quinta-feira, 13 de outubro de 2022

De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso (Parte II), de Eduardo Galeano

Editora: L&PM Pocket

ISBN: 978-85-254-1942-2

Tradução: Sergio Faraco

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 384

Gravuras: Guadalupe Posada

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Sinopse: Ver Parte I


Já nos tempos da conquista, era tido como certo que os índios estavam condenados à servidão nesta vida e ao inferno na outra. Sobravam evidências do reinado de Satã na América. Entre as provas mais irrefutáveis estava o fato de que o homossexualismo era praticado livremente nas costas do Mar do Caribe e outras regiões. Desde 1446, por ordem do rei Afonso V, os homossexuais iam para a fogueira: “Mandamos e pomos por lei geral que todo homem que tal pecado fizer, por qualquer guisa que possa ser, seja queimado e feito pelo fogo em pó, por tal que nunca de seu corpo e sepultura possa ser ouvida memória”. Em 1497, também Isabel e Fernando, os reis católicos da Espanha, mandaram que fossem queimados vivos os culpados do nefando crime da sodomia, que até então morriam a pedradas ou pendurados na forca. Os guerreiros que conquistaram a América deram algumas contribuições dignas de consideração à tecnologia das mortes exemplares. Em 1513, dois dias antes daquilo que chamam descobrimento do Oceano Pacífico, o capitão Vasco Núñez de Balboa aperreou cinquenta índios que ofendiam a Deus praticando abominável pecado contra natura. Em vez de queimá-los vivos, lançou-os a cães viciados em devorar carne humana. O espetáculo teve lugar no Panamá, à luz das fogueiras. O cão de Balboa, Leoncico, que recebia soldo de alferes, destacou-se entre os demais com sua mestria na arte de destripar.

Quase cinco séculos depois, em maio de 1997, na pequena cidade brasileira de São Gonçalo do Amarante, um homem matou quinze pessoas e se suicidou com um tiro no peito, porque na cidade andavam comentando que ele era homossexual. A ordem que impera no mundo desde a conquista da América não teve jamais a intenção de socializar os bens terrenos, que Deus nos livre e guarde, mas, em troca, dedicou-se fervorosamente a universalizar as mais desprezíveis fobias da tradição bíblica.

Em nosso tempo, o movimento gay ganhou amplos espaços de liberdade e respeito, sobretudo nos países do norte do mundo, mas ainda perduram muitas teias de aranha para sujar nossos olhos. Ainda há muita gente que vê no homossexualismo uma culpa sem expiação, um estigma indelével e contagioso, ou um convite à perdição que tenta os inocentes: os pecadores, doentes ou delinquentes dependendo de quem os julga, constituem, em qualquer caso, um perigo público. Numerosos homossexuais foram e continuam sendo vítimas dos grupos de limpeza social que operam na Colômbia e dos esquadrões da morte no Brasil, ou de qualquer dos tantos energúmenos de uniforme policial ou traje civil que, no mundo inteiro, exorcizam seus demônios espancando o próximo ou peneirando-o a punhaladas ou balaços. Segundo o antropólogo Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, não menos do que 1800 homossexuais foram assassinados no Brasil nos últimos quinze anos. “Eles se matam entre si”, dizem as fontes oficiosas da polícia, “isso é coisa de bicha”. Que vem a ser exatamente a mesma explicação que amiúde se escuta sobre as guerras da África, “isso é coisa de negro”, ou sobre as matanças de indígenas na América, “isso é coisa de índio”.

