sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI (Parte III), de István Mészáros

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-100-0

Tradução: Ana Cotrim e Vera Cotrim

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 400

Sinopse: Ver Parte I


“As instituições formais de educação certamente são uma parte importante do sistema global de internalização. Mas apenas uma parte. Quer os indivíduos participem ou não – por mais ou menos tempo, mas sempre em um número de anos bastante limitado – das instituições formais de educação, eles devem ser induzidos a uma aceitação ativa (ou mais ou menos resignada) dos princípios reprodutivos orientadores dominantes na própria sociedade, adequados a sua posição na ordem social e de acordo com as tarefas reprodutivas que lhes foram atribuídas. Sob as condições de escravidão ou servidão feudal isto é, naturalmente, um problema bastante diferente daquele que deve vigorar no capitalismo, mesmo que os trabalhadores não sejam (ou sejam muito pouco) educados formalmente. Todavia, ao internalizar as onipresentes pressões externas, eles devem adotar as perspectivas globais da sociedade mercantilizada como inquestionáveis limites individuais às suas aspirações pessoais. Apenas a mais consciente das ações coletivas poderá livrá-los dessa grave e paralisante situação.

Nessa perspectiva, fica bastante claro que a educação formal não é a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical. Uma das funções principais da educação formal nas nossas sociedades é produzir tanta conformidade ou “consenso” quanto for capaz, a partir de dentro e por meio dos seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados. Esperar da sociedade mercantilizada uma sanção ativa – ou mesmo mera tolerância – de um mandato que estimule as instituições de educação formal a abraçar plenamente a grande tarefa histórica do nosso tempo, ou seja, a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana, seria um milagre monumental. É por isso que, também no âmbito educacional, as soluções, parafraseando Martí, “não podem ser formais; elas devem ser essenciais”. Em outras palavras, elas devem abarcar a totalidade das práticas educacionais da sociedade estabelecida.”

 

 

“Consequentemente, a necessária intervenção consciente no processo histórico, orientada pela adoção da tarefa de superar a alienação por meio de um novo metabolismo reprodutivo social dos “produtores livremente associados”, esse tipo de ação estrategicamente sustentada não pode ser apenas uma questão de negação, não importa quão radical. Pois, na visão de Marx, todas as formas de negação permanecem condicionadas pelo objeto da sua negação. E, de fato, é pior do que isso. Como a amarga experiência histórica nos demonstrou amplamente também no passado recente, a inércia condicionadora do objeto negado tende a acrescer poder com o passar do tempo, impondo primeiro a busca de “uma linha de menor resistência” e subsequentemente – com uma cada vez maior intensidade – a “racionalidade” de regressar às “práticas testadas” do status quo ante, que certamente sobreviverão nas dimensões não reestruturadas da ordem anterior.

É aqui que a educação – no sentido mais abrangente do termo – desempenha um importante papel. Inevitavelmente, os primeiros passos de uma grande transformação social na nossa época envolvem a necessidade de manter sob controle o estado político hostil que se opõe, e pela sua própria natureza deve se opor, a qualquer ideia de uma reestruturação mais ampla da sociedade. Nesse sentido, a negação radical de toda a estrutura de comando político do sistema estabelecido deve afirmar-se, na sua inevitável negatividade predominante, na fase inicial da transformação a que se vise. Mas, mesmo nessa fase, e na verdade antes da conquista do poder político, a negação necessária só é adequada para o papel assumido se for orientada efetivamente pelo alvo global da transformação social visada, como uma bússola para toda a caminhada. Portanto, desde o início o papel da educação é de importância vital para romper com a internalização predominante nas escolhas políticas circunscritas à “legitimação constitucional democrática” do Estado capitalista que defende seus próprios interesses. Pois também essa “contrainternalização” (ou contraconsciência) exige a antecipação de uma visão geral, concreta e abrangente, de uma forma radicalmente diferente de gerir as funções globais de decisão da sociedade, que vai muito além da expropriação, há muito estabelecida, do poder de tomar todas as decisões fundamentais, assim como das suas imposições sem cerimônia aos indivíduos, por meio de políticas como uma forma de alienação por excelência na ordem existente.

