Editora: WMF Martins Fontes
ISBN: 978-85-7326-410-4
Tradução: Artur M. Ferreira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 1456
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Sinopse: Ver Parte I
Livro III
“Esperamos que a interpretação dada por nós
afaste suficientemente a possibilidade de alguém acreditar que essa “falta de
garantia” no Estado platônico, de que se fala aqui, deve ser primordialmente
encarada do ponto de vista do direito constitucional ou da experiência
política, o que levaria a acusar Platão de ingenuidade, por pensar que nenhum
Estado se pode governar sem o complicado aparato de uma constituição moderna. Para
mim, é de uma clareza meridiana que Platão não se propõe de modo nenhum tratar
seriamente esse problema, visto que ele não se interessa aqui pelo Estado como
problema técnico ou psicológico, mas o aborda simplesmente como delimitação e como
fundo de um sistema perfeito de educação. Pode-se criticá-lo quanto se quiser
por causa disso e acusá-lo de imprimir um caráter absolutista à educação; o que
não admite dúvida é que, para ele, o verdadeiro problema é o da paideía. É
essa, na sua maneira de ver, a solução de todos os problemas insolúveis. A
acumulação da maior plenitude possível e ilimitada de poder nas mãos de quem
governa o Estado não é para Platão um fim em si mesmo. Será por ele denunciado
como fonte da hýbris, na sua última obra, as Leis. (Cf., adiante,
livro IV.) O seu governante é o produto máximo da educação, e a missão que lhe
é designada é a de ser o educador supremo de toda a cidade.
Platão não decide de antemão o problema de
saber se a educação dos “guardiões” – que tende antes de mais nada a conseguir
o mais alto tipo médio possível de “guardião” – basta ou não para alcançar esse
objetivo167. Mas, se bem que assim fique ainda por definir o
conteúdo concreto dessa cultura do governante, na exposição que em seguida se
faz da vida deste fica totalmente esclarecido o poder predominante da ideia da
educação para novo Estado, afastando-se, em contrapartida, com surpreendente
brevidade, tudo o que é meramente político. A vida exterior do governante deve
caracterizar-se pela máxima sobriedade, severidade e pobreza. Não existe nela
absolutamente nenhuma esfera privada, nem sequer uma casa própria ou refeições familiares,
mas toda ela se processa em público. É da comunidade que o governante recebe o
estritamente necessário para comer e vestir, sem poder possuir nenhum dinheiro
nem adquirir nenhum tipo de propriedade168. A missão do verdadeiro Estado
não é tornar o mais feliz possível a classe dominante da população, uma vez que
tal Estado deve velar pela felicidade de todos, e isso depende de que cada
indivíduo cumpra o melhor possível a sua função específica, e somente ela.
Segundo Platão, com efeito, é na sua contribuição como membro do todo social, à
semelhança de um organismo vivo, que a vida de cada indivíduo tem o seu
conteúdo, o seu direito e os seus limites. O bem supremo que se deve buscar é a
unidade do todo169. Mas isso não quer dizer, nem por sombra, que,
uma vez restringidos assim os direitos do indivíduo, o todo passe a ocupar o
seu lugar e o Estado deva, por sua vez, tornar-se o mais rico e poderoso
possível. Os fins a que esse Estado aspira não são o poder, a prosperidade econômica
ou o acúmulo ilimitado de riqueza; a sua ambição de riqueza e de poder termina
onde esses bens materiais deixam de servir à exigência da unidade social
interna170.
Platão não julga pedir nada de inacessível,
ao exigir isso, mas considera que os seus planos são de fácil execução, sempre que
os cidadãos mantenham de pé uma coisa: uma boa educação, condição na qual
assenta o seu Estado171. Cumprida fielmente, essa exigência fará
surgir naquele tipo de comunidade homens excelentes, os quais, por sua vez,
abraçarão com entusiasmo a mesma educação, elevando-se acima dos seus
antecessores172. De acordo com a sua ideia, não é numa preferência
ou capricho individual que se baseia a imagem da ordem social traçada por
Platão, mas ele a considera a norma absoluta imposta pela natureza do Homem
como ser social e moral. É por isso que essa ordem deve estar a cargo do Estado
e não conhece evolução; tudo o que seja afastar-se dela significa degeneração e
decadência. A ideia de um Estado ideal tem implícita a ideia de que tudo o que
dele difere é necessariamente pior do que ele próprio. O que é simplesmente
perfeito não deixa margem a nenhum desejo de progresso, mas apenas à vontade de
conservá-lo. E, para conservá-lo, não se dispõe de outros meios que não sejam
os empregados para criá-lo. Depende tudo apenas de não se inovar nada na
educação173. Nenhum perigo do exterior pode afetar esse Estado; em
contrapartida, porém, se se modificasse, por exemplo, o espírito da música,
modificar-se-ia também o caráter das suas leis174. Aqui está por que
Platão recomenda que os “guardiões” edifiquem a cidadela da cidade no alto deste
píncaro: a cultura musical175. Se esta degenerar, não será preciso
nenhum esforço para a essência do oposto à lei contagiar, como se se jogasse
aos costumes o modo de vida e as relações públicas. Mas é também a partir desse
cume que, pelo contrário, podem e devem ser restaurados os bons costumes, o respeito
pela velhice, o sentimento de dedicação aos pais, o penteado, o vestuário, o
calçado e a atitude do corpo que forem corretos176. Platão troça de
um tipo de legislação que desce ao detalhe, e na qual vê uma exageração
simplista da importância da palavra falada e escrita. Só pela educação (isto é,
pela formação do Homem) se pode atingir o fim visado pelo legislador; e, quando
aquela é verdadeiramente eficaz, dispensa as leis. É certo que o próprio Platão
não poucas vezes dá na República
o nome de leis aos preceitos por ele estabelecidos para governo da sua
comunidade, mas essas leis versam todas exclusivamente sobre a estrutura da
educação. Esta liberta o Estado da necessidade de estar constantemente criando
e modificando leis, como acontecia na Atenas do tempo de Platão, e torna
inúteis as normas especiais sobre polícia, mercado e postos, sobre o comércio, as
ofensas e as violências, assim como sobre o processo civil e o regime da
justiça177. Os políticos travam uma luta estéril contra a hidra.
Entretêm-se a curar os sintomas, em vez de atacar a raiz do mal, por meio do
tratamento médico natural, que é a educação acertada.
Os antigos admiradores da eunomía espartana
pintam-na em termos semelhantes, como um sistema público de educação que torna
supérflua uma legislação especializada, graças ao rigoroso respeito pela lei
escrita, que domina a vida inteira. Já dissemos atrás que esta imagem de
Esparta se formou sob a influência de certas ideias reformadoras, como as da paideía
platônica e outras correntes críticas do Estado, no decurso do século IV178.
Isso não impede, porém, que ao traçar o projeto do seu Estado educacional
Platão se apoie, por seu lado, ou julgue apoiar-se no modelo de Esparta, tanto
para o geral como para os detalhes. O desprezo pela maquinaria administrativa e
legislativa do Estado moderno, a substituição da legislação concreta pela força
do costume e por um sistema público educacional que presidisse à vida inteira,
a instituição de refeições coletivas para os “guardiões”, a supervisão
governamental da música e a concepção dela como firme cidadela do Estado, são
todos traços genuinamente espartanos. Mas só um filósofo da época da
degenerescência da democracia ateniense e formado em oposição a ela podia
oferecer essa interpretação de Esparta como o tipo do Estado em que se
conseguira evitar com êxito o individualismo extremista. Era o orgulho máximo
dessa democracia o Estado jurídico com o seu respeito pela lei, com o postulado
da igualdade de direitos de todos os cidadãos grandes e pequenos, e o complicado
mecanismo da sua autoadministração. A renúncia de Platão a essas conquistas
constitui, naturalmente, um extremo só explicável pela desesperada situação
espiritual da Atenas daquele tempo. Platão chegou à trágica convicção de que
até as leis e as constituições não passam de meras formas, que só têm valor
quando no povo existe uma substância moral que as alimenta e conserva.
