Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-100-0
Tradução: Ana Cotrim e Vera Cotrim
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 400
Sinopse: Ver Parte
I
“As instituições formais de educação certamente
são uma parte importante do sistema global de internalização. Mas apenas uma
parte. Quer os indivíduos participem ou não – por mais ou menos tempo, mas
sempre em um número de anos bastante limitado – das instituições formais de
educação, eles devem ser induzidos a uma aceitação ativa (ou mais ou menos
resignada) dos princípios reprodutivos orientadores dominantes na própria
sociedade, adequados a sua posição na ordem social e de acordo com as tarefas
reprodutivas que lhes foram atribuídas. Sob as condições de escravidão ou
servidão feudal isto é, naturalmente, um problema bastante diferente daquele
que deve vigorar no capitalismo, mesmo que os trabalhadores não sejam (ou sejam
muito pouco) educados formalmente. Todavia, ao internalizar as onipresentes
pressões externas, eles devem adotar as perspectivas globais da sociedade
mercantilizada como inquestionáveis limites individuais às suas aspirações
pessoais. Apenas a mais consciente das ações coletivas poderá livrá-los
dessa grave e paralisante situação.
Nessa perspectiva, fica bastante claro que a
educação formal não é a força ideologicamente primária que consolida o
sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por si só, fornecer uma
alternativa emancipadora radical. Uma das funções principais da educação formal
nas nossas sociedades é produzir tanta conformidade ou “consenso” quanto for capaz,
a partir de dentro e por meio dos seus próprios limites institucionalizados e
legalmente sancionados. Esperar da sociedade mercantilizada uma sanção ativa – ou
mesmo mera tolerância – de um mandato que estimule as instituições de educação
formal a abraçar plenamente a grande tarefa histórica do nosso tempo, ou seja,
a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência
humana, seria um milagre monumental. É por isso que, também no âmbito
educacional, as soluções, parafraseando Martí, “não podem ser formais;
elas devem ser essenciais”. Em outras palavras, elas devem abarcar a totalidade
das práticas educacionais da sociedade estabelecida.”
“Consequentemente, a necessária intervenção
consciente no processo histórico, orientada pela adoção da tarefa de superar a
alienação por meio de um novo metabolismo reprodutivo social dos “produtores
livremente associados”, esse tipo de ação estrategicamente sustentada não pode
ser apenas uma questão de negação, não importa quão radical. Pois, na visão
de Marx, todas as formas de negação permanecem condicionadas pelo objeto da
sua negação. E, de fato, é pior do que isso. Como a amarga experiência
histórica nos demonstrou amplamente também no passado recente, a inércia
condicionadora do objeto negado tende a acrescer poder com o passar do tempo,
impondo primeiro a busca de “uma linha de menor resistência” e subsequentemente
– com uma cada vez maior intensidade – a “racionalidade” de regressar às “práticas
testadas” do status quo ante, que certamente sobreviverão nas dimensões
não reestruturadas da ordem anterior.
É aqui que a educação – no sentido mais
abrangente do termo – desempenha um importante papel. Inevitavelmente, os
primeiros passos de uma grande transformação social na nossa época envolvem a necessidade
de manter sob controle o estado político hostil que se opõe, e pela sua própria
natureza deve se opor, a qualquer ideia de uma reestruturação mais ampla da
sociedade. Nesse sentido, a negação radical de toda a estrutura de
comando político do sistema estabelecido deve afirmar-se, na sua inevitável
negatividade predominante, na fase inicial da transformação a que se
vise. Mas, mesmo nessa fase, e na verdade antes da conquista do poder político,
a negação necessária só é adequada para o papel assumido se for orientada
efetivamente pelo alvo global da transformação social visada, como uma bússola
para toda a caminhada. Portanto, desde o início o papel da educação é de
importância vital para romper com a internalização predominante nas escolhas
políticas circunscritas à “legitimação constitucional democrática” do Estado
capitalista que defende seus próprios interesses. Pois também essa “contrainternalização”
(ou contraconsciência) exige a antecipação de uma visão geral, concreta e
abrangente, de uma forma radicalmente diferente de gerir as funções globais de
decisão da sociedade, que vai muito além da expropriação, há muito
estabelecida, do poder de tomar todas as decisões fundamentais, assim como das
suas imposições sem cerimônia aos indivíduos, por meio de políticas como uma
forma de alienação por excelência na ordem existente.
