Editora: Companhia de Bolso
ISBN: 978-85-3591-030
Tradução: Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioratti
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 466
Sinopse: Ensaio
histórico e literário, este livro de Marshall Berman é uma aventura intelectual
clara, concisa e brilhante. Visão dos tempos modernos, investigação do espírito
da sociedade e da cultura dos séculos XIX e XX. Berman não hesita diante do
desafio de lidar com as mais diversas áreas do saber: crítica literária,
ciência econômica e política, arquitetura, urbanismo e estética. Tudo que é sólido desmancha no ar
constitui uma instigante sucessão de leituras originais e reveladoras de
autores e suas épocas, a começar pelo Fausto
de Goethe, passando pelo Manifesto de Marx e
Engels, pelos poemas em prosa de Baudelaire, pela ficção de Dostoiévski, até as
vanguardas artísticas contemporâneas. Livre de dogmatismo, seu trabalho é o de
um humanista apaixonado, um verdadeiro Edmund Wilson do nosso tempo. A edição
de bolso inclui prefácio inédito no Brasil.
“Existe
um tipo de experiência vital — experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos
outros, das possibilidades e perigos da vida — que é compartilhada por homens e
mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como
“modernidade”. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura,
poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em
redor — mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que
sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas
as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e
ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana.
Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a
todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e
contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um
universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”.
O turbilhão da vida moderna tem
sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas,
com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele; a
industrialização da produção, que transforma conhecimento científico em tecnologia,
cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de
vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal
explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat
ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas;
rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação
de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo
pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez
mais poderosos, burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com
obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais de massa e de nações,
desafiando seus governantes políticos ou econômicos, lutando por obter algum
controle sobre suas vidas; enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e
instituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em
permanente expansão. No século XX, os processos sociais que dão vida a esse
turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm a chamar-se
“modernização”.”
“Notável e peculiar na voz que Marx
e Nietzsche
compartilham não é só o seu ritmo afogueado, sua vibrante energia, sua riqueza
imaginativa, mas também sua rápida e brusca mudança de tom e inflexão, sua
prontidão em voltar-se contra si mesma, questionar e negar tudo o que foi dito,
transformar a si mesma em um largo espectro de vozes harmônicas ou dissonantes
e distender-se para além de sua capacidade na direção de um espectro sempre
cada vez mais amplo, na tentativa de expressar e agarrar um mundo onde tudo
está impregnado de seu contrário, um mundo onde “tudo o que é sólido desmancha
no ar”. Essa voz ressoa ao mesmo tempo como autodescoberta e autotripúdio, como
auto-satisfação e auto-incerteza. É uma voz que conhece a dor e o terror, mas
acredita na sua capacidade de ser bem-sucedida. Graves perigos estão em toda
parte e podem eclodir a qualquer momento, porém nem o ferimento mais profundo
pode deter o fluxo e refluxo de sua energia. Irônica e contraditória,
polifônica e dialética, essa voz denuncia a vida moderna em nome dos valores
que a própria modernidade criou, na esperança — não raro desesperançada — de
que as modernidades do amanhã e do dia depois de amanhã possam curar os
ferimentos que afligem o homem e a mulher modernos de hoje. Todos os grandes
modernistas do século XIX — espíritos heterogêneos como Marx e Kierkegaard,
Whitman e Ibsen, Baudelaire, Melvil e, Carlyle, Stirner, Rimbaud, Strindberg,
Dostoievski e muitos mais — falam nesse ritmo e nesse diapasão.”
