Editora: WMF Martins Fontes
ISBN: 978-85-7326-410-4
Tradução: Artur M. Ferreira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 1456
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Sinopse: Esta
obra famosa de Werner Jaeger, um dos marcos da cultura do nosso tempo, é o
estudo mais profundo e completo sobre os ideais de educação da Grécia antiga.
Jaeger estudou a interação entre o processo histórico da formação do homem
grego e o processo espiritual através do qual os gregos chegaram a elaborar seu
ideal de humanidade. A partir da solução histórica e espiritual, foi possível
chegar ao entendimento da criação educativa sem par de onde se irradia a
imorredoura influência dos gregos sobre todos os séculos.
Livro I
“Todo povo que atinge certo grau de
desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio
por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade
física e espiritual. Com a mudança das coisas, mudam os indivíduos; o tipo
permanece o mesmo. Homens e animais, na sua qualidade de seres físicos,
consolidam a sua espécie pela procriação natural. Só o Homem, porém, consegue
conservar e propagar a sua forma de existência social e espiritual por meio das
forças pelas quais a criou, quer dizer, por meio da vontade consciente e da
razão. O seu desenvolvimento ganha por elas um certo jogo livre de que carece o
resto dos seres vivos, se pusermos de parte a hipótese de transformações pré-históricas
das espécies e nos ativermos ao mundo da experiência dada.
Uma educação consciente pode até mudar a
natureza física do Homem e suas qualidades, elevando-lhe a capacidade a um nível
superior. Mas o espírito humano conduz progressivamente à descoberta de si
próprio e cria, pelo conhecimento do mundo exterior e interior, formas melhores
de existência humana. A natureza do Homem, na sua dupla estrutura corpórea e
espiritual, cria condições especiais para a manutenção e transmissão da sua
forma particular e exige organizações físicas e espirituais, ao conjunto das
quais damos o nome de educação. Na educação, como o Homem a pratica, atua a
mesma força vital, criadora e plástica, que espontaneamente impele todas as
espécies vivas à conservação e propagação do seu tipo. É nela, porém, que essa força
atinge o mais alto grau de intensidade, através do esforço consciente do
conhecimento e da vontade, dirigida para a consecução de um fim.”
“É altamente significativo que seja o velho
Fênix, educador de Aquiles, o herói-protótipo dos gregos, quem exprime esse
ideal. Numa hora decisiva, Fênix recorda ao jovem o fim para que foi educado:
“Para ambas as coisas: proferir palavras e
realizar ações.””
“Para Homero e para o mundo da nobreza desse
tempo, a negação da honra era, em contrapartida, a maior tragédia humana. Os
heróis tratavam-se mutuamente com respeito e honra constantes. Assentava nisso
toda a sua ordem social. A ânsia de honra era neles simplesmente insaciável,
sem que isso seja característica moral peculiar aos indivíduos como tais. Era
natural e indiscutível que os heróis maiores e os príncipes mais poderosos exigissem
uma honra cada vez mais alta. Ninguém receia, na Antiguidade, reclamar a honra
devida a um serviço prestado. A exigência de pagamento é para eles aspecto
secundário e de modo nenhum decisivo. O elogio e a reprovação (επã αινος e
ψο¿γος) são a fonte da honra e da desonra. Mas o elogio e a reprovação foram considerados
pela ética filosófica dos tempos seguintes o fato fundamental da vida social,
pelo qual se manifesta a existência de uma medida de valor na comunidade dos
homens12. É difícil para o homem moderno imaginar a absoluta
exposição da consciência entre os gregos. Para eles não existe, efetivamente, nenhum
conceito como a nossa consciência pessoal. No entanto, o conhecimento de tal
fato é o pressuposto indispensável à difícil inteligência do conceito de honra
e do seu significado na Antiguidade. A ânsia de se distinguir e a aspiração à
honra e à aprovação aparecem ao sentimento cristão como vaidade pessoal pecaminosa;
os gregos, porém, viram nisso a aspiração da pessoa ao ideal e suprapessoal,
onde começa o valor. De certo modo pode-se dizer que a areté heroica só
se aperfeiçoa com a morte física do herói. Ela reside no homem mortal, ou
melhor, ela é o próprio homem mortal; mas perpetua-se, mesmo depois da morte,
na sua fama, isto é, na imagem da sua areté, tal como o acompanhou e
dirigiu na vida. Até os deuses reclamam a sua honra e se comprazem no culto que
lhes glorifica os feitos, castigando ciosamente qualquer violação dessa honra.
Os deuses de Homero são, por assim dizer, uma sociedade imortal de nobres; e a
essência da piedade e o culto grego exprimem-se no fato de honrar a divindade.
Ser piedoso quer dizer “honrar a divindade”. Honrar os Deuses e os homens pela
sua areté é próprio do Homem primitivo.”
12. ARISTÓTELES, Et. Nic., Γ I, 1109 b 30.
“Conta Platão que era opinião geral no seu
tempo ter sido Homero o educador de toda a Grécia1. Desde então, a
sua influência estendeu-se muito além das fronteiras da Hélade. Nem a
apaixonada crítica filosófica de Platão conseguiu abalar o seu domínio, quando
buscou limitar o influxo e o valor pedagógico de toda a poesia. A concepção do
poeta como educador do seu povo – no sentido mais amplo e profundo da palavra –
foi familiar aos gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua importância.
Homero foi apenas o exemplo mais notável dessa concepção geral e, por assim
dizer, a sua manifestação clássica. Convém levarmos a sério, o mais possível,
essa concepção, e não restringirmos a nossa compreensão da poesia grega com a substituição
do juízo próprio dos gregos pelo dogma moderno da autonomia puramente estética
da arte. Embora esta caracterize certos tipos e períodos da arte e da poesia,
não deriva da poesia grega ou de seus grandes representantes, nem é possível aplicá-la
a eles.
A não separação entre a estética e a ética é
característica do pensamento grego primitivo. O procedimento de separá-las surge
relativamente tarde. Para Platão, ainda, a limitação do conteúdo de verdade da
poesia homérica acarreta imediatamente uma diminuição no seu valor. Foi a
antiga retórica que fomentou pela primeira vez a consideração formal da arte e
foi o Cristianismo que, por fim, converteu a avaliação puramente estética da
poesia em atitude espiritual predominante. É que isso lhe possibilitava
rejeitar, como errôneo e ímpio, a maior parte do conteúdo ético e religioso dos
antigos poetas e, ao mesmo tempo, aceitar a forma clássica como instrumento de
educação e fonte de prazer. A partir daí, a poesia continuou a conjurar do seu
mundo de sombras os deuses e heróis da “mitologia” pagã; mas esse mundo passou
a ser considerado como jogo irreal da pura fantasia artística. É fácil
contemplar Homero por essa acanhada perspectiva, mas assim impedimo-nos o
acesso à inteligência dos mitos e da poesia no seu genuíno sentido helênico. Repugna-nos
naturalmente ver a tardia poética filosófica do helenismo interpretar a
educação em Homero como uma árida e racionalista fabula docet ou, de
acordo com o modelo dos sofistas, fazer da epopeia uma enciclopédia de todas as
artes e ciências. Mas essa quimera da escolástica não é senão a degenerescência
de um pensamento em si mesmo correto, o qual, como tudo quanto é belo e
verdadeiro, se torna grosseiro em mãos grosseiras. Por mais que esse
utilitarismo repugne, com razão, nosso sentido estético, não deixa de ser
evidente que Homero, e com ele todos os grandes poetas da Grécia, deve ser
considerado, não como simples objeto da história formal da literatura, mas como
o primeiro e maior criador e modelador da humanidade grega.”
1. Platão, Rep., 606 E, pensa nos
“adoradores de Homero”, que o enaltecem não só como fonte de prazer artístico,
mas também como guia da vida. Idêntica visão em XENÓFANES, frag. 9 Diehl.