Contudo, a tarefa histórica que temos de
enfrentar é incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo. O conceito para
além do capital é inerentemente concreto. Ele tem em vista a
realização de uma ordem social metabólica que sustente concretamente a si
própria, sem nenhuma referência autojustificativa para os males do
capitalismo. Deve ser assim porque a negação direta das várias manifestações de
alienação é ainda condicional naquilo que ela nega e, portanto, permanece
vulnerável em virtude dessa condicionalidade.
A estratégia reformista de defesa do
capitalismo é de fato baseada na tentativa de postular uma mudança gradual na
sociedade através da qual se removem defeitos específicos, de forma a
minar a base sobre a qual as reivindicações de um sistema alternativo
possam ser articuladas. Isso é factível somente numa teoria tendenciosamente fictícia,
uma vez que as soluções preconizadas, as “reformas”, na prática são estruturalmente
irrealizáveis dentro da estrutura estabelecida de sociedade. Dessa forma
torna-se claro que o objeto real do reformismo não é de forma alguma aquele que
ele reivindica para si próprio: a verdadeira solução para os inegáveis defeitos
específicos, mesmo que sua magnitude seja deliberadamente minimizada e mesmo
que o modo planejado para lidar com eles seja reconhecidamente (mas de forma a
isentar a própria responsabilidade) muito lento. O único termo que de fato tem
um sentido objetivo nesse discurso é “gradual” e mesmo este é abusivamente
expandido dentro de uma estratégia global, o que não pode ocorrer. Pois os defeitos
específicos do capitalismo não podem sequer ser observados superficialmente,
quanto mais ser realmente resolvidos sem que se faça referência ao sistema
como um todo, que necessariamente os produz e constantemente os reproduz.
A recusa reformista em abordar as
contradições do sistema existente, em nome de uma presumida legitimidade de
lidar apenas com as manifestações particulares – ou, nas suas variações “pós-modernas”,
a rejeição apriorística das chamadas grandes narratives em nome de petits
récits idealizados arbitrariamente – é na realidade apenas uma forma
peculiar de rejeitar, sem uma análise adequada, a possibilidade de se ter qualquer
sistema rival e uma forma igualmente apriorística de eternizar o sistema
capitalista. O objeto real da argumentação reformista é, de forma especialmente
mistificadora, o sistema dominante como tal, e não as partes,
quer do sistema rejeitado quer do defendido, não obstante o alegado zelo
reformista explicitamente declarado pelos proponentes da “mudança gradual”29.
O inevitável fracasso em revelar a verdadeira preocupação do reformismo decorre
da sua incapacidade de sustentar a validade atemporal da ordem política e socioeconômica
estabelecida. É, na realidade, totalmente inconcebível sustentar a validade
atemporal da ordem política socioeconomicamente estabelecida. Na realidade,
é completamente inconcebível sustentar a validade atemporal e a permanência de
qualquer coisa criada historicamente. É isso que torna inevitável, em
todas as variedades sociopolíticas do reformismo, tentar desviar a atenção das
determinações sistêmicas – que no final da contas definem o caráter de
todas as questões vitais – para discussões mais ou menos aleatórias sobre efeitos
específicos enquanto se deixa a sua incorrigível base causal não só
incontestavelmente permanente como também omissa.
