quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Entre a fé e a razão: Deus, o mundo e o homem na filosofia medieval (Parte I), de Everson Araujo Nauroski

Editora: InterSaberes

ISBN: 978-85-5972-066-2

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 214

Sinopse: Ao estudarmos a filosofia medieval, podemos, além de conhecer os problemas que foram objeto de análise dos pensadores daquela época, perceber que muitas dessas questões também são foco da filosofia moderna e ainda estão presentes na contemporaneidade. Sendo assim, para entendermos a base de conflitos atuais, como a intolerância religiosa, precisamos investigar aspectos como o princípio da fé e da crença em Deus e a relação entre ciência e religião. Para ajudá-lo nessa tarefa, vamos apresentar-lhe as ideias de autores medievais que contribuíram para que pudéssemos compreender a figura de Deus na vida do homem.



“A conduta de Deus, que dispõe todas as coisas com suavidade, é colocar a religião no espírito pela via da razão e no coração por meio da graça. Mas querer colocá-la no espírito e no coração pela força e pelas ameaças contradiz o sentido mais profundo da religião e a leva ao terror.” (Blaise Pascal)

 

 

“Da mesma forma que um círculo de uma polegada de diâmetro e um círculo de quarenta milhões de milhas de diâmetro tem exatamente as mesmas propriedades geométricas, as aventuras e a história de uma aldeia e de um império são essencialmente as mesmas, e podemos, com tanta facilidade na história da primeira quanto na do segundo, estudar e conhecer a humanidade.” (Schopenhauer)

 

 

“A concepção da escola estoica é a de que existe uma razão superior (logos) que governa o Universo, já que tudo o que acontece no mundo de alguma forma reflete um sentido, um fim, portanto, uma teleologia sobre os destinos humanos. Outro importante ensinamento refere-se ao dever e à reta razão. Para o estoico, mesmo diante da dor e do sofrimento, a conduta deve ser guiada pela reta razão, que, em última análise, precisa se conformar com o logos que a tudo governa. Embora o homem não possa, em sua condição finita e limitada, alcançar os desígnios mais profundos que cercam o sentido do mundo e de sua vida, deve confiar no logos e aceitar seus desígnios, conformando-se com a misteriosa vontade dele.

Para a escola estoica, o sentido da vida consiste em deixar as coisas de acordo com a ordem natural.

Entre os mais renomados estoicos está Marco Túlio Cícero, que viveu entre 106 a.C. e 43 a.C. e também foi filósofo, orador, escritor e advogado. Nele podemos encontrar a seguinte interpretação sobre a razão de que falava Zenão:

A razão reta, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com seus mandados, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons, nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo Senado; não há que procurar para ela outro comentador nem intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, uma antes e outra depois, mas una, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-se a si mesmo, sem despojar-se do seu caráter humano e sem atrair sobre si a mais cruel expiação, embora tenha conseguido evitar todos os outros suplícios. (Cícero, Da república, 1995, p. 75)”

 

 

“Tomando as palavras acima, sem referência a seu autor e à época em que foram escritas, poderíamos dizer com tranquilidade que se trata da fala de um teólogo católico da Idade Média, defendendo que Deus é fonte última do bem, da lei e da justiça. Aliás, séculos depois, essa temática foi retomada por Santo Tomás de Aquino, quando expôs argumentação similar informando que o fundamento da lei natural é a lei divina, a qual pode o homem captar com sua inteligência.

A seguir, apresentamos uma tira contemporânea que remete aos ensinamentos estoicos.

 


A tira de Calvin e Haroldo trata da felicidade, um assunto importante na temática da filosofia estoicista. Para os estoicos, o segredo da felicidade é o bem viver, e é necessário aceitar como naturais o sofrimento e a morte. Na tira, essa ideia é reforçada como parte de uma razão maior, que, embora se manifeste nas leis da natureza e no ciclo da vida, pelo homem, por sua condição finita e limitada, não pode ser plenamente compreendida, restando ao estoico a conformidade e a aceitação. Por meio dessa atitude de conformidade; racionalizada, é possível viver em paz. Trata-se de uma questão com a qual nos deparamos cotidianamente; as perdas que sofremos de entes queridos, por exemplo, impõem a nós a necessidade de dar um sentido ao sofrimento e à morte.