“Isso é coisa de mulher”, diz-se também. O racismo e o machismo bebem nas mesmas fontes e cospem palavras parecidas. Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni, o texto fundador do direito penal é El martillo de las brujas, um manual da Inquisição escrito contra a metade da humanidade e publicado em 1546. Os inquisidores dedicaram todo o manual, da primeira à última página, à justificação do castigo da mulher e à demonstração de sua inferioridade biológica. E já haviam sido as mulheres longamente maltratadas na Bíblia e na mitologia grega, desde os tempos em que a tolice de Eva fez com que Deus nos expulsasse do Paraíso e a imprudência de Pandora abriu a caixa que encheu o mundo de desgraças. “A cabeça da mulher é o homem”, explicava São Paulo aos coríntios, e dezenove séculos depois Gustave Le Bon, um dos fundadores da psicologia social, pôde concluir que uma mulher inteligente é algo tão raro quanto um gorila de duas cabeças. Charles Darwin reconhecia algumas virtudes femininas, como a intuição, mas eram “virtudes características das raças inferiores”.”

 

 

Pontos de vista/6

Se Eva tivesse escrito o Gênesis, como seria a primeira noite de amor do gênero humano?

Eva teria começado por esclarecer que não nasceu de nenhuma costela, não conheceu qualquer serpente, não ofereceu maçã a ninguém e tampouco Deus chegou a lhe dizer “parirás com dor e teu marido te dominará”. E que, enfim, todas essas histórias são mentiras descaradas que Adão contou aos jornalistas.”

 

 

Como também ocorre com os índios e os negros, a mulher é inferior, mas ameaça. “É preferível a maldade do homem à bondade da mulher”, advertia o Eclesiastes (42,14). E Ulisses sabia muito bem que precisava prevenir-se do canto das sereias, que cativam e desgraçam os homens. Não há tradição cultural que não justifique o monopólio masculino das armas e da palavra, nem há tradição popular que não perpetue o desprestígio da mulher ou que não a aponte como um perigo. Ensinam os provérbios, transmitidos por herança, que a mulher e a mentira nasceram no mesmo dia e que palavra de mulher não vale um alfinete, e na mitologia rural latino-americana são quase sempre fantasmas de mulheres, as temíveis almas penadas, que por vingança assustam os viajantes nos caminhos. No sono e na vigília, manifesta-se o pânico masculino diante da possível invasão dos territórios proibidos do prazer e do poder. E assim sempre foi pelos séculos dos séculos.

Por algo foram as mulheres vítimas da caça às bruxas e não só nos tempos da Inquisição. Endemoniadas: espasmos e uivos, talvez orgasmos e, para agravar o escândalo, orgasmos múltiplos. Só a possessão de Satã podia explicar tanto fogo proibido, que com o fogo era castigado. Mandava Deus que fossem queimadas vivas as pecadoras que ardiam. A inveja e o pânico diante do prazer feminino não tinham nada de novo. Um dos mitos mais antigos e universais, comum a muitas culturas de muitas épocas e de diversos lugares, é o mito da vulva dentada, o sexo da fêmea como uma boca cheia de dentes, insaciável boca de piranha que se alimenta da carne dos machos. E neste mundo de hoje, neste fim de século, há 120 milhões de mulheres mutiladas do clitóris.

Não há mulher que não seja suspeita de má conduta. Segundo os boleros, são todas ingratas; segundo os tangos, são todas putas (menos mamãe). Nos países do sul do mundo, uma de cada três mulheres casadas recebe pancadas como parte da rotina conjugal, o castigo pelo que fez e pelo que poderia fazer:

Estamos dormindo – diz uma operária do bairro Casavalle, de Montevidéu. – Um princípe te beija e te faz dormir. Quando despertas, o príncipe te baixa o pau.

E outra:

Eu tenho o mesmo medo que minha mãe tinha, e minha mãe tinha o mesmo medo que minha avó tinha.

Confirmação do direito de propriedade: o macho proprietário garante a pancadas seu direito de propriedade sobre a fêmea, assim como macho e fêmea garantem a pancadas seu direito de propriedade sobre os filhos.

E os estupros, acaso não são ritos que, pela violência, celebram esse direito? O estuprador não procura, não encontra prazer: precisa submeter. O estupro grava a fogo uma marca de propriedade na anca da vítima e é a expressão mais brutal do caráter fálico do poder, desde sempre manifestado através da flecha, da espada, do fuzil, do canhão, do míssil e de outras ereções. Nos Estados Unidos, uma mulher é estuprada a cada seis minutos. No México, a cada nove minutos. Diz uma mulher mexicana:

Não há diferença entre ser estuprada e ser atropelada por um caminhão, exceto que os homens, depois, perguntam se você gostou.