Contudo, a tarefa histórica que temos de enfrentar é incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo. O conceito para além do capital é inerentemente concreto. Ele tem em vista a realização de uma ordem social metabólica que sustente concretamente a si própria, sem nenhuma referência autojustificativa para os males do capitalismo. Deve ser assim porque a negação direta das várias manifestações de alienação é ainda condicional naquilo que ela nega e, portanto, permanece vulnerável em virtude dessa condicionalidade.

A estratégia reformista de defesa do capitalismo é de fato baseada na tentativa de postular uma mudança gradual na sociedade através da qual se removem defeitos específicos, de forma a minar a base sobre a qual as reivindicações de um sistema alternativo possam ser articuladas. Isso é factível somente numa teoria tendenciosamente fictícia, uma vez que as soluções preconizadas, as “reformas”, na prática são estruturalmente irrealizáveis dentro da estrutura estabelecida de sociedade. Dessa forma torna-se claro que o objeto real do reformismo não é de forma alguma aquele que ele reivindica para si próprio: a verdadeira solução para os inegáveis defeitos específicos, mesmo que sua magnitude seja deliberadamente minimizada e mesmo que o modo planejado para lidar com eles seja reconhecidamente (mas de forma a isentar a própria responsabilidade) muito lento. O único termo que de fato tem um sentido objetivo nesse discurso é “gradual” e mesmo este é abusivamente expandido dentro de uma estratégia global, o que não pode ocorrer. Pois os defeitos específicos do capitalismo não podem sequer ser observados superficialmente, quanto mais ser realmente resolvidos sem que se faça referência ao sistema como um todo, que necessariamente os produz e constantemente os reproduz.

A recusa reformista em abordar as contradições do sistema existente, em nome de uma presumida legitimidade de lidar apenas com as manifestações particulares – ou, nas suas variações “pós-modernas”, a rejeição apriorística das chamadas grandes narratives em nome de petits récits idealizados arbitrariamente – é na realidade apenas uma forma peculiar de rejeitar, sem uma análise adequada, a possibilidade de se ter qualquer sistema rival e uma forma igualmente apriorística de eternizar o sistema capitalista. O objeto real da argumentação reformista é, de forma especialmente mistificadora, o sistema dominante como tal, e não as partes, quer do sistema rejeitado quer do defendido, não obstante o alegado zelo reformista explicitamente declarado pelos proponentes da “mudança gradual”29. O inevitável fracasso em revelar a verdadeira preocupação do reformismo decorre da sua incapacidade de sustentar a validade atemporal da ordem política e socioeconômica estabelecida. É, na realidade, totalmente inconcebível sustentar a validade atemporal da ordem política socioeconomicamente estabelecida. Na realidade, é completamente inconcebível sustentar a validade atemporal e a permanência de qualquer coisa criada historicamente. É isso que torna inevitável, em todas as variedades sociopolíticas do reformismo, tentar desviar a atenção das determinações sistêmicas – que no final da contas definem o caráter de todas as questões vitais – para discussões mais ou menos aleatórias sobre efeitos específicos enquanto se deixa a sua incorrigível base causal não só incontestavelmente permanente como também omissa.

