sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo, de Slavoj Žižek

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-772-9

Tradução: Artur Renzo

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 136

Sinopse: Uma pandemia global assola o planeta. Com a brusca mudança na rotina de bilhões de pessoas, vivemos em um momento em que o maior ato de responsabilidade é se manter distante daqueles que amamos. Nesta obra escrita em plena quarentena, o filósofo esloveno Slavoj Žižek mergulha de cabeça no espírito de nossa época. Ao longo de treze ensaios de escrita rápida, afiada e bem-humorada, são destrinchados diferentes aspectos do surto provocado pelo novo coronavírus: filosóficos, psicanalíticos, políticos, sociais, econômicos, ecológicos e ideológicos.

Quando governos austeros, reconhecidos por cortes implacáveis nos gastos públicos, decidem subitamente gerar trilhões, Žižek demonstra como uma nova forma de comunismo pode ser a única maneira de evitar uma descida à barbárie global.

Escrito com seu conhecido estilo irreverente e o gosto do autor por analogias da cultura pop (Tarantino, Hitchcock e H. G. Wells flertam com Marx, Hegel e Lacan nestas páginas), este livro fornece fotogramas concisos e provocativos da crise à medida que ela se alastra e engole todos nós.

Para apresentar a ousada tese que atravessa os ensaios que compõem esta obra, Žižek não se furta de travar um debate direto com outros intérpretes contemporâneos da crise causada pela covid-19, como Giorgio Agamben, Byung-Chul Han, Alain Badiou e Bruno Latour, entre outros.

O autor abriu mão dos direitos autorais da obra, que serão revertidos à organização internacional Médicos Sem Fronteiras, dedicada a oferecer ajuda médica e humanitária a populações em situações de emergência em todo o planeta.

 

“Na gramática paranoica, só há dois: eu e o outro. Se estou certo, o outro está errado; se o outro está com a razão, tenho de admitir eu mesmo minha própria loucura.” (Christian Dunker)

 

 

Voltemos ao valor simbólico e pragmático da ciência e das universidades. Nem tudo é jogo de interesses e ideologia. Nem tudo se reduz ao “nervosismo dos mercados”, ao axioma do “Estado mínimo”. Aliás, para aqueles que ainda querem discutir o assunto nesses termos, recomendo a doação de seus próprios respiradores, de seus leitos e de sua cota de medicamentos (afinal, vá importar os seus). A realidade mais simples, a de que mesmo com dinheiro você não conseguirá garantir a salvação da própria vida, precisou de uma epidemia para mostrar seu impacto real.

O ser humano é esta noite, este vazio, este nada diante da força da natureza. Dieta narcísica forçada e redimensionamento da volumetria do mundo, com sua fé no progresso do indivíduo como razão e valor universal. Contra isso temos agora a moral da máscara, irônica vingança dos anos de islamofobia. A máscara não deve ser usada para que você não seja contaminado pelo vírus; aliás, desse ponto de vista, ela pode até facilitar as coisas, pois umedece o tecido perto da boca, tornando-se um caldo de cultura e uma porta de entrada para o vírus. A máscara não te protege, ela protege o outro. Se você usa máscara, é possível que você, se estiver infectado, não transmita o vírus para outros. Ao mesmo tempo, o melhor jeito de se proteger é usando uma máscara – porque assim outros também usarão máscaras, e você estará protegido deles. Ridiculamente simples, eficaz e concreto, mas insuficiente para evitar que ficássemos por décadas discutindo a biologia do egoísmo e do altruísmo, a glorificação do indivíduo e o caráter acessório de ideias como democracia ou comunidade.

Assim como a ideia de que o mundo não existe, de que ele é apenas um conjunto de narrativas e pontos de vista interpretativos sumariamente extinguiu o desconstrucionismo pós-moderno americano, parece que agora a moral neoliberal se afundará de vez, e com ela a reencarnação hobbesiana de que a vida de cada um será, antes de tudo, o maior e mais inegociável valor. Os hobbesianos de plantão estão comprando papel higiênico para estocar. Nada poderia demonstrar melhor a tese lacaniana de que o sintoma é uma metáfora: estão “cagando-se de medo”, sentados em suas privadas de ouro, esperando o Anjo exterminador de Buñuel.

O medo não é angústia, pois enquanto o primeiro tem por horizonte o objeto na realidade, o segundo tem sua origem nas profundezas regressivas do eu: o desamparo, a intrusão, o édipo, o desmame. O pânico não é mais que a progressão da angústia sobre o medo, o avanço do Real sobre a realidade. Desde quando viveu este grande teórico da arte da guerra que foi Clausewitz, sabemos que o pior inimigo do exército em batalha é a perda de seu general. Não porque ele seja particularmente sagaz ou poderoso em sua ação contra o inimigo, mas porque ele representa a encarnação do objeto em nosso ideal de eu, o ponto de contato místico e mágico entre poder e autoridade protetora. Enquanto isso funciona, temos a lógica contábil do sacrifício: deixemos os velhos, os incapazes, os inaptos morrerem para que os jovens e produtivos sobrevivam. Não foi por outro caminho que a política de Hitler começou por eliminar doentes terminais e crianças deficientes mentais – porque elas eram um peso para o Estado.