As estatísticas só registram os estupros denunciados, que na América Latina são em muito menor número do que os ocorridos. Em sua maioria, as mulheres estupradas calam por medo. Muitas meninas, estupradas em suas casas, vão parar na rua: fazem a vida, corpos baratos, e algumas, como os meninos de rua, têm sua casa no asfalto. Diz Lélia, quatorze anos, criada ao deus-dará nas ruas do Rio de Janeiro:

Todos roubam. Eu roubo e me roubam.

Quando Lélia trabalha, vendendo seu corpo, pagam-lhe quase nada ou pagam batendo nela. E, quando rouba, os policiais roubam dela o que ela rouba e ainda roubam seu corpo.

Diz Angélica, dezesseis anos, perdida nas ruas da cidade do México:

Eu disse à minha mãe que meu irmão tinha abusado de mim e ela me expulsou de casa. Agora vivo com um guri e estou grávida. Ele disse que, se for menino, vai me apoiar. Se for menina, não diz nada.

“No mundo de hoje, nascer menina é um risco”, diz a diretora da UNICEF. E denuncia a violência e a discriminação que a mulher sofre, desde a infância, a despeito das conquistas dos movimentos feministas no mundo todo. Em 1995, em Pequim, a Conferência Internacional sobre os Direitos das Mulheres revelou que, no mundo atual, elas ganham a terça parte do que ganham os homens por trabalho igual. De cada dez pobres, sete são mulheres. De cada cem mulheres, apenas uma é proprietária de algo. Voa torta a humanidade, pássaro de uma asa só. Nos parlamentos, em média, há uma mulher para cada dez legisladores, e em alguns parlamentos não há nenhuma. Se reconhece à mulher certa utilidade em casa, na fábrica ou no escritório e até se admite que possa ser imprescindível na cama ou na cozinha, mas o espaço público é virtualmente monopolizado pelos machos, nascidos para as lidas do poder e da guerra. Carol Bellamy, que encabeça a agência UNICEF das Nações Unidas, é um caso raro. As Nações Unidas pregam o direito à igualdade, mas não o praticam: no mais alto nível, onde são tomadas as decisões, os homens ocupam oito de cada dez cargos no máximo organismo internacional.”

 

 

“A justiça é como as serpentes: só morde os descalços. (Monsenhor Óscar Arnulfo Romero, Arcebispo de San Salvador, assassinado em 1980)”

 

 

O medo global

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho.

Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho.

Quem não tem medo da fome, tem medo da comida.

Os motoristas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de ser atropelados.

A democracia tem medo de lembrar e a linguagem tem medo de dizer.

Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.

É o tempo do medo.

Medo da mulher da violência do homem e medo do homem da mulher sem medo.

Medo dos ladrões, medo da polícia.

Medo da porta sem fechaduras, do tempo sem relógios, da criança sem televisão, medo da noite sem comprimidos para dormir e medo do dia sem comprimidos para despertar.

Medo da multidão, medo da solidão, medo do que foi e do que pode ser, medo de morrer, medo de viver.”

 

 

América Latina, paisagens típicas

Os Estados deixam de ser empresários e tornam-se policiais.

Os presidentes se transformam em gerentes de empresas estrangeiras.

Os ministros da Economia são bons tradutores.

Os industriais se transformam em importadores.

Os mais dependem cada vez mais das sobras dos menos.

Os trabalhadores perdem seus trabalhos.

Os agricultores perdem suas terrinhas.

As crianças perdem sua infância.

Os jovens perdem a vontade de acreditar.

Os velhos perdem sua aposentadoria.

“A vida é uma loteria”, opinam os que ganham.”