Tudo isso permanece escondido pela própria natureza do discurso reformista. E precisamente por causa do caráter mistificador de tal discurso, cujas elementos fundamentais muitas vezes permanecem escondidos até para os seus principais ideólogos, não tem nenhuma importância para os fiéis desse credo que num determinado momento da história – como com a chegada do “Novo Trabalhismo” na Grã-Bretanha e seus partidos irmãos à Alemanha, à França, à Itália e a outros países – a própria ideia de qualquer reforma social significativa seja completamente abandonada. Contudo, as reivindicações de um pretenso “avanço” (que não levam a nenhum lugar realmente diferente) são dissimuladamente reafirmadas. Assim, mesmo as antigas diferenças entre os principais partidos são convenientemente obliteradas no agora dominante sistema, de estilo norte-americano, de “dois partidos” (um partido), não importando quantos “subpartidos” possamos ainda encontrar em determinados países. O que permanece constante é a defesa mais ou menos oculta das atuais determinações sistêmicas da ordem existente. O pernicioso axioma que assevera não haver alternativa – referindo-se não apenas a determinadas instituições políticas mas à ordem social estabelecida em geral – é tão aceitável para a ex-primeira-ministra do Partido Conservador britânico, Margaret Thatcher (que o tutelou e popularizou), como para o chamado “Novo Trabalhismo” do atual ex-primeiro-ministro Tony Blair, assim como para muitos outros no espectro político parlamentar mundial. Tendo em vista o fato de que o processo de reestruturação radical deve ser orientado pela estratégia de uma reforma concreta e abrangente de todo o sistema no qual se encontram os indivíduos, o desafio que deve ser enfrentado não tem paralelos na história. Pois o cumprimento dessa nova tarefa histórica envolve simultaneamente a mudança qualitativa das condições objetivas de reprodução da sociedade, no sentido de reconquistar o controle total do próprio capital – e não simplesmente das “personificações do capital” que afirmam os imperativos do sistema como capitalistas dedicados – e a transformação progressiva da consciência em resposta às condições necessariamente cambiantes. Portanto, o papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente. É isso que se quer dizer com a concebida “sociedade de produtores livremente associados”. Portanto, não é surpreendente que na concepção marxista a efetiva transcendência da autoalienação do trabalho seja caracterizada como uma tarefa inevitavelmente educacional.

A esse respeito, dois conceitos principais devem ser postos em primeiro plano: a universalização da educação e a universalização do trabalho como atividade humana autorrealizadora.”

29 A polêmica de Bernstein contra Marx é absolutamente caricatural. Em vez de travar uma discussão teórica adequada com Marx, Bernstein prefere seguir outro caminho, lançando-lhe um insulto gratuito, ao condenar, sem nenhum fundamento, a “armação dialética” de Marx – e de Hegel. Come se a transformação dos graves problemas do raciocínio dialético num insulto desqualificante pudesse, por si só, solucionar as importantes questões políticas e sociais em jogo. O leitor interessado pode encontrar uma discussão razoavelmente detalhada dessa controvérsia no capítulo 8 de O poder da ideologia, cit. A expressão “grandes narrativas” na pós-modernidade é usada analogamente ao insulto desqualificador de Bernstein contra a condenada “armação dialética”.

 

 

“O grave e insuperável defeito do sistema do capital consiste na alienação de mediações de segunda ordem que ele precisa impor a todos os seres humanos, incluindo-se as “personificações do capital”. De fato, o sistema do capital não conseguiria sobreviver durante uma semana sem as suas mediações de segunda ordem: principalmente o Estado, a relação de troca orientada para o mercado, e o trabalho, em sua subordinação estrutural ao capital. Elas (as mediações) são necessariamente interpostas entre indivíduos e indivíduos, assim como entre indivíduos e suas aspirações, virando essas de “cabeça para baixo” e “pelo avesso”, de forma a conseguir subordiná-los a imperativos fetichistas do sistema do capital. Em outras palavras, essas mediações de segunda ordem impõem à humanidade uma forma alienada de mediação. A alternativa concreta a essa forma de controlar a reprodução metabólica social só pode ser a automediação, na sua inseparabilidade do autocontrole e da autorrealização através da liberdade substantiva e da igualdade, numa ordem social reprodutiva conscientemente regulada pelos indivíduos associados. É também inseparável dos valores escolhidos pelos próprios indivíduos sociais, de acordo com suas reais necessidades, em vez de lhes serem impostos – sob forma de apetites totalmente artificiais, pelos imperativos reificados da acumulação lucrativa do capital, como é o caso hoje. Nenhum desses objetivos emancipadores é concebível sem a intervenção mais ativa da educação, entendida na sua orientação concreta, no sentido de uma ordem social que vá para além dos limites do capital.”