Tudo isso permanece escondido pela própria
natureza do discurso reformista. E precisamente por causa do caráter
mistificador de tal discurso, cujas elementos fundamentais muitas vezes
permanecem escondidos até para os seus principais ideólogos, não tem nenhuma importância
para os fiéis desse credo que num determinado momento da história – como com a
chegada do “Novo Trabalhismo” na Grã-Bretanha e seus partidos irmãos à
Alemanha, à França, à Itália e a outros países – a própria ideia de qualquer
reforma social significativa seja completamente abandonada. Contudo, as
reivindicações de um pretenso “avanço” (que não levam a nenhum lugar realmente
diferente) são dissimuladamente reafirmadas. Assim, mesmo as antigas diferenças
entre os principais partidos são convenientemente obliteradas no agora
dominante sistema, de estilo norte-americano, de “dois partidos” (um partido),
não importando quantos “subpartidos” possamos ainda encontrar em determinados
países. O que permanece constante é a defesa mais ou menos oculta das atuais determinações
sistêmicas da ordem existente. O pernicioso axioma que assevera não
haver alternativa – referindo-se não apenas a determinadas instituições
políticas mas à ordem social estabelecida em geral – é tão aceitável para a ex-primeira-ministra
do Partido Conservador britânico, Margaret Thatcher (que o tutelou e
popularizou), como para o chamado “Novo Trabalhismo” do atual
ex-primeiro-ministro Tony Blair, assim como para muitos outros no espectro
político parlamentar mundial. Tendo em vista o fato de que o processo de
reestruturação radical deve ser orientado pela estratégia de uma reforma
concreta e abrangente de todo o sistema no qual se encontram os indivíduos, o
desafio que deve ser enfrentado não tem paralelos na história. Pois o
cumprimento dessa nova tarefa histórica envolve simultaneamente a mudança
qualitativa das condições objetivas de reprodução da sociedade, no sentido de
reconquistar o controle total do próprio capital – e não simplesmente das “personificações
do capital” que afirmam os imperativos do sistema como capitalistas dedicados –
e a transformação progressiva da consciência em resposta às condições
necessariamente cambiantes. Portanto, o papel da educação é soberano, tanto
para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as
condições objetivas de reprodução, como para a automudança consciente
dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica
radicalmente diferente. É isso que se quer dizer com a concebida “sociedade de
produtores livremente associados”. Portanto, não é surpreendente que na
concepção marxista a efetiva transcendência da autoalienação do trabalho
seja caracterizada como uma tarefa inevitavelmente educacional.
A esse respeito, dois conceitos principais
devem ser postos em primeiro plano: a universalização da educação e a
universalização do trabalho como atividade humana autorrealizadora.”
29 A polêmica de Bernstein contra Marx é
absolutamente caricatural. Em vez de travar uma discussão teórica adequada com
Marx, Bernstein prefere seguir outro caminho, lançando-lhe um insulto gratuito,
ao condenar, sem nenhum fundamento, a “armação dialética” de Marx – e de Hegel.
Come se a transformação dos graves problemas do raciocínio dialético num
insulto desqualificante pudesse, por si só, solucionar as importantes questões políticas
e sociais em jogo. O leitor interessado pode encontrar uma discussão razoavelmente
detalhada dessa controvérsia no capítulo 8 de O poder da ideologia, cit.
A expressão “grandes narrativas” na pós-modernidade é usada analogamente ao
insulto desqualificador de Bernstein contra a condenada “armação dialética”.
“O grave e insuperável defeito do sistema do
capital consiste na alienação de mediações de segunda ordem que ele
precisa impor a todos os seres humanos, incluindo-se as “personificações do
capital”. De fato, o sistema do capital não conseguiria sobreviver durante uma
semana sem as suas mediações de segunda ordem: principalmente o Estado, a
relação de troca orientada para o mercado, e o trabalho, em sua subordinação estrutural
ao capital. Elas (as mediações) são necessariamente interpostas entre indivíduos
e indivíduos, assim como entre indivíduos e suas aspirações, virando essas de “cabeça
para baixo” e “pelo avesso”, de forma a conseguir subordiná-los a imperativos
fetichistas do sistema do capital. Em outras palavras, essas mediações de
segunda ordem impõem à humanidade uma forma alienada de mediação. A alternativa
concreta a essa forma de controlar a reprodução metabólica social só pode
ser a automediação, na sua inseparabilidade do autocontrole e da autorrealização
através da liberdade substantiva e da igualdade, numa ordem social
reprodutiva conscientemente regulada pelos indivíduos associados. É também
inseparável dos valores escolhidos pelos próprios indivíduos sociais, de
acordo com suas reais necessidades, em vez de lhes serem impostos – sob forma
de apetites totalmente artificiais, pelos imperativos reificados
da acumulação lucrativa do capital, como é o caso hoje. Nenhum desses
objetivos emancipadores é concebível sem a intervenção mais ativa da educação,
entendida na sua orientação concreta, no sentido de uma ordem social que vá
para além dos limites do capital.”