Espíritos conservadores julgavam notar precisamente na democracia que aquilo
que mantinha coeso esse Estado era, no fundo, uma coisa diferente daquilo que a
sua ideologia própria fazia passar por tal. Na realidade, não era tanto a liberdade
recém-conquistada e ciosamente defendida, como a força do costume e da
tradição, a qual precisamente nas democracias costuma ser mais imperativa que
nos outros tipos de Estado; os próprios cidadãos não se dão conta dela, e os
membros dos outros Estados também mal advertem a sua presença, na maioria dos
casos. A perduração ininterrupta dessa lei não escrita é que tinha sido o forte
da democracia ateniense na sua época heroica; foi a sua decadência que, apesar
de todas as leis em vigor, converteu em arbitrariedade a liberdade dela.
Segundo Platão, uma educação do tipo daquela de Licurgo era o único caminho
para restaurar, não a aristocracia de nascimento pela qual suspiravam muitos
dos seus companheiros de classe, mas sim os antigos costumes e, por meio
destes, consolidar de novo o Estado. Exigir de Platão um quadro equilibrado e
uniforme de todos os elementos que formam a vida do Estado seria ignorar o
fundo sentimental e condicionado pela época, sobre o qual se destaca o seu
sistema educacional. É com paixão moral que Platão situa no centro da sua
investigação sobre o Estado a grande verdade que lhe revelam as dores do seu
tempo e as do maior homem dele. Por menos ateniense que fosse, na sua forma
externa, a educação platônica, é evidente que o seu espartanismo ético
consciente só em Atenas podia surgir. Pela sua íntima essência, é o menos espartano
que se pode conceber. Devemos ver nele o último esforço ascensional da vontade
educacional da democracia ateniense que, ao atingir a fase final da sua
evolução, reage contra a própria dissolução e se refaz.
Finalmente, se nos perguntarmos que relação a
educação dos “guardiões”, tal como a descrevemos, tem com a essência da justiça
– e foi à investigação disso que nos lançamos –, veremos comprovada a predição
platônica de que o aprofundamento do problema da educação redundaria em
proveito de um melhor conhecimento da justiça179. É certo que era
justificada a nossa dúvida inicial sobre se aquela longa investigação a
respeito da educação dos “guardiões” seria apenas um meio para descobrir a
justiça ou constituiria para Platão antes um fim em si180; com efeito,
chegamos à conclusão de que toda a estrutura do Estado baseia-se na verdadeira
educação, ou antes, identifica-se com ela181. Se fosse certa essa
conclusão, o resultado seria que, atingindo a meta da verdadeira educação,
realizaríamos também a verdadeira justiça, e só nos restaria compreender isso
com maior clareza.
Para isso, Platão volta a recorrer à sua
argumentação anterior, fundamentada na utilidade de tratar o Estado à luz da
investigação da justiça182. Embora houvesse posto em relevo desde o
primeiro instante, sem deixar margem para dúvidas, que concebia a virtude da
justiça como uma qualidade inerente por si própria à alma humana, entendia que
por meio da analogia com o Estado lhe seria mais fácil ilustrar a sua essência
e a sua ação dentro da alma. E agora vemos que foi precisamente a sua concepção
orgânica do Estado que levou Platão a estabelecer esse paralelo. Para ele, a
justiça dentro do Estado baseia-se no princípio em virtude do qual cada membro
do organismo social deve cumprir, com a maior perfeição possível, a sua função
própria183. Tanto os “guardiões” como os “governantes” e os
“industriais” têm a sua missão estritamente delimitada, e, se cada um desses
três grupos se esforçar por fazer da melhor maneira possível o que lhe compete,
o Estado resultante da cooperação desses elementos será o melhor Estado
concebível. Cada um desses grupos se caracteriza por uma virtude específica: os
“governantes” devem ser sábios184, os “guerreiros”, valentes185.
A terceira virtude, a do sereno domínio de si próprio (σεϕροσυ¿νη) não é uma
virtude específica ao mesmo título que são as duas anteriores, pois não
corresponde exclusivamente ao terceiro escalão, embora tenha para ele especial
significado: a harmonia das classes, baseada na submissão voluntária dos piores
por natureza aos melhores por natureza e por educação. Essa virtude deve estar
presente nas três partes, mas é à camada social chamada a obedecer que ela faz
as maiores exigências186. Visto que, à exceção da justiça, se
atribuiu a cada uma das quatro virtudes cardeais da antiga política o
respectivo lugar dentro do Estado, pela sua localização numa classe especial da
população, já não resta à justiça nenhum lugar especial nem classe nenhuma da
qual seja patrimônio; e então surge intuitivamente perante o nosso olhar a
solução do problema: a justiça consiste na perfeição com que cada classe dentro
do Estado abraça a sua virtude específica e cumpre a missão especial que lhe
cabe187.
Lembremos todavia que, na realidade, esse
estado de coisas não é a justiça no verdadeiro sentido da palavra, mas
simplesmente a sua imagem refletida e ampliada na estrutura da comunidade;
procuremos, pois, a essência e a raiz dela no próprio interior do Homem188.
A alma é formada pelas mesmas partes que o Estado; à sabedoria dos
“governantes”, o espírito animoso; e ao domínio de si próprio, a virtude mais
característica da terceira classe, consagrada ao lucro e ao prazer, a parte
instintiva da alma, quando submetida à consciência superior da razão189.
Platão observa que essa fundamentação da teoria das partes da alma é um pouco
esquemática, mas não quer abordar aqui o problema com um método mais sutil,
pois isso o arrastaria para muito longe do tema190. As diferenças
que se notam na estrutura da alma não se poderiam projetar sobre as diversas
classes profissionais do Estado, se não existissem já na alma como elementos diversificadores191.
Assim como o corpo pode mover uma das partes e ao mesmo tempo ter outra parada,
na nossa alma também se pode alvoroçar o elemento instintivo, enquanto a razão pensante
põe por si própria limites àquele alvoroço e a parte corajosa está em condições
de intervir nesse pleito, refreando a agitação e apoiando, como aliada, os
ditames da razão192. Há na alma forças refreadoras e forças
impulsionadoras, e é do concerto delas que brota a unidade harmônica da
personalidade. Essa unidade interior só se pode estabelecer com a condição de cada
uma das partes da alma “fazer o que lhe compete”. A razão é chamada a mandar; a
função da parte corajosa é obedecer e apoiá-la193. A sinfonia da
alma é o resultado de uma combinação acertada de dois elementos: a música e a
ginástica194. Essa cultura coloca o espírito em tensão e o alimenta
de belos pensamentos e conhecimentos afrouxando as rédeas da parte corajosa por
meio de exortações contínuas e educando-a pela harmonia e pelo ritmo. Uma vez
educadas, e quando uma delas tiver aprendido bem o seu papel, ambas deverão
guiar conjuntamente os impulsos do Homem. Estes formam a parte mais vasta da
alma de cada homem e são por natureza insaciáveis. Nunca é pela satisfação dos
seus desejos que se pode levá-los a “fazer o que lhes compete”. Isso os
engrandeceria e fortaleceria, mas lhes permitiria apoderarem-se do comando e
deitarem por terra a vida inteira195.
Não é, pois, na ordem orgânica do Estado, em
virtude da qual o sapateiro deve trabalhar como sapateiro e o carpinteiro desempenhar
o seu ofício próprio, que a justiça consiste196. Ela consiste na
conformação interior da alma, de acordo com a qual cada uma das partes faz o
que lhe compete e o Homem é capaz de se dominar e de congraçar numa unidade a
multiplicidade contraditória das suas forças internas197. Se a essa
teoria, por analogia com a concepção orgânica do Estado, dermos o nome de concepção
orgânica do cosmos da alma, chegaremos enfim ao ponto em que se situa o
verdadeiro centro do Estado e da educação platônica.”
165. Rep., 414 D-415 D.
166. Rep., 416 A-B. A palavra grega
para “garantia” é aqui ευ¹λα¿βεια. Consiste apenas em ser τωª¸ οäντι καλωªς
πεπαιδευμε¿νοι, 416 B 6, ou η¸ ο¹ρθηì παιδει¿α, 416 C 1.
167. Rep., 416 B.
168. Rep., 416 C ss. Dão-se essas
regras para a vida do governante, como complemento da sua paideía.