Em momentos de guerra e de peste, os improdutivos devem ser deixados para trás. Assim pensa a necropolítica, tendo por pressuposto a biopolítica. Contra isso levantam-se Žižek e a ideia de uma “solidariedade incondicional”, ou seja: não é porque o cálculo econômico diz que algumas vidas valem mais que outras que devemos agir politicamente de acordo com isso. Quem discorda é porque na própria fantasia descansa em um lugar de proteção divina e especialidade. Quem diz a si mesmo, ainda que silenciosamente, “comigo isso não acontece”, ou “antes de mim virão tantos outros que terei tempo de mudar minha posição”, ainda não foi purificado pelo corona. Precisa passar pela “Lava a Jato” (versão álcool em gel) imediatamente.

Contra esse etnocentrismo narcísico bastaria lembrar que Trump desviou um avião com equipamentos médicos simplesmente oferecendo mais dinheiro que Bolsonaro. O argumento cínico de que é preciso proteger os pobres do Terceiro Mundo senão eles invadirão e destruirão gradualmente a forma de vida liberal – europeia ou americana, chinesa ou japonesa – continua verdadeiro em tempos de coronavírus.” (Christian Dunker)

 

 

Mas há um paradoxo mais profundo em operação: quanto mais nosso mundo estiver conectado, mais um desastre local pode deflagrar um pavor global e, eventualmente, uma catástrofe. Na primavera de 2010, uma nuvem proveniente de uma pequena erupção vulcânica em uma geleira na Islândia (uma perturbação mínima no complexo mecanismo da vida na Terra) paralisou o tráfego aéreo em boa parte da Europa – um lembrete de como, mesmo com toda sua formidável atividade de transformar a natureza, o ser humano continua sendo somente mais uma das espécies vivas do planeta. O próprio efeito socioeconômico catastrófico de um surto tão pequeno deve-se a nosso desenvolvimento tecnológico (as viagens aéreas): um século antes, uma irrupção dessas teria passado despercebida. O desenvolvimento tecnológico nos torna mais independentes da natureza e, ao mesmo tempo, em outro patamar, mais dependentes dos caprichos da natureza. Isso vale também para a disseminação do coronavírus: se tivesse ocorrido antes das reformas de Deng Xiaoping, provavelmente nem teríamos ouvido falar dessa epidemia.”

 

 

Devemos resistir à tentação de tratar a epidemia em curso como algo dotado de um significado mais profundo: como a punição cruel, porém justa da humanidade por toda a exploração implacável feita sobre outras formas de vida na Terra, ou qualquer coisa do tipo… Se buscássemos um recado escondido como esse, permaneceríamos pré-modernos: estaríamos tratando nosso universo como um parceiro na comunicação. Mesmo com nossa própria sobrevivência ameaçada, há ainda algo reconfortante na ideia de estarmos sendo punidos – afinal, o universo (ou mesmo “alguém-lá-fora”) estaria nos observando… O que é realmente difícil de aceitar é que a epidemia em curso é resultado, por excelência, de uma contingência natural, que foi simplesmente algo que aconteceu e que ela não guarda nenhum outro significado mais profundo. Na ordem mais ampla das coisas, somos uma espécie sem importância.”

 

 

Os cinco estágios da epidemia

Talvez possamos aprender algo a respeito de nossas reações à epidemia do coronavírus com a psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross, que, em seu livro Sobre a morte e o morrer[1], propôs o famoso esquema dos cinco estágios de como reagimos ao tomar conhecimento de que portamos uma doença terminal. São eles: negação (a simples recusa de aceitar o fato: “Isso não pode estar acontecendo, não comigo.”); raiva (que estoura quando já não podemos mais negar o fato: “Como isso pôde acontecer comigo?”); negociação (a esperança de que, de alguma forma, possamos postergar ou mitigar o fato: “Se eu pudesse apenas viver a tempo de ver meus filhos se formarem.”); depressão (desinvestimento libidinal: “Eu vou morrer, então por que afinal me importar com qualquer coisa?”); e aceitação (“Se não posso combater a morte, posso ao menos me preparar para ela.”). Mais tarde, Kübler-Ross aplicou esse esquema a qualquer forma de perda pessoal catastrófica (desemprego, morte de um ente querido, divórcio, drogadição), e enfatizou que esses estágios não necessariamente vêm na mesma ordem, e que nem todo paciente passa pelos cinco estágios.

É possível identificar os mesmos cinco estágios sempre que uma sociedade se depara com alguma ruptura traumática. Tomemos a ameaça de uma catástrofe ambiental, por exemplo. Primeiro, tendemos a negá-la: “Não passa de uma grande paranoia, na verdade são apenas as oscilações comuns dos padrões climáticos”. Daí vem a raiva – dirigida contra as grandes corporações que poluem nosso meio ambiente, contra o governo que ignora os perigos, contra a cultura de toda uma geração etc. –, seguida por tentativas de negociação: “Se reciclarmos nosso lixo, conseguiremos ganhar algum tempo; além disso, há um lado positivo: as embarcações terão condição de transportar bens da China para os Estados Unidos com muito mais rapidez pela rota do norte, novas terras férteis estão aparecendo no norte da Sibéria em função do derretimento do pergelissolo”. Depois disso, é claro, a depressão (o sentimento de que é tarde demais, de que tudo está perdido) e, finalmente, a aceitação de que estamos diante de uma ameaça séria e precisamos mudar todo o nosso modo de vida.