Como mencionamos anteriormente, as filosofias helenísticas, como é o caso do estoicismo, buscavam apresentar uma alternativa ao problema da vida, que antes estava associado à vida pública na pólis. Contudo, num mundo em transformação e sob o domínio de um império, o caminho da felicidade talvez esteja na vida interior, no fortalecimento da própria subjetividade diante dos infortúnios. Ver o sofrimento e a morte como parte da vida constitui um dos pilares do estoicismo.

De modo geral, o homem estoico representa o protótipo do cristão – um indivíduo de vida simples e austera, de temperamento equilibrado e vontade inquebrantável, alguém que entrega sua vida ao logos (Deus), que governa o Universo. A partir dessa entrega, a vida ganha um novo sentido, e a felicidade surge como um horizonte de conformação com a vontade divina, com a crença de que Deus conhece e traçou todos os destinos dos homens e de que a vida orientada pela palavra divina e pelo magistério da Igreja garante a salvação dos convertidos.”

 

 

“A alternativa para vencer o mal e alcançar a salvação trazida pelo cristianismo teve na forma teísta, organizada com base em uma teologia racionalizada, sua grande novidade. Nesse momento, a herança recebida da religião judaica foi elevada a um novo nível, pois a doutrina monoteísta ganhou novos contornos conceituais com o pensamento platônico-aristotélico. Crer num único Deus criador e salvador tomou a forma de uma doutrina filosófica e moral ordenadora da vida individual e social. Assim, a reformulação conceitual em torno do mal passou a ser repensada com base no conceito de pecado como expressão do livre-arbítrio do homem. Ou seja, o mal é acima de tudo uma condição moral do homem que se afastou de Deus. Essa formulação, aliás, recebera no pensamento agostiniano sua forma mais acabada (Eliade, Tratado de história das religiões, 2008).

Foi assim que, com base na filosofia cristã, desenvolveu-se uma doutrina da salvação que se converteu numa teleologia totalizante. O relato bíblico da criação e do pecado original colocou a humanidade como escopo escatológico, que encontraria redenção pela morte e ressurreição de Jesus. Viver, sob a ótica da moral cristã, passou a ser visto como assumir a condição de culpabilidade pelo pecado original e receber uma nova vida pelo batismo. Assim, a filosofia cristã tomou a forma de uma doutrina moral que se materializou nos sacramentos e na aceitação dos dogmas de fé. Apesar disso, trata-se de uma doutrina que só ganha sentido e consistência por versar sobre verdades de fé racional e conceitualmente elaboradas.”

 

 

“Destacamos a patrística por sua importância nos primeiros séculos do cristianismo, servindo como referência dentro da filosofia e da teologia católicas. Os primeiros padres da Igreja produziram uma teologia de afirmação e defesa das verdades reveladas. Esses primeiros teólogos lançaram as linhas mestras da doutrina católica e tiveram como seu maior expoente, por sua abrangência e profundidade, Santo Agostinho.

 

3.1 Em defesa da fé: os padres apologistas gregos

O cristianismo surgiu como uma religião urbana que, ao se expandir para fora das cidades, em direção ao campo, deparou com práticas e cultos religiosos já organizados. Convencionou-se chamar de paganismo o conjunto dessas religiões, que em grande parte tinham em comum crenças politeístas (Eliade, 2008). O sentido etimológico da palavra paganismo remete a pagão, palavra de origem latina, paganus, “aquele que mora no pagus, no campo, no Interior”, em clara oposição a urbanus, termo que se refere aos moradores da cidade (Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa, 2010). Esse encontro foi marcado por violentos processos de aculturação e assimilação por parte do cristianismo. Além disso, é importante lembrar que, antes de ser oficializada, a religião cristã era vista como uma seita e seus adeptos, por não aceitarem o politeísmo, eram perseguidos pelas autoridades romanas.

O sentido das apologias dos primeiros padres da Igreja também esteve associado à defesa da fé e dos cristãos tanto perante as autoridades romanas perseguidoras quanto perante os defensores do paganismo.

Nesse panorama, a patrística abarcou u m variado número de pensadores, teólogos, padres e escritores. Em seu início, figuravam os chamados padres apostólicos, que receberam esse nome pela sua importância religiosa na elaboração da doutrina cristã e pela proximidade cronológica que tiveram com os discípulos diretos dos primeiros apóstolos. Outro grupo, chamado de apologista, realizou uma defesa racional do cristianismo contra a religião pagã.