 

 

“O que torna tanto mais difícil a tarefa histórica de alterar radicalmente as desigualdades estruturais do sistema do capital é o fato de que essa ordem social é inseparável de uma cultura da desigualdade substantiva há muito estabelecida em cuja constituição, até mesmo as maiores e mais progressistas personagens da burguesia ascendente, estavam profundamente implicadas. Naturalmente, não há nada surpreendente nisso. Pois mesmo as mais sagazes e ilustradas figuras da burguesia – incluindo gigantes intelectuais, como Adam Smith, Goethe e Hegel – viam o mundo e seus problemas da perspectiva do capital. Formulam seus diagnósticos quanto ao que precisava ser retificado e suas soluções aos desafios e contradições identificados, no âmago dos parâmetros e pressupostos estruturalmente restritos ao horizonte do capital. A noção de igualdade real, que abrange plenamente os membros de todas as classes sociais, não poderia em absoluto adentrar suas considerações.

Na grande tempestade da Revolução Francesa de 1789, o desafio fundamental era estabelecer uma ordem social na qual suas principais e superficiais características definidoras se proclamavam no plano da ideologia política. Entretanto, na realidade, elas foram violadas desde o princípio, já que tinham de estar sob a pressão das determinações internas incorrigíveis do capital. O conceito de Iluminismo não poderia estender-se a ponto de tolerar a “Liberdade” daqueles que tentaram lutar pela instituição da igualdade substantiva. Não é surpreendente, portanto, que François Babeuf, quando criticou em seu Tribune du Peuple o curso que a revolução estava tomando e tentou organizar sua “Sociedade de Iguais”, teve de ser arrastado sem cerimônias ao cadafalso e guilhotinado em 1797 por seu crime imperdoável.

Compreensivelmente, pois, no curso do desenvolvimento histórico subsequente do sistema do capital, dois dos três grandes lemas da Revolução Francesa – “Igualdade e Fraternidade” – desapareceram silenciosamente do horizonte. E mesmo a “Liberdade” teve de transformar-se em um artifício favorito das retóricas políticas vazias, de modo a torná-la no devido tempo não apenas compatível, como a pretensa legitimadora das violações mais brutais de sua substância.

A ordem social alternativa não é sustentável a longo prazo sem a plena realização da igualdade, em lugar das relações sociais existentes em que a igualdade existe, na melhor das hipóteses, apenas como uma exigência formal/jurídica, e não é mais que uma exigência formal ritualisticamente reiterada. Pois, em verdade, mesmo a “igualdade perante a lei” solenemente proclamada é, via de regra, distorcida em favor daqueles que podem facilmente pagar para transformar um escárnio prático nas sonoras regras formais. Rousseau, no seu tempo, não hesitou em elaborar questões pertinentes a esse respeito, ainda que não pudesse oferecer uma solução viável às contradições identificadas. Eis como formulou sua crítica:

As vantagens da sociedade não são todas para os ricos e poderosos? Não estão em suas mãos todos os cargos lucrativos? Não se reservam todos os privilégios e isenções exclusivamente a eles? [...] Como é diversa a situação do pobre! Quanto mais a humanidade lhe deve, mais a sociedade lhe nega. [...] Podem-se resumir em poucas palavras os termos do pacto social entre essas duas classes de homens: “Precisas de mim porque sou rico e tu és pobre. Chegaremos, pois, a um acordo. Permitirei que tenhas a honra de me servires, sob a condição de que concedas a mim o pouco que te resta, em troca dos esforços que despenderei em comandar-te”.3

Uma vez que a ascendência histórica da ordem burguesa alcançou seu termo, suscitar questões embaraçosas sobre a desigualdade social tornou-se terminantemente incompatível com a perspectiva do capital. O discurso dominante sobre a igualdade teve de se restringir apenas a aspectos limitados da exigência estritamente formal de igualdade e mesmo isso, apenas porque era relevante às regras dos contratos exequíveis do ponto de vista capitalista, no interesse das seções contratantes particulares do capital. Mas a função principal do discurso sobre a igualdade – em seu sentido esmagadoramente formalizado – era a apologética e a mistificação sociais.