“Existe e existiu sempre uma arte que
prescinde dos problemas centrais do homem e tem de ser compreendida apenas pela
sua ideia formal. E mais: existe uma arte que despreza os chamados assuntos
elevados ou fica indiferente perante o conteúdo do seu objeto. É claro que essa
frivolidade artística deliberada tem por sua vez efeitos “éticos”, pois
desmascara sem nenhuma consideração os valores falsos e convencionais, e atua
como uma crítica purificadora. Mas só pode ser propriamente educativa uma
poesia cujas raízes mergulhem nas camadas mais profundas do ser humano e na
qual viva um éthos, um anseio espiritual, uma imagem do humano capaz de
se tornar uma obrigação e um dever. A poesia grega nas suas formas mais
elevadas não nos dá apenas um fragmento qualquer da realidade; ela nos dá um
trecho da existência, escolhido e considerado em relação a um ideal determinado.
Por outro lado, os valores mais elevados
ganham, em geral, por meio da expressão artística, significado permanente e
força emocional capaz de mover os homens. A arte tem um poder ilimitado de
conversão espiritual. É o que os gregos chamaram psykhagogía. Só ela
possui ao mesmo tempo a validade universal e a plenitude imediata e viva, que
são as condições mais importantes da ação educativa. Pela união dessas duas
modalidades de ação espiritual, ela supera ao mesmo tempo a vida real e a reflexão
filosófica. A vida possui a plenitude de sentido, mas as suas experiências
carecem de valor universal. Sofrem demais a interferência dos sucessos
acidentais para que a sua impressão possa alcançar sempre o grau máximo de
profundidade. A filosofia e a reflexão atingem a universalidade e penetram na
essência das coisas. Mas atuam somente naqueles cujos pensamentos chegam a
adquirir a intensidade de uma vivência pessoal. Daqui resulta que a poesia tem
vantagem sobre qualquer ensino intelectual e verdade racional, assim como sobre
as meras experiências acidentais da vida do indivíduo. É mais filosófica que a vida
real (se nos é lícito ampliar o sentido de uma conhecida frase de Aristóteles),
mas é, ao mesmo tempo, pela concentração de sua realidade espiritual, mais
vital que o conhecimento filosófico.
Essas considerações não são, de modo nenhum,
válidas para a poesia de todas as épocas, nem sequer, sem exceção, para a dos
gregos. Tampouco se limitam a esta. Mas aplicam-se a ela mais que a nenhuma
outra, pois dela derivam, quanto ao fundamental.”
“O mito serve sempre de instância normativa
para a qual apela o orador. Há no seu âmago alguma coisa que tem validade
universal. Não tem caráter meramente fictício, embora originalmente seja, sem dúvida
alguma, o sedimento de acontecimentos históricos que alcançaram a imortalidade
através de uma longa tradição e da interpretação enaltecedora da fantasia
criadora da posteridade.”
“Ainda acima do emprego dos epítetos, campeia
nas descrições épicas um tom ponderativo, enobrecedor e transfigurante. Tudo
quanto é baixo, desprezível e falho de nobreza é suprimido do mundo épico. Já
os antigos fizeram notar como Homero eleva àquela esfera até as coisas mais
insignificantes. Díon de Prusa, que não chegou a ter consciência clara da
profunda ligação do estilo enobrecedor com a essência da épica, contrapõe a Homero
o crítico Arquíloco e faz o reparo de que os homens precisam mais de crítica
que de louvor para a sua educação5. O seu juízo pouco nos interessa
aqui, uma vez que exprime um ponto de vista pessimista, oposto à antiga
educação dos nobres e ao culto do exemplo. Veremos mais adiante os seus
pressupostos sociais. Mas dificilmente se pode descrever a natureza do estilo
épico e a sua tendência idealizante com mais acerto que o das palavras daquele
retórico, cheio de fina sensibilidade para as coisas formais. Homero – diz
– tudo engrandeceu: animais e plantas, a água e a terra, as armas e os
cavalos. Podemos afirmar que não deixou nada sem elogio e sem louvor. Mesmo
Tersites, o único que ele difamou, denomina-o orador de voz clara.”
5.
DÍON de PRUSA, Or., XXXIII, 2.
“A nova finalidade artística da grande
epopeia, ao introduzir um elevado número de cenas dessa natureza e ligá-las a uma
ação unitária, não consistia apenas em apresentar, como anteriormente, quadros
particulares de uma ação de conjunto que se supunha conhecida; visava também
pôr em relevo o valor de todos os heróis famosos. Por meio da ligação de muitos
heróis e figuras já parcialmente celebrados nos antigos cantos, o poeta pinta
um quadro grandioso: a guerra de Ílion, na sua totalidade. A sua obra mostra
bem o que a guerra representava para ele: era a luta prodigiosa de muitos
heróis imortais, da mais sublime areté – e não apenas gregos. Os
inimigos destes são igualmente um povo de heróis que lutam pela sua pátria e pela
sua liberdade. Lutar pela pátria é um bom augúrio: são palavras que
Homero põe na boca, não de um grego, mas do herói dos troianos, que tomba pela
pátria e com isso atinge uma tão viva qualidade humana. Os grandes heróis
aqueus encarnam o tipo da mais alta heroicidade. A pátria, a mulher e os filhos
são motivos que atuam sobre eles com menos força. Diz-se ocasionalmente que
lutam para vingar o rapto de Helena. Há a intenção de negociar diretamente com
os troianos o regresso de Helena ao seu marido legal, e assim evitar o
derramamento de sangue, como parece aconselhar uma política razoável. Mas não
se faz nenhum uso importante dessa justificação. O que desperta a simpatia do
poeta para com os aqueus não é a justiça da sua causa, mas o resplendor
imperecível do seu heroísmo.
Do fundo sangrento da peleja heroica
destaca-se, na Ilíada, um destino individual de pura tragédia humana: a vida heroica de
Aquiles. A ação é para o poeta o laço íntimo pelo qual ele junta numa unidade
poética as cenas sucessivas da guerra. A Ilíada deve à trágica figura de
Aquiles o não ser para nós um venerável manuscrito do espírito guerreiro
primitivo, mas sim um monumento imortal para o reconhecimento da vida e da dor humanas.
A grande epopeia não representa apenas um progresso imenso na arte de compor um
todo complexo e de amplo traçado; significa também uma consideração mais
profunda dos conteúdos íntimos da vida e dos seus problemas, o que eleva a poesia
heroica muito acima da sua esfera original e outorga aos poetas uma posição
espiritual completamente nova, uma função educadora no mais alto sentido da
palavra. Ele já não é um simples divulgador impessoal da glória do passado e de
suas façanhas. É um poeta no sentido pleno da palavra: intérprete e criador da
tradição.
Interpretação espiritual e criação são, no
fundo, uma e a mesma coisa. Não é difícil de compreender que a originalidade incontestavelmente
superior da epopeia grega na composição de um todo unitário brota da mesma raiz
que a sua ação educadora: da mais alta consciência espiritual dos problemas da
vida. O interesse e o prazer cada vez maiores no domínio de grandes massas
temáticas – traço típico dos últimos graus de desenvolvimento dos cantos épicos
e que também se encontra em outros povos – não leva nestes necessariamente à
grande epopeia e, quando tal acontece, cai facilmente no perigo de degenerar em
uma narração novelesca, que desde o “ovo de Leda”, e começando na história do
nascimento do herói, desenrola-se através de uma fatigante série de contos
tradicionais. O acontecer da epopeia homérica, dramático e concentrado, sempre
intuitivo e imagético, avançando in medias res, procede apenas por
traços justos e precisos. Em vez de uma história da guerra troiana ou da vida
inteira de Aquiles, apresenta apenas, com prodigiosa segurança, as grandes
crises, alguns momentos de significação representativa e da mais alta
fecundidade poética, o que permite concentrar e evocar, em breve espaço de
tempo, dez anos de guerra com todos os seus combates e vicissitudes, passadas,
presentes e futuras. Já os críticos antigos se admiraram dessa capacidade. Foi
ela que fez de Homero, para Aristóteles e Horácio, não apenas o clássico dentre
os épicos, mas ainda o mais sublime modelo de força e mestria poéticas. Prescinde
do que é meramente histórico, corporifica os acontecimentos e deixa que os
problemas se desenvolvam pela força da sua íntima necessidade.”
