Editora: L&PM Pocket
ISBN: 978-85-254-1942-2
Tradução: Sergio Faraco
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 384
Gravuras: Guadalupe Posada
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Sinopse: Ver Parte
I
“Já nos tempos da conquista, era tido como certo que os índios estavam
condenados à servidão nesta vida e ao inferno na outra. Sobravam evidências do
reinado de Satã na América. Entre as provas mais irrefutáveis estava o fato de
que o homossexualismo era praticado livremente nas costas do Mar do Caribe e
outras regiões. Desde 1446, por ordem do rei Afonso V, os homossexuais iam para
a fogueira: “Mandamos e pomos por lei geral que todo homem que tal pecado
fizer, por qualquer guisa que possa ser, seja queimado e feito pelo fogo em pó,
por tal que nunca de seu corpo e sepultura possa ser ouvida memória”. Em 1497,
também Isabel e Fernando, os reis católicos da Espanha, mandaram que fossem
queimados vivos os culpados do nefando crime da sodomia, que até então
morriam a pedradas ou pendurados na forca. Os guerreiros que conquistaram a
América deram algumas contribuições dignas de consideração à tecnologia das
mortes exemplares. Em 1513, dois dias antes daquilo que chamam descobrimento
do Oceano Pacífico, o capitão Vasco Núñez de Balboa aperreou
cinquenta índios que ofendiam a Deus praticando abominável pecado contra
natura. Em vez de queimá-los vivos, lançou-os a cães viciados em devorar
carne humana. O espetáculo teve lugar no Panamá, à luz das fogueiras. O cão de
Balboa, Leoncico, que recebia soldo de alferes, destacou-se entre os
demais com sua mestria na arte de destripar.
Quase
cinco séculos depois, em maio de 1997, na pequena cidade brasileira de São
Gonçalo do Amarante, um homem matou quinze pessoas e se suicidou com um tiro no
peito, porque na cidade andavam comentando que ele era homossexual. A ordem que
impera no mundo desde a conquista da América não teve jamais a intenção de
socializar os bens terrenos, que Deus nos livre e guarde, mas, em troca,
dedicou-se fervorosamente a universalizar as mais desprezíveis fobias da
tradição bíblica.
Em
nosso tempo, o movimento gay ganhou amplos espaços de liberdade e
respeito, sobretudo nos países do norte do mundo, mas ainda perduram muitas
teias de aranha para sujar nossos olhos. Ainda há muita gente que vê no
homossexualismo uma culpa sem expiação, um estigma indelével e contagioso, ou
um convite à perdição que tenta os inocentes: os pecadores, doentes ou
delinquentes dependendo de quem os julga, constituem, em qualquer caso, um
perigo público. Numerosos homossexuais foram e continuam sendo vítimas dos grupos
de limpeza social que operam na Colômbia e dos esquadrões da morte no
Brasil, ou de qualquer dos tantos energúmenos de uniforme policial ou traje civil
que, no mundo inteiro, exorcizam seus demônios espancando o próximo ou
peneirando-o a punhaladas ou balaços. Segundo o antropólogo Luiz Mott, do Grupo
Gay da Bahia, não menos do que 1800 homossexuais foram assassinados no Brasil
nos últimos quinze anos. “Eles se matam entre si”, dizem as fontes oficiosas da
polícia, “isso é coisa de bicha”. Que vem a ser exatamente a mesma
explicação que amiúde se escuta sobre as guerras da África, “isso é coisa de
negro”, ou sobre as matanças de indígenas na América, “isso é coisa de índio”.
“Isso
é coisa de mulher”, diz-se também. O racismo e o machismo bebem nas mesmas
fontes e cospem palavras parecidas. Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni, o texto
fundador do direito penal é El martillo de las brujas, um manual
da Inquisição escrito contra a metade da humanidade e publicado em 1546. Os
inquisidores dedicaram todo o manual, da primeira à última página, à
justificação do castigo da mulher e à demonstração de sua inferioridade
biológica. E já haviam sido as mulheres longamente maltratadas na Bíblia e na
mitologia grega, desde os tempos em que a tolice de Eva fez com que Deus nos
expulsasse do Paraíso e a imprudência de Pandora abriu a caixa que encheu o
mundo de desgraças. “A cabeça da mulher é o homem”, explicava São Paulo aos
coríntios, e dezenove séculos depois Gustave Le Bon, um dos fundadores da
psicologia social, pôde concluir que uma mulher inteligente é algo tão raro
quanto um gorila de duas cabeças. Charles Darwin reconhecia algumas virtudes
femininas, como a intuição, mas eram “virtudes características das raças
inferiores”.”