“Ao longo dos anos 1970, à medida que se intensificou o debate em torno da
conveniência e dos limites do crescimento econômico e das melhores formas de
produzir e conservar energia, ecologistas e defensores do anticrescimento
pintaram Fausto como o típico “Homem-Progresso”, que faria o mundo em pedaços,
em nome da expansão insaciável, sem perguntar ou sem se preocupar com o que o
crescimento ilimitado faria à natureza ou ao homem. Desnecessário dizer que
isso é uma absurda distorção da história de Fausto, reduzindo a tragédia a
melodrama. (No entanto, assemelha-se ao teatrinho de marionetes fáusticos,
visto por Goethe na infância.) O que me parece mais importante é o vácuo
intelectual que emerge quando Fausto é deslocado do seu cenário original. Os
vários defensores da energia extraída do sol, do vento ou da água, das pequenas
fontes de energia, descentralizadas, das “tecnologias intermediárias”, da
“equilibrada economia estatal”, são todos virtualmente inimigos do planejamento
em larga escala, da pesquisa científica, da inovação tecnológica, da
organização complexa.26 Contudo, para que muitos de seus planos e visões sejam de fato adotados por
um número significativo de pessoas, seria preciso ocorrer a mais radical
redistribuição de poder econômico e político. E, ainda, isso — que obrigaria à
dissolução da General Motors, da Exxon, da Con Edison e seus filiados e à
redistribuição de todos os seus recursos pelas pessoas — representaria apenas o
prelúdio de uma ampla e desconcertantemente complexa reorganização de toda a
rede que compõe a vida diária hodierna. O fato é que não há nada de bizarro nos
argumentos em torno do anticrescimento e das fontes alternativas de energia, em
si, que, na verdade, estão repletos de ideias engenhosas e imaginativas. O
bizarro é que, dada a magnitude das tarefas históricas antecedentes, eles
deviam exortar-nos, nas palavras de E. F. Schumacher, a “pensar pequeno”. A
paradoxal realidade que escapa à maioria desses escritores é que na sociedade
moderna só o mais extravagante e sistemático “pensar grande” é capaz de abrir
caminho ao “pensar pequeno”.27 Portanto,
os defensores da contenção energética, do crescimento limitado e da
descentralização deveriam, em vez de abominá-lo, adotar Fausto como sua palavra
de ordem.”
27 Esta
consciência pode ser encontrada de forma mais clara nos trabalhos de Barry
Commoner, The closing circle, 1971, The poverty of power, 1976, e mais
recentemente The politics of energy,
1979 (publ. pela Knopf).
“No entanto, quanto mais perto chegamos do que Marx de fato disse, menos
sentido faz esse dualismo. Tomemos uma imagem como esta: “Tudo que é sólido
desmancha no ar”. A ambição cósmica e a grandeza visionária da imagem, sua
força altamente concentrada e dramática, seus subtons vagamente apocalípticos,
a ambiguidade de seu ponto de vista — o calor que destrói é também energia
superabundante, um transbordamento de vida —, todas essas qualidades são em
princípio traços característicos da imaginação modernista. Representam com
exatidão a espécie de coisas que estamos preparados para encontrar em Rimbaud
ou Nietzsche, Rilke ou Yeats — “As coisas se desintegram, o centro nada retém”.
De fato, essa imagem vem de Marx; não de qualquer esotérico manuscrito juvenil,
por muito tempo inédito, mas direto do Manifesto
Comunista. Essa imagem coroa a descrição que Marx faz da “moderna sociedade
burguesa”. As afinidades entre Marx e os modernistas tornam-se ainda mais
claras quando observamos a passagem inteira de onde a imagem foi extraída:
“Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens
são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais
condições de vida e sua relação com outros homens”. A
segunda cláusula, de acordo com a qual se destrói tudo o que é sagrado, é mais
complexa e interessante do que a convencional assertiva materialista do século XIX
segundo a qual Deus não existe. Marx se move na dimensão do tempo, tentando
evocar o próprio curso de um drama e um trauma históricos. Ele diz que a aura
de santidade subitamente se ausenta e que não podemos compreender a nós mesmos
no presente sem nos confrontarmos com essa ausência. A cláusula final — “e os
homens são finalmente forçados a enfrentar […]” — não apenas descreve a
confrontação com uma realidade perturbadora, mas vivifica-a, forçando-a sobre o
leitor — e, de fato, sobre o escritor também, já que “homens”, die Menschen, como diz Marx, estão todos
aí juntos, ao mesmo tempo agentes e pacientes do processo diluidor que
desmancha no ar tudo que é sólido.”
“A primeira seção do Manifesto, “Burgueses e Proletários”, apresenta uma visão geral do que hoje é
chamado o processo de modernização e descreve o cenário daquilo que Marx
acredita que venha a ser o seu clímax revolucionário. Aqui Marx toca no sólido
âmago institucional da modernidade. Antes de tudo, temos aí a emergência de um
mercado mundial. À medida que se expande, absorve e destrói todos os mercados
locais e regionais que toca. Produção e consumo — e necessidades humanas —
tornam-se cada vez mais internacionais e cosmopolitas. O âmbito dos desejos e
reivindicações humanas se amplia muito além da capacidade das indústrias
locais, que então entram em colapso. A escala de comunicações se torna mundial,
o que faz emergir uma mass media tecnologicamente
sofisticada. O capital se concentra cada vez mais nas mãos de poucos.
