Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-100-0
Tradução: Ana Cotrim e Vera Cotrim
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 400
Sinopse: Ver Parte
I
“Enquanto isso, continua a intensificação das
contradições e dos antagonismos associados a causas irremovíveis. Sob o comando
do capital, estruturalmente incapaz de dar solução às suas contradições
– e daí a maneira como ele adia o “momento da verdade” até que as pressões
econômicas resultem em algum tipo de explosão –, existe uma tendência à
representação equivocada do tempo histórico, tanto em direção ao passado quanto
ao futuro, no interesse da eternização do presente. A leitura tendenciosa do
passado resulta do imperativo ideológico de representar erroneamente o presente
como a moldura estrutural necessária de toda mudança possível. Pois é precisamente
em razão da necessidade de se projetar o presente estabelecido no futuro indefinido
que o passado deve também ser imaginado – na forma de um dejà vu – como
o domínio da presença eterna do sistema sob roupagens diferentes, de modo a
remover as determinações históricas reais e as limitações temporais do
presente.”
“A possibilidade de um movimento socialista
radicalmente rearticulado enfrentar esse desafio é indicada por quatro
importantes considerações.
A primeira é negativa. Resulta das contradições
constantemente agravadas da ordem existente que acentuam a vacuidade das
projeções apologéticas de sua permanência absoluta, pois a destrutividade pode
se prolongar por muito tempo, como bem sabemos, em virtude de nossas condições
em processo de constante deterioração, mas não eternamente. A globalização
atual é saudada pelos defensores do sistema como a solução de seus problemas.
Na realidade, ela aciona forças que colocam em relevo não somente a
incontrolabilidade do sistema por qualquer processo racional, mas também, e ao
mesmo tempo, sua própria incapacidade de cumprir as funções de controle que se
definem como sua condição de existência e legitimidade.
A segunda consideração indica a possibilidade
– e apenas a possibilidade – de uma evolução positiva dos acontecimentos.
Contudo, essa possibilidade é muito real devido ao fato de a relação entre
capital e trabalho ser não-simétrica. Isso quer dizer que, enquanto o capital
depende absolutamente do trabalho – dado que o capital nada é sem o trabalho, e
de sua exploração permanente –, a dependência do trabalho em relação ao capital
é relativa, historicamente criada e historicamente superável. Noutras
palavras, o trabalho não está condenado a continuar eternamente preso no
círculo vicioso do capital.
A terceira consideração é igualmente relevante.
Refere-se a uma importante mudança histórica na confrontação entre capital e
trabalho, e traz consigo a necessidade de buscar uma nova forma de afirmar os
interesses vitais dos “produtores livremente associados”. Isso contrasta
nitidamente com o passado reformista que levou o movimento a um beco sem saída,
liquidando simultaneamente até mesmo as concessões mais limitadas que foi
possível arrancar do capital no passado. Assim, pela primeira vez na história,
tornou-se totalmente inviável a manutenção da falsa lacuna entre metas
imediatas e objetivos estratégicos globais – que tornou dominante no
movimento operário a rota que conduziu ao beco sem saída do reformismo. O
resultado é que a questão do controle real de uma ordem alternativa do
metabolismo social surgiu na agenda histórica, por mais desfavoráveis que
fossem as suas condições de realização no curto prazo.
E, finalmente, como corolário necessário
desta última consideração, surgiu também a questão da igualdade substantiva,
por oposição tanto à igualdade formal e à pronunciada desigualdade
hierárquica substantiva do processo de tomada de decisão do capital, como a
forma pela qual ela foi espelhada na fracassada experiência histórica
pós-capitalista, pois o modo socialista alternativo de controle de uma ordem do
metabolismo social não-antagônica e genuinamente planejável – uma necessidade
absoluta no futuro – é totalmente inconcebível se não tiver a igualdade
substantiva como princípio estruturador e regulador.”
