quarta-feira, 19 de outubro de 2022

A Incrível e Fascinante História do Capitão Mouro, de Georges Bourdoukan

Editora: Casa Amarela

ISBN: 978-85-8682-106-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 218

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Sinopse: O autor narra a saga do muçulmano Saifudin, construtor das fortificações do Quilombo dos Palmares, e de seu amigo, o judeu Ben Suleiman. Fala também do senhor de engenho Epaminondas Conde e de seu amor pelo escravo Gaspar; de Zumbi e de uma de suas mulheres, a branca Maria Paim, tendo como cenário a Capitania de Pernambuco, a Inquisição, a revolta dos escravos e a epidemia do mal-de-bicho. Transcrevem-se diários de bordo dos navios negreiros e explica-se o significado da letra F e da cruz, gravadas com ferro em brasa na testa e no peito dos escravos. Centrando a narrativa no personagem Saifundin – que se juntou a Zumbi e teve participação na destruição do Quilombo dos Palmares – o autor traz à tona a mentalidade e o ambiente predominantes no país à época.


 

“— Vocês sabem que amo meus escravos como amo meus animais. Mas de vez em quando os negros se excedem. Quando isso acontece, mando cobrir a cara do faltoso com uma lata. Deixo alguns buraquinhos para ele respirar. Assim ele queima a cara no sol mas continua intacto. Não posso estragar uma mercadoria valiosa.”

 

 

“— Queimem as choupanas!!!

Chegaram atirando. Eram brancos, mas havia muitos negros entre eles. Não encontraram resistência porque os guerreiros haviam saído. Nem por isso foram menos brutais.

Animais mortos, velhos, mulheres e crianças acorrentados. O que sobrou da aldeia o fogo consumia. A fumaça atrairia os guerreiros. Não era outra a intenção dos escravistas. Sabiam que os homens voltariam rapidamente assim que vissem a fumaça e prepararam-se para recebê-los. As mulheres e as crianças serviriam de escudo.

— Peguem os bebês e as velhas! — gritou o chefe do grupo.

Sempre agiam assim. Por temer uma reação dos guerreiros, escolhiam para sacrificar aquilo que consideravam mercadoria de menor valor. Criança de colo e velho, que no entender deles dão muito trabalho e não têm valor comercial.

Quando os primeiros guerreiros apareceram, um negro forte, ao lado de um branco, gritou num dialeto para que eles se rendessem. Não deram a menor atenção. A primeira lança que partiu foi a senha para que os bebês e os velhos fossem degolados. A brutalidade do ato e alguns disparos convenceram os guerreiros. Entregaram as armas, temendo pela vida dos restantes.

Muitos corpos espalhados pelo chão. Os prisioneiros são colocados em fila, acorrentados pelo pescoço e pelos pés. Os feridos mal podem se arrastar. Alguns chutes e pancadas os convencem a caminhar.

— De pé, seus safados! — gritou um branco.

— Estão fazendo corpo mole! — gritou outro. — Vou mostrar qual é o castigo para quem faz corpo mole!

Puxou de um punhal e cortou a orelha do caído. O sangue jorrou.

— Não estraga a mercadoria! Não estraga a mercadoria! — gritou o líder.

— Esta mercadoria já está estragada, não tem mais jeito. Ele está muito ferido.

— Então deixe-o, que não temos tempo a perder.

A punhalada certeira no coração calou o ferido.

Chicotadas, chutes e pauladas colocaram os últimos recalcitrantes na fila. Crianças choravam, mulheres lamentavam, o chicote fazia todos se calarem.”

 

 

“Conversavam ainda quando o comandante do barco lhes gritou para darem uma olhada na praia, cheia de escravos.

— O que está acontecendo? — perguntou a um homem que corria esbaforido até o local.

— Você não pode perder este espetáculo — respondeu o homem.

Na praia, escravos recém-desembarcados e acorrentados ouviam o leiloeiro explicando por que estavam ali.

— Vocês vão ver o que acontece com aquele que tenta fugir ou desrespeita o seu senhor.

A um sinal seu trouxeram um escravo com as mãos acorrentadas para trás. Estava com a letra F gravada na testa e sem uma das orelhas.

— O que significa a letra F? — perguntou Saifudin.

— Fugitivo — respondeu Ben Suleiman. — Quando eles o recapturam, gravam a letra F com ferro em brasa. Quando foge pela segunda vez, cortam uma de suas orelhas.”

 

 

“Quando retornavam, Saifudin perguntou a Ishak que história era aquela de o Ribamar ser absolvido porque o escravo não confessou.

— Nesta terra, quando um branco importante comete um crime, pode apresentar um escravo para ser interrogado em seu lugar. Este sofre todo tipo de tortura para confessar, mesmo não sabendo do que se trata. Se não confessa, seu amo é inocentado.