 

 

Quem são os carcereiros, quem são os cativos? Poder-se-ia dizer que, de algum modo, todos nós estamos presos. Os que estão dentro das prisões e os que estamos fora delas. São livres, acaso, aqueles que são prisioneiros da necessidade, obrigados a viver para trabalhar porque não podem dar-se o luxo de trabalhar para viver? E os prisioneiros do desespero, que não têm trabalho nem o terão, condenados a viver roubando ou fazendo milagres? E os prisioneiros do medo, acaso somos livres? E acaso não somos todos prisioneiros do medo, os de cima, os de baixo e também os do meio? Em sociedades obrigadas ao salve-se quem puder, somos prisioneiros os vigias e os vigiados, os eleitos e os párias. (...)

Já vi grades até em alguns casebres de lata e tábua nos subúrbios das cidades, pobres se defendendo de outros pobres, uns e outros tão pobres quanto um rato de igreja. O desenvolvimento urbano, metástase da desigualdade: crescem os subúrbios, e nos subúrbios há choças e jardins. Os subúrbios ricos geralmente se situam não muito longe dos arrabaldes que os abastecem de criadas, jardineiros e guardas. Nos espaços do desemparo, espreita a revolta dos que só comem de vez em quando. Nos espaços do privilégio, os ricos vivem em prisão domiciliar.”

 

 

Os cativos do medo não sabem que estão presos. Mas os prisioneiros do sistema penal, que levam um número no peito, perderam a liberdade e perderam o direito de esquecer que a perderam. Os presídios mais modernos, últimos guinchos da moda, tendem a ser, todos eles, presídios de segurança máxima. Já não há uma proposta de reintegrar o delinquente à sociedade, recuperar o extraviado, como se dizia antigamente. A proposta, agora, é isolá-lo e já ninguém se dá o trabalho de mentir sermões. A justiça tapa os olhos para não ver de onde vem o que delinquiu, nem por que delinquiu, o que seria o primeiro passo de sua possível reabilitação. O presídio-modelo do fim do século não tem o menor propósito de regeneração e nem sequer de castigo. A sociedade enjaula o perigo público e joga fora a chave.”

 

 

“Muitos dos grandes negócios promovem o crime e do crime vivem. Nunca houve tanta concentração de recursos econômicos e  conhecimentos científicos e tecnológicos dedicados à produção da morte. Os países que mais vendem armas no mundo são os mesmos que têm a seu cargo a paz mundial. Felizmente para eles, se a ameaça à paz está diminuindo e já se afastam suas nuvens negras, o mercado da guerra se recupera e oferece promissoras perspectivas de carneações rentáveis. As fábricas de armas trabalham tanto quanto as fábricas que fazem inimigos na medida de suas necessidades.”

 

 

Pontos de vista/8

Até pouco tempo atrás, os historiadores da democracia ateniense só de passagem mencionavam os escravos e as mulheres. Os escravos eram a maioria na população da Grécia e as mulheres eram a metade. Como seria a democracia ateniense, considerada do ponto de vista dos escravos e das mulheres?

A Declaração de Independência dos Estados Unidos proclamou, em 1776, que “todos os homens nascem iguais”. O que isso significava do ponto de vista dos escravos negros, meio milhão de escravos que continuaram sendo escravos depois da declaração? E as mulheres, que continuaram sem ter nenhum direito, nasciam iguais a quem?

Do ponto de vista dos Estados Unidos, é justo que os nomes dos norte-americanos tombados no Vietnã estejam gravados num imenso muro de mármore, em Washington. Do ponto de vista dos vietnamitas que a invasão norte-americana matou, faltam ali sessenta muros.”

 

 

“Tampouco surpreende o infeliz balanço mundial da guerra e da paz. Por cada dólar que as Nações Unidas gastam em suas missões de paz, o mundo emprega dois mil dólares em gastos de guerra, destinados ao sacrifício de seres humanos em caçadas onde o caçador e a presa são da mesma espécie e onde tem mais êxito quem mais pessoas mata. Como dizia dom Theodore Roosevelt, “nenhum triunfo pacífico é tão grandioso quanto o supremo triunfo da guerra”. E em 1906, deram-lhe o Prêmio Nobel da Paz.”