“Ironicamente, pois, o desenvolvimento do
sistema produtivo de longe o mais dinâmico da história culmina com a geração de
um número cada vez maior de seres humanos supérfluos a seu maquinário de produção,
muito embora – verdadeiro para o caráter incorrigivelmente contraditório do
sistema – nada supérfluos como consumidores. A novidade histórica do
tipo de desemprego no sistema globalmente completo é que as contradições de
qualquer parte específica complicam e agravam o problema em outras partes e,
por conseguinte, no todo. Pois a necessidade da produção de desemprego, “enxugamento”
etc., surge necessariamente dos imperativos produtivos antagônicos do capital
que buscam o lucro – e a acumulação – a que não pode absolutamente renunciar,
de modo a restringir-se de acordo com os princípios racionais e humanamente
gratificantes. O capital deve manter seu impulso inexorável em direção aos seus
alvos autoexpansivos, por mais devastadoras que sejam as consequências, ou, do
contrário, perde a capacidade de controlar o metabolismo social de reprodução. Não
há interposição, nem sequer a mínima atenção às considerações humanas. Eis
porque emerge pela primeira vez na história um sistema dinâmico – e
dinamicamente destrutivo em suas implicações últimas – de controle sociometabólico
autoexpansivo, que elimina cruelmente se necessário, a esmagadora maioria da
humanidade do processo de trabalho. Esse é hoje o significado profundamente
perturbador da “globalização”.”
“O capital é absolutamente incapaz de fazer
considerações humanas.”
“Na verdade, a razão fundamental para a falta
de transparência em nosso tempo não é o fato inalterável de que a
sociedade é composta por indivíduos, mas sim a condição o radicalmente alterável
de que eles estão submetidos a forças hierarquicamente estruturadas e
antagônicas. As dificuldades básicas que confrontam a teoria econômica e o
processo de decisão política não surgem das intenções divergentes dos
indivíduos particulares – razão pela qual os bons serviços da “mão invisível”
têm de ser invocados, enquanto se mantém o silêncio ou se deturpa de maneira
tendenciosa a “mão” bem “visível” do Estado – mas da natureza antagônica das
relações sociais prevalecentes. O poder dos indivíduos como indivíduos
particulares – e não como personificações de forças sociais que agem de
acordo com os imperativos de sua “posição social” – é extremamente exagerado, a
fim de prejulgar a questão em favor da “mão invisível”. Entretanto, a principal
razão pela qual o processo de decisão é incorrigivelmente viciado pela opacidade
das determinações sociais pode ser localizada em seu caráter conflitual/adverso.
Assim, para que possamos substituir a opacidade da objetividade reificada pela
transparência das relações sociais controláveis, temos de superar a inércia
fatídica da conflitualidade/adversidade.
A viabilidade do processo consciente de
decisão econômica e política além do capital só é plausível sobre essa base. A
submissão a uma disciplina exterior – seja em nome da moralidade
fictícia que defende a “firme disciplina do mercado” ou a imposição da extração
politicamente impingida de trabalho excedente – está, nesse
respeito, fadada ao fracasso. A única disciplina compatível com a concepção de
que estamos tratando (isto é, um novo tipo – não determinista – de teoria econômica,
desenvolvido em conjunção com uma estrutura correspondente de processo
consciente de decisão política) é a disciplina interna adotada pelos
indivíduos com base nos objetivos compartilhados que precisam estabelecer para
si mesmos de um modo não conflitual/adverso, sem pressão das determinações
conflituosas irreconciliáveis. Do contrário, a consciência dos indivíduos se
distorce e se transforma incorrigivelmente em variedades da falsa consciência.
Pois são induzidos a racionalizar e justificar as decisões que lhes são
impostas como se fossem decisões autônomas suas, certas e louváveis.