Camponeses e artesãos independentes não podem competir com a produção de massa
capitalista e são forçados a abandonar suas terras e fechar seus
estabelecimentos. A produção se centraliza de maneira progressiva e se racionaliza
em fábricas altamente automatizadas. (No campo acontece o mesmo: fazendas se
transformam em “fábricas agrícolas” e os camponeses que não abandonam o campo
se transformam em proletários campesinos.) Um vasto número de migrantes pobres
são despejados nas cidades, que crescem como num passe de mágica —
catastroficamente — do dia para a noite. Para que essas grandes mudanças
ocorram com relativa uniformidade, alguma centralização legal, fiscal e
administrativa precisa acontecer; e acontece onde quer que chegue o
capitalismo. Estados nacionais despontam e acumulam grande poder, embora esse
poder seja solapado de forma contínua pelos interesses internacionais do
capital. Enquanto isso, trabalhadores da indústria despertam aos poucos para
uma espécie de consciência de classe e começam a agir contra a aguda miséria e
a opressão crônica em que vivem. Enquanto lemos isso, sentimo-nos pisando
terreno familiar; tais processos continuam a ocorrer à nossa volta, e um século
de marxismo ajudou-nos a fixar uma linguagem segundo a qual isso faz sentido.
Continuando
a ler, porém, se o fizermos com plena atenção, algo estranho começará a
acontecer. A prosa de Marx subitamente se torna luminosa, incandescente;
imagens brilhantes se sucedem e se desdobram em outras; somos arrastados num
ímpeto fogoso, numa intensidade ofegante. Marx não está apenas descrevendo, mas
evocando e dramatizando o andamento desesperado e o ritmo frenético que o
capitalismo impõe a todas as facetas da vida moderna. Com isso, nos leva a
sentir que participamos da ação, lançados na corrente, arrastados, fora de
controle, ao mesmo tempo confundidos e ameaçados pela impetuosa precipitação.
Após algumas páginas disso, sentimo-nos excitados mas perplexos; sentimos que
as sólidas formações sociais à nossa volta se diluíram. No momento em que os
proletários fazem enfim sua aparição, o cenário mundial em que eles
supostamente desempenhariam seus papéis se desintegrou e se metamorfoseou em
algo irreconhecível, surreal, uma construção móvel que se agita e muda de forma
sob os pés dos atores. É como se o inato dinamismo da visão diluidora corresse
com ele e o carregasse — assim como aos trabalhadores e a nós próprios — para
muito além dos limites a princípio pretendidos, a ponto de seu script revolucionário precisar ser
inteiramente refeito.
Os
paradoxos no interior do Manifesto se mostram praticamente desde o início: especificamente, a partir do
momento em que Marx começa a descrever a burguesia. “A burguesia”, afirma ele,
“desempenhou um papel altamente revolucionário na história.” O que é
surpreendente nas páginas seguintes é que Marx parece empenhado não em enterrar
a burguesia, mas em exaltá--la. Ele compõe uma apaixonada, entusiasmada e quase
lírica celebração dos trabalhos, ideias e realizações da burguesia. Com efeito,
nessas páginas ele exalta a burguesia com um vigor e uma profundidade que os
próprios burgueses não seriam capazes de expressar.