Nada o ilustra melhor do que o ubíquo e cínico discurso dedicado a excluir da ordem a igualdade de início. Pois permitir a pressão por uma mudança significativa no início envolveria uma interferência inconveniente nas relações de poder estabelecidas, que melhoraria a capacidade dos indivíduos sociais de intervir efetivamente nos processos substanciais de decisão societária. Eis porque a própria ideia de defender a igualdade de início teve de ser descartada de maneira categórica em favor da fórmula totalmente vazia que promete a condição irrealizável da “igualdade de oportunidade”. Uma condição totalmente irrealizável porque, do modo como a própria questão é definida, a proclamada “igualdade de oportunidade” não poderia corresponder a nada mais do que a uma concha formal vazia. Pois a fórmula em si mesma tem como premissa explícita a rejeição implacável e cínica da “igualdade de início”. E é evidente que a “oportunidade” não pode ter nenhum significado se aquele que espera por um “resultado” é, por definição, excluído do início.”

3 Jean-Jacques Rousseau, A Discourse on Political Economy (Londres, Everyman, 1963), p. 262-4. [Discurso sobre a economia política e Do contrato social (Petrópolis, Vozes, 1995)-N. T.]

 

 

“José Martí estava absolutamente certo quando destacou o real significado de patriotismo, ao insistir que “patria es humanidad”, a humanidade é nossa pátria. Pois esse tipo de pátria – caracterizada pela identificação consciente dos indivíduos com os valores positivos de sua comunidade – é a única ordem social permanentemente sustentável que não pode ser dilacerada por antagonismos devastadores. Como tal, ela não é um ideal remoto, mas o alvo, bússola e medida necessários ao êxito da estratégia socialista de transformação, que visa a instituição do modo alternativo de controle sociorreprodutivo em que não pode haver lugar para discriminação nacional e as queixas concomitantes. Essa é a única ordem internacional viável, na mais profunda acepção do termo, em contraste com todas as tentativas de impor uma ordem internacional a partir de fora e de cima: fracassadas no passado e destinadas a fracassar no futuro. O que a faz viável e sustentável é que a pátria de Martí, definida em direta ligação com a humanidade, emerge das determinações interiores positivas de suas partes constitutivas que harmonizam as inúmeras manifestações particulares de patriotismo genuíno com as suas condições globais de realização contínua. Essas duas dimensões são inseparáveis na estratégia socialista, como seu alvo geral necessário e sua bússola orientadora. Não pode haver intercâmbio global/internacional sustentável – essa, também, é uma necessidade absoluta de nosso tempo – sem a união positiva das grandes variedades de identificação patriótica das pessoas com as condições de vida efetivas de sua comunidade. E vice-versa. Não pode haver patriotismo digno desse nome sem instituir e fortalecer com êxito a pátria global/internacional da humanidade, capaz de adaptação recíproca e harmonização cooperativa, a única que pode conferir as necessárias características definidoras positivas do próprio patriotismo. Nesse sentido, a complementaridade dialética do nacional e do internacional permanece um princípio orientador vital dos intercâmbios humanos no futuro próximo.”