A teoria econômica não determinista pressupõe
uma relação qualitativamente diferente entre economia e política em dois
sentidos. O primeiro se refere à conexão direta entre os dois domínios, que
podemos denominar a sua relação interna. Isso se segue do fato de que,
uma vez que a preponderância dos imperativos materiais econômicos é deixada
para trás, os processos de decisão política tradicionais podem ser
significativamente redefinidos de uma forma muito menos unilateral. O segundo
sentido, intimamente vinculado ao primeiro, diz respeito ao problema da
superação da alienação tanto na economia quanto na política. Pois, o modo como
os dois domínios funcionam sob o governo do capital só pode ser caracterizado como
a alienação do poder de decisão dos indivíduos; de todos os indivíduos,
que têm de se conformar ao papel alienado atribuído a eles como “personificações
do capital” ou “personificações do trabalho”. Eis porque a noção concernente
aos “indivíduos soberanos que afirmam suas intenções e perseguem seus
interesses particulares na sociedade de mercado, a única sociedade sustentável”
– em plena harmonia com o interesse da sociedade como um todo, graças à
benevolente “mão invisível” – é tão absurdamente incapaz de caracterizar o
estado de coisas atual25. O processo de decisão, tanto na política
como no domínio da economia, é, na realidade, restringido e distorcido de
maneira grosseira, correspondente aos imperativos alienantes da acumulação de
capital e a expansão a que ambos têm de se submeter. Ao mesmo tempo, nega-se
aos indivíduos como indivíduos o poder de decisão, no sentido de que suas “decisões”
lhes são predeterminadas pelo “poder das coisas”, em sintonia com a alienação e
a reificação. Assim, a mudança qualitativa na relação entre economia e política
no segundo sentido significa a restituição do poder de decisão aos
indivíduos como indivíduos sociais que agem conscientemente. Esse é o único
modo possível de reconstruir a unidade de política e economia, ao lado da
harmonização do processo de decisão individual e social no sentido
significativo do termo.”
25 “O fundamento essencial do desenvolvimento
da civilização moderna é permitir que as pessoas persigam suas próprias finalidades
com base em seu próprio conhecimento e não sejam obrigadas pelos objetivos de
outras pessoas”, Friedrich von Hayek, “The Moral Imperative of the Market”, em
Martin J. Anderson (Ed.). The Unfinished Agenda: Essays on the Political Economy of Government
Policy in Honour of Arthur Seldon (Londres, The Institute of Economic Affairs, 1986), p. 146. Alguém que fale nesses termos com toda a seriedade só pode evidenciar
que não apenas não vive na “civilização moderna” da “sociedade moderna”, mas
nem sequer no mesmo planeta que o restante de nós.
“O fracasso necessário do planejamento sob o
capitalismo27 veio à tona na Inglaterra sob o governo de Harold
Wilson, formado após a vitória eleitoral do Partido Trabalhista em 1964.
Naquele momento, Wilson ainda falava de “conquistar os altos postos de comando
da economia” e inventou um novo ministério econômico para lorde George Brown, o
vice-líder do Partido Trabalhista. Esse ministério deveria introduzir mudanças
importantes na administração da economia inglesa, em sintonia com os processos
de planejamento defendidos. Entretanto, essa tentativa se verificou um completo
fracasso e a aventura teve de conduzir a um fim infeliz. Em lugar de o governo
conquistar os altos postos de comando da economia”, deu-se o oposto diametral: “os
altos postos de comando” do grande círculo comercial conquistaram o governo,
compelindo-o a abandonar por completo as antigas ideias da reforma
social-democrática, e prenunciando com isso a transformação do próprio Partido
Trabalhista no “amigo do comércio” – nas orgulhosas palavras de seu líder atual
– do “Novo Trabalhismo”. No curso do desenvolvimento histórico do capital, e
particularmente nas décadas pós-Segunda Guerra Mundial, o significado original
de economia como o economizar foi completamente esquecido pelo imperativo
do processo de autorreprodução sempre expansivo do sistema. Conforme mencionado
anteriormente, a expansão sob o domínio do capital sempre foi subordinada ao
imperativo da acumulação de capital, à qual – do ponto de vista do sistema – não
se poderia admitir limites. O fracasso em alcançar o “crescimento” nesse
sentido atrofiado, como a “expansão de bens de capital sempre expandidos”, é
considerado, com extrema lugubridade, a violação da lógica interna do sistema.
A ideia da introdução consciente de restrições reguladoras à acumulação de
capital, no interesse do desenvolvimento sustentável, foi – e terá de ser
sempre – excluída como algo absolutamente fadado ao fracasso. As determinações
sistêmicas quase naturais do capital não a apoiariam. Assim, a “economia”
se torna sinônima de “toda e qualquer coisa que conduza à contínua
expansão/acumulação”, independentemente das consequências humanas e ambientais,
que exclui o economizar como um conceito inútil, e mesmo hostil. Eis porque
o planejamento abrangente como um corretivo necessário tem de ser
categoricamente rejeitado, ainda que essa rejeição apriorística seja
ideologicamente embelezada – desde Ludwig von Mises28 até Friedrich
von Hayek e seus seguidores – como o “bom-senso”, impossível de desafiar.