Isso vale também para a crescente ameaça do controle digital sobre nossas vidas. A primeira tendência é a negação: “É um exagero, uma paranoia esquerdista, nenhuma instância pode controlar nossas atividades cotidianas”. Depois explodimos em raiva e indignação diante das grandes empresas e agências estatais secretas que nos conhecem melhor que nós mesmos e utilizam esse conhecimento para nos controlar e manipular. No estágio seguinte, da negociação, vemos raciocínios do tipo: “As autoridades têm direito de buscar terroristas, mas não de violar nossa privacidade”. Depois, a depressão: “É tarde demais, nossa privacidade está perdida, a era das liberdades pessoais acabou” e, por fim, a aceitação, o pleno entendimento de que o controle digital é uma ameaça a nossa liberdade, e que precisamos conscientizar o público de todas as suas dimensões e nos mobilizar para combatê-lo.

Mesmo na esfera da política, isso vale para aqueles que ficaram traumatizados com a eleição de Donald Trump, por exemplo. Primeiro veio a negação (“Não se preocupe, Trump só está fazendo cena, nada vai realmente mudar se ele tomar o poder”), seguida de raiva (dirigida contra as forças obscuras que permitiram que ele tomasse o poder, contra os populistas que o apoiam e representam uma ameaça a nossa substância moral); depois a negociação (“Nem tudo está perdido, talvez as instituições o contenham, vamos só tolerar alguns de seus excessos e focar no principal”); a depressão (“Estamos no caminho do fascismo, a democracia está perdida nos Estados Unidos”) e, por fim, a aceitação de que há um regime político novo nos Estados Unidos, que os bons e velhos tempos da democracia estadunidense acabaram, e que vamos agora ter de encarar o perigo e planejar com tranquilidade como superar o populismo de Trump.

Em tempos medievais, a população de uma cidade afetada reagiu aos sinais de uma peste de maneira parecida. Depois da negação, a raiva diante de “nossa vida pecaminosa, pelas quais agora estamos sendo punidos de maneira tão horrível” (ou mesmo contra a crueldade de Deus, que permitiu que isso ocorresse). Em seguida, as tentativas de negociação e o raciocínio de que afinal as coisas não são tão ruins assim, basta evitar os doentes ou algo do tipo. Curiosamente, na etapa de depressão (“nossa vida vai acabar”), o que se viu foram orgias (“já que nossa vida vai acabar, tiremos dela todos os prazeres que ainda forem possíveis: embriaguez, sexo...”). E, finalmente, houve a aceitação de que a situação afinal era aquela e que o jeito seria ir levando a vida assim mesmo.

E não é assim que estamos lidando com a epidemia do coronavírus que irrompeu no final de 2019? Primeiro, houve a fase da negação, em que se insistiu em dizer: “Não há nada grave ocorrendo, há apenas alguns indivíduos irresponsáveis disseminando pânico”. Depois, o sentimento de raiva – muitas vezes sob forma racista ou anti-Estado: “Os culpados são os chineses sujos ou a ineficiência do Estado em lidar com esse tipo de crise”. Na sequência, entram os raciocínios da fase de negociação: “Ok, há algumas vítimas, mas a situação é menos grave que a SARS e ainda podemos limitar o estrago”. E se nada disso funcionar, bate a depressão (“Não nos enganemos mais, estamos todos perdidos”). Mas como seria a aceitação aqui? É estranho constatar que essa epidemia apresenta um traço em comum com a última rodada de protestos sociais ocorridos na França, em Hong Kong, na América Latina etc., a saber: não são fenômenos que explodem e depois passam; eles permanecem e simplesmente perduram, trazendo medo e fragilidade permanentes a nossas vidas.

Aquilo que devemos aceitar, a realidade com a qual devemos nos reconciliar, é que há uma subcamada de vida – a vida pré-sexual, estupidamente repetitiva, morta-viva dos vírus – que sempre esteve aqui e que sempre estará entre nós como uma sombra escura, representando uma ameaça a nossa própria sobrevivência, sendo capaz de irromper quando menos esperarmos. E em um nível ainda mais geral, a epidemia viral nos lembra do caráter em última instância contingente e desprovido de sentido de nossas vidas. Não importa quão magníficos são os edifícios espirituais que nós, a humanidade, somos capazes de produzir, uma contingência natural estúpida como um vírus ou um meteoro pode acabar com tudo de uma só vez... sem falar na lição de ecologia de que nós, a humanidade, podemos também estar contribuindo sem saber para esse fim.

Voltaremos a isso, mas por ora vale frisar que a aceitação nesse caso pode assumir duas direções. Ela pode significar simplesmente a renormalização da doença, como quem diz: “Ok, as pessoas vão continuar morrendo, mas a vida vai seguir, talvez até haja alguns efeitos colaterais positivos”. Ou a aceitação pode (e deve) nos estimular à mobilização, sem pânico e sem ilusões, para agir em solidariedade coletiva.”

 

 

Noli me tangere

“Não me toques”. Foi isso que, segundo João 20:17, Jesus teria dito a Maria Madalena quando ela o reconheceu depois da ressurreição. De que forma eu, um ateu cristão confesso, interpreto essas palavras? Primeiro, leio-as em conjunto com a resposta de Cristo à pergunta de seu discípulo sobre como saberemos que ele voltou, que ele renasceu. Cristo diz que estará lá sempre que houver amor entre seus fiéis; estará lá não como uma pessoa a ser tocada, mas como o vínculo de amor e solidariedade entre as pessoas. Por isso “não me toques, toca e trata as outras pessoas no espírito do amor”.