“O mito é como um organismo: desenvolve-se,
transforma-se e se renova sem cessar. É o poeta que realiza essa transformação.
Mas não a realiza em obediência a um simples desejo arbitrário. O poeta
estrutura uma nova forma de vida para o seu tempo e interpreta o mito de acordo
com as suas novas evidências interiores. O mito só se mantém vivo por meio da
contínua metamorfose da sua ideia. Mas a ideia nova é transportada pelo veículo
seguro do mito. Isso já é válido para a relação do poeta com a tradição na
epopeia homérica. Mas em Hesíodo torna-se ainda muito mais claro, visto que
nele a individualidade poética aparece de modo evidente, age com plena consciência
e serve-se de tradição mítica como de um instrumento para o próprio desígnio.”
“Na poesia de Hesíodo consuma-se diante dos
nossos olhos a formação independente de uma classe popular, excluída até então de
qualquer formação consciente. Serve-se das vantagens oferecidas pela cultura
das classes mais elevadas e das formas espirituais da poesia palaciana; mas
cria a própria forma e o seu éthos exclusivamente a partir das
profundezas da própria vida. Porque Homero não é só o poeta de uma classe, mas
se eleva desde os fundamentos de um ideal de classe até o nível humano e a
amplidão geral do espírito, possui a força capaz de orientar na sua cultura
própria uma classe popular que vive em condições de existência totalmente
diversas, capaz de fazê-la achar o sentido específico da sua vida humana e de
ensiná-la a conformar-se com as suas leis internas. Isso é da maior
importância. Mas é ainda mais importante o fato de, por meio desse ato de autoformação
espiritual, ela sair do seu isolamento e fazer ouvir a sua voz na ágora dos
povos gregos. Assim como a cultura aristocrática adquire em Homero uma
influência de tipo humano geral, com Hesíodo a civilização camponesa sai dos acanhados limites da sua esfera social.
Embora o conteúdo do poema só possa ser compreendido pelos camponeses e só se
aplique a eles e ao trabalho do campo, os valores morais implícitos nessa concepção
de vida tornam-se acessíveis ao mundo inteiro. É claro que a concepção agrária
da sociedade não deu o cunho definitivo à vida do povo grego. A formação grega
encontrou na pólis a sua forma mais característica e acabada. O que contém
da cultura do campo, ela passa, espiritualmente intacto, para um plano de
fundo. Importância igual ou maior tem o fato de o povo grego considerar
definitivamente Hesíodo um educador orientado para o ideal do trabalho e da
estrita justiça e de ele, formado no ambiente do campo, conservar o seu valor mesmo
em contextos sociais completamente distintos.
É no intuito educativo de Hesíodo que está a
verdadeira raiz da sua poesia. Não depende do predomínio da forma épica nem da
matéria como tal. Se considerarmos os poemas didáticos de Hesíodo como uma
simples aplicação mais ou menos original da linguagem e formas poéticas dos
rapsodos a um conteúdo que as gerações posteriores consideravam “prosaico”, surgirão
dúvidas sobre o caráter poético da obra. Os filólogos antigos formularam
dúvidas idênticas a respeito dos poemas didáticos posteriores16. O
próprio Hesíodo encontrou justificação para a sua missão poética na vontade
profética de se converter em mestre do seu povo. Os seus contemporâneos
contemplavam Homero com esses olhos, pois não podiam imaginar forma mais
elevada de influxo espiritual do que a dos poetas e rapsodos homéricos. A
missão educativa do poeta estava inseparavelmente ligada à forma da linguagem
épica tal qual era sentida sob o influxo de Homero. Quando Hesíodo recolheu a
seu modo a herança de Homero, definiu para a posteridade, transpondo os limites
da mera poesia didática, a essência da criação poética no sentido social,
educador e construtivo. Essa força edificadora brota, para além de qualquer
instrução meramente prática ou moral, de uma vontade de atingir a essência das
coisas, vontade que nasce do mais profundo saber e que tudo renova. A ameaça iminente
de um estado social dominado pela dissensão e pela injustiça deu a Hesíodo a
visão dos fundamentos em que se apoiava a vida daquela sociedade e a de cada um
dos seus membros. Essa visão essencial que penetra o sentido simples e original
da existência determina a função do verdadeiro poeta. Para este não há assuntos
prosaicos ou poéticos em si.
Hesíodo é o primeiro poeta grego que fala do
seu ambiente em seu próprio nome. Desse modo ergue-se acima da esfera épica,
que apregoa a fama e interpreta as sagas, até a realidade e as lutas atuais.
Vê-se claramente no mito das cinco idades que ele considera o mundo heroico da
epopeia um passado ideal, ao qual contrapõe a presente idade de ferro. No tempo
de Hesíodo o poeta esforça-se por exercer uma influência direta na vida. Surge
aqui pela primeira vez uma pretensão a guia, que não se fundamenta numa
ascendência aristocrática nem numa função oficial reconhecida. Ressalta
imediatamente a semelhança com os profetas de Israel, já salientada de tempos
antigos. No entanto, é com Hesíodo, o primeiro dos poetas gregos a
apresentar-se com a pretensão de falar publicamente à comunidade, baseado na
superioridade do seu conhecimento, que o helenismo se anuncia como uma época
nova na história da sociedade. É com Hesíodo que começa o domínio e o governo
do espírito, que põe o seu selo no mundo grego. É o “espírito” no sentido original,
o autêntico spiritus, o sopro dos deuses, que ele próprio descreve como
verdadeira experiência religiosa e que por inspiração pessoal recebe das musas,
aos pés do Hélicon. São as próprias musas que explicam a sua força inspiradora,
quando Hesíodo as invoca, na qualidade de poeta: Na verdade sabemos dizer
mentiras que parecem verdades, mas também sabemos, se o quisermos, revelar a
verdade17. Assim se exprime no prefácio da Teogonia. No
proêmio dos Erga, Hesíodo também tem a intenção de revelar a verdade a
seu irmão18. Essa consciência de ensinar a verdade é novidade em
relação a Homero, e a ousadia de Hesíodo em usar a forma da primeira pessoa
deve ligar-se a ela de algum modo. É característica pessoal do poeta-profeta grego
querer guiar o Homem transviado para o caminho correto, por meio do
conhecimento mais profundo das conexões do mundo e da vida.”
16. Anecdota Bekkeri, 733, 13.
17. Teóg., 27.
18. Erga, 10.
“A raiz da ética filosófica de Platão e
Aristóteles na ética da velha pólis foi desconhecida dos tempos
posteriores, habituados a encará-la como a ética absoluta e intemporal. Quando
a Igreja cristã começou a estudá-la, achou estranho que Platão e Aristóteles chamassem
virtudes morais à fortaleza, e à justiça. Mas teve de conformar-se com esse
fato original da consciência moral dos gregos. Para uma geração alheia à
comunidade política e ao Estado, no sentido primitivo da palavra, e do ponto de
vista de uma ética meramente individual e religiosa, isso só era compreensível como
paradoxo. Fizeram-se, por isso, inúmeras teses sobre a questão de saber se a
fortaleza é uma virtude e como é que pode sê-lo. A aceitação consciente da
antiga ética da pólis pela moral filosófica posterior e a influência que
por meio desta ela exerceu sobre o futuro são para nós um processo
perfeitamente natural da história do espírito. Nenhuma filosofia vive da pura
razão. É apenas a forma conceitual e sublimada da cultura e da civilização,
tais como se desenrolam na história. Em qualquer dos casos, isso é verdadeiro
para a filosofia de Platão e a de Aristóteles. Não podem ser compreendidas sem
a cultura grega, nem a cultura grega sem elas.”