No entanto, é evidente que, sem a
redescoberta do significado original de economia como o necessário economizar
da boa administração em um mundo de recursos finitos, sem a sua única aplicação
consciente possível por meio do planejamento abrangente, as e consequências
destrutivas do processo de reprodução do capital29 não podem ser
reparadas. O desperdício extremo de nosso modo de controle sociometabólico – com
respeito à utilização de recursos materiais não renováveis e ao perigoso
impacto dos processos de produção do capital, bem como aos seus produtos
grosseiramente subutilizados, sobre o meio-ambiente global – piora a cada dia,
sem que haja nenhuma evidência de abordagem das determinações subjacentes na
escala necessária. Mesmo as tentativas mais limitadas de planejar alguma
melhoria, em um único domínio: a redução das emissões nocivas na atmosfera, por
meio das “boas intenções” dos protocolos de Kyoto, são repudiadas sem cerimônia
pelo país capitalista mais poderoso.
O problema é que abordar a necessidade de
planejamento abrangente não é simplesmente uma questão de escala
(parcial em sua aplicação a certos ramos da indústria por certas corporações,
por exemplo, em oposição a abarcar o território nacional como um todo) ou mesmo
da duração do processo (necessariamente temporário sob o capitalismo, no
sentido de que deve restringir-se aos estados de emergência, por mais graves
que sejam). Ainda mais importante, o compromisso com o planejamento abrangente
coloca na agenda o desafio de entrever um modo de reprodução sociometabólico alternativo,
ao menos por implicação. Pois, dadas as condições sob as quais o próprio
problema pode surgir, até mesmo as medidas positivas parciais de intervenção
reguladora – que, antes de tudo, tendem a ser predominantemente contramedidas
às determinações quase naturais do capital – mantêm-se em constante perigo, sob
a ameaça da completa reversão e mesmo da restauração capitalista em plena
escala, a menos que se ampliem com êxito na direção de perfazer os tijolos do
edifício de um modo radicalmente diferente de administrar o intercâmbio dos
indivíduos entre si e com a natureza. A implosão do sistema de tipo soviético,
com seu processo autoritário de planejamento, contestado de maneiras bastante
heterodoxas pelos produtores, oferece uma prova bem eloquente da verdade dessa
proposição.”
27 Uma mudança significativa nesse aspecto só
seria possível em circunstâncias em que devido a algumas grandes crises econômicas
e políticas – a pressão das massas populares, em conjunto com a prontidão das
forças mais progressistas da legislação estatal, pudesse impugnar com a contundência
e pelo tempo necessário a óbvia hostilidade dos círculos comerciais dominantes
em direção a uma intervenção reguladora abrangente. Mas, evidentemente, uma
situação como essa seria análoga ao estado de emergência experimentado durante
a Segunda Guerra Mundial, ainda que em uma escala menor.
28 Ver o livro de Von Mises sobre o
socialismo, Socialism (New Haven, Yale University Press, 1951).
29 Idealizado por muitos, inclusive por Schumpeter,
como “destruição produtiva”, quando, na realidade, a produção destrutiva está
se tornando cada vez mais dominante.
“Naturalmente, salientar a importância de uma
perspectiva de longo prazo não significa que possamos ignorar o “aqui e agora”.