Hoje, contudo, em meio à epidemia do coronavírus, somos bombardeados precisamente pelo imperativo de não tocar os outros, mas isolar a nós mesmos, manter uma distância corpórea adequada. O que isso significa quanto ao “não me toques”? As mãos não podem alcançar a outra pessoa, é só de dentro de nós mesmos que conseguimos nos aproximar dos outros – e as janelas para nosso “interior” são nossos olhos. Esses dias, quando você encontra alguém próximo (ou mesmo um estranho) e mantém uma distância adequada, um olhar profundo nos olhos do outro pode revelar mais que um toque íntimo. Em um de seus fragmentos escritos na juventude, Hegel disse: “O ser amado [der Geliebte] não está em oposição a nós, ele é um com nosso ser; só vemos a nós mesmos por meio dele, e assim ele já não é mais um nós – uma charada, um milagre [ein Wunder], que não somos capazes de compreender”[1].

É crucial não interpretar essas duas proposições em oposição, como se o ser amado fosse parcialmente um “nós”, parte de mim mesmo, e parcialmente uma charada. O milagre do amor não é justamente que você é parte de minha identidade bem na medida em que permanece um milagre que não sou capaz de compreender, uma charada não apenas para mim, mas também para você mesmo? Para citar outra passagem conhecida do jovem Hegel: “O ser humano é essa noite, esse nada vazio, que contém tudo em sua simplicidade; uma riqueza inesgotável de representações, imagens, das quais nenhuma pertence a ele – ou está presente. Tem-se um vislumbre dessa noite quando se olha no olho dos seres humanos”[2].

Nenhum coronavírus pode tirar isso de nós – então, há esperança de que o distanciamento corporal irá inclusive fortalecer a intensidade de nossos vínculos com os outros. É somente agora, quando sou obrigado a evitar muitos daqueles que me são próximos, que tenho a experiência plena da presença deles, da importância deles para mim... Já posso ouvir aqui uma risada cínica: “OK, talvez haverá momentos como esses de proximidade espiritual, mas como isso nos ajudará a lidar com a catástrofe em curso? Aprenderemos algo com ela?”.

Hegel escreveu que a única coisa que podemos aprender com a história é que não aprendemos nada com a história, então duvido que a epidemia nos deixará mais sábios. A única coisa que está clara é que ela irá estilhaçar os próprios fundamentos de nossas vidas, provocando não apenas uma imensa quantidade de sofrimento, mas também um caos econômico possivelmente pior que o da Grande Recessão. Não há retorno ao normal, o novo “normal” terá de ser construído sobre as ruínas de nossas antigas vidas, ou nos encontraremos em uma nova barbárie cujos sinais já estão ficando cada vez mais perceptíveis. Então, não bastará tratarmos a epidemia como um acidente infeliz, nos livrar de suas consequências e retornar ao funcionamento tranquilo do velho sistema. Será preciso levantar a pergunta-chave: o que há de errado em nosso sistema atual para sermos pegos despreparados por essa catástrofe, apesar de os cientistas estarem há anos nos alertando sobre ela? Fornecer uma resposta a essa questão demandará muito mais que apenas novas formas de atendimento de saúde global.”

[1] “Der Geliebte ist uns nicht entgegengesetzt, er ist eins mit unserem Wesen; wir sehen nur uns in ihm, und dann ist er doch wieder nicht wir – ein Wunder, das wir nicht zu fassen vermögen.” G. W. F. Hegel, “Entwürfe über Religion und Liebe,” em Frühe Schriften, Werke 1 (Frankfurt, Suhrkamp, 1986), p. 244.

[2] Idem, “Jenaer Realphilosophie”, em Frühe politische Systeme (Frankfurt, Ullstein, 1974), p. 204.

 

 

O diretor-geral da OMS, dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou nesta quinta-feira que, embora as autoridades de saúde pública de todo o mundo possuam a capacidade de efetivamente combater a disseminação do vírus, a organização demonstra preocupação diante do fato de que, em alguns países, o nível de comprometimento político não está à altura do patamar da ameaça. “Essa não é uma simulação. Essa não é a hora de desistir. Esse não é um momento para desculpas. Esse é um momento de fazer absolutamente tudo que for possível. Países vêm traçando planos para cenários como este há décadas. Agora é a hora de agir com base nesses planos”, disse Tedros. “Essa epidemia pode ser revertida, mas somente por meio de uma abordagem coletiva, coordenada e abrangente, que mobilize toda a máquina do governo”.[3]

Poderíamos ainda acrescentar que tal abordagem abrangente deve ir muito além da máquina de governos individuais: ela deve englobar tanto a mobilização local de pessoas fora do controle estatal como a coordenação e colaboração fortes e eficientes em nível internacional. Se milhares de pessoas tiverem de ser hospitalizadas por conta de problemas respiratórios, será necessário um número incrivelmente maior de aparelhos respiradores. Para obtê-los, o Estado deve intervir diretamente, da mesma forma que faz em condições de guerra, quando são necessários milhares de armamentos, e deve poder contar inclusive com a cooperação de outros Estados. Como em uma operação militar, as informações devem ser compartilhadas e os planos totalmente coordenados – é apenas isso que quero dizer quando falo no “comunismo” exigido hoje. Ou, como colocou Will Hutton: “Agora, uma determinada forma de globalização, desregulada, de livre mercado, propensa a crises e a pandemias está certamente morrendo. Mas está nascendo outra forma de globalização, que reconhece interdependência e primazia da ação coletiva amparada em evidências”. A postura predominante ainda hoje é “cada país por si”. “Há proibições nacionais sobre a exportação de produtos-chave como suprimentos médicos, países tendo que recorrer às próprias análises da crise em meio a escassezes localizadas, e abordagens primitivas, aleatórias, em relação à contenção.”[4]