 

 

“A negligência e a desconsideração da áspera realidade das relações de poder conflituosas do capital, desde o primeiro estágio da emergência do sistema até o presente democrático, e sobretudo a transubstanciação da sujeição autoritária e da dominação implacável do trabalho no interior dessas relações de poder na pretensa igualdade de todos os indivíduos, eram inevitavelmente concomitantes à visão do mundo do ponto de vista do capital, mesmo nos escritos das maiores e mais progressistas personagens intelectuais da burguesia. O que tinha de ser suprimido pela adoção do ponto de vista do capital, desde o início, era a história embebida em sangue da “acumulação primitiva”50 pela qual a nova classe dominante emergente continuou as práticas de exploração bem asseguradas da classe precedente – a propriedade fundiária feudal – ainda que em uma nova forma, colocando em relevo, novamente, a significativa continuidade histórica das variedades das antiquíssimas opressão e exploração de classe.

No solo comum dessa afinidade, propriamente redefinida de acordo com a natureza do capital, o pressuposto permanentemente necessário da nova ordem produtiva do trabalho livre”: a propriedade exclusiva dos meios de produção crucialmente importantes e controladores por uma minúscula minoria, e a simultânea exclusão – em última instância politicamente salvaguardada pelo Estado – da esmagadora maioria da sociedade desses meios, tinha de ser perpetuada, apesar da crença professada de “liberdade e igualdade”. Ao mesmo tempo, a realidade brutal da exclusão imposta tanto material/reprodutivamente como política/ideologicamente da esmagadora maioria das pessoas com relação às forças controladoras da ordem social – que não poderia ser mais distante, em verdade diametralmente oposta, a qualquer “Estado ético genuíno” – tinha de ser mantida sob o selo do profundo silêncio nos autorretratos do novo modo de controle sociometabólico. Até mesmo nos melhores autorretratos concebidos da perspectiva autovantajosa do capital. É dessa maneira que a separação mistificadora da política com relação à dimensão da reprodução material podia cumprir tanto sua função ideológica/cultural conservadora como ser, ao mesmo tempo, celebrada como eternamente insuperável. Assim Hegel, por exemplo, proporcionou em seu sistema, a separação mais engenhosa e filosoficamente absolutizada entre a realidade material autovantajosa da “sociedade civil” e o “Estado ético” político postulado como o corretivo ideal aos defeitos inevitáveis da sociedade civil”. Invertendo a ordem causal efetiva, Hegel retratou misticamente a determinação vital da autovantagem como algo que emanava diretamente dos próprios indivíduos, embora na realidade fosse imanente ao fundamento ontológico intransponível do capital, imposto aos indivíduos que não podiam optar por não operar no interior da ordem sociometabólica dada. Consequentemente, os indivíduos tiveram de internalizar o imperativo autoexpansivo objetivo (isto é, sua determinação inalteravelmente autovantajosa de dominar assim cada aspecto da sociedade) – sem o qual o sistema do capital como tal não poderia sobreviver – como se o autoengrandecimento brotasse do cerne de seus objetivos e propósitos pessoais determinados pela natureza, tal como se supõe que Palas Atena brota da cabeça de Zeus plenamente armado. Desse modo, Hegel foi capaz não apenas de produzir um dualismo filosoficamente absolutizado da ordem social do capital, mas também de glorificar ao mesmo tempo o desenvolvimento histórico correspondente à suposta “realização da liberdade” nele como “a verdadeira teodiceia: a justificação de Deus na história”51.

A crítica dessas concepções, em todas as suas variedades, é altamente relevante hoje. Pois a manutenção da concepção dualista da relação entre sociedade civil e Estado político só pode trazer estratégias desorientadoras, independentemente do lado da visão dualista adotada a que se dá precedência no curso de ação visado. A irrealidade das projeções parlamentares se equipara nesse sentido à fragilidade absoluta das expectativas vinculadas à ideia de resolver nossos maiores problemas por meio do anteparo institucional ingenuamente postulado da sociedade civil.