“O pensamento e o sentimento do poeta grego
permanecem sempre, mesmo dentro da esfera do eu recentemente descoberta,
submetidos de algum modo a uma norma e a um dever-ser. Explicaremos isso com
maior detalhe e rigor. Longamente impregnados daquela ideia, não nos é fácil
conceber com clareza e precisão o que Arquíloco e outros poetas da sua espécie entenderam
por individualidade. Não é por certo o sentimento cristão e moderno do eu,
da alma individual, cônscia do seu íntimo e próprio valor. Para os gregos, o eu
está em íntima e viva conexão com a totalidade do mundo circundante, com a
natureza e com a sociedade humana, nunca separado e solitário. As manifestações
da individualidade nunca são exclusivamente subjetivas. Seria preferível dizer
que, numa poesia como a de Arquíloco, o eu individual busca exprimir e
representar em si próprio a totalidade do mundo objetivo e suas leis. Não é
pelo mero extravasamento da subjetividade que o indivíduo grego alcança a
liberdade e a amplidão de movimentos da sua consciência, mas sim pela própria
objetivação espiritual. E é na medida em que se contrapõe a um mundo exterior,
regido por leis próprias, que ele descobre as suas próprias leis
internas.”
“Da poesia jônica do século e meio posterior
a Arquíloco, conserva-se o suficiente para que se veja que trilha o mesmo
caminho, embora nenhuma possua a importância espiritual do seu grande iniciador.
Os poetas subsequentes são sobretudo influenciados pela forma reflexiva do
iambo e da elegia de Arquíloco. Os iambos de Semônides de Amorgos que se
conservam são de caráter didático. O primeiro revela claramente a imediata intenção
educadora do gênero: Meu filho, Zeus tem na mão o fim de todas as coisas e
dispõe-nas como entende. O Homem não tem o mínimo conhecimento delas.
Seres de um só dia, como os animais no prado, vivemos ignorantes do modo que a
divindade usará para levar cada coisa a seu fim. Vivemos todos da esperança e
da ilusão: os seus desígnios, porém, nos são inacessíveis. A velhice, a crença,
a morte no campo de batalha ou sobre as ondas do mar atingem os homens, antes
de eles terem conseguido o que queriam. Outros ainda põem fim à vida pelo
suicídio32. O poeta lamenta-se, com Hesíodo, de que
nenhum infortúnio poupa o Homem33. Cercam-no inúmeros espíritos
malignos, dores e penas sem conta. Se quisésseis escutar-me, não amaríamos a
nossa própria desventura – Hesíodo recorda a mesma coisa34 – nem
nos atormentaríamos na busca de dores fatais.
Perdeu-se a parte final desse poema. Mas,
numa elegia que trata quase o mesmo tema deste iambo, revela-se a exortação que
Semônides dirigia aos homens35. A base da sua cega perseguição da
desgraça está na desenfreada esperança de uma vida sem fim. Foi o homem de
Quio quem disse a coisa mais bela: a geração dos homens é como a das
folhas. Acolhem, todavia, nos ouvidos esse conselho, mas não o aceitam no
seu coração. Todos guardam as esperanças que nascem no coração dos jovens.
Enquanto dura a flor dos anos, os mortais andam de coração leve e traçam mil
planos irrealizáveis. Ninguém pensa na velhice ou na morte. E, enquanto têm
saúde, não curam da enfermidade. Insensatos os que assim pensam e não sabem que
para os mortais é breve o tempo da juventude e da existência. Aprende tu isto
e, meditando no fim da vida, deixa a tua alma gozar um pouco de prazer. A
juventude surge aqui como fonte de todas as ilusões exageradas e de todos os
empreendimentos desmedidos, porque não tem presente a sabedoria de Homero, que
recorda a brevidade da vida. Singular e nova é a consequência tirada dessa
afirmação pelo poeta: a exortação a gozar os prazeres da vida enquanto é tempo.
Isso não se encontra em Homero. É a solução de uma geração para a qual as altas
exigências dos tempos heroicos perderam muito da sua profunda seriedade e que
seleciona das doutrinas da Antiguidade o que melhor convém à própria concepção
de vida. Assim, a lamentação sobre a brevidade da vida humana. Essa intuição,
transportada do mundo dos mitos heroicos para o mundo mais humano em que o
poeta vivia, deve ter gerado, em lugar de um trágico heroísmo, uma sede
abrasadora de viver.”
32. SEMÔNIDES, frag. 1.
33. HESÍODO, Erga, 100.
34. HESÍODO, Erga, 58. Também recorda
Hesíodo em 29, 10 (Erga, 40).
35. Frag. 29. A atribuição, por BERGK, do
poema a Semônides de Amorgos – Estobeu transmite-o como sendo de Simônides de
Ceos – é um dos resultados mais seguros da crítica filológica.
“Com frequência se debateu a questão de saber
como foi possível à filosofia grega ter começado com os problemas da natureza e
não com os relativos ao Homem. A fim de se tornar compreensível esse fato
importante, procurou-se corrigir a história, fazendo derivar do espírito da
mística religiosa as concepções da mais antiga filosofia da natureza. Mas não é
assim que resolveremos o problema. Limitamo-nos a adiá-lo. Só ficará
efetivamente resolvido se reconhecermos que ele nasceu de um falso
estreitamento do horizonte da chamada história da filosofia. Se juntarmos à
filosofia da natureza tudo o que a poesia jônica a partir de Arquíloco e a
poesia de Sólon trouxeram ao pensamento construtivo no campo religioso e
ético-político, ficará evidente que nos basta quebrar os limites que separam a prosa
da poesia para obtermos uma imagem completa da evolução do pensamento
filosófico, na qual também está compreendido o reino humano. A única diferença
reside no fato de a concepção do Estado ser, pela própria natureza, de caráter
imediatamente prático, ao passo que a investigação da physis, ou gênese,
isto é, “origem”, é impulsionada pela “teoria”. O problema do Homem não foi
encarado pelos gregos, a princípio, do ponto de vista teórico. Mais tarde, no
estudo dos problemas do mundo externo, e particularmente da Medicina e da
Matemática, é que se descobriram intuições do tipo de uma tékhne exata, que
serviram de modelo para a investigação do Homem interior. Recordemos as
palavras de Hegel: o rodeio é o caminho do espírito. Enquanto a alma do
Oriente, no seu anseio religioso, se afunda logo no abismo do sentimento, sem
ali encontrar, no entanto, um terreno firme, o espírito grego, formado na
legalidade do mundo exterior, cedo descobre também as leis internas da alma e
chega à concepção objetiva de um cosmo interior. Foi essa descoberta que, num
momento crítico da história grega, possibilitou, pela primeira vez, a
estruturação de uma nova formação humana, com fundamento no conhecimento
filosófico, no sentido proposto por Platão. A prioridade da filosofia da natureza
sobre a filosofia do espírito tem um “sentido” histórico profundo, que se torna
extremamente claro quando visto à luz da história da educação. No fundo do
pensamento dos antigos jônios não há uma vontade consciente de educar. Porém,
no meio da decadência da concepção mítica do mundo e no caos gerado pela
fermentação de uma nova sociedade humana, encaram de um modo inteiramente novo
o mais profundo problema da vida, o problema do ser.
O que logo se evidencia na figura humana
desses primeiros filósofos – que, naturalmente, não deram a si próprios esse
nome platônico – é a sua típica atitude espiritual: devotamento incondicional ao
conhecimento, estudo e aprofundamento do ser em si mesmo. Essa atitude pareceu
totalmente paradoxal com relação aos gregos posteriores, e mesmo aos da época,
mas suscitou ao mesmo tempo a sua mais alta admiração. A tranquila indiferença daqueles
investigadores pelas coisas que aos demais homens pareciam importantes, como o
dinheiro, as honras e até o lar e a família, a sua aparente cegueira com
relação aos seus próprios interesses e a sua indiferença perante as emoções da praça
pública deram origem às conhecidas anedotas sobre a atitude espiritual daqueles
pensadores. Recolhidas principalmente pela Academia platônica e pela Escola
peripatética, foram propostas como exemplo e modelo do βι¿ος θεωρητικο¿ς,
considerado por Platão como a autêntica prâxis dos filósofos3.