Ao contrário, temos de nos preocupar com um horizonte muito mais extenso do que
o habitual para que sejamos capazes de conceituar com realismo uma transição33
a uma ordem social diferente das determinações do presente. A perspectiva de
longo prazo é necessária porque o alvo real da transformação só pode
estabelecer-se no interior desse horizonte. Ademais, sem identificar o alvo
apropriado, a jornada tende a se desnortear e, por conseguinte, as pessoas
envolvidas podem facilmente se desviar de seus objetivos vitais. Por outro
lado, o entendimento das determinações objetivas e subjetivas do “aqui e agora”
tem a mesma importância. Pois a tarefa de instituir as mudanças necessárias se
define já no presente, no sentido de que, a menos que sua realização tenha
início no “aqui e agora” imediato, ainda que, por enquanto, de um modo modesto
– com plena consciência das restrições existentes, bem como das dificuldades
para se sustentar a jornada no seu horizonte mais remoto – não chegaremos a lugar
nenhum. Embora não devamos encorajar, sem responsabilidade, uma ação
precipitada e prematura, não podemos excluir o risco da prematuridade, ao
dedicarmos-nos a um empreendimento tão fundamental e difícil como a instituição
de uma grande mudança estrutural, nem mesmo quando os indivíduos concernidos
agem com extrema responsabilidade. A verdade é que nada poderemos adquirir se
ficarmos esperando as condições favoráveis” e “o momento certo”.”
33 Não é sem uma boa razão que o meu livro Para
além do capital recebeu o seguinte subtítulo: “Rumo a uma teoria da
transição”.
“Após mais de um século de promessas de
eliminação – ou ao menos uma redução sensível – da desigualdade por meio da “taxação
progressiva” e outras medidas legislativas do Estado e, portanto, de assegurar
as condições do desenvolvimento socialmente viável em todo o mundo, verificou-se
que a realidade é caracterizada por uma desigualdade sempre crescente, não
apenas entre o “norte desenvolvido e o “sul subdesenvolvido”, mas também no
interior dos países capitalisticamente mais avançados. Um relatório recente do
Congresso dos Estados Unidos (que não pode ser acusado de ter “preconceito
esquerdista”) admitiu que a renda do 1% mais rico da população
norte-americana agora excede a dos 40% mais pobres3; um
número que dobrou nas últimas duas décadas, sendo que 20% já era um número escandaloso
mesmo nesse quadro anterior. Esses retrocessos caminharam lado a lado com a primeira
estipulação de uma falsa oposição entre “igualdade de resultado” e “igualdade
de oportunidade” e, em seguida, com o abandono até mesmo do falso apoio antes
concedido à ideia (nunca realizada) de “igualdade de oportunidade”. Não que
esse tipo de resultado final possa ser considerado surpreendente. Pois, uma vez
que o “resultado” socialmente desafiador é eliminado de modo arbitrário da cena
e oposto à “oportunidade”, esta última se torna desprovida de todo conteúdo e,
em nome do termo totalmente vago da “igualdade” sem objeto (e pior: que nega
resultados), torna-se a justificativa ideológica da negação prática efetiva de
todas as oportunidades reais para aqueles que precisam delas.
Há muito tempo, os pensadores progressistas
da burguesia emergente previam, otimistas, como de fato fez Henry Home, uma
grande figura da escola histórica escocesa do Iluminismo, que a dominação de um
ser social sobre o outro seria lembrada no futuro como um sonho ruim, pois “A
razão, retomando sua autoridade soberana, banirá inteiramente a opressão e, no
próximo século, considerar-se-á estranho que a opressão tenha predominado entre
os seres sociais. Duvidar-se-á talvez até que tenha sido alguma vez seriamente
posta em prática”4. Ironicamente, no entanto, à luz da forma como as
coisas realmente se desenvolveram, o que hoje parece ser realmente difícil de
acreditar é que os representantes intelectuais da burguesia em ascendência
possam ter algum dia pensado dessa forma. Pois um gigante do Iluminismo francês
do século XVIII, Denis
Diderot, não hesitou em afirmar com grande radicalismo social que “se o
trabalhador cotidiano é miserável a nação é miserável”5. Da mesma
forma, Rousseau,
com extremo radicalismo e ácido sarcasmo, descreveu a ordem prevalecente de
dominação social e subordinação da seguinte maneira:
Podem-se resumir em poucas palavras os termos do pacto social entre
esses dois níveis de homem: “Precisas de mim porque sou rico e tu és pobre.
