a conquista, empresa cega e cegante como toda invasão imperial, só podia reconhecer os indígenas e a natureza como objetos de exploração ou como obstáculos. A diversidade cultural foi considerada como ignorância e castigada como heresia, em nome do deus único, da língua única e da verdade única, enquanto a natureza, besta feroz, era domada e obrigada a transformar-se em dinheiro. A comunhão dos indígenas com a terra constituía a certeza essencial de todas as culturas americanas e este pecado da idolatria mereceu a pena do açoite, da forca e do fogo.

Já não se fala em submeter a natureza: agora os verdugos preferem dizer que é preciso protegê-la. Num e noutro caso, antes e agora, a natureza está fora de nós: a civilização que confunde os relógios com o tempo, também confunde a natureza com os cartões postais. Mas a vitalidade do mundo, que zomba de qualquer classificação e está além de qualquer explicação, nunca fica quieta. A natureza se realiza em movimento e também nós, seus filhos, que somos o que somos e ao mesmo tempo somos o que fazemos para mudar o que somos. Como dizia Paulo Freire, o educador que morreu aprendendo: “Somos andando”.

A verdade está na viagem, não no porto. Não há mais verdade do que a busca da verdade. Estamos condenados ao crime? Bem sabemos que os bichos humanos andamos muito dedicados a devorar o próximo e a devastar o planeta, mas também sabemos que não estaríamos aqui se nossos remotos avós do paleolítico não tivessem sabido adaptar-se à natureza, da qual faziam parte, e não tivessem sido capazes de compartilhar o que colhiam e caçavam. Viva onde viva, viva como viva, viva quando viva, cada pessoa contém muitas pessoas possíveis e é o sistema de poder, que nada tem de eterno, que a cada dia convida para entrar em cena nossos habitantes mais safados, enquanto impede que os outros cresçam e os proíbe de aparecer. Embora estejamos malfeitos, ainda não estamos terminados; e é a aventura de mudar e de mudarmos que faz com que valha a pena esta piscadela que somos na história do universo, este fugaz calorzinho entre dois gelos.”

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