O que fizeram
os burgueses para merecer a exaltação de Marx? Antes de tudo, eles foram “os
primeiros a mostrar do que a atividade humana é capaz”. Marx não quer dizer que
eles tenham sido os primeiros a celebrar a ideia da vita activa, uma postura ativista diante do mundo. Isso tem sido um
tema central na cultura do Ocidente desde a Renascença; adquiriu novas
profundidades e ressonâncias no próprio século de Marx, na era do Romantismo e
da Revolução, de Napoleão, Byron e o Fausto
de Goethe. O próprio Marx desenvolverá o tema em novas direções,4 e este continuará evoluindo até o tempo presente. No
Manifesto, a ideia de Marx é que a
burguesia efetivamente realizou aquilo que poetas, artistas e intelectuais
modernos apenas sonharam, em termos de modernidade. Por isso, a burguesia
“realizou maravilhas que ultrapassam em muito as pirâmides do Egito, os
aquedutos romanos, as catedrais góticas”; “organizou expedições que fazem
esquecer todas as migrações e as cruzadas anteriores”. Sua vocação para a
atividade se expressa em primeiro lugar nos grandes projetos de construção
física — moinhos e fábricas, pontes e canais, ferrovias, todos os trabalhos
públicos que constituem a realização final de Fausto — que são as pirâmides e
as catedrais da Idade Moderna. Em seguida, há os enormes movimentos de pessoas —
para cidades, para fronteiras, para novas terras —, que a burguesia algumas
vezes inspirou, algumas vezes forçou com brutalidade, algumas vezes subsidiou e
sempre explorou em seu proveito. Marx, num parágrafo comovente e evocativo,
transmite o ritmo e o drama do ativismo burguês:
A burguesia, em seu reinado de apenas um século,
gerou um poder de produção mais massivo e colossal do que todas as gerações
anteriores reunidas. Submissão das forças da natureza ao homem, maquinário,
aplicação da química à agricultura e à indústria, navegação a vapor, ferrovias,
telegrafia elétrica, esvaziamento de continentes inteiros para o cultivo,
canalização de rios, populações inteiras expulsas de seu habitat — que século, antes, pôde sequer sonhar que esse poder
produtivo dormia no seio do trabalho social? (pp. 473-5)
Marx não
é o primeiro, nem o último, a celebrar os triunfos da moderna tecnologia
burguesa e sua organização social. Mas sua louvação é peculiar, tanto no que
enfatiza como no que omite. Embora se apresente como um materialista, Marx não
está primordialmente interessado nas coisas criadas pela burguesia. O que lhe
interessa são os processos, os poderes, as expressões de vida humana e energia:
homens no trabalho, movendo-se, cultivando, comunicando-se, organizando e
reorganizando a natureza e a si mesmos — os novos e interminavelmente renovados
meios de atividade que a burguesia traz à luz. Marx não se detém demasiado em
invenções e inovações particulares, por si mesmas (na tradição que vai de
Saint-Simon a McLuhan); o que o atrai são os processos ativos e generativos
através dos quais uma coisa conduz a outra, sonhos se metamorfoseiam em
projetos, fantasias em balanço, as ideias mais exóticas e extravagantes se
transformam continuamente em realidades (“populações inteiras expulsas de seu habitat”), ativando e nutrindo novas
formas de vida e ação.
A ironia
do ativismo burguês, como o vê Marx, está em que a burguesia é obrigada a se
fechar para as suas mais ricas possibilidades, que só chegam a ser vislumbradas
por aqueles que rompem com o seu poder. Apesar de todos os maravilhosos meios
de atividade desencadeados pela burguesia, a única atividade que de fato conta,
para seus membros, é fazer dinheiro, acumular capital, armazenar excedentes;
todos os seus empreendimentos são apenas meios para atingir esse fim, não têm
em si senão um interesse transitório e intermediário. Os poderes e processos
ativos, que tanto significam para Marx, não passam de meros incidentes e
subprodutos para os seus agentes. Não obstante, os burgueses se estabeleceram como
a primeira classe dominante cuja autoridade se baseia não no que seus
ancestrais foram, mas no que eles próprios efetivamente fazem. Eles produziram
novas imagens e paradigmas, vívidos, da vida boa como a vida de ação. Provaram
que é possível, através da ação organizada e concertada, realmente mudar o
mundo.
Ora,
para constrangimento dos burgueses, eles não podem olhar de frente as estradas
que abriram: as grandes e amplas perspectivas podem converter-se em abismos.