A defesa feita pelos padres apologistas tinha uma dupla tarefa: defender o cristianismo dos ensinamentos e práticas do paganismo e contra a intolerância religiosa do Estado romano. Essa intolerância estava relacionada ao pouco controle que a nova seita – em expansão – permitia por parte dos centros de poder. A situação, aliás, perdurou por pelo menos três séculos antes de o cristianismo ser oficializado (Gilson, A filosofia na Idade Média, 2002).”

 

 

3.2.1 A teoria do conhecimento

Assim como Platão, que buscou na filosofia a solução para o problema da vida, a filosofia de Agostinho possui um forte acento teleológico, de cunho teísta e espiritual, algo que falta no platonismo. Para Agostinho, o cristianismo, como religião e filosofia de vida, consegue dar uma resposta integral ao problema da vida, pois o conhecimento de Deus, da alma e do mundo espiritual oferece um caminho seguro para o homem. Para ele, a salvação que vem pela palavra de Cristo e pela prática de seus ensinamentos supera a iluminação da alma em Platão. Desse modo, a humanidade ganha status de transcendência definitiva no modo como Agostinho interpreta o sentido do pecado e da ressurreição da carne inaugurada por Cristo (Agostinho, Confissões, 2000).

No entanto, podemos afirmar que, como bispo de Hipona, Agostinho rompeu com a postura cética de perpétua suspeição diante do mundo, numa clara concordância com Platão sobre a possibilidade e o progresso do conhecimento das realidades mais profundas: o uno, o belo, o bem, as ideias e as almas. Contudo, ele o faz agora num sentido cristianizado, identificando nessas realidades, de alguma forma, a figura da Santíssima Trindade e das virtudes cristãs. Deus é o uno eterno que congrega em si e a partir de si todas as coisas, todas as formas e essências, a unidade, a beleza e a bondade. O homem, como possui em si a centelha divina, pode, com o auxílio da graça de Deus, conhecer esses mistérios.

O pensamento agostiniano sobre as faculdades e o conhecimento humano está profundamente relacionado ao seu conceito de graça, traduzido alegoricamente pela relação entre a luz natural e a luz divina. Assim como a luz natural é necessária para aguçar o sentido da visão (quando ilumina o olho humano), a luz que vem da graça divina ilumina o entendimento dos homens. Dessa maneira, eles podem compreender a vontade d e Deus, inscrita sutilmente na sua obra, especialmente na mente e no coração daqueles que se abrem aos seus mistérios. É uma linha de raciocínio que conserva muito do dualismo platônico.

Apesar de moderado, Agostinho reforçou o argumento de que a inteligência humana é concebida como uma faculdade da alma, centelha do criador a impulsionar o homem ao conhecimento das coisas divinas (Agostinho, O livre-arbítrio, 1995). O inatismo platônico, segundo o qual o conhecimento que a alma adquire em sua existência material é na verdade um processo de relembrar o conhecimento que habita nela desde a eternidade, é reelaborado por Agostinho numa concepção teísta-cristã. Ou seja, todo conhecimento acerca de Deus e das coisas divinas só pode ser alcançado pela iluminação do intelecto humano, obtida com o auxílio de Deus.

A doutrina da graça beneficia o homem tanto no aspecto intelectual, quando Deus lhe permite conhecer a sua vontade, quanto no aspecto espiritual, quando Deus resgata o homem do pecado. A graça suprema foi dada aos homens por meio de Jesus Cristo, oferecido em sacrifício por toda a humanidade. Somente pela graça e pela aceitação de Cristo pode o homem superar sua condição debilitada pelo pecado e chegar à salvação.

 

3.2.2 A metafísica

O conhecimento das realidades inacessíveis à experiência empírica e dos objetos intangíveis próprios da metafísica está ancorado na concepção gnosiológica de Agostinho. Entre esses objetos, a natureza de Deus é definida não só por seus atributos mais fundamentais, de onisciência, onipotência e onipresença, mas por sua personificação, ou seja, Ele é entendido como uma pessoa divina, dotada de consciência e vontade, bem diferente do uno platônico eternamente impassível.