A epidemia do coronavírus não assinala apenas o limite da globalização de mercado; ela assinala também o limite ainda mais fatal do populismo nacionalista que insiste na soberania plena de Estado. Não custa repetir: acabou o “América (ou quem quer que seja) em primeiro lugar!”, visto que a América só pode ser salva por meio de coordenação e colaboração globais. Não estou sendo utópico, não recorro a uma solidariedade idealizada entre os povos. Pelo contrário: a atual crise demonstra claramente como solidariedade e cooperação globais interessam à sobrevivência de cada um de nós, como essa é a única coisa egoísta racional a se fazer. E não se trata apenas da crise do coronavírus: a própria China enfrentou as consequências de uma enorme gripe suína alguns meses atrás, e agora é ameaçada pela perspectiva de uma invasão de gafanhotos. Além disso, como assinalou Owen Jones, a crise climática mata mais pessoas no mundo que o coronavírus, mas não se vê nenhum pânico em torno disso[5].

De um ponto de vista vitalista cínico, seria tentador enxergar o coronavírus como uma infecção benéfica que permite à humanidade se livrar dos fracos, dos idosos e dos doentes, contribuindo assim à saúde global, como alguém que arranca as ervas semipodres de uma horta. A abordagem comunista ampla que estou defendendo é a única forma de realmente abandonar esse tipo de perspectiva vitalista primitiva. Nos debates em curso, já é possível identificar sinais de uma retração da solidariedade incondicional, como no seguinte comentário a respeito do papel dos “três homens sábios” se a epidemia tomar uma feição mais catastrófica no Reino Unido:

Pacientes do Serviço Nacional de Saúde (NHS) podem não receber cuidados de salvamento se as unidades de cuidado intensivo estiverem batalhando para dar conta da demanda durante um surto severo de coronavírus na Inglaterra, alertam médicos. Sob um protocolo assim chamado de “os três homens sábios”, três consultores sênior de cada hospital seriam obrigados a tomar decisões a respeito de racionamento de recursos de cuidado, tais como respiradores e leitos, caso os hospitais fiquem sobrecarregados de pacientes.[6]

Em quais critérios esses “três homens sábios” se baseariam? Sacrificar os mais fracos e os mais idosos? Essa situação não abriria um espaço imenso para corrupção? Não poderíamos dizer que procedimentos como esse indicam que estamos nos preparando para decretar a mais brutal lógica da sobrevivência do mais apto? Então, mais uma vez, a escolha em última instância é entre isso e alguma forma de comunismo reinventado.”

[3] Joshua Berlinger, “WHO warns governments ‘this is not a drill’ as coronavirus infections near 100,000 worldwide”, CNN, 6 mar. 2020. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2020/03/06/asia/coronavirus-covid-19-update-who-intl-hnk/index.html>; acesso em: 2 abr. 2020.

[4] Will Hutton, “Coronavirus won’t end globalisation, but change it hugely for the better”, The Guardian, 8 mar. 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/08/the-coronavirus-outbreak-shows-us-that-no-one-can-take-on-this-enemy-alone>; acesso em: 2 abr. 2020.

[5] Owen Jones, “Why don’t we treat the climate crisis with the same urgency as coronavirus?”, The Guardian, 5 mar. 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/05/governments-coronavirus-urgent-climate-crisis>; acesso em: 2 abr. 2020.

[6] Shaun Lintern, “Coronavirus: Weakest patients could be denied lifesaving care due to lack of funding for NHS, doctors admit”, The Independent, 26 fev. 2020. Disponível em: <https://www.independent.co.uk/news/health/coronavirus-uk-deaths-nhs-intensive-care-flu-wise-men-protocol-a9361916.html>; acesso em: 2 abr. 2020.

 

 

Por que estamos sempre cansados?

A epidemia do coronavírus nos confronta com duas figuras opostas que prevalecem em nossa vida cotidiana: por um lado, aqueles que estão com uma sobrecarga imensa de trabalho a ponto de exaustão (profissionais de saúde, cuidadores etc.) e aqueles que não tem nada para fazer, pois estão forçosa ou voluntariamente confinados em seus lares. Como alguém pertencente à segunda categoria, me sinto obrigado a utilizar essa condição para propor uma breve reflexão a respeito das diferentes maneiras pelas quais podemos nos sentir cansados. Vou ignorar o paradoxo evidente de como a própria inatividade forçada também cansa, então permita-me começar com o filósofo Byung-Chul Han, que forneceu uma leitura sistemática de como e por que vivemos em uma “sociedade do cansaço”[1]. Aqui vai uma sinopse curta da obra-prima dele, que copiei direto da Wikipédia, sem nenhuma vergonha:

Movidos pela demanda de perseverar e não fracassar, bem como pela ambição da eficiência, nos tornamos sujeitos ao mesmo tempo do comprometimento e do sacrifício e adentramos uma espiral de demarcação, autoexploração e colapso. “Quando a produção é imaterial, todo mundo detém os meios de produção de si. O sistema neoliberal não é mais um sistema de classes propriamente dito. Ele não consiste em classes que apresentam antagonismo mútuo. Daí a estabilidade do sistema.” Han defende que os sujeitos se tornam autoexploradores: “Hoje, cada um é um trabalhador autoexplorador em sua própria empresa. As pessoas são agora ao mesmo tempo senhor e escravo. Até mesmo a luta de classes converteu-se em uma luta interna contra si mesmo”. Os indivíduos tornaram-se aquilo que Han denomina “sujeitos-realização”; eles não acreditam ser “sujeitos” subjugados, mas “projetos em constante remodelação e reinvenção”, o que “culmina em uma forma de compulsão e coação – de fato, em um tipo mais eficiente de subjetivação e subjugação. Como um projeto que se considera livre de limitações externas e alienígenas, o Eu está agora subjugando a si mesmo conforme limitações internas e autoamarras, que assumem a forma de conquistas e otimização compulsivas.[2]