169. Rep., 419 A-420 B e 421 B.
170. Rep., 423 B.
171. Rep., 423 E.
172. Rep., 424 A.
173. Rep., 424 B.
174. Rep., 424 C.
175. Rep., 424 D.
176. Em Rep., 424 D-E, Platão descreve
em detalhe as consequências sociais negativas das mudanças na paideía,
com as quais põe em contraste, em 425 A-B, as consequências benéficas da sua
observação fiel e inabalável. Ambas as imagens caracterizam-se pelas antíteses
παρανομι¿α ↔ ευ¹νομι¿α, que
fazem lembrar a alegria de SÓLON, que faz de παρανομι¿α e ευ¹νομι¿α a causa
final da felicidade ou da desgraça do Estado (cf., acima, pp. 180 ss.). Na República
são apenas as consequências da mudança ou da resistência à mudança da paideía
(cf. Rep., 425 C).
177. Rep., 425 C. Cf. também 427 A.
178. Cf., acima, pp. 108 ss.
179. Rep., 376 C-D.
180. Cf., acima, pp. 286 s.
181. Rep., 423 D-425 C.
182. Rep., 427 D. Cf. 368 E.
183. Rep., 433 A.
184. Rep., 428 B-E.
185. Rep., 429 A-C.
186. Rep., 430 D-432 A.
187. Rep., 433 A-D. Cf. 434 C.
188. Rep., 434 D.
189. Rep., 435 B-C.
190. Rep., 435 C-D. Este problema
reaparece mais adiante, em 504 BC. O termo empregado por Platão para designar
as espécies ou partes da alma é ειãδη ψυχηªς, 435 C. É um conceito de origem
médica. Também o termo análogo θυμοειδε¿ς é da linguagem de Hipócrates. Cf. De
aere, c. 16. Emprega-se aqui para caracterizar certas raças em que
predominam a valentia e o temperamento sobre a inteligência.
191. Rep., 435 E.
192. Rep., 436 C ss. Sobre a
necessidade de distinguir, além da inteligência e dos apetites, um terceiro
fator, a valentia, cf. Rep., 439 E-441 A.
193. Rep., 441 C-E.
194. Rep., 441 E. Ver 441 E e a nota
158 deste capítulo.
195. Rep., 442 A-B.
196. Rep., 443 C. Essa ordem dentro do
Estado não é mais que um ειãδωλον da verdadeira justiça.
197. Rep., 443 D-E. A areté é,
por isso, a “harmonia” das potências da alma, como no Fédon.
“Seleção racial e educação dos melhores
Platão define o Estado ideal como governo dos
melhores. Com isso quer expressar uma exigência que está de acordo com a
natureza e, portanto, absolutamente obrigatória. É sobretudo a relação entre
essa “aristocracia” no verdadeiro sentido da palavra e as formas constitutivas
da realidade que se deve investigar228a, pois o conceito de “os
melhores” não se poderá definir no seu sentido pleno, enquanto não se
explicitar o princípio da seleção, isto é, o tipo de educação que se dará ao
reduzido grupo de “guardiões” chamados a governar. E, como no que se refere à
educação da mulher chegamos ao ponto de esta se encontrar já apta a cumprir a
sua missão de mãe da geração vindoura, depois de ter completado a sua cultura
ginástica e musical, o filósofo julga oportuno expor aqui os seus preceitos
relativos às relações entre os sexos e à procriação. Esses preceitos
enquadram-se bem nesse lugar, não só por motivos de ordem cronológica, mas
ainda porque o mais natural é que essa premissa, que condiciona a educação dos
“guardiões” e é considerada indispensável por Platão, ligue-se ao estudo da
educação da mulher. Referimo-nos já à seleção racial da classe chamada a
governar229.
A “aristocracia” platônica não é uma nobreza
de sangue, um regime que desde o berço confira aos indivíduos dessa camada social
o direito de a seu tempo dirigirem o Estado. Os incapazes e os indignos devem
ser degredados (cf. p. 808), selecionando-se em contrapartida, de tempos em
tempos, os indivíduos mais aptos e mais dignos do terceiro escalão, para serem
promovidos à classe dominante. Platão atribui ao nascimento, no entanto, uma
importância essencial na formação do seu escol. A sua convicção de que a
descendência da classe dominante corresponderá, regra geral, à excelência dos
cônjuges. É na melhor educação que se deve basear o governo dos melhores;
aquela, por sua vez, exige como terreno de cultura as melhores aptidões
naturais. Essa ideia era corrente no tempo de Platão e provinha principalmente
da teoria pedagógica dos sofistas230. Mas estes tomavam a phýsis onde
e como a encontravam, sem fazerem nada para criá-la de modo consciente. Era
sobretudo da herança ideológica da ética da antiga nobreza grega que esse
postulado fazia parte. Quanto mais enraizada estava na nobreza a crença da ϕυα¿, do
congênito, considerado o germe de toda virtude autêntica, tanto mais ela se
devia, naturalmente, preocupar com salvaguardar a preciosa herança do sangue.
Já Teógnis, nos seus poemas exortativos, profetizara à nobreza arruinada da sua
cidade pátria, ansiosa por se restaurar financeiramente por meio de casamentos
com filhas de plebeus ricos, as desastrosas consequências que essa mistura de
raças traria à conservação da antiga areté dos nobres231.
Platão aceita esse mesmo princípio, mas sob a forma espiritualizada de que os
melhores só pelos melhores podem ser gerados232, e entende que para
se assegurar a pureza da seleção estatuída requer-se um regime especial de
procriação, colocado por ele sob o “controle” do Estado. O velho Teógnis não
sonhara sequer chegar a tais consequências. Entre a moral racional de Teógnis e
o sistema platônico de “controle” estatal, cabia como solução intermediária a paideía
espartana, preocupada em velar pela procriação de uma descendência
saudável, no caso da camada senhorial da sociedade. Precisamente na época da
infância de Platão, era esse sistema de educação espartana objeto de grandes
discussões teóricas entre os aristocratas atenienses. Xenofonte considera um
traço especificamente espartano que o rigor da disciplina comece logo a partir
da procriação e do nascimento233. E era do mesmo postulado que
arrancava a obra em prosa de Crítias sobre o Estado de Esparta, apresentado ali
como modelo. Exigia que antes da concepção e da gravidez ambos os progenitores
se submetessem a exercícios e a uma dieta adequada para fortalecimento do
organismo234. Essa obra já nos aproxima do ambiente que cercava
Platão. O filósofo deve ter ouvido discutir essas ideias no círculo em que vivia
o seu tio Crítias e por certo conheceria também a sua obra. É muito possível
que essa obra contribuísse ainda em outros aspectos para a concepção do Estado
platônico. É indubitável que aquela ideia, que na época da Reforma voltamos a
encontrar, defendida por um humanista aristocrata como Ulrich von Hutten, e
segundo a qual a nobreza de sangue devia comprovar o seu direito pela posse da
verdadeira virtude, também não devia ser estranha à oposição nobre da
democracia ateniense; senão, que títulos justificativos poderia ela aduzir em
apoio das suas pretensões? Também Platão só reconhece a suprema excelência humana
como direito de candidatura a um posto diretivo no Estado. Mas o que ele se
propõe não é educar na areté uma nobreza de sangue já existente, e sim
formar uma nova elite mediante a seleção dos representantes da suprema areté.
Esse propósito leva Platão, coerente com o seu sistema de negar aos
“guardiões” do seu Estado o direito de possuir qualquer coisa e ter vida
privada, à decisão de também abolir para eles a instituição do matrimônio,
encarado como permanente convivência do homem e da mulher, e de substituí-lo
por uma união meramente transitória dos sexos, uma instituição impessoal de
procriação da raça. Nenhuma das suas ideias exprime de modo mais brusco e mais
chocante para os nossos sentimentos o sacrifício do indivíduo ao Estado, que se
impõe ao governante. Quando em outra passagem Platão define o postulado de que
os “guardiões” não devem ter nada próprio, dizendo que não possuirão
literalmente nada, com exceção do próprio corpo, diz pouco ainda, se levamos em
conta o que a seguir dispõe sobre as relações entre os sexos: a não ser que ao
exprimir-se assim se queira exclusivamente referir à “posse” do corpo e não à
liberdade para usá-lo. É certo que relata como a coeducação das crianças de
ambos os sexos faz nascer entre eles relações amorosas235, o que
pressupõe certos sentimentos pessoais. Mas é vedado deixarem-se arrastar por
esses sentimentos e contrair uniões que a autoridade competente não aprove236.