O Deus cristão sobre o qual a metafísica agostiniana se debruça representa em si a unidade, a beleza e a bondade. Sua natureza se expressa como a de um ser racional, eterno, imutável, de composição simples, de espírito puro e, ainda assim, um ser pessoal, de amor, que escolhe relacionar-se com sua criação. Trata-se de um Deus que é Pai, que se importa com seus filhos e os ouve. Tal convicção é expressa poeticamente por Agostinho:

Tarde vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém me chamastes com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o, a plenos pulmões, suspirando por Vós. Eu vos saboreei, e agora tenho fome e sede de Vós. Vós me tocastes e ardi no desejo da vossa paz. (Agostinho, 2000, p. 285)

Agostinho elabora ainda uma cosmologia cristã partindo da perspectiva dualista de viés platônico, n a qual a realidade material do mundo é pensada como condição só possível em sua dimensão temporal. O próprio tempo não existia antes da criação e, como tudo o que existe no céu e na terra, também foi criado por Deus. Nesse ponto, podemos enxergar uma aproximação de Agostinho com Santo Tomás de Aquino, em relação a pensar Deus como a causa primeira, fonte originária de todas as coisas.

 

3.2.3 Sobre a alma e o bem moral

A alma pode ser entendida como substância simples criada por Deus, do qual possui um conhecimento intuitivo, uma inclinação para o absoluto. Isso é traduzido por Agostinho na seguinte máxima: “fizeste-nos para Vós, Senhor, e nosso coração permanecerá inquieto enquanto em Vós não repousar” (Agostinho, 2000, p. 145).

A psicologia agostiniana sobre a alma assume a forma de um tratado de introspecção no seu livro Confissões. Ao longo se suas páginas, o bispo de Hipona mergulha fundo em sua trajetória espiritual, interrogando-se acerca da condição humana, da relação entre corpo e alma e da busca por Deus.

Retomando o dualismo platônico, Agostinho coloca em oposição corpo e alma. Nesse sentido, o corpo, como parte da matéria, obra da criação divina, é bom por natureza. No entanto, a condição de união acidental entre corpo e alma predispõe esta a buscar as coisas superiores, enquanto aquele tem suas próprias demandas, desejos, necessidades, apetites, que o lançam em direção ao mundo físico e material. Trata-se de uma tendência que Agostinho localiza na queda do casal bíblico original. Se em Platão essa condição de antagonismo e seu correspondente sofrimento são superados pela meditação filosófica, no equilíbrio entre intelecto, vontade e instintos, em Agostinho a superação dessa condição só pode vir pela vida espiritual ascética e pela salvação que Deus concede aos seus eleitos.

Seguindo essa linha de raciocínio, o sentido da ação moral é a conduta prática que direciona o cristão a vivenciar sua fé e dar testemunho mediante seu comportamento e suas atitudes perante as demandas da sociedade. A alma deve dominar o corpo e submetê-lo a uma vida de rigor, ascese e purificação. A vontade do cristão e sua fortaleza de ânimo são o que o diferenciam daqueles que estão distantes de Deus e de sua palavra revelada em Cristo. Ou seja, a ética agostiniana é de caráter teônomo e repousa em Deus como fonte de todo o bem.

Nesse sentido, o homem que pratica o bem vivencia o amor de Deus tanto no sentido individual, pois se aproxima de sua salvação, quanto no sentido social e comunitário, dando testemunho de sua fé. Entretanto, como ser dotado de vontade e de liberdade, o homem também pode se desviar do amor de Deus, o que enseja o mal no mundo. O mal, portanto, é fruto do uso equivocado do livre-arbítrio e tem sua origem na ação humana, e não em Deus. Agostinho admite o mal, mas não como uma entidade ou princípio metafísico com existência própria, e sim como uma ausência do bem, oriundo das más ações dos homens (Agostinho, 1995).

Dessa forma, para Agostinho, Deus, em sua condição divina, não pode ser atingido pelas ações humanas. É ignorância e pretensão da criatura achar que pode ofender o criador. Todo pecado é, na verdade, um ataque contra o próprio indivíduo. O efeito negativo se dirige àquele que peca, pois degrada sua própria natureza e filiação divina. O pecador coloca-se num caminho obscuro que o afasta da verdadeira sabedoria e da felicidade que só podem vir de Deus. Desde Adão, a vontade humana está viciada, por assim dizer, de modo que, sem o concurso da graça, é impossível ao homem elevar-se e obter a salvação. Nesse sentido, Agostinho, com sua teoria da graça, rompe definitivamente com a ética pagã, para a qual o homem, por força de sua vontade e intelecto, pode se salvar (Gilson, 2002).

Por fim, o mal moral que se abatera sobre os herdeiros de Adão projeta-se em toda a sociedade. O pecado original se traduz numa natureza humana corrupta e propensa ao mal, que se evidencia nas leis dos homens que usurpam os dons da criação. Assim, Agostinho tende a um jusnaturalismo de viés bíblico e religioso. Sabemos, contudo, que classificar seus ensinamentos dessa forma pode soar contraditório, pois, seguindo a esteira do apóstolo Paulo, a doutrina social de Agostinho prega a conformação com a ordem em seu tempo, vendo na obediência e na caridade alternativas para superar a corrupção e o pecado na vida social.