“Pontos
de vista/6
Se Eva tivesse escrito o Gênesis, como seria
a primeira noite de amor do gênero humano?
Eva teria começado por esclarecer que não
nasceu de nenhuma costela, não conheceu qualquer serpente, não ofereceu maçã a
ninguém e tampouco Deus chegou a lhe dizer “parirás com dor e teu marido te
dominará”. E que, enfim, todas essas histórias são mentiras descaradas que Adão
contou aos jornalistas.”
“Como também ocorre com os índios e os negros, a mulher é inferior, mas
ameaça. “É preferível a maldade do homem à bondade da mulher”, advertia o
Eclesiastes (42,14). E Ulisses sabia muito bem que precisava prevenir-se do
canto das sereias, que cativam e desgraçam os homens. Não há tradição cultural
que não justifique o monopólio masculino das armas e da palavra, nem há
tradição popular que não perpetue o desprestígio da mulher ou que não a aponte
como um perigo. Ensinam os provérbios, transmitidos por herança, que a mulher e
a mentira nasceram no mesmo dia e que palavra de mulher não vale um alfinete, e
na mitologia rural latino-americana são quase sempre fantasmas de mulheres, as
temíveis almas penadas, que por vingança assustam os viajantes nos
caminhos. No sono e na vigília, manifesta-se o pânico masculino diante da
possível invasão dos territórios proibidos do prazer e do poder. E assim sempre
foi pelos séculos dos séculos.
Por
algo foram as mulheres vítimas da caça às bruxas e não só nos tempos da
Inquisição. Endemoniadas: espasmos e uivos, talvez orgasmos e, para agravar o
escândalo, orgasmos múltiplos. Só a possessão de Satã podia explicar tanto fogo
proibido, que com o fogo era castigado. Mandava Deus que fossem queimadas vivas
as pecadoras que ardiam. A inveja e o pânico diante do prazer feminino não
tinham nada de novo. Um dos mitos mais antigos e universais, comum a muitas
culturas de muitas épocas e de diversos lugares, é o mito da vulva dentada, o
sexo da fêmea como uma boca cheia de dentes, insaciável boca de piranha que se
alimenta da carne dos machos. E neste mundo de hoje, neste fim de século, há
120 milhões de mulheres mutiladas do clitóris.
Não
há mulher que não seja suspeita de má conduta. Segundo os boleros, são todas
ingratas; segundo os tangos, são todas putas (menos mamãe). Nos países do sul
do mundo, uma de cada três mulheres casadas recebe pancadas como parte da
rotina conjugal, o castigo pelo que fez e pelo que poderia fazer:
– Estamos
dormindo – diz uma operária do bairro Casavalle, de Montevidéu. – Um
princípe te beija e te faz dormir. Quando despertas, o príncipe te baixa o pau.
E
outra:
– Eu
tenho o mesmo medo que minha mãe tinha, e minha mãe tinha o mesmo medo que
minha avó tinha.
Confirmação
do direito de propriedade: o macho proprietário garante a pancadas seu direito
de propriedade sobre a fêmea, assim como macho e fêmea garantem a pancadas seu
direito de propriedade sobre os filhos.
E
os estupros, acaso não são ritos que, pela violência, celebram esse direito? O
estuprador não procura, não encontra prazer: precisa submeter. O estupro grava
a fogo uma marca de propriedade na anca da vítima e é a expressão mais brutal
do caráter fálico do poder, desde sempre manifestado através da flecha, da
espada, do fuzil, do canhão, do míssil e de outras ereções. Nos Estados Unidos,
uma mulher é estuprada a cada seis minutos. No México, a cada nove minutos. Diz
uma mulher mexicana:
– Não
há diferença entre ser estuprada e ser atropelada por um caminhão, exceto que
os homens, depois, perguntam se você gostou.