Nessas anedotas, o filósofo é o grande extravagante, algo misterioso, digno, mas
estimado, que se ergue acima da sociedade dos homens ou dela se aparta
deliberadamente para se consagrar aos seus estudos. É ingênuo como uma criança,
desajeitado e pouco prático, e está fora das condições do espaço e do tempo. O sábio
Tales, absorto na contemplação de um fenômeno celeste qualquer, cai dentro de
um poço, e a sua criada trácia faz pouco dele, por querer saber as coisas do
céu e não ver o que está sob os seus pés. Pitágoras, quando lhe perguntam para
que vive, responde: para contemplar o céu e as estrelas. Anaxágoras, acusado de
não se interessar pela família nem pela Pátria, aponta com a mão o céu e diz:
eis a minha Pátria. É comum a todos aquele incompreensível devotamento ao
conhecimento do cosmo, à “meteorologia”, como então se dizia num sentido mais vasto
e mais profundo, isto é, à ciência das coisas do alto. A conduta e as
aspirações dos filósofos são desmedidas e extravagantes, no sentir do povo, e é
crença popular dos gregos que aqueles homens sutis e sonhadores são infelizes
porque são περιττο¿ς4. Isso é intraduzível, mas refere-se
evidentemente à hybris, pois o pensador ultrapassa os limites impostos
ao espírito humano pela inveja dos deuses.”
3. Cf. o meu trabalho sobre a origem e o
movimento circular do ideal filosófico da vida, Sitz. Berl. Akad., 1928, pp.
390 ss.
4. Cf. ARISTÓTELES, Metaf., A 2, 983a
1.
“A resolução e a independência dessas
críticas à concepção do mundo dominante são perfeitamente paralelas à ousadia
dos poetas jônicos em proclamarem livremente os seus sentimentos e as suas
ideias sobre a vida humana e o seu ambiente. São frutos do desenvolvimento
crescente da individualidade. O pensamento racional atua como material
explosivo já neste primeiro estágio. As mais antigas autoridades perdem o seu
valor. Só é verdade o que “eu” posso explicar por razões concludentes, aquilo que
o “meu” pensamento consegue justificar perante si próprio. Toda a literatura
jônica, desde Hecateu e Heródoto, criador da Geografia e da Etnologia e pai da
História, até os médicos, em cujos escritos se encontram os fundamentos da
ciência médica durante vários séculos, está impregnada desse espírito e usa nas
suas críticas aquela forma pessoal característica. No entanto, realiza-se com o
aparecimento do eu racional a superação do individualismo mais rica de
consequências: surge o conceito de verdade, o novo conceito de uma validade
universal no fluir dos fenômenos, perante a qual se tem de curvar todo
arbitrário.
O ponto de partida dos pensadores
naturalistas do século VI era o problema da origem, a physis, que deu o
seu nome ao movimento espiritual e à forma de especulação que originou. Isso se
justifica, se temos presente o significado originário da palavra grega e não
misturamos a ele a moderna concepção da física. O seu interesse fundamental
era, na realidade, o que na nossa linguagem corrente denominamos metafísica.
Era a ele que se subordinavam o conhecimento e a observação física. É certo que
foi do mesmo movimento que nasceu a ciência racional da natureza. Mas a
princípio estava envolta em especulação metafísica, e só gradualmente se foi
libertando dela. No conceito grego de physis estavam, inseparáveis, as
duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os
limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da
investigação empírica ( ι¸στορι¿η), do que deriva daquela origem e existe
atualmente (ταì οÓντα). Era natural que a tendência inata dos jônios – grandes
exploradores e observadores – para a investigação levasse as questões a um
maior aprofundamento, no qual aparecem os problemas últimos. É natural também
que, uma vez colocado o problema da origem e essência do mundo, se
desenvolvesse progressivamente a necessidade de ampliar o conhecimento dos
fatos e a explicação dos fenômenos particulares. Pela proximidade do Egito e dos
países do Oriente Próximo torna-se mais que verossímil – confirmam-no as
tradições mais autênticas – que o contato espiritual dos jônios com as mais antigas
civilizações daqueles povos não só tenha levado à adoção das conquistas
técnicas na agrimensura, na náutica e na observação do céu, mas tenha também
dirigido a atenção daquela raça de navegadores e comerciantes, de espírito
vivo, para a consideração dos problemas profundos que aqueles povos resolveram
de maneira muito diferente dos gregos, por meio de mitos referentes ao
nascimento do mundo e às histórias dos deuses.
Há, porém, algo de fundamentalmente novo na
maneira como os gregos puseram a serviço do seu problema último – da origem e
essência das coisas – as observações empíricas que receberam do Oriente e
enriqueceram com as suas próprias, bem como no modo de submeter ao pensamento
teórico e causal o reino dos mitos, fundado na observação das realidades
aparentes do mundo sensível: os mitos sobre o nascimento do mundo. É nesse
momento que assistimos ao aparecimento da filosofia científica. É este, aliás,
o feito histórico da Grécia. É certo que foi só gradual a sua libertação dos
mitos. Porém, o simples fato de ter sido um movimento espiritual unitário,
conduzido por uma série de personalidades independentes, mas em íntima e recíproca
ligação, já demonstra o seu caráter científico e racional. A conexão do
nascimento da filosofia naturalista com Mileto, a metrópole da cultura jônica,
torna-se clara, se notamos que os seus três primeiros pensadores – Tales,
Anaximandro e Anaxímenes – viveram no tempo da destruição de Mileto pelos
Persas (início do século V). Tão evidente como a súbita interrupção de um
elevado florescimento espiritual de três gerações, pela irrupção brutal de um
destino histórico exterior, é a continuidade do trabalho de investigação e do
tipo espiritual dessa magnífica série de grandes homens, um pouco
anacronicamente designados de “escola milesiana”. O modo de propor e resolver
os problemas segue, nos três, a mesma direção. Abriram o caminho e forneceram
os conceitos fundamentais à física grega de Demócrito até Aristóteles.”
“A grande dificuldade do pensamento puro é
obter qualquer conhecimento concreto do conteúdo do seu objeto. Nos fragmentos existentes
da sua obra, Parmênides aparece-nos num esforço de dedução de uma série de
determinações precisas do seu novo conceito rigoroso do Ser. Essas notas, que
se destacam no caminho que conduz à investigação dirigida pelo pensamento puro,
ele chama de atributos ou características do Ser. O Ser é alheio ao devir, é
imutável e portanto imortal, total e único, inabalável, eterno, onipresente,
uno, coerente, indivisível, homogêneo, ilimitado e completo. É perfeitamente
notório que todos os predicados positivos e negativos atribuídos por Parmênides
ao Ser derivam da contraposição à antiga filosofia naturalista e foram obtidos
graças à análise crítica e rigorosa dos pressupostos nela implícitos. Não é
este o lugar propício para expô-lo detalhadamente. Infelizmente, a
possibilidade de compreendermos Parmênides está limitada pelos lapsos do nosso
conhecimento das filosofias mais antigas. É indubitável que ele se refere constantemente
a Anaximandro. É provável que o pensamento pitagórico também tenha nas suas
discussões um papel muito importante. Mas a esse respeito só podemos fazer
conjecturas. Não se pode tentar aqui uma interpretação sistemática do esforço
de Parmênides para obter uma concepção global da filosofia da natureza, a
partir do seu novo ponto de vista, nem analisar o desenvolvimento das aporias
com que o pensamento depara na prossecução coerente do seu caminho. Debatem-se nelas
os discípulos de Parmênides, entre os quais têm excepcional importância Zenão e
Melisso.