A deliberada obscuridade com que Platão se exprime não permite duvidar de que,
ao dizer isso, não se quer referir exatamente a uma exigência de ordem puramente
formal, mas sim a uma efetiva autorização de quem manda, baseada no
conhecimento das pessoas e permitindo aplicar a seleção que julgue “mais
salutar”. Tal é a definição platônica do que ele chama “o sagrado conúbio”237.
Trata-se, evidentemente, de envolver a união dos sexos com um certo halo, por
meio da consagração religiosa, suprindo desta forma a permanente comunidade de
vida em matrimônio. É a mesma finalidade que visa igualmente a instituição de
festas especiais para unir os pares, entre hinos e sacrifícios religiosos238.
Mas nem o sentimento pessoal nem a vontade própria intervêm de qualquer forma
na escolha da esposa. Platão deixa até que as autoridades usem a fraude e o
engano a fim de unirem, para bem da comunidade, os melhores homens com as
melhores mulheres e os piores com as piores239. O número de uniões
depende do número de homens de que o Estado precisa240. Como para Platão
o Estado perfeito prospera melhor em condições fáceis de avaliar do que com uma
massa humana difusamente misturada, deve ser restrito o censo da população, e
por isso essa norma não tende a fomentar, mas antes a limitar o número de nascimentos.
Não é a aumentar a quantidade dos cidadãos, mas sim a melhorar a sua qualidade
que a política racial de Platão aspira.
É pela mesma razão que se restringe a uma
idade determinada a possibilidade de procriar. As mulheres não devem dar filhos
ao Estado senão entre os 20 e 40 anos e os homens não podem gerá-los senão dos
30 aos 55241. É que são os anos da plenitude de vigor (ακμη¿); nem à
mocidade nem à velhice se reconhece o direito de procriar241a. Essas
medidas eugenésicas de Platão, baseadas nas suas intenções educacionais, seguem
as normas da medicina grega, que sempre dedicou especial atenção ao problema da
idade mais indicada para ter filhos. O Estado platônico favorece superiormente
a união dos melhores homens e mulheres, e dentro do possível põe obstáculos aos
menos aptos242. O cuidado dos recém-nascidos deve subtrair-se
absolutamente à jurisdição das mães. Numa parte isolada da cidade,
instalar-se-ão lugares para criar as crianças de peito saudáveis, a cargo de
mulheres especialmente destinadas a isso. As mães só terão acesso às crianças
para amamentá-las, mas nem sequer conhecerão os próprios filhos, pois deverão
querer a todos por igual243. A força do instinto natural da família
era muito acentuada entre os gregos. Platão sabia-o bem e não queria que ela se
perdesse como meio de coesão da comunidade. A única coisa que ele queria era
evitar a dissociação em que se traduzia a ampliação a todo o conjunto dos
cidadãos do sentimento de solidariedade que une os membros de uma família. De
certo modo, pretendia unir o Estado como se fosse uma grande família, em que
todos os pais se sentissem pais e educadores de todos os filhos, e estes
guardassem para com os adultos o mesmo respeito que se eles fossem seus pais e
educadores244. O objetivo supremo de Platão era conseguir que as
alegrias e as dores de cada um fossem as alegrias e dores de todos245.
O seu axioma era que um Estado assim seria o melhor dos Estados, por ser
o mais unido, aquele em que maior quantidade de pessoas entendiam por seu, não
algo de individual e distinto, mas sim uma e a mesma coisa246. A
metáfora do corpo, que sente como sendo do todo a dor de um dos seus membros,
nem que seja apenas a picada de um dedo, ilustra plasticamente essa ideia de
unidade e ao mesmo tempo revela graficamente a relação que existe entre a sua posição
radical perante a família e o indivíduo, e a sua concepção orgânica do Estado247.
É do todo que a vida e a ação de cada membro recebem o sentido e o valor. A
comunidade (κοινωνι¿α) une; a particularidade (ιδι¿ωσις) separa248.
Platão não tenciona tornar os corolários fundamentais derivados desse princípio
extensivos ao matrimônio da classe do Estado dedicada ao lucro nem da que tem a
seu cargo a alimentação. Limita a sua validade à classe dos encarregados de
governar e defender o Estado. Portanto, se o Estado forma uma unidade, é
principalmente através destes; e, em segundo lugar, forma-a, conforme Platão
confia, pela submissão voluntária a que o desinteresse dos de cima moverá os de
baixo. Nesse Estado, os governantes não serão considerados pelo povo senhores,
mas auxiliares, e não o tratarão como vassalo, mas sim como a sua base de
sustentação249.
Ora, de onde provêm os títulos de
legitimidade e o valor do todo, quer dizer, do Estado? Para a mentalidade
moderna, o mais lógico é pensar a nação como chamada pela natureza e pela
história a ser o suporte desse todo, vendo no Estado a forma sob a qual existe
e atua a nação. Nesse caso, a seleção física dos futuros governantes teria como
razão de ser o fomento da nobreza racial de uma determinada nação, de acordo
com a sua própria peculiaridade. Mas não é assim que Platão pensa. O Estado ideal
que Platão imagina é a cidade-Estado. Nesse ponto, o critério coincide com a
realidade da vida política, tal como ela se fora desenvolvendo ao longo da
história da Grécia. Uma ou outra vez classifica de cidade grega o seu Estado250,
mas este não representa a nação dos gregos, pois a seu lado coexistem outros Estados
helênicos, com os quais aquele pode estar em paz ou em guerra251.
Não é pois a etnia grega dos seus habitantes que serve de fundamento à sua
existência como Estado. O Estado ideal de Platão poderia realizar-se igualmente
entre os bárbaros, e até é possível que alguma vez tenha existido entre eles nos
tempos passados, sem o nosso conhecimento252. Não é o material
étnico de que está formado que infunde valor à comunidade estatal de Platão,
mas sim a sua perfeição como um todo. Essa perfeição baseia-se na completa
unidade do novo Estado e suas partes253. E é também disso que se tem
de partir para compreender o seu caráter como cidade-Estado. Se Platão concebe a
sua República não como um grande Estado nacional ou como um império
universal, mas antes como uma cidade-Estado, não é de modo nenhum, como à
primeira vista poderíamos pensar com a nossa pretensa mentalidade histórica,
apenas porque o filósofo se aferra ao que o acaso da tradição histórica lhe oferece
à experiência política, mas antes por razões vinculadas ao seu ideal absoluto.
Um Estado assim, de pequena extensão, mas firme e coeso, tal como Platão o
concebe, formará uma unidade mais perfeita do que qualquer outro Estado de
superfície maior ou de maior densidade populacional254. A ideia que
os gregos tinham da vida política só dentro da pólis podia florescer em toda
a sua intensidade incomparável, e morria com a morte daquela. Aos olhos de
Platão, o seu Estado tinha mais de Estado que qualquer outro. Estava convencido
de que o Homem alcançaria nele a forma suprema da virtude e da felicidade
humanas255. E é inteiramente a serviço desse ideal que se encontram
tanto a seleção racial por ele preconizada, como a educação a que ela deve
servir de base.”
228a. Rep., 455 D.
229. Rep., 457 C.
230. Cf. acima, pp. 362 ss.
231. Cf. acima, pp. 248 s.
232. Também Teógnis tinha
pensado, de modo natural, na seleção dos α¹γαθοι¿; porém α¹γατο¿ς e κακο¿ς são
termos que neste poeta da nobreza têm sempre o significado daquilo que é nobre
e daquilo que é ignóbil (num sentido social). Cf, acima, pp. 243 ss.
233. XENOFONTE, Const.
dos laced., l.
234. CRÍTIAS, frag. 32
Diels.
235. Rep., 458 D.
236. Rep., 458 D-E.
237. Rep., 458 E.
238. Rep., 459 E.
239. Rep., 459 C-D.
240. Rep., 460 A.
241. Rep., 460 D-E.
241a. Rep., 461 A.
Em vez disso, em Rep., 461 C, Platão declara também livres as relações
amorosas e sexuais para os que pertencem à classe dominante, sempre que já
tenham passado da idade máxima prescrita pelo Estado para poder procriar filhos
(ou seja, os 40 anos para as mulheres e os 55 para os homens).