As
estatísticas só registram os estupros denunciados, que na América Latina são em
muito menor número do que os ocorridos. Em sua maioria, as mulheres estupradas
calam por medo. Muitas meninas, estupradas em suas casas, vão parar na rua:
fazem a vida, corpos baratos, e algumas, como os meninos de rua, têm sua casa
no asfalto. Diz Lélia, quatorze anos, criada ao deus-dará nas ruas do Rio de
Janeiro:
– Todos
roubam. Eu roubo e me roubam.
Quando
Lélia trabalha, vendendo seu corpo, pagam-lhe quase nada ou pagam batendo nela.
E, quando rouba, os policiais roubam dela o que ela rouba e ainda roubam seu
corpo.
Diz
Angélica, dezesseis anos, perdida nas ruas da cidade do México:
– Eu
disse à minha mãe que meu irmão tinha abusado de mim e ela me expulsou de casa.
Agora vivo com um guri e estou grávida. Ele disse que, se for menino, vai me
apoiar. Se for menina, não diz nada.
“No
mundo de hoje, nascer menina é um risco”, diz a diretora da UNICEF. E denuncia
a violência e a discriminação que a mulher sofre, desde a infância, a despeito
das conquistas dos movimentos feministas no mundo todo. Em 1995, em Pequim, a
Conferência Internacional sobre os Direitos das Mulheres revelou que, no mundo
atual, elas ganham a terça parte do que ganham os homens por trabalho igual. De
cada dez pobres, sete são mulheres. De cada cem mulheres, apenas uma é
proprietária de algo. Voa torta a humanidade, pássaro de uma asa só. Nos
parlamentos, em média, há uma mulher para cada dez legisladores, e em alguns
parlamentos não há nenhuma. Se reconhece à mulher certa utilidade em casa, na
fábrica ou no escritório e até se admite que possa ser imprescindível na cama
ou na cozinha, mas o espaço público é virtualmente monopolizado pelos machos,
nascidos para as lidas do poder e da guerra. Carol Bellamy, que encabeça a
agência UNICEF das Nações Unidas, é um caso raro. As Nações Unidas pregam o
direito à igualdade, mas não o praticam: no mais alto nível, onde são tomadas
as decisões, os homens ocupam oito de cada dez cargos no máximo organismo
internacional.”
“A justiça é como as serpentes: só morde os
descalços. (Monsenhor Óscar Arnulfo Romero, Arcebispo de San Salvador,
assassinado em 1980)”
“O
medo global
Os
que trabalham têm medo de perder o trabalho.
Os
que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho.
Quem
não tem medo da fome, tem medo da comida.
Os
motoristas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de ser atropelados.
A
democracia tem medo de lembrar e a linguagem tem medo de dizer.
Os
civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas
têm medo da falta de guerras.
É o
tempo do medo.
Medo
da mulher da violência do homem e medo do homem da mulher sem medo.
Medo
dos ladrões, medo da polícia.
Medo
da porta sem fechaduras, do tempo sem relógios, da criança sem televisão, medo
da noite sem comprimidos para dormir e medo do dia sem comprimidos para
despertar.
Medo
da multidão, medo da solidão, medo do que foi e do que pode ser, medo de
morrer, medo de viver.”
“América
Latina, paisagens típicas
Os
Estados deixam de ser empresários e tornam-se policiais.
Os
presidentes se transformam em gerentes de empresas estrangeiras.
Os
ministros da Economia são bons tradutores.
Os
industriais se transformam em importadores.
Os
mais dependem cada vez mais das sobras dos menos.
Os
trabalhadores perdem seus trabalhos.
Os
agricultores perdem suas terrinhas.
As
crianças perdem sua infância.
Os
jovens perdem a vontade de acreditar.
Os
velhos perdem sua aposentadoria.
“A
vida é uma loteria”, opinam os que ganham.”