A descoberta do pensamento puro e da sua
necessidade rigorosa surge em Parmênides como a abertura de um novo “caminho”, mais,
do único caminho praticável para chegar à posse da verdade. A partir desse
instante, a imagem da via reta (ο¸δο¿ς) da investigação aparece constantemente.
E, embora por enquanto não passe de uma imagem, já possui, todavia, uma
ressonância terminológica que, especialmente na oposição entre o caminho certo
e o errado, se aproxima do sentido do “método”. É aqui que tem raízes esse
conceito científico fundamental. Parmênides é o primeiro pensador que levanta
conscientemente o problema do método científico e o primeiro que distingue com clareza
os dois caminhos principais que a filosofia posterior há de seguir: a percepção
e o pensamento. O que não conhecemos pela via do pensamento é apenas “opinião
dos homens”. Toda a salvação se baseia na substituição do mundo da opinião pelo
mundo da verdade. Parmênides considera essa conversão como algo violento e
difícil, mas grande e libertador. Põe na exposição do seu pensamento um ímpeto
grandioso e um páthos religioso que transcende os limites do lógico e
lhe confere uma emoção profundamente humana. É o espetáculo do Homem que luta
por meio do pensamento e, pela primeira vez, liberta-se das aparências
sensíveis da realidade e descobre no espírito o órgão para chegar à compreensão
da totalidade e da unidade do Ser. Embora entravado e perturbado por uma
multiplicidade de problemas, revela-se nesse conhecimento uma força fundamental
de concepção do mundo e de formação humana, especificamente helênica. Em tudo que
Parmênides escreveu palpita a emocionante experiência dessa conversão da
investigação humana ao pensamento puro.
É isso que explica a estrutura da sua obra,
dividida em duas partes rigidamente constantes, uma consagrada à “verdade” e outra
à “opinião”. Resolve também o velho problema de compreender como se harmoniza a
rígida lógica de Parmênides com o seu sentimento de poeta. Dizer apenas que
nessa época todos os temas podiam ser tratados em versos homéricos ou
hesiódicos é simplificar demais. Parmênides é poeta pelo entusiasmo com que
julga ser o portador de um novo tipo de conhecimento, por ele considerado, ao
menos em parte, a revelação da Verdade. É algo completamente diferente do
procedimento ousado e pessoal de Xenófanes. O poema de Parmênides está
impregnado de uma altiva modéstia. E a sua exigência é tanto mais rigorosa e
inexorável quanto ele se reconhece um simples servo e instrumento de uma força
mais alta a que contempla com veneração. Encontra-se no proêmio a confissão
imorredoura dessa inspiração filosófica. Se atentarmos bem para isso, veremos
que a imagem do “homem sábio” que caminha para a verdade procede da esfera
religiosa. O texto está rasurado em alguns lugares decisivos, mas penso que
poderia ser restituído ao sentido original. O “homem sábio” é a pessoa
consagrada aos mistérios da Verdade. Compreende-se com esse símbolo o novo
conhecimento do Ser. O caminho que o conduz “intacto” – afirmo – ao seu fim, é
o caminho da salvação35. Essa tradução do mundo das representações
na linguagem dos mistérios, de importância crescente naquela época, tem o maior
interesse para a compreensão da consciência filosófica. Quando se afirma que
Deus e o sentimento são indiferentes para Parmênides em face das exigências do
pensamento rigoroso, é necessário acrescentar que este pensamento e a verdade
por ele apreendida são interpretados por Parmênides como algo religioso. Foi
esse sentimento da sua elevada missão que o levou a nos oferecer, no prólogo do
seu poema, a primeira encarnação humana da figura do filósofo, o “homem sábio”
que as irmãs da luz guiam desde as sendas dos homens, pelo difícil caminho que
vai dar à mansão da verdade.”
35. Frag. 1, 3. Muitas vezes tem sido feita a
observação de que o caminho da verdade que conduz o homem sábio “através das
cidades” (κατα¹ πα¿ντ’ αÓστη ϕε¿ρει ει¹δο¿τα ϕωªτα) é uma imagem impossível, a conjetura de WILAMOWITZ κατα¹ τα¿ντα
τα¿τη¿ é pouco satisfatória; κατα¹ πα¿ντ’ α¹σινηª é a emenda que proponho, a
qual, como mais tarde verifiquei, já tinha sido encontrada por MEINECK.
“Mas o mundo que Píndaro tinha cantado e ao
qual pertencia o seu coração entrara em franca decadência. Parece ser uma lei
na vida do espírito que, quando um tipo de existência atinge o seu termo,
encontre a força necessária para formular o seu ideal e atingir o seu
conhecimento mais profundo; como se da morte se destacasse o seu aspecto
imortal. Assim, a decadência da cultura nobre da Grécia produziu Píndaro; a da
cidade-Estado, Platão e Demóstenes; e a hierarquia da Igreja Medieval, no
momento em que ia transpor a linha do seu apogeu, produziu Dante.”
XXXXXXXXXXXXXXXXX
Livro II
“A nova sociedade civil e urbana tinha uma
grande desvantagem em relação à aristocracia, porque, embora possuísse um ideal
de Homem e de cidadão e o julgasse, em princípio, muito superior ao da nobreza,
carecia de um sistema consciente de educação para atingir aquele ideal. A
educação profissional, herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofício ou a
indústria, não se podia comparar à educação total de espírito e de corpo do
nobre καλοìς κα¹γαϑο¿ς, baseada numa concepção total do Homem. Cedo se fez sentir a
necessidade de uma nova educação capaz de satisfazer os ideais do homem da pólis.
Nisso, como em muitas outras coisas, o novo Estado não teve outro remédio senão
imitar. Seguindo os passos da antiga nobreza, que mantinha rigidamente o
princípio aristocrático da raça, tratou de realizar a nova areté,
encarando como descendentes da estirpe ática todos os cidadãos livres do Estado
ateniense e tornando-os membros conscientes da sociedade estatal e obrigados a
se colocarem a serviço do bem da comunidade. Era uma simples ampliação do
conceito de comunidade de sangue, com a única diferença de que a vinculação a
uma estirpe substituíra o antigo conceito aristocrático do Estado patriarcal.
Não era possível pensar em outro fundamento. Por mais forte que fosse o
sentimento da individualidade, era impossível conceber que a educação se
fundamentasse em outra coisa que não a comunidade da estirpe e do Estado. O
nascimento da paideía grega é o exemplo e o modelo deste axioma capital
de toda a educação humana. A sua finalidade era a superação dos privilégios da
antiga educação para a qual a areté só era acessível aos que tinham
sangue divino. O que não era difícil de alcançar, para o pensamento racional que
ia prevalecendo. Só parecia haver um caminho para a consecução deste objetivo:
a formação consciente do espírito, em cuja força ilimitada os novos tempos
estavam inclinados a acreditar. Os motejos de Píndaro aos “que aprenderam”
pouco podiam perturbá-la. A areté política não podia nem devia depender da
nobreza do sangue, se não se quisesse considerar um caminho falso a admissão da
massa no Estado, a qual se afigurava já impossível de travar. E se a moderna
cidade-Estado se apropriara da areté física da nobreza, por meio da
instituição da ginástica, por que não seria possível alcançar, através de uma educação
consciente pela via espiritual, as inegáveis qualidades diretivas, que eram
patrimônio daquela classe?