Eles só podem continuar a desempenhar seu papel revolucionário se seguirem
negando suas implicações últimas e sua profundidade. Mas pensadores radicais, e
trabalhadores, estão livres para vislumbrar aonde conduzem as estradas e seguir
por elas. Se a vida boa é a vida de ação, por que o escopo das atividades
humanas deve ser limitado àquelas que dão lucro? E por que deveria o homem
moderno, que viu do que é capaz a atividade humana, aceitar passivamente a
estrutura da sociedade, tal como se lhe oferece? Já que a ação organizada e
concertada pode mudar o mundo de tantas maneiras, por que não organizar,
trabalhar e lutar juntos para mudá-lo ainda mais? A “atividade revolucionária,
atividade prático-crítica” que destrona o domínio burguês será a expressão de
energias ativas e ativistas que a própria burguesia deixou em liberdade. Marx
começa por exaltar a burguesia, não por enterrá-la; mas aquilo mesmo que, nela,
é motivo de exaltação a levará, no fim, a ser enterrada.
A
segunda grande realização burguesa foi liberar a capacidade e o esforço humanos
para o desenvolvimento: para a mudança permanente, para a perpétua sublevação e
renovação de todos os modos de vida pessoal e social. Esse esforço, Marx o
mostra, está embutido no trabalho e nas necessidades diárias da economia
burguesa. Quem quer que esteja ao alcance dessa economia se vê sob a pressão de
uma incansável competição, seja do outro lado da rua, seja em qualquer parte do
mundo. Sob pressão, todos os burgueses, do mais humilde ao mais poderoso, são
forçados a inovar, simplesmente para manter seu negócio e a si mesmos à tona;
quem quer que deixe de mudar, de maneira ativa, tornar-se-á vítima passiva das
mudanças draconianamente impostas por aqueles que dominam o mercado. Isso
significa que a burguesia, tomada como um todo, “não pode subsistir sem
constantemente revolucionar os meios de produção”. Mas as forças que moldam e
conduzem a moderna economia não podem ser compartimentalizadas e separadas da
totalidade da vida. A intensa e incansável pressão no sentido de revolucionar a
produção tende a extrapolar, impondo transformações também naquilo que Marx
chama de “condições de produção” (ou “relações produtivas”), “e, com elas, em
todas as condições e relações sociais”.5
Nesse
ponto, impelido pelo desesperado dinamismo que está tentando apreender, Marx dá
um grande salto imaginativo:
O constante revolucionar da produção, a
ininterrupta perturbação de todas as relações sociais, a interminável incerteza
e agitação distinguem a época burguesa de todas as épocas anteriores. Todas as
relações fixas, imobilizadas, com sua aura de ideias e opiniões veneráveis, são
descartadas; todas as novas relações, recém-formadas, se tornam obsoletas antes
que se ossifiquem. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é
profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais
sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens.
Em
relação a isso tudo, como ficamos nós, os membros da “moderna sociedade
burguesa”? Ficamos numa situação estranha e paradoxal. Nossas vidas são controladas
por uma classe dominante de interesses bem definidos não só na mudança, mas na
crise e no caos. “Ininterrupta perturbação, interminável incerteza e agitação”,
em vez de subverter essa sociedade, resultam de fato no seu fortalecimento.
Catástrofes são transformadas em lucrativas oportunidades para o
redesenvolvimento e a renovação; a desintegração trabalha como força
mobilizadora e, portanto, integradora. O único espectro que realmente amedronta
a moderna classe dominante e que realmente põe em perigo o mundo criado por ela
à sua imagem é aquilo por que as elites tradicionais (e, por extensão, as
massas tradicionais) suspiravam: uma estabilidade sólida e prolongada. Neste
mundo, estabilidade significa tão somente entropia, morte lenta, uma vez que nosso
sentido de progresso e crescimento é o único meio de que dispomos para saber,
com certeza, que estamos vivos. Dizer que nossa sociedade está caindo aos
pedaços é apenas dizer que ela está viva e em forma.
Que
espécie de pessoas produz essa revolução permanente? Para que as pessoas
sobrevivam na sociedade moderna, qualquer que seja a sua classe, suas
personalidades necessitam assumir a fluidez e a forma aberta dessa sociedade.
Homens e mulheres modernos precisam aprender a aspirar à mudança: não apenas estar
aptos a mudanças em sua vida pessoal e social, mas ir efetivamente em busca das
mudanças, procurá-las de maneira ativa, levando-as adiante. Precisam aprender a
não lamentar com muita nostalgia as “relações fixas, imobilizadas” de um
passado real ou de fantasia, mas a se deliciar na mobilidade, a se empenhar na
renovação, a olhar sempre na direção de futuros desenvolvimentos em suas
condições de vida e em suas relações com outros seres humanos.