“Quem são os carcereiros, quem são os cativos? Poder-se-ia dizer que, de
algum modo, todos nós estamos presos. Os que estão dentro das prisões e os que
estamos fora delas. São livres, acaso, aqueles que são prisioneiros da
necessidade, obrigados a viver para trabalhar porque não podem dar-se o luxo de
trabalhar para viver? E os prisioneiros do desespero, que não têm trabalho nem
o terão, condenados a viver roubando ou fazendo milagres? E os prisioneiros do
medo, acaso somos livres? E acaso não somos todos prisioneiros do medo, os de
cima, os de baixo e também os do meio? Em sociedades obrigadas ao salve-se quem
puder, somos prisioneiros os vigias e os vigiados, os eleitos e os párias.
(...)
Já
vi grades até em alguns casebres de lata e tábua nos subúrbios das cidades,
pobres se defendendo de outros pobres, uns e outros tão pobres quanto um rato
de igreja. O desenvolvimento urbano, metástase da desigualdade: crescem os
subúrbios, e nos subúrbios há choças e jardins. Os subúrbios ricos geralmente
se situam não muito longe dos arrabaldes que os abastecem de criadas,
jardineiros e guardas. Nos espaços do desemparo, espreita a revolta dos que só
comem de vez em quando. Nos espaços do privilégio, os ricos vivem em prisão
domiciliar.”
“Os cativos do medo não sabem que estão presos. Mas os prisioneiros do
sistema penal, que levam um número no peito, perderam a liberdade e perderam o
direito de esquecer que a perderam. Os presídios mais modernos, últimos
guinchos da moda, tendem a ser, todos eles, presídios de segurança máxima. Já
não há uma proposta de reintegrar o delinquente à sociedade, recuperar o
extraviado, como se dizia antigamente. A proposta, agora, é isolá-lo e já
ninguém se dá o trabalho de mentir sermões. A justiça tapa os olhos para não
ver de onde vem o que delinquiu, nem por que delinquiu, o que seria o primeiro
passo de sua possível reabilitação. O presídio-modelo do fim do século não tem
o menor propósito de regeneração e nem sequer de castigo. A sociedade enjaula o
perigo público e joga fora a chave.”
“Muitos dos grandes negócios promovem o crime
e do crime vivem. Nunca houve tanta concentração de recursos econômicos e conhecimentos científicos e tecnológicos
dedicados à produção da morte. Os países que mais vendem armas no mundo são os
mesmos que têm a seu cargo a paz mundial. Felizmente para eles, se a ameaça à
paz está diminuindo e já se afastam suas nuvens negras, o mercado da guerra se
recupera e oferece promissoras perspectivas de carneações rentáveis. As
fábricas de armas trabalham tanto quanto as fábricas que fazem inimigos na
medida de suas necessidades.”
“Pontos de
vista/8
Até
pouco tempo atrás, os historiadores da democracia ateniense só de passagem
mencionavam os escravos e as mulheres. Os escravos eram a maioria na população
da Grécia e as mulheres eram a metade. Como seria a democracia ateniense,
considerada do ponto de vista dos escravos e das mulheres?
A
Declaração de Independência dos Estados Unidos proclamou, em 1776, que “todos
os homens nascem iguais”. O que isso significava do ponto de vista dos escravos
negros, meio milhão de escravos que continuaram sendo escravos depois da
declaração? E as mulheres, que continuaram sem ter nenhum direito, nasciam
iguais a quem?
Do
ponto de vista dos Estados Unidos, é justo que os nomes dos norte-americanos
tombados no Vietnã estejam gravados num imenso muro de mármore, em Washington.
Do ponto de vista dos vietnamitas que a invasão norte-americana matou, faltam
ali sessenta muros.”
“Tampouco
surpreende o infeliz balanço mundial da guerra e da paz. Por cada dólar que as
Nações Unidas gastam em suas missões de paz, o mundo emprega dois mil dólares
em gastos de guerra, destinados ao sacrifício de seres humanos em caçadas onde
o caçador e a presa são da mesma espécie e onde tem mais êxito quem mais
pessoas mata. Como dizia dom Theodore Roosevelt, “nenhum triunfo pacífico é tão
grandioso quanto o supremo triunfo da guerra”. E em 1906, deram-lhe o Prêmio
Nobel da Paz.”