O Estado do século V é assim o ponto de
partida histórico necessário do grande movimento educativo que imprime o
caráter a este século e ao seguinte, e no qual tem origem a ideia ocidental da
cultura. Como os gregos a viram, é integralmente político-pedagógica. Foi das
necessidades mais profundas da vida do Estado que nasceu a ideia da educação, a
qual reconheceu no saber a nova e poderosa força espiritual daquele tempo para a
formação de homens, e a pôs a serviço dessa tarefa. Não tem importância para
nós, agora, a apreciação da forma democrática da organização do Estado ático,
da qual surgiu, no século V, esse problema. Fosse como fosse, não há dúvida de
que o ingresso da massa na atividade política, causa originária e
característica da democracia, é um pressuposto histórico necessário para se colocarem
conscientemente os problemas eternos que com tanta profundidade o pensamento
grego se colocou naquela fase da sua evolução e legou à posteridade. Nos nossos
dias brotaram de análogo desenvolvimento e foi só por ele que voltaram a ganhar
atualidade. Problemas como os da educação política do Homem e da formação de
minorias dirigentes, da liberdade e da autoridade, só nesse grau da evolução
espiritual podem surgir e só nele podem alcançar a sua plena urgência e
importância para o destino. Nada têm a ver com uma forma primitiva da
existência, a vida social formada por bandos e por estirpes, que desconhece
qualquer individualização do espírito humano. Nenhum dos problemas nascidos da
forma do século V restringe a sua importância à esfera da democracia da cidade
grega. São os problemas do Estado apenas. Prova disso é o pensamento dos grandes
educadores e filósofos nascido daquela experiência ter conseguido prontas
soluções, que transcendem ousadamente as formas existentes do Estado e cuja
fecundidade é inesgotável para qualquer outra situação análoga.
O caminho do movimento educacional, que agora
passamos a considerar, parte da antiga cultura aristocrática e, depois de
descrever um amplo círculo, volta de novo a ligar-se, em Platão, Isócrates e Xenofonte,
à velha tradição aristocrática e à sua ideia de areté, que adquirem vida
nova sobre um fundamento muito mais espiritualizado. Mas, no início e em meados
do século V, ainda este regresso está muito longe. Era preciso, antes de mais
nada, romper com a estreiteza das velhas concepções: o seu preconceito mítico
das prerrogativas de sangue, o qual já só se podia justificar onde se firmava
na preeminência espiritual e na força moral, isto é, na σοϕι¿α e na
δικαιοσυ¹νη. Xenófanes mostra o quanto a “força espiritual” e a política se
enlaçavam vigorosamente já desde o início na ideia da areté e se
baseavam na ordem e no bem-estar da comunidade estatal. Também em Heráclito, se
bem que em sentido diverso, a lei se fundamentava no “saber”, onde tinha origem;
e o possuidor terrestre dessa sabedoria divina aspirava a uma posição especial
na pólis ou com ela entrava em conflito. Sem dúvida, esses grandes
exemplos manifestavam com a maior clareza o aparecimento do problema das
relações Estado-espírito, pressuposto necessário à existência da sofística;
tornam igualmente patente como a superação da velha nobreza do sangue e das
suas aspirações por meio do espírito substitui o antigo por um novo problema. É
o problema das relações das grandes personalidades espirituais com a
comunidade, problema que preocupou todos os pensadores até o fim da
cidade-Estado, sem que chegassem a entrar em acordo. No caso de Péricles, foi
encontrada uma feliz solução para o indivíduo e para a sociedade.”
“O objetivo da educação sofista, a formação
do espírito, encerra uma extraordinária multiplicidade de processos e de
métodos. No entanto, podemos encarar essa diversidade pelo ponto de vista
unitário da formação do espírito. Basta para tanto que nos figuremos o conceito
de espírito na multiplicidade dos seus aspectos possíveis. Por um lado, o
espírito é o órgão através do qual o Homem apreende o mundo das coisas e se
refere a ele. Porém, se abstraímos de qualquer conteúdo objetivo (e essa é uma
nova faceta do espírito, naquele tempo), também o espírito não é vazio, mas
revela pela primeira vez a sua própria estrutura interna. É esse o espírito
como princípio formal. De acordo com esses dois aspectos, deparamos nos
sofistas com duas modalidades distintas de educação do espírito: a transmissão de
um saber enciclopédico e a formação do espírito nos seus diversos campos.
Claramente se vê que o antagonismo espiritual desses dois métodos de educação
só pode alcançar unidade no conceito superior de educação espiritual. Ambas as
formas de ensino sobreviveram até o presente, mais sob a forma de compromisso que
na sua unilateralidade. Em grande parte, era o mesmo que acontecia na época dos
sofistas. Mas não nos deve iludir a união dos dois métodos na atividade de uma
mesma pessoa: trata-se de dois modos fundamentalmente distintos de educação do
espírito. Ao lado da formação meramente formal do entendimento, existiu
igualmente nos sofistas uma educação formal no mais alto sentido da palavra, a
qual não consistia já numa estruturação do entendimento e da linguagem, mas
partia da totalidade das forças espirituais. É Protágoras quem a representa. A
poesia e a música eram para ele as principais forças modeladoras da alma, ao
lado da gramática, da retórica e da dialética. É na política e na ética que
mergulham as raízes desta terceira forma de educação sofística4. Distingue-se
da formal e da enciclopédica, porque já não considera o homem abstratamente, mas
como membro da sociedade. É dessa maneira que coloca a educação em sólida ligação
com o mundo dos valores e insere a formação espiritual na totalidade da areté
humana. Também sob essa forma é educação espiritual; simplesmente, o espírito
não é considerado através do ponto de vista puramente intelectual, formal, ou
de conteúdo, mas sim em relação com as suas condições sociais.
Em todo o caso, é uma afirmação superficial
dizer que aquilo que de novo e de único liga todos os sofistas é o ideal
educativo da retórica ε,˜υ λε¿γειν: isso é comum a todos os representantes da
sofística, ao passo que diferem na apreciação do resto das coisas, a ponto de
ter havido sofistas, como Górgias, que só foram retóricos, e não ensinaram
outra coisa5. Comum a todos é antes o fato de serem mestres da areté
política6 e aspirarem a alcançá-la mediante o fomento da
formação espiritual, qualquer que fosse a sua opinião sobre a maneira de
realizá-la. Nunca podemos deixar de nos maravilhar diante da riqueza dos novos
e perenes conhecimentos educativos que os sofistas trouxeram ao mundo. Foram os
criadores da formação espiritual e da arte educativa que a ela conduz. É claro
que, em contrapartida, a nova educação, precisamente porque ultrapassava o
meramente formal e material e atacava os problemas mais profundos da moralidade
e do Estado, se arriscava a cair nas maiores parcialidades, caso não se
fundamentasse, numa investigação séria e num pensamento filosófico rigoroso,
que buscassem a verdade por si mesma. Foi a partir desse ponto de vista que
Platão e Aristóteles impugnaram mais tarde o sistema total da educação
sofística e o abalaram nos próprios fundamentos.
Isso nos leva ao problema da posição dos
sofistas na história da filosofia e da ciência gregas. É fato notável e curioso
que tradicionalmente se tenha aceitado como evidente que a sofística constituía
um membro orgânico do desenvolvimento filosófico, como fazem as histórias da
filosofia grega. Não se pode invocar Platão, porque sempre que faz os sofistas
intervirem nos seus diálogos é pela sua aspiração a serem mestres da areté,
quer dizer, em ligação com a vida e com a prática, e não com a ciência. A única
exceção é a crítica da teoria do conhecimento feita por Protágoras no Teeteto7.
Existe aqui, de fato, uma conexão entre a sofística e a filosofia, mas
limita-se a um só representante, e a ponte é bastante estreita. A história da
filosofia que Aristóteles nos dá na Metafísica não inclui os sofistas.
As mais recentes histórias da filosofia consideram-nos como fundadores do subjetivismo
e do relativismo filosóficos. O esboço de uma teoria por parte de Protágoras
não justifica tais generalizações e é um erro evidente de perspectiva histórica
pôr os mestres da areté ao lado de pensadores do estilo de Anaximandro,
Parmênides ou Heráclito.”
4. PLATÃO, Prot., 325 E ss. Platão faz
o próprio Protágoras formular a sua posição e a da sua ideia política e ética
da educação, contra a polimatia de Hípias de Élis, Prot., 318 E.