Chegaremos, pois, a um acordo. Permitirei que tenhas a honra de me servires,
sob a condição de que concedas a mim o pouco que te resta, em troca dos
esforços que despenderei em comandar-te”.6
Com o mesmo espírito, o grande filósofo
italiano Giambattista Vico insistia em que o ápice do desenvolvimento histórico
é “a era humana em que todos os homens reconheciam uns aos outros como iguais
na natureza humana”7. E, muito tempo antes, Thomas Münzer, o
líder anabatista da revolução camponesa alemã, identificou com precisão em seu
panfleto contra Lutero a causa fundamental do avanço do mal social em termos
muito tangíveis, ao diagnosticá-lo como o culto à vendabilidade universal e à
alienação. Conclui seu discurso afirmando como era intolerável o fato de que se
tenha convertido em propriedade – aos peixes na água, aos pássaros no
ar, as plantas na terra”8. Essa foi uma identificação perspicaz do
que se desdobraria com poder integralmente engolidor no curso dos três séculos
seguintes. Como é próprio às conquistas paradoxais das antecipações utópicas
prematuras, expressou-se do ponto de vista das estruturas muito menos
estabelecidas dos desenvolvimentos capitalistas iniciais uma visão muito mais
clara dos perigos vindouros do que era perceptível aos participantes
diretamente envolvidos nas vicissitudes das fases mais avançadas. Pois, uma vez
que a tendência social de vendabilidade universal triunfa, em sintonia com as
exigências internas da formação social do capital, aquilo que ainda aparece
para Münzer como violação grosseira da ordem natural (e que, como sabemos,
ameaça com o decorrer do tempo a própria existência da humanidade), para os
pensadores que se identificam sem reservas com as restrições historicamente criadas
(e a princípio igualmente impossíveis de se eliminar) da ordem social
totalmente desenvolvida do capital parece evidentemente natural, inalterável e
aceitável. Assim, muitas coisas tornam-se opacas e ofuscadas pela mudança do
ponto de vista histórico. Mesmo o termo crucial da “liberdade” sofre uma
redução em seu cerne alienado, saudado como a conquista “do poder de vender-se
livremente” por meio do suposto “contrato entre iguais”, em oposição às
restrições políticas da ordem feudal, mas ignorando e até idealizando as graves
restrições materiais e sociais da nova ordem. Por conseguinte, os significados
originais tanto de “liberdade” quanto de “igualdade” são transformados em
determinações abstratas que se sustentam de maneira circular,9
tornando assim, como uma consequência necessária, a ideia de “fraternidade” – o
terceiro membro das aspirações antes proclamadas em tom tão solene – extremamente
redundante.”
3 Ver David Cay Johnston, “Gap between rich and poor found substantially
wider”, em The New York Times, 5 de setembro de 1999.
4 Henry Home (lorde Kames), Loose Hints upon Education, chiefly
concerning the Culture of the Heart (Londres, Thoemmes Continuum, [1781]
1996), p. 284.
5 Verbete de Diderot sobre Journalier na
Encyclopédie.
6 Jean-Jacques Rousseau, A Discourse on Political Economy
(Londres, Everyman edition, s. d.), p. 264. [Discurso
sobre a economia política e Do contrato social, Petrópolis, Vozes,
1995 – N. T.) Rousseau também afirmou categoricamente que “a liberdade não pode
existir sem a igualdade”, The Social Contract (Londres, Everyman, 1963),
p. 42. [Na edição brasileira, lê-se: “Se quisermos saber no que consiste,
precisamente, o maior de todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os
sistemas de legislação, verificar-se-á que se resume nestes dois objetivos
principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependência
particular corresponde a outro tanto de força tomada ao corpo do Estado, e a
igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela”. Do
Contrato Social ou Princípios do Direito Político (São Paulo. Abril
Cultural, 1973), p. 72–N.T.)
7 Vico, The New Science, traduzido da
terceira edição (Nova York, Doubleday & Co., [1974] 1961), p. 3. Grifos
meus
8 Thomas Münzer, Hochverursachte
Schutzrede und Antwort wider das geistlose, sanfilebende Fleisch zu Witten
berg, welches mit verkehrter Weise durch den Diebstahl der heiligen Schrift die
erbärmliche Christenheit also ganz jämmerlich besudelt hat (1524), citado
por Marx em A questão judaica (São Paulo, Moraes, 1991), p. 60.