“Boa
parte da opinião pública norte-americana padece de uma assombrosa ignorância a
respeito de tudo o que ocorre fora de seu país, e teme ou despreza o que
ignora. No país que mais desenvolveu a tecnologia da informação, os noticiários
da televisão dão pouco ou nenhum espaço às novidades do mundo, exceto para
confirmar que os estrangeiros têm tendência ao terrorismo e à ingratidão. Cada
ato de rebelião ou explosão de violência, ocorra onde ocorrer, torna-se uma
nova prova de que a conspiração internacional segue sua marcha, alimentada pelo
ódio e pela inveja. Pouco importa que a Guerra Fria tenha terminado, pois o
demônio dispõe de um amplo guarda-roupa e não se veste apenas de vermelho.”
“Não
é preciso ser um expert em politicologia para perceber que, em regra, os
discursos só alcançam seu verdadeiro sentido quando entendidos ao contrário. A
regra tem poucas exceções: na planície, os políticos prometem mudanças, no
governo mudam... de opinião. Alguns ficam redondos de tanto dar voltas. Dá
torcicolo vê-los girar, da esquerda para a direita, com tanta rapidez. Primeiro
a educação e a saúde!, eles clamam, como clama o capitão do navio: Primeiro
as mulheres e as crianças!, e a educação e a saúde são as primeiras que se
afogam. Os discursos elogiam o trabalho, enquanto os fatos injuriam os
trabalhadores. Os políticos que juram, com a mão no peito, que a soberania
nacional não tem preço, costumam ser os mesmos que depois a oferecem; e os que
anunciam que expulsarão os ladrões, costumam ser o mesmos que depois roubam até
as ferraduras de um cavalo a galope.”
“O
Fundo Monetário se chama Internacional, como o Banco se chama Mundial, mas
estes irmãos gêmeos vivem, recebem e decidem em Washington; e a numerosa
tecnocracia jamais cospe no prato em que come. Ainda que os Estados Unidos
sejam o país com mais dívidas no mundo, ninguém lhe dita do exterior a ordem de
leiloar a Casa Branca, e mesmo não passaria pela cabeça de nenhum funcionário
internacional o cometimento de tal insolência. Em contrapartida, os países do
sul do mundo, que entregam 250 mil dólares por minuto por conta do
serviço da dívida, são países cativos, e os credores lhes esquartejam a
soberania como os patrícios romanos, em outros tempos imperiais, esquartejavam
seus devedores plebeus. Por muito que paguem esses países, não há maneira de
mitigar a sede do grande balde furado que é a dívida externa. Quanto mais
pagam, mais devem, e quanto mais devem, mais obrigados ficam a obedecer a ordem
de desmantelar o estado, hipotecar a independência política e alienar a
economia nacional. Viveu pagando e morreu devendo, podia constar das
lápides.”
“Jorge
Bermúdez tem três filhos e três empregos. Ao raiar do dia sai a recorrer as
ruas da cidade de Quito num velho Chevrolet que faz as vezes de táxi. Na
primeira hora da tarde passa a dar aulas de inglês, há dezesseis anos ele é
professor num colégio público, onde ganha 150 dólares mensais. Quando termina
sua jornada no colégio público, dá aulas num colégio particular até a
meia-noite. Jorge Bermúdez jamais tem um dia livre. Há algum tempo sofre de
ardências no estômago e anda de mau humor e com pouca paciência. Um psicólogo
lhe explicou que eram mal-estares psicossomáticos e transtornos de conduta
derivados do excesso de trabalho, e recomendou que abandonasse dois de seus
três empregos para restabelecer sua saúde física e mental. O psicólogo não o
orientou como fazer para chegar ao fim do mês.
No
mundo ao avesso, a educação não compensa. O ensino público latino-americano é
um dos setores mais castigados pela nova situação do trabalho. Os professores
recebem elogios, são homenageados com discursos afetados que exaltam o trabalho
abnegado dos apóstolos do magistério que, com suas mãos amorosas, moldam a
argila das novas gerações; e, além disso, recebem salários que só se enxergam
com lupa. O Banco Mundial chama a educação de “um investimento em capital
humano”, o que, de seu ponto de vista, é um elogio, mas, num informe recente,
propõe como possibilidade reduzir os salários do professorado nos países
onde “a oferta de professores” permite manter o nível docente.