Embora Han ofereça sacadas perspicazes a respeito do novo modo de subjetivação, e com as quais podemos aprender muito (o que ele identifica é a figura atual do superego), eu, não obstante, penso que é preciso pontuar algumas observações críticas. Primeiro, as limitações e amarras definitivamente não são apenas internas: há novas regras estritas de comportamento sendo impostas, especialmente entre os membros da nova classe “intelectual”. Basta pensar, por exemplo, nas amarras politicamente corretas que formam uma esfera especial de “luta contra si mesmo” em relação às tentações “incorretas”. Ou vejam o seguinte caso de uma limitação muito externa: alguns anos atrás, Udi Aloni organizou a vinda a Nova York do grupo palestino de Jenin, The Freedom Theatre, e uma reportagem a respeito da visita para o The New York Times quase deixou de ser publicada. Pediram que Aloni indicasse sua publicação mais recente para a matéria, e ele citou um volume que havia editado. O problema era que a palavra “binacional” constava no subtítulo do livro. Com medo de indispor os israelenses, o jornal exigiu que a palavra fosse deletada, caso contrário a matéria não seria publicada...

Um exemplo parecido, mais recente: a escritora inglesa-paquistanesa Kamila Shamsie escreveu o romance Home Fire, uma versão modernizada muito bem-sucedida de Antígona, que recebeu vários prêmios internacionais, dentre os quais o prêmio Nelly Sachs, concedido pela cidade de Dortmund. No entanto, quando se soube que ela apoiava o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), o prêmio lhe foi retroativamente revogado com a explicação de que, quando decidiram conceder o reconhecimento a ela, “os membros do júri não tinham consciência de que a autora estava participando das medidas de boicote contra o governo de Israel por conta de suas políticas em relação à Palestina desde 2014”[3]. É aqui que estamos hoje: Peter Handke recebe tranquilamente o Nobel de Literatura, apesar de apoiar as operações militares sérvias na Bósnia, mas apoiar um protesto pacífico contra a política de Israel na Cisjordânia te exclui da esfera dos prêmios.

Em segundo lugar, a nova forma de subjetividade descrita por Han é condicionada pela nova etapa do capitalismo global, que permanece um sistema de classes com desigualdades crescentes – lutas e antagonismos não podem de forma alguma ser reduzidos à dimensão intrapessoal da “luta contra si mesmo”. Ainda existem milhões de trabalhadores manuais em países de Terceiro Mundo, e há diferenças enormes entre os diferentes tipos de trabalhadores imateriais (basta mencionar a esfera crescente de “serviços humanos” como cuidadores de idosos). Há um abismo que separa o executivo de alto escalão que possui e gere uma empresa do trabalhador precário que passa seus dias sozinho em casa em frente ao computador – eles definitivamente não são simultaneamente senhor e escravo no mesmo sentido.

Muito se tem escrito a respeito de como o velho modo de trabalho na linha de produção fordista teria sido substituído por uma nova modalidade de trabalho cooperativo de criação que deixa muito mais espaço para a inventividade individual. No entanto, o que está efetivamente ocorrendo não é tanto uma substituição, mas uma terceirização: o trabalho na Microsoft e na Apple pode ser organizado de maneira cooperativa, mas os produtos finais são montados de maneira bastante fordista na China ou na Indonésia – o trabalho do chão de fábrica na linha de produção foi simplesmente terceirizado para fora do país. Assim, ficamos com uma nova divisão do trabalho: trabalhadores autoempregados e autoexplorados (descritos por Han) no Ocidente desenvolvido, trabalho debilitante na linha de produção no Terceiro Mundo, além da esfera crescente de trabalhadores de cuidado humano em todas as suas formas (cuidadores, garçons etc.), em que também abunda a exploração. Somente o primeiro grupo (trabalhadores autônomos, geralmente precários) se encaixa na descrição de Han.

A cada um dos três grupos corresponde uma modalidade específica de cansaço e sobretrabalho. O trabalho de chão de fábrica na linha de produção é simplesmente debilitante em sua repetitividade – você fica desesperadamente cansado de tanto montar o mesmo iPhone atrás de uma mesa em uma fábrica da Foxconn localizada em um subúrbio de Xangai. Em contraste com esse cansaço, o que faz do trabalho de cuidado humano algo tão cansativo é justamente o fato de que você é pago (também) para demonstrar verdadeira afeição em seu trabalho, como se você realmente se importasse com seus “objetos” de trabalho: uma pessoa que trabalha em um jardim de infância também recebe para demonstrar afeto sincero pelas crianças, e o mesmo vale para aqueles que cuidam de idosos aposentados etc. Dá para imaginar o estresse de ter de “ser gentil” o tempo inteiro? Em contraste com essas duas esferas, em que ao menos podemos manter algum tipo de distância interior em relação àquilo que estamos fazendo (mesmo quando é esperado que tratemos uma criança com afeto e gentileza, ainda podemos simplesmente fingir fazê-lo), a terceira esfera demanda algo ainda mais cansativo. Imagine que sou contratado para elaborar como divulgar ou embalar um produto a fim de seduzir as pessoas a comprarem-no – ainda que eu pessoalmente não me importe com isso ou, ainda, odeie a ideia, preciso mobilizar de maneira um tanto intensa aquilo que só poderíamos chamar de criatividade na tentativa de encontrar soluções originais, e um esforço desse tipo pode me exaurir muito mais que um trabalho repetitivo de linha de produção. Esse é o tipo específico de cansaço ao qual Han está se referindo.”