242. Rep., 459 D.
243. Rep., 460 C.
244. Rep., 461 D.
245. Rep., 462 B.
246. Rep., 462 C.
247. Rep., 462 C-D.
248. Rep., 462 B.
249. Rep., 463 A-B.
250. O caráter grego da sua
pólis aparece em Platão de modo especialmente consciente nas suas normas
para as guerras de helenos contra helenos, Rep., 469 B-C, 470 C, 471 A
(cf., adiante, pp. 838 ss.). Em 470 E diz-se expressamente que a cidade fundada
por Sócrates deve ser uma cidade grega.
251. Cf. as passagens
citadas na nota anterior.
252. Rep., 499 C,
considera possível a realização do Estado perfeito em outros povos. Essa
passagem confirma o grande respeito que Platão sentia pelos bárbaros e pela
antiguidade dos seus costumes e sabedoria.
253. Isto aparece
constantemente expresso. Cf. especialmente Rep., 462 A-B. Essa passagem
faz lembrar ÉSQUILO, Eumênides, 985, onde se exalta como bem supremo a
unidade dos cidadãos no amor e no ódio.
254. Nessa opinião,
ARISTÓTELES (Pol., VII, 5, 1327 a 1) também segue Platão.
255. Sobre a felicidade de
toda a pólis, que Platão considera a meta suprema, cf. Rep., 420
B. Sobre a felicidade dos “guardiões”, Rep., 419 A ss.; e, retomando o
problema e resolvendo-o, Rep., 466 A. Na hierarquia da felicidade, os
“guardiões” aparecem também ocupando o primeiro lugar, apesar de exercerem a
mais abnegada das funções.
“Se a nossa interpretação ética da
contemplação (θεωρεινª) é correta, compreende-se que Platão enlace com ela toda
uma ética da arte da guerra, na qual se dão leis para a conduta dos guerreiros
uns em relação aos outros e em face do inimigo. A maior das infâmias é abandonar
as fileiras, jogar fora as armas e incorrer por covardia em qualquer outra
falta desse tipo. O guerreiro que a comete, castiga-o Platão degradando-o para
o escalão dos indivíduos dedicados ao lucro e converte-o em artífice ou
camponês. Esse tipo de castigo, em lugar da atimia, ou perda de todos os
direitos cívicos, que se costumava aplicar na Grécia, corresponde à posição ocupada
pelos guerreiros no “Estado ideal”271. Os indivíduos pertencentes ao
escalão dedicado às atividades lucrativas são também qualificados de cidadãos,
mas, como precisamente indica esse castigo, são cidadãos de segunda ordem272.
O que cai vivo nas mãos do inimigo não se resgata, mas abandona-se como despojo273.
Pelas regras do antigo direito de guerra, isso significa de duas uma: ou a
venda como escravo ou a morte. Os que se distinguem na luta são coroados e
felicitados. Concedem-se também a eles privilégios especiais de caráter
erótico, como em todas as guerras costuma suceder. Embora Platão não admita os “matrimônios
de guerra”, a forma que as relações sexuais revestem em tempo de guerra
corresponde também às suas regras sobre a seleção dos melhores. Mas é
precisamente devido a isso que os mais valentes gozam de preferência, e às suas
inclinações pessoais se fazem concessões que, fora desse caso, nunca se admitem
no Estado platônico274. Com certo humorismo deixa que também nesse
caso excepcional vigore a ética de Homero, que, depois de uma luta gloriosa,
honra Ájax com o dom glorificador e fortificante de um lombo inteiro de boi275.
Nos sacrifícios e nas festas dedicam-se ao herói hinos e recompensas deste
tipo: lugares de honra e bebidas e comidas de honra. Os que tombam na gloriosa
batalha são incluídos na genealogia de ouro, isto é, são elevados a heróis e
lhes é dada como túmulo uma gruta de que o povo se deve aproximar com religiosa
veneração276. Mas também os que sobrevivem e morrem de velhos, após uma
vida carregada de méritos, recebem por sua morte as mesmas honras277.
Essa ética da guerra lembra, pela estrutura e conteúdo, o poema em que Tirteu
celebra a valentia do guerreiro perante o inimigo, como a suprema virtude, e
que revela todo o sistema de recompensas para os caídos e sobreviventes, no
qual assenta o edifício do Estado espartano. Esse poema foi por nós apreciado no
lugar oportuno, como monumento da educação dada aos seus cidadãos pelo Estado
de Esparta278. Não é só a faceta da contemplação das batalhas que
Platão tira dele para pilar do seu Estado, mas sim todo o sistema de ética
militar que lhe serve de base. Um problema diferente é saber se ele assina
também a valorização da valentia como virtude suprema; isso é de antemão incompatível
com a posição predominante que ele dá à justiça, uma vez que é sobre ela que
edifica o seu Estado. Veremos ao tratar das Leis como Platão enfrenta
expressamente esse postulado senhorial da ética espartana279.
Tudo o que a ética de Platão tem de arcaica
no que se refere às relações mútuas dos guerreiros do próprio Estado e à sua
honra e desonra, ela tem de moderna quanto às regras da conduta perante o
inimigo280. A única fonte de onde essas normas dimanam é o vivo
sentimento do direito que animava os gregos de cultura elevada daquele tempo.
Segundo Platão, é aqui que se deve provar o sentimento nacional, não como força
constitutiva do Estado, mas sim como freio moral na luta dos Estados gregos uns
contra os outros. Foi precisamente a desenfreada política bélica das cidades,
durante a guerra do Peloponeso e anos seguintes, de progressiva decomposição do
mundo helênico, que fomentou nos melhores a ânsia de paz e de concórdia entre os
gregos. E, ainda que essa ânsia parecesse bem longe de se ver realizada na
realidade política de um mundo que tinha por suprema lei do pensamento a
autonomia do Estado e dos interesses particulares de diversas cidades
soberanas, pelo menos estimulava a consciência contra a fúria brutal de
destruição com que os gregos combatiam entre si. A consciência da comunidade de
língua, de costumes e de raça punha em relevo a brutalidade tanto de objetivos
como de processos, nesse tipo de luta. Os gregos destruíam-se absolutamente a
si próprios, lutando uns contra os outros, enquanto o seu país e a sua
civilização ficavam de todos os lados expostos a uma pressão cada vez maior por
parte de nações estranhas e inimigas. Esse perigo aumentava à medida que os
Estados gregos se tornavam cada vez mais fracos. Os anos em que Platão escreveu
o seu direito de guerra pan-helênica eram os tempos da reintegração do poder de
Atenas e da segunda liga marítima que só ao cabo de uma guerra longa e difícil
contra Esparta e seus aliados se logrou impor. Os postulados de Platão eram,
pois, um apelo extraordinariamente atual feito aos grupos de Estados
beligerantes da nação grega.
As regras de Platão destinavam-se tanto à
guerra contra os gregos como à guerra contra os bárbaros. Mas não se baseiam numa
ideia universal de Humanidade, pois estabelecem uma distinção de princípio
entre o tratamento a dar aos inimigos gregos e aos que não o são. É apenas, ou
pelo menos fundamentalmente, para os gregos que vigora o sentimento humano que
elas postulam. Os gregos são por natureza parentes e amigos, ao passo que os
bárbaros são povos estranhos e inimigos281. É a mesma concepção em
que se baseia o pan-helenismo de Isócrates e no qual se inspirava Aristóteles,
quando aconselhava Alexandre a governar os gregos com hegemonia, mas os
bárbaros com despotismo282. Não é do princípio geral que Platão
parte, mas sim de uma norma especial, que encerra uma força direta de
convicção: a de que é uma injustiça os gregos escravizarem cidades gregas283.
Mas essa mesma exigência de tratar os gregos com consideração fundamenta-se,
também invocando o perigo de os gregos serem dominados pelos bárbaros. Aqui
está por que Platão proíbe a posse de escravos gregos no seu Estado e pede para
este exercer sobre outros Estados a sua influência no mesmo sentido284.