 

3.2.4 A questão do mal

Quando nos aprofundamos no estudo sobre a discussão de Agostinho em torno do mal, levanta-se uma questão de fundo: se Deus é o sumo bem e tudo o que ele cria é bom, como pode existir o mal? A resposta foi dada por Agostinho, inicialmente, na obra Confissões. Após ter investigado o que seria o mal, o autor não encontrou substância nele e o desconsidera como uma consequência da vontade humana quando desviada. Desse modo, para Agostinho (1995, p. 44),

Quem duvidará que isso a que chamamos de mal não é outra coisa que a corrupção? Certamente os distintos males podem designar-se com distintos termos, mas o mal de todas as coisas que se podem privar de algo é a corrupção [...]. Contudo, é fácil ver que a corrupção não é nada, senão enquanto destrói o estado natural das coisas, e que, portanto, ela não é natureza, senão algo contra a natureza. Logo, não se encontra nas coisas outro mal que a corrupção e a corrupção, não é uma natureza, ou nenhuma natureza é verdadeiramente o mal.

De onde vem a corrupção que leva ao mal? Da condição humana decadente e herdeira do pecado original. O batismo, segundo a doutrina agostiniana, embora possa restabelecer a relação com Deus, não é, por si só, garantia de que a pessoa não venha a pecar ao longo de sua vida. É por meio da Igreja e do seu magistério, mas, sobretudo, pelos seus sacramentos e pela vida religiosa que ela proporciona, que o homem pode contar com uma assistência constante para livrá-lo do pecado, do mal, e ajudá-lo a se manter no caminho do bem e da justiça (Agostinho, 1995).

Num paralelo com a dialética platônica, Agostinho segue argumentando que o mal, por não ter uma substância, é o “não ser”; o mal é, por assim dizer, uma situação de total negatividade, a ausência de afirmação do ser, de sua participação no bem que vem de Deus. “Nenhuma natureza, absolutamente falando, é um mal. Esse nome não se dá senão à privação de bem. Mas, dos bens terrenos aos celestiais e dos visíveis aos invisíveis, existem alguns bens superiores a outros” (Agostinho, 1995, p. 71).

O mal se precipitou como uma negação do ser aberto ao amor de Deus. Assim, o mal se apresenta como uma situação em que a vontade do homem se corrompe.

Logo, é a vontade desregrada a causa de todos os males. Se essa vontade estivesse em harmonia com a natureza, certamente esta a salvaguardaria e não lhe seria nociva. Por conseguinte, não seria desregrada. De onde se segue que a raiz de todos os males não está na natureza. E isso basta, por enquanto, para refutarmos todos aqueles que pretendem responsabilizar a natureza dos seres pelos pecados (Agostinho, 1995, p. 32).

A argumentação de Agostinho tem uma clara conotação ética, evidenciando, com isso, o instituto da responsabilidade humana diante de suas más ações. É o homem e sua vontade, quando materializada num fluxo de ação, o principal agente responsável pelas coisas ruins que acontecem na sociedade. Mesmo diante de uma catástrofe natural, o homem permanece com a liberdade de agir bem, na abertura solidária ao próximo, ou agir mal, na conduta egoísta de quem busca somente o próprio interesse e segurança.

Ao partirmos do relato bíblico sobre a criação do mundo e do homem, fica clara a indicação de que no início havia unidade entre Deus e o homem, uma unidade que foi rompida por um ato de afirmação do arbítrio humano. Uma vez perdida essa unidade, ela só pode ser restaurada por Deus. A encarnação de Cristo, sua morte e ressurreição representam, na doutrina de Agostinho, a oferta de Deus à humanidade – um caminho oferecido para todos aqueles que escolherem retornar à unidade com ele.

A presença do mal no mundo se efetiva materialmente. Não só o homem pode condenar-se a uma condição de perpétua separação de Deus com o uso desvirtuado de seu livre-arbítrio, como pode afetar toda a criação com sua vontade pervertida. Dito de outro modo, o homem, sendo dotado de liberdade, pode agir contrariamente à ordem natural presente na criação. Ao desrespeitar as leis naturais que regem o mundo, e seus ciclos, o ser humano coloca em risco a sustentação da vida como um todo. Do exposto podemos depreender uma dimensão ecológica no pensamento agostiniano, o que nos faz concluir que uma vontade corrupta tem potencial destrutivo nos âmbitos pessoal, social e ecológico.