[1] Ver Byung-Chul Han, The Burnout Society (Redwood City, Stanford University Press, 2015) [ed. bras.: Sociedade do cansaço, trad. Enio Paulo Giachini, Petrópolis, Vozes, 2015].

[2] Ver o artigo da Wikipédia sobre Byung-Chul Han. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Byung-Chul_Han>; acesso em: 2 abr. 2020.

[3] Mustafa Abu Sneineh, “Kamila Shamsie stripped of German literary prize over support for BDS”, Middle East Eye, 18 set. 2020. Disponível em: <https://www.middleeasteye.net/news/german-city-reverse-prize-uk-author-kamila-shamsie-over-support-bds>; acesso em: 2 abr. 2020.

 

 

Abster-se de apertos de mãos e isolar-se quando necessário é a forma atual de solidariedade.”

 

 

Em trabalhos anteriores, usei ao menos uma dezena de vezes a velha piada sobre o homem que acredita ser um grão de milho. O sujeito é levado a uma instituição mental em que os médicos fazem de tudo para o convencerem de que ele de fato é um ser humano, não um grão de milho. Quando finalmente recebe alta (enfim curado e plenamente seguro de não ser um grão de milho) e lhe permitem deixar o hospital, o homem imediatamente volta, tremendo. Há uma galinha na porta e ele teme que ela tentará comê-lo. “Mas, meu caro”, diz o médico, “você sabe muito bem que não é um grão de milho, e sim um homem”. “É claro que eu sei”, responde o paciente, “mas a galinha sabe disso?”. Meu amigo croata Dejan Kršić recentemente me enviou uma atualização dessa piada para o contexto do coronavírus: “Olá, meu amigo!” “Bom dia, professor!” “Por que você está usando máscara? Duas semanas atrás você afirmava por aí que as máscaras na verdade não nos protegem contra o vírus…” “Sim, eu sei que elas não funcionam, mas talvez o vírus não saiba!”

Essa versão da piada ignora um fato crucial: o vírus não sabe de nada (e também não deixa de saber de nada) porque nem sequer pertence ao domínio do conhecimento. Não se trata de um inimigo tentando nos destruir; ele simplesmente se autorreproduz com um automatismo cego. Algumas pessoas de esquerda evocam outro paralelo: será que o próprio capital não pode igualmente ser considerado um vírus que parasita a humanidade? Afinal, ele também é um mecanismo cego dotado de uma tendência implacável à autoreprodução expandida, manifestando total indiferença ao nosso sofrimento. Há, contudo, uma diferença-chave em operação aqui: o capital é uma entidade virtual que não existe na realidade independentemente de nós – ele só existe porque nós, seres humanos, participamos do processo capitalista. Como tal, o capital é uma entidade espectral: se parássemos de agir como se acreditássemos nele (ou, digamos, se um poder estatal nacionalizasse todas as forças produtivas e abolisse o dinheiro), o capital deixaria de existir, ao passo que o vírus constitui uma parte da realidade com a qual só podemos lidar por meio da ciência.”

 

 

Estamos passando hoje por algo que até pouco tempo atrás considerávamos impossível: as coordenadas básicas do nosso mundo da vida estão desaparecendo. Nossa primeira reação ao vírus foi presumir que ele não passava de um pesadelo do qual logo acordaríamos. Agora sabemos que isso não vai ocorrer. Precisamos aprender a viver em um mundo viral. É necessário reconstruir, dolorosamente, um novo mundo da vida.

Mas há outra combinação de discurso e realidade em operação na atual pandemia: existem processos materiais que só podem ocorrer se forem mediados por nosso conhecimento sobre eles. Ou seja, nos é dito que algo catastrófico ocorrerá conosco, buscamos escapar desse desfecho, mas, por meio de nossas próprias tentativas de evitá-lo, ele acaba ocorrendo… Lembre-se da velha história árabe sobre o “compromisso em Samarra”, recontada por W. Somerset Maugham. Nela, um servo cumprindo incumbências no movimentado mercado de Bagdá se depara com a Morte. Aterrorizado por seu olhar fixo, volta correndo para a casa de seu senhor e lhe pede um cavalo para cavalgar o dia todo a tempo de chegar ao anoitecer a Samarra, onde a Morte não o encontraria. O bom senhor não apenas concede o cavalo ao servo, como vai pessoalmente ao mercado atrás da Morte para confrontá-la por ter afugentado seu fiel servo, ao que ela responde: “Mas eu não queria assustar seu servo. Só não entendi o que ele estava fazendo aqui, sendo que tenho um compromisso em Samarra hoje à noite…”.

E se a mensagem dessa história não for que a morte do sujeito é inevitável, de que tentar se desvencilhar dela só acabará reforçando ainda mais sua inelutabilidade, mas o exato oposto: a saber, se aceitarmos o destino como impreterível, é possível se desvencilhar de suas garras? Os pais de Édipo recebem um presságio de que o filho deles assassinaria seu pai e esposaria a própria mãe, e são justamente as medidas que o casal toma para evitar esse destino (expondo o filho à morte por abandono no monte Citerão) que garantem o cumprimento da profecia – sem essa tentativa de desviar-se do presságio, a profecia não teria se realizado.