Confia que o resultado disso será voltarem-se os gregos mais contra os bárbaros
do que contra os seus próprios conaturais285. À diferença de
Isócrates, com quem apresenta aqui certos pontos de contato286, não
fala da guerra dos persas como um meio para unir todos os gregos, mas é de um
modo geral que formula a sua tese. Mais tarde, no entanto, Platão aplicaria nas
suas Cartas a mesma política à situação dos gregos sicilianos diante do
perigo cartaginês, fundamentando no ponto de vista da sua defesa contra os
bárbaros a necessidade de se unirem287. Conserva, portanto, uma
concepção unitária das relações entre gregos e bárbaros, considerando uma coisa
natural os reencontros militares entre uns e outros; ao contrário, preferiria
não falar de “guerra” entre gregos, já que a guerra só devia existir entre estranhos
e inimigos, nunca entre parentes. Recorrendo a um meio muito usado também pelos
oradores políticos da época, distingue entre guerra (πο¿λεμος) e discórdia
interna (στα¿σις), recomendando que se use sempre e só a última expressão para designar
as lutas dos helenos uns contra os outros288. Situa-se desta forma
no mesmo plano das lutas realizadas dentro de um Estado e lhes aplica a mesma
forma de pensamento jurídico. É por essa razão que ele proíbe a devastação dos
campos e o incêndio das casas, fatos que também não são habituais nas guerras civis
de um Estado civilizado do século IV, mas atraem sobre a cabeça dos culpados a
maldição dos deuses; e condena-os como inimigos da pátria289. Por
isso, numa luta entre gregos não se devem considerar inimigos todos os
habitantes do Estado adversário, mas sim limitarem-se os vencedores a ajustar
contas com os culpados290. O dano máximo que nessas lutas Platão
permite infligir ao adversário é a destruição das suas colheitas291.
Em todos os atos hostis praticados numa guerra contra Estados da mesma nacionalidade,
nunca se deve perder de vista que o objetivo natural é a reconciliação, e não a
destruição do inimigo292.
Mas ao lado dessa guerra entre os gregos
encontramos também normas de caráter geral que devem vigorar para todas as guerras,
sem distinção. Despojar por mera sede de lucro os caídos no campo de batalha é
punido como indigno de um homem livre, bem como impedir que se levantem do
campo os mortos. As armas são a única coisa que um guerreiro pode arrebatar ao
inimigo caído293. Deve-se, no entanto, evitar o costume de
dependurar como troféus nos templos dos deuses as armas arrebatadas ao inimigo,
sobretudo se forem armas de gregos, com temor de por esse ato os homens
macularem os lugares santos em vez de os honrarem294. Esses
preceitos são em parte inspirados no respeito de si próprio, e em parte numa
acendrada fé religiosa. Essas regras completam as que versam sobre o tratamento
a dar aos adversários da mesma nacionalidade, já que tanto umas como outras
tendem a suavizar os métodos da guerra. O próprio Platão confessa que os gregos
estão muito longe de se comportarem como ele julga que devem fazê-lo. As suas
regras não são, por conseguinte, uma simples compilação das práticas de guerra
em vigor, mas sim um ousado ataque à realidade existente. E, ao pedir que o
tipo de guerra praticado no seu tempo fosse exclusivamente reservado às lutas
contra os bárbaros, qualifica indiretamente de bárbaros aqueles costumes295.
Não devemos esquecer que, no tempo de Platão, o direito de guerra sancionava a
escravização dos prisioneiros, pois só assim podemos apreciar todo o progresso
de sensibilidade moral contido nessas regras sobre a guerra, por ele
preconizadas. Ainda na obra De iure belli ac pacis, escrita no século
XVI pelo grande humanista e pai do moderno direito internacional, Hugo Grócio,
reconhecia-se como não contrário à natureza o direito de escravizar os
inimigos, em caso de guerra. No final do capítulo “De iure in captivos”, Grócio
cita o historiador bizantino Grégoras, como testemunho de que os romenos e
tessálios, os ilírios, os povos tribais e os búlgaros, em virtude de longa
tradição e graças à sua comunhão de fé cristã, observavam a regra de só tomar
como despojo, nas guerras entre uns e outros, as coisas, sem fazerem das
pessoas escravos nem matarem ninguém fora da luta. Isso quer dizer que na
opinião de Grócio só sob o Cristianismo se conseguiu o que o Sócrates platônico
em vão pregara aos gregos como um preceito do instinto nacional de
autoconservação296. Mas o próprio Grócio observa que também os maometanos
seguiam essa mesma regra de direito internacional, nas lutas contra povos da
sua religião. Devemos, portanto, generalizar a sua tese no sentido de que não
foi o Estado antigo nem a ideia nacional do século IV, mas sim a comunidade de
fé das religiões universais, a qual se estendia a povos diversos, que assentou os
fundamentos que possibilitaram a realização parcial dos postulados de Platão.
Essa base religiosa era mais ampla que a da própria nação para a qual se
estatuíam as regras platônicas. No entanto, tinha certa afinidade com o esquema
platônico, pois nem sequer ela abrangia toda a Humanidade, mas se identificava com
a comunidade concreta de fé cristã ou maometana, que até na guerra continuava a
irmanar os povos da mesma fé.”
271. Rep., 468 A.
272. Em termos semelhantes, ARISTÓTELES, Pol.,
III, 5, 1278 a 17, diz que são excluídos da cidadania nos Estados
aristocráticos e naqueles em que a areté é o critério dos direitos
políticos. No seu Estado ideal, Aristóteles distingue βα¿να σοι e ο¹πλιται,
VII, 4, 1326 a 23.
273. Rep., 468 A.
274. Rep., 468 B-C.
275. Rep., 468 D.
276. Rep., 468 E.
277. Rep., 469 B.
278. Cf., acima, pp. 119 ss.
279. Cf., adiante, livro IV, o cap. As Leis.
280. Cf. Rep., 469 B ss.
281. Rep., 470 C.
282. Cf. sobre o pan-helenismo de ISÓCRATES,
adiante, livro IV. O parecer de ARISTÓTELES, frag. 658 (Rose), em PLUTARCO, De
fort. Alexandri, 1, 6, foi transmitido pela tradição. A fórmula é
manifestamente uma reminiscência de ISÓCRATES, De Pace, 134. A atitude
prática de Aristóteles, tanto em relação à democracia ateniense como em relação
à política pan-helênica, segue na direção de Isócrates, como espero ter
demonstrado em outro lugar. Só na construção do seu Estado ideal é que mostra
um moderado platonismo.
283. Rep., 469 B.
284. Rep., 469 C.
285. Rep., 469 C.
286. Cf. ISÓCRATES, Paneg., 3 e 133
ss.
287. Carta VII, 331 D; 336 A; Carta
VIII, 353 A ss.
288. Rep., 470 B, 471, Cf. o trabalho
do meu discípulo W. WOESSNER, Die synonymische Unterscheidung bei Thukydides
und den politischen Redner der Griechen (Wurzburgo, 1937).
289. Rep., 470 D, ου¸δε¿τεροι αυ¹τωªν ϕιλοπο¿λιδες;
ver 471 A.
290. Rep., 471 A-B.
291. Rep., 470 B, 470 D-E.
292. Rep., 470 E, 471 A.
293. Rep., 469 C-E.
294. Rep., 469 E-470 A.
295. Rep., 471 B.
296. De iure belli ac pacis, 557 (ed.
Molhuysen, Leiden 1919). Para Hugo Grócio, o capítulo da República de
Platão sobre o direito da guerra constituía, naturalmente, um documento da
maior autoridade.
“O paralelo entre a construção ideal
socrática e a imagem do ser humano mais belo indica qual é a verdadeira finalidade
visada por Platão na República. O tema desta não é, em primeiro lugar, o
Estado, mas sim o Homem e a sua capacidade para criá-lo. E, mesmo que Platão
nos fale ainda de um paradigma do Estado, é evidente que este não se pode
comparar à imagem do mais belo ser humano300. O que corresponde a
essa imagem é antes o tipo ideal do homem verdadeiramente justo, que o próprio
Platão afirma constituir o objetivo do seu quadro301. O Estado ideal
é apenas o espaço adequado que ele necessita para a edificação da sua forma.
Essa caracterização do punho do próprio filósofo coincide com os resultados da
nossa análise. A República platônica é, antes de tudo, uma obra de formação
humana. Não é uma obra política no sentido habitual do político, mas sim
no seu sentido socrático302. Mas a grande verdade educacional que a República
ilustra plasticamente é a estrita correlação entre a forma e o espaço. Não
é só de um princípio artístico que se trata, mas sim de uma lei do mundo moral.