 

 

“Boa parte da opinião pública norte-americana padece de uma assombrosa ignorância a respeito de tudo o que ocorre fora de seu país, e teme ou despreza o que ignora. No país que mais desenvolveu a tecnologia da informação, os noticiários da televisão dão pouco ou nenhum espaço às novidades do mundo, exceto para confirmar que os estrangeiros têm tendência ao terrorismo e à ingratidão. Cada ato de rebelião ou explosão de violência, ocorra onde ocorrer, torna-se uma nova prova de que a conspiração internacional segue sua marcha, alimentada pelo ódio e pela inveja. Pouco importa que a Guerra Fria tenha terminado, pois o demônio dispõe de um amplo guarda-roupa e não se veste apenas de vermelho.”

 

 

“Não é preciso ser um expert em politicologia para perceber que, em regra, os discursos só alcançam seu verdadeiro sentido quando entendidos ao contrário. A regra tem poucas exceções: na planície, os políticos prometem mudanças, no governo mudam... de opinião. Alguns ficam redondos de tanto dar voltas. Dá torcicolo vê-los girar, da esquerda para a direita, com tanta rapidez. Primeiro a educação e a saúde!, eles clamam, como clama o capitão do navio: Primeiro as mulheres e as crianças!, e a educação e a saúde são as primeiras que se afogam. Os discursos elogiam o trabalho, enquanto os fatos injuriam os trabalhadores. Os políticos que juram, com a mão no peito, que a soberania nacional não tem preço, costumam ser os mesmos que depois a oferecem; e os que anunciam que expulsarão os ladrões, costumam ser o mesmos que depois roubam até as ferraduras de um cavalo a galope.”

 

 

“O Fundo Monetário se chama Internacional, como o Banco se chama Mundial, mas estes irmãos gêmeos vivem, recebem e decidem em Washington; e a numerosa tecnocracia jamais cospe no prato em que come. Ainda que os Estados Unidos sejam o país com mais dívidas no mundo, ninguém lhe dita do exterior a ordem de leiloar a Casa Branca, e mesmo não passaria pela cabeça de nenhum funcionário internacional o cometimento de tal insolência. Em contrapartida, os países do sul do mundo, que entregam 250 mil dólares por minuto por conta do serviço da dívida, são países cativos, e os credores lhes esquartejam a soberania como os patrícios romanos, em outros tempos imperiais, esquartejavam seus devedores plebeus. Por muito que paguem esses países, não há maneira de mitigar a sede do grande balde furado que é a dívida externa. Quanto mais pagam, mais devem, e quanto mais devem, mais obrigados ficam a obedecer a ordem de desmantelar o estado, hipotecar a independência política e alienar a economia nacional. Viveu pagando e morreu devendo, podia constar das lápides.”

 

 

“Jorge Bermúdez tem três filhos e três empregos. Ao raiar do dia sai a recorrer as ruas da cidade de Quito num velho Chevrolet que faz as vezes de táxi. Na primeira hora da tarde passa a dar aulas de inglês, há dezesseis anos ele é professor num colégio público, onde ganha 150 dólares mensais. Quando termina sua jornada no colégio público, dá aulas num colégio particular até a meia-noite. Jorge Bermúdez jamais tem um dia livre. Há algum tempo sofre de ardências no estômago e anda de mau humor e com pouca paciência. Um psicólogo lhe explicou que eram mal-estares psicossomáticos e transtornos de conduta derivados do excesso de trabalho, e recomendou que abandonasse dois de seus três empregos para restabelecer sua saúde física e mental. O psicólogo não o orientou como fazer para chegar ao fim do mês.