Não poderíamos dizer que se trata de uma parábola perfeita para descrever o destino da intervenção estadunidense no Iraque? Os Estados Unidos viram sinais da ameaça fundamentalista, intervieram a fim de evitá-la, mas com isso acabaram, na verdade, a fortalecendo. Não teria sido muito mais eficaz aceitar a ameaça, ignorá-la e, assim, quebrar seu garrote? Então, voltando a nossa história, imagine que, ao se deparar com a Morte no mercado, o servo optasse logo por abordá-la à queima-roupa: “Qual é seu problema comigo? Se você tem algo a fazer comigo, ora, que faça de uma vez. Caso contrário, caia fora!”. Perplexa, a Morte balbuciaria algo do tipo “Mas… era para nos encontrarmos em Samarra. Não posso te matar aqui!” e fugiria (provavelmente para Samarra). Aqui reside a aposta do assim chamado plano da “imunidade de rebanho” para enfrentar o coronavírus.

O objetivo declarado tem sido atingir a “imunidade de rebanho” a fim de lidar com o surto e prevenir uma “segunda onda” catastrófica no próximo inverno […]. Uma enorme parcela da população – grosso modo, qualquer um com até quarenta anos de idade – se encontra em situação de risco mais baixo de desenvolver uma doença severa. Assim o raciocínio é de que, ainda que em um mundo perfeito o ideal seria que ninguém tivesse que correr o risco de se infectar, gerar imunidade nos mais jovens é uma forma de proteger a toda a população.[8]

A aposta aqui é de que, se agirmos como se não soubéssemos, isto é, se na prática ignorarmos a ameaça, quem sabe o dano real seja menor do que se agirmos conscientemente. É disso que os populistas conservadores tentam nos convencer: a Samarra de nosso compromisso é nossa ordem econômica vigente e nosso modo de vida como um todo, de forma que, se escutarmos o alerta dos epidemiologistas e reagirmos a ele tentando escapar de nossa realidade (implementando políticas de isolamento e lockdown etc.), acabaremos ensejando uma catástrofe ainda maior (pobreza, sofrimento…) que a pequena porcentagem de mortes decorrentes do vírus em si.

No entanto, como bem notou Alenka Zupančič[9], o “vamos voltar ao trabalho” é um caso exemplar da falsidade da preocupação de Trump com a classe trabalhadora: ele se dirige a pessoas comuns de baixa renda para as quais a pandemia também significa uma catástrofe econômica, pessoas que não têm condições financeiras de se isolar e para as quais o colapso econômico representa uma ameaça ainda maior que o vírus. A pegadinha aqui, é claro, é dupla. Primeiro, a política econômica de Trump (desmantelamento do Estado de bem-estar social) é em larga medida responsável pelo fato de muitos trabalhadores de baixa renda se encontrarem em uma situação calamitosa a ponto de a pobreza representar, para eles, uma ameaça maior que o próprio vírus. Segundo, aqueles que realmente “voltariam a trabalhar” são eles, os pobres, enquanto os mais ricos permaneceriam confortavelmente em isolamento.

Devemos sempre ter em mente que, para que alguns de nós possamos nos autoisolar, há aqueles que não o podem fazer – não apenas todas as pessoas que tornaram possível nosso isolamento (profissionais de saúde, produtores de alimentos, entregadores e trabalhadores responsáveis por cuidar do fornecimento de eletricidade, água e outros serviços básicos), mas também refugiados e populações que simplesmente não dispõem de nenhum lugar (“casa”) onde se retirar em autoisolamento. Como explicar aos milhares de pessoas confinadas em um campo de refugiados a necessidade de manter distanciamento social? Basta lembrar o caos ocorrido na Índia quando o governo determinou uma paralisação de catorze dias, com milhões de pessoas tentando se deslocar das grandes cidades para o campo… (...)

O desfecho mais provável da epidemia é o prevalecimento de um novo capitalismo bárbaro: muitos fracos e idosos serão sacrificados e abandonados à morte, os trabalhadores terão de aceitar um padrão muito mais baixo de vida, o controle digital de nossa vida perdurará como uma característica permanente, as distinções de classe devem se tornar ainda mais que hoje uma questão de vida ou morte… Quantas das medidas comunistas que aqueles no poder agora se veem obrigados a aplicar permanecerão?

Por isso, não devemos perder tempo demais com meditações espiritualistas new age a respeito de como “a crise do vírus nos permitirá focar no real significado de nossa vida”. A verdadeira luta se dará em torno de qual forma social substituirá a nova ordem mundial liberal-capitalista. Esse é nosso verdadeiro compromisso em Samarra.”

[8] William Hanage, “I’m an epidemiologist. When I heard about Britain’s ‘herd immunity’ coronavirus plan, I thought it was satire”, The Guardian, 15 mar. 2020.

[9] Comunicação particular.

[10] Provavelmente não existe nenhum livro meu em que eu não me refira ao menos uma vez a essa cena.

[11] Ver Ryszard Kapuscinski, Shah of Shahs (Nova York, Vintage, 1992) [ed. bras.: O xá dos xás, trad. Tomasz Barcinski, São Paulo, Companhia das Letras, 2012].

Um comentário:

Doney disse...

Existem algumas pequenas e irrelevantes diferenças entre o texto aqui publicado e o livro físico (como se esta versão digital tivesse uma revisão a menos que o livro).