9 Em outras palavras, deparamo-nos com uma dupla
circularidade, produzida pelo mais iníquo desenvolvimento histórico atual: define-se
a “liberdade” como “igualdade contratual” (postulada abstratamente, mas na
substância real extremamente fictícia), e a “igualdade” se esvazia no vago
desejo de uma “liberdade” de aspirar à concessão de nada além da “igualdade de
oportunidade” formalmente proclamada, mas socialmente nula.
“Por longuíssimo tempo, esperou-se que
acreditássemos que todos os nossos problemas se resolveriam alegremente pelo “desenvolvimento”
e pela “modernização” socialmente neutros. A tecnologia deveria superar por si
só todos os obstáculos e dificuldades concebíveis. Era, na melhor das
hipóteses, uma ilusão imposta a todos que, no desejo de encontrar uma saída
para seu próprio papel ativo no processo de decisão, mantinham a esperança de
que grandes melhorias em suas condições de existência se realizassem do modo
prometido. Tiveram de descobrir com a amarga experiência que a panaceia
tecnológica era um subterfúgio autovantajoso das contradições por parte
daqueles que empunhavam os timões do controle social. A “revolução verde” na
agricultura deveria ter resolvido de uma vez por todas o problema mundial da
fome e da desnutrição. Ao contrário, criou corporações-monstro, como a
Monsanto, que estabeleceram de tal forma seu poder em todo o mundo, que será
necessária uma grande ação popular voltada às raízes do problema para
erradicá-lo. Contudo, a ideologia das soluções estritamente tecnológicas
continua a ser propagandeada até hoje, apesar de todos os fracassos.
Recentemente, alguns líderes de governo, incluindo o inglês, começaram a pregar
sermões sobre a vindoura “revolução verde industrial”, o que quer que isso
signifique. Está claro, no entanto, que panaceia tecnológica de última moda é
prometida, novamente, como uma forma de fugir da dimensão social e política
inextirpável dos perigos ambientais cada vez mais intensos.
Assim, não é exagero dizer que, em nosso
tempo, os interesses daqueles que nem sequer conseguem imaginar uma alternativa
para a perspectiva de curto prazo da ordem atual, e para a projeção fantasiosa
dos corretivos estritamente tecnológicos compatível com ela, colidem
diretamente com o interesse da própria sobrevivência humana. No passado, o
termo mágico para julgar a saúde de nosso sistema social era “crescimento”, que
ainda hoje perdura como a estrutura em que se devem entrever as soluções. O que
se pretende evitar com o louvor não qualificado do crescimento são precisamente
as questões: que tipo de crescimento e com que finalidade? Em
especial, porque a realidade do crescimento não qualificado sob nossas condições
de reprodução sociometabólica se verifica como extremo desperdício e
multiplica os problemas que as futuras gerações enfrentarão, já que um dia
terão de lidar com as consequências da energia nuclear – tanto pacífica quanto
militar – por exemplo. O parente do “crescimento”, o conceito de “desenvolvimento”,
também deve sujeitar-se ao mesmo tipo de escrutínio crítico. Há muito tempo,
quase todos o aceitavam sem hesitação e mobilizavam-se grandes recursos
institucionais com o intuito de difundir o evangelho da “modernização e
desenvolvimento” do tipo norte-americano no chamado “mundo subdesenvolvido”.
Levou algum tempo para se perceber que havia algo fatalmente defeituoso no
modelo recomendado. Pois, se o modelo dos Estados Unidos – no qual 4% da
população mundial desperdiça 25% da energia mundial e dos recursos
materiais estratégicos e também é responsável por 25% da poluição
mundial – for seguido nos demais lugares, sufocaríamos todos num piscar de
olhos. Eis porque se nos tornou necessário qualificar todo desenvolvimento
futuro como desenvolvimento sustentável, a fim de preencher o
conceito com um conteúdo realmente factível e socialmente desejável.”