Marx
absorve esse ideal desenvolvimentista da cultura humanística alemã de sua
juventude, do pensamento de Goethe e Schiller e seus sucessores românticos.
Esse tema, e seus desdobramentos, ainda muito ativo em nossos dias — Erik
Erikson é seu mais famoso expoente vivo —, talvez seja a mais profunda e
duradoura contribuição germânica à cultura mundial. Marx é perfeitamente
cônscio de seus vínculos com esses escritores, a quem ele cita e faz alusões,
com frequência, bem como à sua tradição intelectual. Porém, ele compreendeu
aquilo que escapou à maioria de seus predecessores — a grande exceção é o velho
Goethe, autor da segunda parte do Fausto:
que o ideal humanístico do autodesenvolvimento se dá a partir da emergente
realidade do desenvolvimento econômico burguês. Por isso, por causa de todas as
suas invectivas contra a economia burguesa, Marx adota com entusiasmo a
estrutura de personalidade produzida por essa economia. O problema do
capitalismo é que, aqui como em qualquer parte, ele destrói as possibilidades
humanas por ele criadas. Estimula, ou melhor, força o autodesenvolvimento de
todos, mas as pessoas só podem desenvolver-se de maneira restrita e distorcida.
As disponibilidades, impulsos e talentos que o mercado pode aproveitar são
pressionados (quase sempre prematuramente) na direção do desenvolvimento e
sugados até a exaustão: tudo o mais, em nós, tudo o mais que não é atraente
para o mercado é reprimido de maneira drástica, ou se deteriora por falta de
uso, ou nunca tem uma chance real de se manifestar.6
A
solução irônica e feliz dessa contradição ocorrerá, diz Marx, quando “o
desenvolvimento da moderna indústria se separar do próprio solo, logo abaixo
dos seus pés, em que a burguesia produz e se apropria de produtos”. A vida e a
energia interiores do desenvolvimento burguês acabarão por alijar do processo a
classe que pioneiramente os trouxe à vida. Podemos ver esse movimento dialético
tanto na esfera do desenvolvimento pessoal como na do econômico: em um sistema
no qual todas as relações são voláteis, como podem as formas capitalistas de
vida — propriedade privada, trabalho assalariado, valor de troca, a insaciável
busca de lucro — subsistir isoladas? Quando os desejos e a sensibilidade das
pessoas, de todas as classes, se tornam abertos a tudo e insaciáveis,
sintonizados com a permanente sublevação em todas as esferas da vida, haverá
alguma coisa que consiga mantê-los fixos e imobilizados em seus papéis
burgueses? Quanto mais furiosamente a sociedade burguesa exortar seus membros a
crescer ou perecer, mais esses vão ser impelidos a fazê-la crescer de modo
desmesurado, mais furiosamente se voltarão contra ela como uma draga impetuosa,
mais implacavelmente lutarão contra ela, em nome de uma nova vida que ela
própria os forçou a buscar. Aí então o capitalismo entrará em combustão pelo
calor das suas próprias incandescentes energias. Após a Revolução, “no curso do
desenvolvimento”, depois que o bem--estar for redistribuído, depois que os
privilégios de classe forem eliminados, depois que a educação for livre e universal,
e os trabalhadores puderem controlar os meios pelos quais o trabalho será
organizado, então — assim profetiza Marx no clímax do Manifesto —, finalmente,
em lugar da velha sociedade burguesa, com suas
classes e seu antagonismo de classes, teremos uma associação em que o livre
desenvolvimento de cada um será a condição para o livre desenvolvimento de
todos. (p. 353)
Então a
experiência do autodesenvolvimento, livre das pressões e distorções do mercado,
poderá prosseguir livre e espontaneamente; em vez do pesadelo em que foi
transformado pela sociedade burguesa, poderá tornar-se fonte de alegria e
beleza para todos.