— E se o escravo, não resistindo às torturas, confessa, o que acontece?

— Aí o seu dono é condenado. Mas é o escravo quem cumpre a pena em seu lugar.

Isto a história registra.

— São loucos esses nazarenos!

— Seres humanos. Apenas seres humanos.”

 

 

“Enquanto comiam, Saifudin comentou com Zumbi sobre índios e alguns brancos que havia visto.

— O que fazem aqui?

— Eles vivem aqui.

— Quem são?

— Os brancos — respondeu Zumbi — eram pequenos proprietários que não puderam pagar suas dívidas. São os sem-engenho ou sem-terra. Os índios tiveram suas aldeias invadidas e destruídas pelos brancos. São os sem-aldeia. Os negros que vivem aqui são os sem-correntes.

Saifudin apontou para dois mulatos que discutiam entre si, disputando uma ave.

— E aqueles, quem são?

— São sem-vergonha mesmo — respondeu Zumbi. — Vivem discutindo e nunca dividem suas coisas. Mas são excelentes guerreiros.”

 

 

“— Está confirmado, mas Alláh sabe mais — falou Saifudin.

— O que está confirmado? — perguntou Ben Suleiman.

— O que os nabateus diziam. É impossível possuir bens e ser livre ao mesmo tempo. Por isso proibiam plantar trigo, árvores frutíferas e construir casas. Entendiam que não era possível conservar esses bens sem sacrificar a liberdade.”

 

 

“Raríssimos os brancos que conseguiam identificar Zumbi. Para eles, todos os negros eram iguais, mas sabiam tratar-se de um grande guerreiro. Gozava de prestígio entre alguns fazendeiros da região de Porto Calvo, que viviam em dificuldades por causa dos tributos que a Coroa estava sempre exigindo e aumentando.

A história dessa sobrecarga de tributos é mais ou menos a que segue.

O rei de Portugal, dom Sebastião, foi convencido pela Igreja Católica a invadir o norte da África e jogar os muçulmanos no mar. Ao invés do veni, vidi, vici (“vim, vi, venci”, palavras que Júlio César pronunciou ao anunciar sua vitória sobre Farnaces em 47 a.C.), o que se viu na Batalha de Al Kácer Quibir, no Marrocos, foi o feci quod potui (“fiz o que pude”) e terminou com hic jacet (“aqui jaz”).

A Igreja convenceu o povo de que o rei não havia morrido, mas sido poupado por Deus, e que a qualquer instante ressurgiria vitorioso. Enquanto esperavam pela volta de dom Sebastião, o rei da Espanha, com apoio da Inquisição, declarou-se também rei de Portugal, juntando as duas coroas. A Espanha era uma nação muito rica graças ao ouro de suas colônias na América. E usou essa riqueza para expandir a religião católica e fazer guerras. Resolveu brigar com a Inglaterra, França e também com a Holanda.

Apesar de muito rica, a Espanha era dependente dos mercados externos, pois, com a expulsão dos muçulmanos e dos judeus, a Inquisição passou a governar de fato, deixando o país à deriva. A armada espanhola, que ostentava o título de invencível, foi destruída pelos ingleses e a guerra com a França durou trinta anos. A riqueza foi se diluindo, a penúria aumentando. A alternativa foi recorrer ainda mais aos tributos. Portugal e suas colônias se desdobravam para abastecer os cofres espanhóis. Até que em 640 os portugueses resolveram dar um basta proclamando sua independência. Proclamada a independência, os portugueses começaram a brigar pela linha sucessória ao trono. Os pretendentes acusavam-se de bastardos, hemiplégicos, homossexuais e portadores de deficiências mentais.

No que todos tinham razão.

Os colonos brasileiros, apesar de terem gasto o que e o que não tinham para expulsar os holandeses (que em represália à guerra com os espanhóis haviam invadido o Brasil), continuaram abastecendo os cofres reais portugueses.

Finalmente, em 1668, Portugal celebrou a paz com a Espanha. Mas as intrigas e a luta pela sucessão em Portugal somente terminariam em 1683 com a proclamação de dom Pedro II rei de Portugal, depois de uma série de acordos a França e a Inglaterra.

A política mercantilista e protecionista portuguesa foi abolida depois de tais acordos. Os críticos da época afirmaram que isso resultou na destruição da indústria têxtil portuguesa. Mas se esqueceram de dizer que a aristocracia portuguesa nunca se preocupou porque estava acostumada a mamar nas tetas do reino.

Portugal, que até então dominava os mares e era considerado uma grande potência, nunca mais se recuperou. Para agravar ainda mais essa situação, a Inquisição, que jamais perdoou os portugueses pela independência, começou a agir. Seus inquisidores vieram até o Brasil, paralisando completamente a produção de açúcar.”

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