“Poucos negariam hoje que os processos
educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reprodução estão
intimamente ligados. Consequentemente, uma reformulação significativa da
educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no
qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente
importantes funções de mudança. Mas, sem um acordo sobre esse simples fato,
caminhos dividem-se nitidamente. Pois, caso não se valorize um determinado modo
de reprodução da sociedade como o necessário quadro de intercâmbio social,
serão admitidos, em nome da reforma, apenas alguns ajustes menores em todos os
âmbitos, incluindo o da educação. As mudanças sob tais limitações,
apriorísticas e prejulgadas, são admissíveis apenas com o único e legítimo
objetivo de corrigir algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida, de
forma que sejam mantidas intactas as determinações estruturais fundamentais da
sociedade como um todo, em conformidade com as exigências inalteráveis da lógica
global de um determinado sistema de reprodução. Podem-se ajustar as formas
pelas quais uma multiplicidade de interesses particulares conflitantes se deve conformar
com a regra geral preestabelecida da reprodução da sociedade, mas de forma
nenhuma pode-se alterar a própria regra geral.
Essa lógica exclui, com uma irreversibilidade
categórica, a possibilidade de legitimar o conflito entre as forças
hegemônicas fundamentais rivais, em uma dada ordem social, como alternativas
visíveis entre si, quer no campo da produção material, quer no âmbito
cultural/educacional. Portanto, seria realmente um absurdo esperar uma
formulação de um ideal educacional, do ponto de vista da ordem feudal em vigor,
que considerasse a hipótese da dominação dos servos, como classe, sobre os
senhores da bem-estabelecida classe dominante. Naturalmente, o mesmo vale para
a alternativa hegemônica fundamental entre o capital e o trabalho. Não
surpreende, portanto, que mesmo as mais nobres utopias educacionais, anteriormente
formuladas do ponto de vista do capital, tivessem de permanecer estritamente
dentro dos limites da perpetuação do domínio do capital como modo de reprodução
social metabólica. Os interesses objetivos de classe tinham de prevalecer mesmo
quando os subjetivamente bem-intencionados autores dessas uto pias e discursos
críticos observavam claramente e criticavam as manifestações desumanas dos
interesses materiais dominantes. Suas posições críticas poderiam, no limite,
apenas desejar utilizar as reformas educacionais que propusessem para
remediar os piores efeitos da ordem reprodutiva capitalista estabelecida
sem, contudo, eliminar seus fundamentos causais antagônicos e
profundamente enraizados.
A razão para o fracasso de todos os esforços
anteriores, e que se destinavam a instituir grandes mudanças na sociedade por
meio de reformas educacionais lúcidas, reconciliadas com o ponto de vista do
capital, consistia – e ainda consiste – no fato de as determinações
fundamentais do sistema do capital serem irreformáveis. Como sabemos
muito bem pela lamentável história da estratégia reformista, que já tem mais de
cem anos, desde Edward Bernstein4 e seus colaboradores – que outrora
prometeram a transformação gradual da ordem capitalista numa ordem qualitativamente
diferente, socialista – o capital é irreformável porque, pela sua própria
natureza, como totalidade reguladora sistêmica, é totalmente incorrigível.
Ou bem tem êxito em impor aos membros da sociedade, incluindo-se as
personificações “carinhosas” do capital, os imperativos estruturais do seu
sistema como um todo ou perde a sua viabilidade como o regulador historicamente
dominante do modo bem-estabelecido de reprodução metabólica universal e social.
Consequentemente, em seus parâmetros estruturais fundamentais, o capital deve
permanecer sempre incontestável, mesmo que todos os tipos de corretivo
estritamente marginais sejam não só compatíveis com seus preceitos, mas também
benéficos, e realmente necessários a ele no interesse da sobrevivência
continuada do sistema. Limitar uma mudança educacional radical às margens
corretivas interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez,
conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação social qualitativa. Do
mesmo modo, contudo, procurar margens de reforma sistêmica na própria
estrutura do sistema do capital é uma contradição em termos. É por isso
que é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar
a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente.”
4 Para uma discussão detalhada sobre a estratégia
reformista de Bernstein, ver a seção 8.5 intitulada “O beco sem saída
representativo de Bernstein”, em meu livro O poder da ideologia (São
Paulo, Boitempo. 2004), p. 376-88.
Nenhum comentário:
Postar um comentário