A adoção de tal posição só pode resultar na armadilha de uma concepção muito ingênua da natureza da própria “sociedade civil” e de uma postura totalmente acrítica com relação à grande multiplicidade de ONGS que, desmentindo sua autocaracterização como “organizações não governamentais”, são muito bem capazes de coexistir com as instituições estatais retrógradas dominantes das quais dependem para sua existência financeira. E mesmo quando pensamos em algumas organizações de maior importância do que as ONGs particulares, como os sindicatos, a situação a esse respeito não é muito melhor. Por conseguinte, tratar os sindicatos, em oposição aos partidos políticos, como de algum modo pertencentes apenas à “sociedade civil”, e por isso passíveis de ser usados contra o Estado político para uma profunda transformação socialista, não é mais que uma ilusão romântica. Pois, na realidade, o círculo institucional do capital é feito das totalizações recíprocas de sociedade civil/Estado político que se interpenetram profundamente e sustenta-se vigorosamente. Não pode haver nenhuma estratégia realista de transformação socialista sem que se busque de modo firme a realização da unidade das dimensões da política e da reprodução material também no âmbito organizacional. De fato, o grande potencial emancipador dos sindicatos consiste precisamente em sua capacidade de assumir (ao menos em princípio) um papel político radical – muito além do papel político conservador que agora tendem a desempenhar como um todo – em uma tentativa consciente de superar a separação fatal entre o braço industrial (eles mesmos) e o braço político (os partidos parlamentares) do trabalho, apartados sob seu invólucro capitalista pelo fato de a maior parte do movimento operário ter aceitado a dominação parlamentar no curso dos últimos 130 anos.52

O aparecimento da classe trabalhadora no cenário histórico foi apenas um pensamento posterior inconveniente para o sistema parlamentar, constituído muito antes que as primeiras forças organizadas do trabalho tentassem proclamar em público os interesses da sua classe. Do ponto de vista do capital, a resposta imediata a esse “estorvo” inconveniente, mas crescente, foi a rejeição e a exclusão bastante insustentável dos grupos políticos concernidos. Mais tarde, entretanto, essa resposta foi seguida pela ideia bem mais adaptável de domar de algum modo as forças operárias – em primeiro lugar por meio do patrocínio parlamentar paternalista de algumas demandas da classe trabalhadora pelos partidos políticos burgueses progressistas e, mais tarde, pela aceitação da legitimidade de alguns partidos da classe trabalhadora no próprio parlamento, embora, evidentemente, em uma forma estritamente circunscrita, que os compelia a conformar-se às “regras democráticas do jogo parlamentar”. Inevitavelmente, isso significou a esses partidos nada menos do que o “livre consentimento” à sua própria acomodação efetiva, mesmo se conseguissem manter por um período considerável a ilusão de que com o passar do tempo seriam capazes reconformar radicalmente a situação por meio da ação parlamentar em seu favor.

Eis como a força operária extraparlamentar potencialmente alternativa transformou-se em uma organização parlamentar em permanente desvantagem. Muito embora esse curso de desenvolvimento pudesse ser explicado pela óbvia fraqueza do trabalho organizado no início, esse argumento e justificativa do que efetivamente aconteceu simplesmente pressupõe a questão em favor do beco sem saída da socialdemocracia parlamentar. Pois a alternativa radical da obtenção de força pelas potências da classe trabalhadora em sua organização e afirmação fora do parlamento – em contraste com a estratégia seguida por muitas décadas, até a completa privação de direitos e oportunidades da classe trabalhadora em nome da “obtenção de força” – não pode ser descartada de maneira tão despreocupada, como se uma alternativa verdadeiramente radical fosse uma impossibilidade a priori. Especialmente uma vez que a necessidade de ação extraparlamentar sustentável é absolutamente vital para o futuro de um movimento socialista radicalmente rearticulado.”

50 Como afirma Marx, o curso da chamada acumulação primitiva, o capital emerge “gotejando da cabe aos pés, de cada poro, com sangue e pó. Ver Parte Sétima de capital de Marx, livro I. v. 2 “A chamada acumulação primitiva”.

51 G.W. E. Hegel, Filosofia da história (Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1995), p. 373.

52 Sobre essa questão, ver a seção 4.3 (“Os desafios históricos diante do movimento socialista”), bem como o capítulo 18 de Para além do capital, cit.

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