Gostaria
de recuar para um pouco antes do Manifesto Comunista, por um breve momento, a fim de mostrar como é
crucial para Marx o ideal desenvolvimentista, dos primeiros ao último dos seus
escritos. Seu ensaio de juventude sobre o “Trabalho alienado”, escrito em 1844,
exalta — como a verdadeira alternativa humana ao trabalho alienado — outro tipo
de trabalho que habilitará o homem a “desenvolver livremente suas energias
físicas e mentais”.7 Em A ideologia alemã (1845-6), o objetivo do comunismo é “o
desenvolvimento de toda a capacidade dos indivíduos enquanto tais”. Porque
“somente em comunidade com os demais cada indivíduo consegue os meios para
cultivar seus próprios dons em todas as direções; só em comunidade, portanto, é
possível a liberdade pessoal”.8 No primeiro volume de O capital, no capítulo sobre “Maquinário e indústria moderna”, é
essencial para o comunismo transcender a divisão de trabalho capitalista:
[…] o indivíduo parcialmente desenvolvido,
meramente portador de uma função social especializada, deve ser substituído
pelo indivíduo plenamente desenvolvido, adaptável a várias atividades, pronto
para aceitar qualquer mudança de produção, o indivíduo para quem as diferentes
funções sociais que desempenha são apenas formas variadas de livre manifestação
dos seus próprios poderes, naturais e adquiridos.9
Essa
visão do comunismo é inquestionavelmente moderna, antes de mais nada em seu
individualismo, porém mais ainda em seu ideal de desenvolvimento como forma de
vida boa. Aqui Marx está mais próximo de alguns de seus inimigos burgueses e
liberais que dos expoentes tradicionais do comunismo, que, desde Platão e os
Padres da Igreja, valorizaram o autossacrifício, desencorajaram ou condenaram a
individualidade e sonharam com um projeto tal em que só a luta e o esforço
comuns atingiriam o almejado fim. Uma vez mais, encontramos em Marx mais
receptividade para o estado atual da sociedade burguesa do que nos próprios membros
e defensores da burguesia. Ele vê na dinâmica do desenvolvimento capitalista —
quer no desenvolvimento de cada indivíduo, quer no da sociedade como um todo —
uma nova imagem da vida boa: não uma vida de perfeição definitiva, não a
incorporação das proscritas essências estáticas, mas um processo de crescimento
contínuo, incansável, aberto, ilimitado. Ele espera, portanto, cicatrizar as
feridas da modernidade através de uma modernidade ainda mais plena e profunda.10”
4 V. a imagem de Marx (1845) da “atividade
prático-crítica, atividade revolucionária” (Teses sobre Feuerbach, nos 1-3;
republ. em Marx-Engels reader, pp.
143-5). Essa imagem foi a base de toda uma literatura, surgida no século XX,
que é ao mesmo tempo tática, ética e mesmo metafísica, orientada para a procura
da síntese ideal entre teoria e prática no modelo marxista da “boa vida”. Os
representantes mais característicos dessa corrente são Georg Lukács
(especialmente em História e consciência de classe, 1919-23) e Antonio Gramsci.
5 A
palavra alemã aqui é Verhältnisse,
que pode ser traduzida por “condições”, “vínculos”, “relações”,
“circunstâncias”, “envolvimentos” etc. Em passagens distintas deste ensaio será
traduzida de diferentes modos, conforme se adapte melhor ao contexto.
6 O tema
do desenvolvimento universal inevitável, mas deformado pelos imperativos da
competitividade, foi primeiramente formulado por Rousseau em Discurso sobre a origem da desigualdade. V. o livro de minha autoria, Politics of authenticity, especialmente
pp. 145-59.
7 Retirado de “Economic and philosophical manuscripts of 1844”, trad. Martin Milligan; republ. em MER, p. 74. A palavra alemã que pode ser
traduzida por “mental” ou por “espiritual” é geistige.
8 The German ideology, parte I trad. Roy Pascal; MER, pp. 191-7.
9 O
Capital, v. I cap. 15, par. 9, trad. Charles Moore e Edward Aveling; MER, pp. 413-4.
10 Modernity and self-development
in Marx’s later writings. Em Grundrisse, os livros de
anotações de 1857-8 que constituíram a base de O capital, Marx faz uma distinção entre “a época moderna”, ou “o
mundo moderno”, e “seu limitado modelo burguês”. Na sociedade comunista, o
limitado modelo burguês será desnudado, de forma que toda a potencialidade
moderna possa se realizar. Ele inicia essa discussão estabelecendo um contraste
entre a visão clássica (especificamente a aristotélica) e a visão moderna de
economia e sociedade. “A visão antiga, na qual o ser humano aparece como a finalidade
da produção, parece ser bastante nobre quando contrastada com a do mundo
moderno, onde a produção aparece como o objetivo final da humanidade, e a
riqueza como o objetivo da produção.”