 

3. 2.5 O livre-arbítrio

A investigação sobre a origem do mal colocou diante de Santo Agostinho duas responsabilidades. A primeira é a de apaziguar seu espírito, pois sua busca por aclarar essa questão constitui uma fonte de inquietude existencial para ele, a qual ele quer resolver. A outra responsabilidade diz respeito ao seu papel como teólogo, bispo e líder da Igreja. Estando cônscio dessa responsabilidade, sua busca também precisa ter o caráter positivo e afirmativo de edificar a fé para os cristãos, e não o contrário, gerando dúvida e constrangimento na cristandade.

Assim, ele volta seu olhar ao homem – a criatura preferida de Deus – e mergulha em sua natureza mais profunda, buscando as faculdades que o constituem como humano. Santo Agostinho encontra, então, a inteligência e a razão e percebe que nelas poderia estar uma parte da resposta sobre a presença do mal no mundo.

Na continuidade de seu diálogo, na obra O livre-arbítrio, Santo Agostinho (1995) retoma a fórmula socrática: não basta apenas viver, é necessário refletir sobre a vida. A autoconsciência se torna, assim, o fundamento da vida racional do homem e lhe abre um caminho talvez não acessível aos demais seres não racionais, o poder de escolher. A escolha, como manifestação de uma vontade consciente, é o elemento mais fundamental e definidor do que significa ser humano.

Para Santo Agostinho, a liberdade possibilitou a queda do homem, mas a graça de Deus pode salvá-lo.

A reflexão de Santo Agostinho só pode ser compreendida em um sentido teleológico do homem em relação a Deus. Sendo o criador o sumo bem, o autor da vida e a fonte de todo amor e beleza, o homem deveria orientar sua razão para alcançar a verdade e entrar em comunhão com Deus. No entanto, dotado de seu livre-arbítrio, o homem pode não escolher a Deus. Conforme argumenta Santo Agostinho, é preciso reconhecer que a alma fica impressionada

pela vista de objetos, sejam superiores, sejam inferiores, de tal modo que a vontade racional pode escolher entre os dois lados o que prefere. E será conforme o mérito dessa escolha que se seguirá para ela o infortúnio ou a felicidade. Assim, no paraíso terrestre, havia como objeto percebido: vindo do lado superior, o preceito divino, e vindo do lado inferior, a sugestão da serpente. Pois nem o que o Senhor ia prescrever, nem o que a serpente ia sugerir foi deixado ao poder do homem. Contudo, ele estava certamente livre de resistir à vista das seduções inferiores, pois o homem tendo sido criado na sanidade da sabedoria achava-se isento de todos os liames que dificultavam a sua escolha. (Agostinho, 1995, p. 237-238)

O modo como Santo Agostinho coloca a questão do livre-arbítrio indica que o verdadeiro mérito do homem está em escolher a Deus num ato de vontade e liberdade, mesmo conhecendo as diversas opções e caminhos e sendo tentado por eles. Fazer essa escolha significa agir segundo a ordem natural das coisas, utilizar os bens da Terra segundo o bem maior, não de forma egoística, pois isso ensejaria uma situação de abuso e pecado. É nessa condição de poder escolher, de renunciar ao uso abusivo das coisas do mundo, de fortalecer seu espírito para uma vida virtuosa que reside o mérito da salvação.

Por fim, reflete Santo Agostinho que o livre-arbítrio coloca o homem numa condição de ambivalência. Considerando-se a história da humanidade, e mesmo a trajetória individual de cada um, a liberdade tanto pode ser usada para as boas ações quanto para as más. Com efeito, a condição humana, em virtude do pecado original, está mais propensa ao desvio. Por isso, Santo Agostinho vê no cristianismo a religião perfeita, aquela que conseguiu fazer a síntese entre a fé e a razão, indicando, contudo, que aquela é superior a esta, pois permite a todos os homens, dos mais doutos aos mais simples, chegar a Deus.

Nos ensinamentos de Agostinho, existe a certeza de que, por ter sido fundada pelo próprio Cristo, a Igreja, em sua missão de conduzir a humanidade à salvação, foi capaz de formular uma doutrina segura para guiar as almas em sua peregrinação pelo mundo, no intuito de conduzi-las pelo reto caminho até Deus.”

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