O homem perfeito só num Estado perfeito se pode formar, e vice-versa: a
formação desse tipo de Estado é um problema de formação de homens. É nisso que
se baseia o fundamento da correlação absoluta que existe entre a estrutura
interna do Homem e a do Estado, entre os tipos de Homem e os tipos de Estado. E
isso explica igualmente a contínua tendência de Platão a sublinhar a atmosfera
pública e a sua importância para a formação do Homem.
Mas Platão dá-nos ainda sugestões a respeito
da atitude que diante da “pintura” filosófica de Sócrates deve adotar quem deseja
estudá-la. Todo paradigma é algo de absolutamente perfeito que admiramos, quer
possa ou não tornar-se realidade303. O próprio conceito de paradigma
tem já implícita a impossibilidade da sua plena realização, a não ser, quando
muito, de forma aproximativa304. Reconhecer isso não significa
tachar o ideal, como tal, de imperfeição. Tal como a imagem do ser humano mais
belo conserva sempre, como obra filosófica, o seu valor de beleza, que é independente
de toda consideração de ordem prática. No entanto, a caracterização da imagem
socrática como modelo implica também uma certa relação com o insaciável impulso
humano de imitação. É sobre estes dois conceitos procedentes da Grécia
primitiva, o de paradigma e o de mímesis, modelo e imitação, que
toda a paideía grega assenta. A República de Platão representa
uma nova etapa dentro dela. A retórica do seu tempo falava de paradigmas
míticos e históricos e usava-os na arte da parenese, como padrão e modelo
de comportamento. Como vimos acima, esta maneira de pensar dos gregos em forma de
paradigmas remonta à poesia dos tempos mais primitivos, que representava nesse
sentido os acontecimentos e as figuras do mito305. Era precisamente
nessa maneira de encarar o mito que se baseava o éthos educador da
poesia. Por conseguinte, quando Platão afirma que a sua ficção do Estado ou do Homem
ideal é um poema mítico306, não pretende tanto exprimir a sua falta
de realidade, como o seu caráter paradigmático. As artes plásticas também têm o
seu conceito sinônimo de cânon, para designar uma figura humana que se
deve ter como modelo estético em todas as suas formas e proporções307.
Mas o conceito ético de paradigma encerra ainda outro fator: o modelo ético.
Nesse ponto, Platão apoia-se diretamente na antiga poesia e rivaliza com ela.
Tem consciência do incentivo de imitação que irradia das figuras ideais da
poesia e sente que o pensamento filosófico, projetado sobre o geral, carece
dessa força. Mas, ao seu olhar poético, o conceito universal de cada virtude converte-se
imediatamente no tipo humano que a encarna: a justiça, por exemplo, reveste a
forma do homem perfeitamente justo308. E não é só nesse caso que o
fenômeno se dá. O seu espírito, aguçado pela necessidade de criar novos
paradigmas, faz brotar os tipos humanos ideais correspondentes a todas as
atitudes e formas morais de vida, e essa personificação à base de tipos torna-se
para Platão um hábito mental fixo. É sobre esse fundo que se têm de projetar o
“Estado ideal” e o “homem verdadeiramente justo” da República para serem
compreendidos. São modelos de inspiração que esperam ser convertidos em
realidade por meio da imitação.
Mas qual é o verdadeiro ponto de partida para
a sua imitação? Se o ideal do homem justo só num Estado perfeito se pode concretizar,
a educação chamada a criar aquele tipo é, em última instância, uma questão de
poder. É certo que os Estados atuais, como o Górgias punha em relevo309,
fazem da aspiração ao poder um fim em si, e por isso não estão habilitados a
cumprir a missão educacional na qual Platão vê a essência do Estado. Enquanto o
poder político e o espírito filosófico não coincidirem, Platão julga impossível
uma solução construtiva do problema grego da formação do Homem, em sentido
socrático, e portanto da superação dos males da sociedade presente. Surge assim
a famosa tese platônica segundo a qual não acabará a miséria política do mundo
enquanto os filósofos não se tornarem reis ou os reis não começarem a
investigar de forma verdadeiramente filosófica310. É esse postulado
que ocupa o lugar central da República. Não se trata de uma engenhosa
frase incidental, mas da fórmula que oferece a solução ideal para aquele
trágico divórcio entre o Estado e a educação filosófica que vimos em obras anteriores
de Platão311. Esse divórcio encontrara a sua expressão simbólica no
problema da morte do justo, em torno de cujo significado girava o seu
pensamento anterior. Apresentava-se ali, em primeiro lugar, como ruptura brutal
entre o espírito e o Estado312, mas logo na República ergue-se
sobre o tumulto dessa gigantomaquia a visão de um novo cosmos, que assimila as obras
positivas da ordem anterior e se serve das suas formas. Para Platão, a tese do
reinado dos filósofos nasce da consciência de que é a Filosofia a força
construtiva desse novo mundo em gestação, isto é, precisamente aquele espírito
que o Estado pretende destruir na pessoa de Sócrates. Só ela, a força que criou
o Estado perfeito no mundo do pensamento, será capaz de colocá-lo em prática,
se lhe derem o poder necessário para o fazer.
E assim, na República, a Filosofia
aparece pela primeira vez no primeiro plano da atenção. Até aqui escondia-se
por trás da sua obra a nova imagem do Estado em construção; agora reivindica abertamente
o seu direito à consecução do poder. Contudo, essa pretensão não brota de uma
ânsia de poder, à maneira habitual, e só aparentemente contradiz a anterior
atitude crítica que Platão adotava perante o Estado e o seu poder313.
Já no Górgias, no próprio repúdio da pleonexía do Estado-força,
transparecia claramente a pretensão da filosofia a governar. Platão não condena
o poder como uma coisa “má em si”; submete apenas o seu conceito a um
esclarecimento dialético radical, que o limpa da mancha do egoísmo314.
Liberta-o da arbitrariedade e volta a reduzi-lo à vontade pura, cuja meta
inamovível é, por natureza, o Bem. Nenhum ser humano pode voluntariamente enganar-se
naquilo que considera bom e salutar. O verdadeiro poder só pode consistir na
capacidade de realizar a aspiração natural que lança o Homem para aquela meta.
A sua premissa é, portanto, o conhecimento real do Bem. E é assim que a
filosofia torna-se paradoxalmente o caminho para o verdadeiro poder. Na República,
é também diretamente do seu conceito de filosofia que Platão deduz o direito
que ela tem de governar. É certo que esse conceito exige uma definição mais
exata, tanto mais que se esgueira para aqui, sem preparação prévia. Platão
começa por surpreender o leitor com a sua sugestiva tese sobre o reinado dos
filósofos e fundamenta-a em seguida com uma análise da essência do filósofo,
procurando dar as razões por que este se encontra naturalmente destinado a
governar315. No instante em que Platão proclama essa tese pela
primeira vez, desperta em nosso espírito a recordação de todos os penosos
esforços dos escritos anteriores de Platão em torno do problema da conduta reta,
da autêntica virtude e do verdadeiro saber, e vemos de chofre, claramente, que
todos eles convergiam para uma meta: a que descobrimos agora. É impossível para
Platão dar em poucas palavras, nesta passagem da República, uma ideia da
filosofia que se possa comparar à dos seus escritos anteriores pela força da
expressão. Como sempre acontece nas suas obras, pressupõe-na em vez de a
definir. No entanto, a economia artística da República solicita a ilusão
de, por assim dizer, ser aqui a primeira vez que o leitor se vê obrigado a
meditar sobre a filosofia; e é essa a verdade, de certo modo, uma vez que a sua
pretensão a governar o Estado se apresenta sob um cariz surpreendentemente novo
e até os seus mais sinceros admiradores têm de sentir-se solicitados a adotar
uma nova posição perante ela, a partir desse ponto de vista.
Não há nada mais cativante e impressionante
do que a inabalável confiança na força da Filosofia, que leva Platão a situá-la
no centro da sua vida e a enfrentá-la com os mais ingentes problemas práticos.