Diz
Marx: “De fato, quando o limitado modelo burguês é desnudado, o que vem a ser a
riqueza senão a universalidade das necessidades individuais, capacidades,
prazeres, forças produtivas etc., criadas através do intercâmbio universal? O
completo desenvolvimento do domínio humano sobre as forças da natureza, tanto
as da natureza externa quanto as da própria natureza humana? A realização plena
de suas potencialidades criativas, sem nenhum outro pressuposto a não ser o
prévio desenvolvimento histórico, o que faz com que isso seja a totalidade do
desenvolvimento, isto é, o desenvolvimento de toda a potencialidade humana como
um fim em si mesmo, e não como algo a ser medido em função de algum modelo
predeterminado? Em que parte ele deixa de se reproduzir a si mesmo, enquanto
especificidade, para produzir uma totalidade? Esforça-se não por manter seu
status, mas por se projetar no vir-a-ser?”.
Em
outras palavras, Marx quer uma busca realmente ilimitada de riqueza para todos:
não riqueza em dinheiro — “o limitado modelo burguês” —, mas a riqueza de
desejos, experiências, capacidade, sensibilidade, transformação e
desenvolvimento. O fato de Marx questionar essas formulações pode sugerir certa
hesitação a respeito desse ponto de vista. Marx fecha a discussão retornando à
distinção entre antigos e modernos modos e objetivos de vida. “O infantil mundo
da Antiguidade […] é realmente mais nobre (que o mundo moderno) no que diz
respeito a formas fechadas e limites preestabelecidos. Aí temos a satisfação,
mas a partir de um ponto de vista limitado, enquanto no mundo moderno não há
satisfação alguma, ou onde ele aparece satisfeito consigo mesmo é vulgar e
desprezível” Grundrisse: introduction to the critique of political
economy, trad. Martin Nicolaus (Penguin, 1973), pp. 487-8. Na última frase,
Marx estabelece a sua variante para a barganha do Fausto de Goethe: em troca da possibilidade do ilimitado
desenvolvimento pessoal, o homem moderno (comunista) abrirá mão da esperança de
satisfação, que requer modelos pessoais e sociais fechados, fixos e limitados.
A burguesia moderna “é vulgar e desprezível” porque “parece satisfeita consigo
mesma”, porque não apreende as possibilidades humanas que suas próprias
atividades criaram.
Em O capital, cap. 15, a passagem citada no
texto (nota 9) que termina com “o indivíduo plenamente desenvolvido” começa com
uma distinção entre “a indústria moderna” e “seu modelo capitalista”, modelo no
qual ela aparece pela primeira vez. “A indústria moderna nunca vê o modelo
vigente de processo produtivo como definitivo. Sua base técnica é
revolucionária, enquanto todos os modos de produção anteriores eram
essencialmente conservadores. Através de maquinaria, processos químicos e
outros métodos, está continuamente causando mudanças, não somente nas bases
técnicas de produção, mas também nas funções do trabalhador e nas relações
sociais decorrentes do processo de trabalho. Ao mesmo tempo isso também
revoluciona a divisão de trabalho” (MER,
p. 413). Nesse ponto Marx cita, em nota de rodapé, a passagem do Manifesto que começa com “A burguesia
não pode existir sem revolucionar continuamente os meios de produção”, e
termina com “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Aqui, como no Manifesto e em todos os outros lugares,
o processo capitalista de produção e troca representa a força que modernizou o
mundo; agora, no entanto, o capitalismo tornou-se um empecilho, um retardador
da modernidade, e deve continuar nessa direção para que a permanente troca da
indústria moderna continue ocorrendo e o “indivíduo plenamente realizado”
floresça.
Veblen
detectara essa dualidade em The theory of
business enterprise, 1904, onde distingue entre um comércio mesquinho e,
ligado a ele, uma indústria aberta e revolucionária. Mas falta a Veblen o
interesse que tem Marx pela relação entre o desenvolvimento da indústria e o
desenvolvimento do indivíduo.
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