No mundo ao avesso, a educação não compensa. O ensino público latino-americano é um dos setores mais castigados pela nova situação do trabalho. Os professores recebem elogios, são homenageados com discursos afetados que exaltam o trabalho abnegado dos apóstolos do magistério que, com suas mãos amorosas, moldam a argila das novas gerações; e, além disso, recebem salários que só se enxergam com lupa. O Banco Mundial chama a educação de “um investimento em capital humano”, o que, de seu ponto de vista, é um elogio, mas, num informe recente, propõe como possibilidade reduzir os salários do professorado nos países onde “a oferta de professores” permite manter o nível docente.

Reduzir os salários? Que salários? “Pobres, mas docentes”, diz-se no Uruguai. E também: “Tenho mais fome do que um professor”. Os professores universitários estão nas mesmas condições. Em meados de 1995, li nos jornais o chamamento para um concurso na Faculdade de Psicologia de Montevidéu. Precisava-se de um professor de Ética e ofereciam-se cem dólares por mês. Pensei cá comigo que era preciso ser um mago da ética para não se deixar corromper por semelhante fortuna.”

 

 

A história se repete? Ou só se repete como penitência para quem é incapaz de escutá-la? Não há história muda. Por mais que a queimem, por mais que a rasguem, por mais que a mintam, a história humana se nega a calar a boca. O tempo que foi continua pulsando, vivo, dentro do tempo que é, ainda que o tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de lembrar não figura entre os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje mais do que nunca é necessário reivindicá-lo e pô-lo em prática: não para repetir o passado, mas para evitar que se repita; não para que os vivos sejamos ventríloquos dos mortos, mas para que sejamos capazes de falar com vozes não condenadas ao eco perpétuo da estupidez e da desgraça. Quando está realmente viva, a memória não contempla a história, mas convida a fazê-la. Mais do que nos museus, onde a pobre se entedia, a memória está no ar que respiramos; e ela, no ar, nos respira.

Esquecer o esquecimento: Dom Ramón Gómez de la Serna contou a história de alguém que possuía tão má memória que um dia se esqueceu de que tinha má memória e se lembrou de tudo. Recordar o passado, para nos livrarmos de suas maldições: não para atar os pés do tempo presente, mas para que o presente caminhe livre das armadilhas. Há poucos séculos, dizia-se recordar para significar despertar e a palavra ainda é usada nesse sentido em algumas regiões da América Latina. A memória desperta é contraditória, como nós. Nunca está quieta e, conosco, vai mudando. Não nasceu para âncora. Tem, antes, a vocação da catapulta. Quer ser ponto de partida, não de chegada. Não renega a nostalgia, mas prefere a esperança, seu perigo, sua intempérie. Acreditavam os gregos que a memória era irmã do tempo e do mar, e não se enganavam.

A impunidade é filha da má memória.”

 

 

As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto ambicionou e não fez. Qualquer pessoa entende, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quarto de século, os gastos de publicidade duplicaram no mundo. Graças a eles, as crianças pobres tomam cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite, e o tempo do ócio vai tornando-se tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor, e o televisor tem a palavra. Comprado a prazo, esse animalzinho prova a vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Assim pobres e ricos ficam conhecendo as virtudes dos automóveis último tipo, e pobres e ricos ficam sabendo das vantajosas taxas de juros que tal ou qual banco pode oferecer.

Pobre é aquele que não tem ninguém, diz e repete uma velha que fala sozinha pelas ruas de São Paulo. Cada vez mais se multiplicam as pessoas e cada vez estão mais sozinhas. Os sozinhos multiplicados formam multidões que se apertam e se empurram nas grandes cidades:

Por favor, quer tirar o cotovelo do meu olho?

Os experts sabem transformar mercadorias em passes de mágica contra a solidão. As coisas têm atributos humanos, acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o carro é o amigo que nunca falha. A cultura de consumo fez da sociedade o mais lucrativo dos mercados. Os dolorosos vazios do peito são preenchidos com coisas ou com o sonho de possuí-las. E as coisas não se limitam a abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te escolhem e te salvam do anonimato multitudinário. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou raramente o faz. Isso pouco importa. Sua função primordial é compensar frustrações e alimentar fantasias. Comprando esta loção de pós-barba, em quem você quer se transformar?”

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