Reduzir
os salários? Que salários? “Pobres, mas docentes”, diz-se no Uruguai. E também:
“Tenho mais fome do que um professor”. Os professores universitários estão nas
mesmas condições. Em meados de 1995, li nos jornais o chamamento para um
concurso na Faculdade de Psicologia de Montevidéu. Precisava-se de um professor
de Ética e ofereciam-se cem dólares por mês. Pensei cá comigo que era preciso
ser um mago da ética para não se deixar corromper por semelhante fortuna.”
“A história se repete? Ou só se repete como penitência para quem é
incapaz de escutá-la? Não há história muda. Por mais que a queimem, por mais
que a rasguem, por mais que a mintam, a história humana se nega a calar a boca.
O tempo que foi continua pulsando, vivo, dentro do tempo que é, ainda que o
tempo que é não o queira ou não o saiba. O direito de lembrar não figura entre
os direitos humanos consagrados pelas Nações Unidas, mas hoje mais do que nunca
é necessário reivindicá-lo e pô-lo em prática: não para repetir o passado, mas
para evitar que se repita; não para que os vivos sejamos ventríloquos dos
mortos, mas para que sejamos capazes de falar com vozes não condenadas ao eco
perpétuo da estupidez e da desgraça. Quando está realmente viva, a memória não
contempla a história, mas convida a fazê-la. Mais do que nos museus, onde a
pobre se entedia, a memória está no ar que respiramos; e ela, no ar, nos
respira.
Esquecer
o esquecimento: Dom Ramón Gómez de la Serna contou a história de alguém que
possuía tão má memória que um dia se esqueceu de que tinha má memória e se
lembrou de tudo. Recordar o passado, para nos livrarmos de suas maldições: não
para atar os pés do tempo presente, mas para que o presente caminhe livre das
armadilhas. Há poucos séculos, dizia-se recordar para significar despertar
e a palavra ainda é usada nesse sentido em algumas regiões da América Latina. A
memória desperta é contraditória, como nós. Nunca está quieta e, conosco, vai
mudando. Não nasceu para âncora. Tem, antes, a vocação da catapulta. Quer ser
ponto de partida, não de chegada. Não renega a nostalgia, mas prefere a esperança,
seu perigo, sua intempérie. Acreditavam os gregos que a memória era irmã do
tempo e do mar, e não se enganavam.
A
impunidade é filha da má memória.”
“As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a
publicidade conseguiu aquilo que o esperanto ambicionou e não fez. Qualquer
pessoa entende, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No
último quarto de século, os gastos de publicidade duplicaram no mundo. Graças a
eles, as crianças pobres tomam cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite,
e o tempo do ócio vai tornando-se tempo de consumo obrigatório. Tempo livre,
tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor, e o
televisor tem a palavra. Comprado a prazo, esse animalzinho prova a vocação
democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Assim pobres
e ricos ficam conhecendo as virtudes dos automóveis último tipo, e pobres e
ricos ficam sabendo das vantajosas taxas de juros que tal ou qual banco pode
oferecer.
Pobre
é aquele que não tem ninguém, diz e repete uma velha que fala sozinha pelas ruas de São Paulo. Cada
vez mais se multiplicam as pessoas e cada vez estão mais sozinhas. Os sozinhos
multiplicados formam multidões que se apertam e se empurram nas grandes
cidades:
– Por
favor, quer tirar o cotovelo do meu olho?
Os experts
sabem transformar mercadorias em passes de mágica contra a solidão. As coisas
têm atributos humanos, acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume te
beija e o carro é o amigo que nunca falha. A cultura de consumo fez da
sociedade o mais lucrativo dos mercados. Os dolorosos vazios do peito são
preenchidos com coisas ou com o sonho de possuí-las. E as coisas não se limitam
a abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos
para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem portas
proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te escolhem e te salvam do
anonimato multitudinário. A publicidade não informa sobre o produto que vende,
ou raramente o faz. Isso pouco importa. Sua função primordial é compensar
frustrações e alimentar fantasias. Comprando esta loção de pós-barba, em quem
você quer se transformar?”
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