No seu isolamento atual, ela própria tem dificuldade em compreender que foi só
batalhando com aqueles problemas que conseguiu forjar o grandioso caráter que
na sua primeira fase criadora a distinguiu. A resignada frase de Hegel, dizendo
que a coruja de Atena só se levanta ao entardecer, contém sem dúvida uma certa
verdade e a consciência dela estende a sua sombra trágica sobre o esforço
heroico que o espírito humano se dispõe a realizar à última hora, com a
tentativa platônica de salvação do Estado. No entanto, também aquela cultura decadente
possuía ainda a sua juventude e era a filosofia de Platão que se sentia como a
força juvenil do seu tempo. Mistura-se por isso ao entusiasmo da geração jovem
que Platão gosta de pintar, nos seus diálogos, rodeando Sócrates, para opor uma
nova fé ao Estado caduco e cético e à cultura superficial do seu tempo. A
Filosofia sentia-se destinada a isso, não por ser uma força de grande tradição
em cuja trajetória figuravam nomes veneráveis e pensadores de todas as classes,
investigadores da phýsis, decifradores do enigma do mundo e
perscrutadores do cosmos, mas sim pela consciência da nova força que irradiava de
Sócrates e que permitia infundir à comunidade humana o conhecimento renovado
das verdadeiras normas da vida.
É esse o aspecto sob o qual Platão expõe o
que é a “filosofia” dentro do Estado. Em alguns poucos traços elabora um
catecismo da Filosofia, no qual determina a sua essência por meio do objeto do
seu saber. O filósofo é o homem que não se entrega à multiplicidade das
impressões sensoriais, nem se deixa arrastar durante a vida inteira pelo vaivém
das simples opiniões, mas orienta o seu espírito para a unidade do que existe316.
Só ele possui um conhecimento e um saber no verdadeiro sentido dessas palavras;
por meio da variedade e individualidade dos fenômenos vê a imagem fundamental,
universal e imutável das coisas: a “ideia”. Só ele pode dizer o que é justo e
belo por si; as opiniões da massa a respeito dessas e das demais coisas oscilam
na penumbra entre o não ser e o verdadeiro Ser317. E nisso não diferem
da massa os estadistas. Encaram as diversas constituições e leis vigentes como
modelos, mas, segundo o que Platão diz no Político, nem sequer estas
passam de meras imitações da verdade318. Por conseguinte, quem não
souber outra coisa senão imitá-las será um simples imitador de imitações. O
filósofo é o homem que traz na alma um paradigma diáfano319. No meio
da insegurança geral, é nessa forma que o seu olhar está cravado. A capacidade
para a reconhecer é a capacidade de visão de que necessita principalmente todo
verdadeiro guardião do Estado. E, quando no filósofo se unem a isso a
experiência e as outras aptidões necessárias para a direção prática do Estado,
então ele se eleva bem acima dos estadistas de tipo habitual320.
Essa caracterização do filósofo contribui
para esclarecer o contexto espiritual e o ponto de partida da teoria platônica
do Estado. Segundo Platão, o mal de que o mundo político e moral padece é a
ausência de uma suprema instância normativa e legislativa. A criação desta fora
o problema do qual nascera outrora a democracia, que o resolveu pela elevação
da vontade da maioria a força legislativa. Era um sistema baseado no elevado conceito
que se tinha do homem individual, e foi por muito tempo considerada a forma
mais progressista do Estado. Mas, como todas, tinha as suas imperfeições
humanas. A evolução que sofreu nas grandes cidades da Grécia a foi convertendo
cada vez mais em instrumento de agitadores sem escrúpulos. Nesse tipo de
Estado, a educação está nas mãos daquele tipo de homens denominados sofistas.
Platão pinta-os como uma espécie de domadores que dedicam toda a vida a estudar
os caprichos da “grande besta”, a massa, e sabem tocar magnificamente as suas várias
cordas, pois entendem maravilhosamente tanto a linguagem da sua cólera como a
da sua satisfação. A sua arte consiste em saber tratá-la e em dominá-la,
adulando-a e acomodando-se habilmente ao seu humor variável321.
Desse modo, os caprichos da massa tornam-se a pauta suprema da conduta política
e o espírito dessa adaptação vai pouco a pouco se infiltrando em todas as
manifestações da vida. Esse sistema de adaptação exclui a possibilidade de uma
autêntica educação do Homem, orientada de acordo com a pauta dos valores
imutáveis322. A crítica socrática à falta de perícia na condução dos
negócios públicos por parte dos oradores políticos desempenha desde o primeiro
instante um importante papel nas obras de Platão. Já no Górgias ele
compara essa política retórica à mentalidade dos filósofos, que submetem todos
os seus atos ao conhecimento do Bem como meta suprema323. Na República,
em coincidência com isso, faz do conhecimento da norma suprema, que o filósofo
traz na alma como paradigma, a pedra de toque do verdadeiro governante do Estado324.
É a partir daqui que se tem de compreender
toda a construção da República. Platão vê na filosofia a tábua de
salvação, pois apresenta a solução para os mais candentes problemas da sociedade
humana. Se partimos da premissa desse conhecimento da norma suprema, tal como
ele o concebe325, é natural que abordemos a partir desse ponto de
vista a reconstrução do Estado vacilante. É o conhecimento da verdade que deve
ocupar o trono do Estado reconstruído. Pela sua própria natureza, tal
conhecimento não compete a muitos, mas apenas a alguns poucos. Platão não parte
psicologicamente do problema da condução da massa. Parte das exigências que o
mais elevado tipo moral e espiritual do Homem deve fazer ao Estado para poder
entregar-se a ele com toda a alma326. E é em nome do que há de mais
elevado no Homem que ele exige o reinado do filósofo. As características do seu
Estado que mais saltam aos olhos, a estruturação orgânica em escalões e o
caráter pedagógico autoritário do seu Governo, dependem unicamente daquela
exigência fundamental de ser o conhecimento da verdade absoluta a imperar no
Estado. Nenhuma pedra se pode tirar nem substituir por outra, nesse edifício
tão simples e de lógica tão perfeita. Se ao governante retiramos a qualidade de
filósofo que está de posse do conhecimento absoluto, retiramos-lhe também,
pensa Platão, a base da sua autoridade, pois não é num carisma pessoal que ela se
baseia, mas sim na força de convencimento da verdade, à qual todos nesse Estado
se submetem livre e voluntariamente, visto que todos estão educados nesse
espírito. O conhecimento da norma suprema, que o filósofo abriga na sua alma, é
o fecho da cúpula do sistema do Estado educacional platônico.”
298. Rep., 472 C-D.
299. Rep., 472 C, 472 D.
300. Rep., 472 D 9.
301. Rep., 472 D 5. Cf. 472 C 5.
302. Cf., acima, pp. 559 s.; 658 s. A
política socrática é “cuidado da alma” (ψυχηªς ε¹πιμελεια). Quem vela pela alma
vela também, ao mesmo tempo, “pela própria pólis”.
303. Rep., 472 D. Cf. 472 E.
304. Cf. sobre as relações entre o ideal e a
realidade e a “aproximação” do ideal, Rep., 472 C, 473 A-B.
305. Cf. acima, pp. 65 s.
306. Rep., 501 E.
307. Cf. POLICLETO, A 3 (Diels, Vorsokratiker).
308. Cf. Rep., 472 B-C, onde a justiça
e o homem justo aparecem um ao lado do outro. É a ética aristotélica que
desenvolve principalmente esse método de tipificação dos conceitos éticos
gerais, colocando o megalopsykhos ao lado da megalopsykhía, o
homem liberal ao lado da liberalidade etc.
309. Cf., acima, pp. 663 ss.
310. Rep., 473 C-D.
311. Cf., acima, pp. 574-6, 607 s.
312. Cf., acima, pp. 698 s.
313. Cf., acima, pp. 663 ss.
314. Cf., acima, pp. 664 s.
315. A exposição do conceito da filosofia
ocupa o resto do livro V, desde 474 B.
316. Rep., 476 A ss.
317. Rep., 479 D.
318. Político, 300 C.
319. Rep., 484 C. Cf. 540 A, onde o
paradigma se define mais de perto como a ideia do Bem.
320. Rep., 484 D.
321. Rep., 493 A-C.
322. Rep., 493 A 7 e 493 C 8.
323. Cf. pp. 657 s., 688 ss.
324. Cf. nota 319.
325. Para o historiador e expositor da
doutrina platônica da paideía, não é uma petitio principii o fato
de aceitar a verdade do seu ponto de partida como algo dado e mostrar como
Platão tinha de ver a solução do problema, partindo desta premissa. Examinar se
tal premissa é verdadeira ou falsa é uma tarefa que compete já à filosofia
sistemática.
326. Rep., 497 B.
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