5. GOMPERZ, Sophistik und Rethorik. Das
bildungsideal des ε,˜υ λε¿γειν in seinem Verhältnis zur Philosophie des
5. Jhrh. (Leipzig, 1912).
6. PLATÃO, Prot., 318 E ss.; Men.,
91 A ss. e outros.
7. PLATÃO, Teeteto, 152, A.
“O que para os sofistas é decisivo é a ideia
consciente da educação como tal. Se voltarmos os olhos para o caminho
percorrido pelo espírito grego desde Homero até o período ático, não surgirá
essa ideia como algo de surpreendente, mas sim como o fruto histórico
necessário e amadurecido de toda aquela evolução. É a manifestação do esforço
constante da poesia e do pensamento grego para conseguirem uma expressão
normativa da forma do Homem. Este esforço essencialmente educativo tinha de
levar, sobretudo num povo de consciência filosófica tão viva, à formação do
ideal consciente da educação, no sentido elevado que aqui lhe descobrimos. Torna-se
assim muito natural que os sofistas tenham vinculado o ideal da educação às antigas
criações do espírito grego e as tenham considerado como conteúdo próprio dele.
A força educativa da obra dos poetas era algo que se pressupunha sem
contestação para o povo grego. A sua íntima interpenetração com o conteúdo
total da educação tinha de operar-se forçosamente no instante em que a ação
educativa (παιδευ¿ειν) deixou de limitar-se exclusivamente à infância (παιªς) e
se passou a aplicar com especial vigor ao homem adulto, não deparando já com
limites fixos na vida do homem. Foi então que pela primeira vez surgiu uma paideía
do homem adulto. O conceito, que originariamente designava apenas o
processo da educação como tal, estendeu ao aspecto objetivo e de conteúdo a
esfera do seu significado, exatamente como a palavra alemã Bildung (formação)
ou a equivalente latina cultura, do processo da formação passaram a
designar o ser formado e o próprio conteúdo da cultura, e por fim abarcaram, na
totalidade, o mundo da cultura espiritual: o mundo em que nasce o homem individual,
pelo simples fato de pertencer ao seu povo ou a um círculo social determinado.
A construção histórica desse mundo da cultura atinge o seu apogeu no momento em
que se chega à ideia consciente da educação. Torna-se assim claro e natural o
fato de os gregos, a partir do século IV, quando este conceito encontrou a sua
cristalização definitiva, terem dado o nome de paideía a todas as formas
e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como nós o
designamos por Bildung ou, com a palavra latina, cultura.
Os sofistas constituem, sob este ponto de
vista, um fenômeno central. São os criadores da consciência cultural em que o espírito
grego alcançou o seu télos e a íntima segurança da sua própria forma e
orientação. O fato de terem contribuído para o aparecimento desse conceito e
dessa consciência é muito mais importante que a circunstância de não terem
alcançado a sua expressão definitiva. Num momento em que todas as formas tradicionais
da existência se esboroavam, ganharam e deram ao povo a consciência de que a
formação humana era a grande tarefa histórica que lhe fora confiada.
Descobriram assim o centro em torno do que deve partir toda a estruturação
consciente da vida. Adquirir consciência é uma grandeza, mas é a grandeza da posteridade.
É este outro aspecto do fenômeno sofístico. Talvez não seja preciso justificar
a afirmação de que o período que vai da sofística a Platão e Aristóteles
alcança uma vasta e permanente elevação na evolução do espírito grego; ainda
assim, porém, conserva toda a sua força a frase de Hegel que diz que a coruja
de Atena só levanta voo ao declinar o dia. Foi só à custa da sua juventude que
o espírito grego, cujos mensageiros são os sofistas, alcançou o domínio do
mundo. Assim se compreende que Nietzsche e Bachofen tenham visto na época de Homero
ou na tragédia, antes do despertar da ratio, o apogeu dos tempos. Mas
não se pode aceitar essa valoração absoluta e romântica dos tempos primitivos.
O desenvolvimento do espírito das nações, como o dos indivíduos, segue uma lei
inexorável, e tem de ser forçosamente divergente a sua impressão sobre a posteridade
histórica. Sentimos com dor a perda que acarreta o desenvolvimento do espírito.
Mas não podemos desprezar nenhuma das suas forças e sabemos muito bem que é só
por isso que somos capazes de admirar sem restrições o primitivo. É
necessariamente essa a nossa posição; encontramo-nos num estágio avançado da
cultura, e em muitos aspectos procedemos também dos sofistas. Estão muito mais
“próximos” de nós que Píndaro ou Ésquilo. Por isso é que precisamos tanto
destes. Foi precisamente com os sofistas que ganhamos íntima consciência de que
a “continuidade” dos estágios primitivos na estrutura histórica da cultura não
é uma palavra vazia, pois não podemos afirmar e admirar os novos estágios sem
que neles estejam assumidos os primeiros.”
“Na paz, mais facilmente se dão ouvidos à
razão, porque os homens não estão oprimidos por necessidades prementes. A
guerra, porém, restringe em muito as possibilidades exteriores da vida e força
a massa a adaptar as suas convicções às necessidades de momento. No decurso das
revoluções que a guerra acarreta, mudam bruscamente as opiniões e sucedem-se as
conjuras de atos de vingança; e a recordação das revoluções passadas e das
paixões associadas a elas aumenta a gravidade dos nossos próprios transtornos.
A esse propósito, Tucídides fala da
transformação dos valores vigentes, revelada na total mudança do significado
das palavras. Palavras que antigamente designavam os mais altos valores passam
a significar, no uso corrente, ideias e ações vergonhosas, e outras que
exprimiam coisas reprováveis fazem agora carreira e chegam a designar os mais
nobres predicados. Agora, considera-se coragem e lealdade a temeridade
insensata, e a reserva prudente é considerada como covardia disfarçada em belas
palavras. A circunspecção é pretexto para a fraqueza, e a reflexão, falta de
energia e de eficiência. A loucura decidida é encarada como sinal de autêntica
virilidade, a reflexão madura, como hábil evasão. Quanto mais alto alguém
insulta e injuria, tanto mais leal é considerado, e logo se olha como suspeito quem
se atreve a contradizê-lo. A intriga sagaz é tida por inteligência política e
quem a consegue tecer é o gênio supremo. Aquele que prudentemente se esforça
por não precisar fazer apelo a esses meios é acusado de falta de espírito de
grupo e de medo perante o inimigo. O parentesco de sangue é considerado um laço
mais frágil que o pertencimento a um partido. Assim os camaradas de partido
estão mais dispostos à aventura desenfreada. Não é para apoiar as leis
existentes que associações como essas entram em concordância, mas sim para ir
contra todo o direito e aumentar o poder e a riqueza pessoal. Até os juramentos
que unem os membros do mesmo partido valem menos pelo seu caráter sagrado do
que pela consciência do crime comum. Em nenhum lugar existe uma centelha de
lealdade e de confiança entre os homens. Quando os partidos contendores veem-se
forçados por esgotamento ou por circunstâncias desfavoráveis a concluir pactos
e a selá-los com o juramento, todos sabem que isso é só um sinal de fraqueza e
que não se devem sentir ligados por eles, mas que o inimigo se servirá do
juramento apenas para se reforçar, e aproveitará a primeira ocasião para atacar
com maior segurança o seu adversário incauto e inerme. Os chefes, tanto
democratas como aristocratas, tinham na boca as grandes palavras do seu
partido, mas, na realidade, não era por um alto ideal que se batiam. Os únicos
móveis da ação eram o poder, a ambição e o orgulho, e mesmo quando invocavam os
antigos ideais políticos só se tratava de palavras.
A decomposição da sociedade era apenas a
aparência exterior da íntima decomposição do Homem. A própria dureza da guerra
atua de modo completamente diverso num povo interiormente são e numa nação
cujas escalas de valor estejam corroídas pelo individualismo. Assim, nunca a
formação estética e intelectual atingiu um nível tão alto como na Atenas
daquele tempo.”
1. TUCÍDIDES, III, 82.
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