“O que torna tanto mais difícil a tarefa
histórica de alterar radicalmente as desigualdades estruturais do sistema do
capital é o fato de que essa ordem social é inseparável de uma cultura da
desigualdade substantiva há muito estabelecida em cuja constituição, até mesmo
as maiores e mais progressistas personagens da burguesia ascendente, estavam
profundamente implicadas. Naturalmente, não há nada surpreendente nisso. Pois
mesmo as mais sagazes e ilustradas figuras da burguesia – incluindo gigantes
intelectuais, como Adam Smith, Goethe
e Hegel
– viam o mundo e seus problemas da perspectiva do capital. Formulam seus
diagnósticos quanto ao que precisava ser retificado e suas soluções aos
desafios e contradições identificados, no âmago dos parâmetros e pressupostos
estruturalmente restritos ao horizonte do capital. A noção de igualdade real,
que abrange plenamente os membros de todas as classes sociais, não poderia em
absoluto adentrar suas considerações.
Na grande tempestade da Revolução Francesa de
1789, o desafio fundamental era estabelecer uma ordem social na qual suas
principais e superficiais características definidoras se proclamavam no plano
da ideologia política. Entretanto, na realidade, elas foram violadas desde o
princípio, já que tinham de estar sob a pressão das determinações internas
incorrigíveis do capital. O conceito de Iluminismo não poderia estender-se a
ponto de tolerar a “Liberdade” daqueles que tentaram lutar pela instituição da igualdade
substantiva. Não é surpreendente, portanto, que François Babeuf, quando
criticou em seu Tribune du Peuple o curso que a revolução estava tomando
e tentou organizar sua “Sociedade de Iguais”, teve de ser arrastado sem
cerimônias ao cadafalso e guilhotinado em 1797 por seu crime imperdoável.
Compreensivelmente, pois, no curso do
desenvolvimento histórico subsequente do sistema do capital, dois dos três
grandes lemas da Revolução Francesa – “Igualdade e Fraternidade” – desapareceram
silenciosamente do horizonte. E mesmo a “Liberdade” teve de transformar-se em
um artifício favorito das retóricas políticas vazias, de modo a torná-la no
devido tempo não apenas compatível, como a pretensa legitimadora das
violações mais brutais de sua substância.
A ordem social alternativa não é sustentável
a longo prazo sem a plena realização da igualdade, em lugar das relações
sociais existentes em que a igualdade existe, na melhor das hipóteses, apenas
como uma exigência formal/jurídica, e não é mais que uma exigência formal
ritualisticamente reiterada. Pois, em verdade, mesmo a “igualdade perante a lei”
solenemente proclamada é, via de regra, distorcida em favor daqueles que podem
facilmente pagar para transformar um escárnio prático nas sonoras regras
formais. Rousseau, no seu tempo, não hesitou em elaborar questões
pertinentes a esse respeito, ainda que não pudesse oferecer uma solução viável
às contradições identificadas. Eis como formulou sua crítica:
As vantagens da sociedade não são todas para os ricos e poderosos? Não
estão em suas mãos todos os cargos lucrativos? Não se reservam todos os
privilégios e isenções exclusivamente a eles? [...] Como é diversa a situação
do pobre! Quanto mais a humanidade lhe deve, mais a sociedade lhe nega. [...]
Podem-se resumir em poucas palavras os termos do pacto social entre essas duas
classes de homens: “Precisas de mim porque sou rico e tu és pobre. Chegaremos, pois,
a um acordo. Permitirei que tenhas a honra de me servires, sob a condição de
que concedas a mim o pouco que te resta, em troca dos esforços que despenderei
em comandar-te”.3
Uma vez que a ascendência histórica da ordem
burguesa alcançou seu termo, suscitar questões embaraçosas sobre a desigualdade
social tornou-se terminantemente incompatível com a perspectiva do capital. O
discurso dominante sobre a igualdade teve de se restringir apenas a aspectos
limitados da exigência estritamente formal de igualdade e mesmo isso, apenas
porque era relevante às regras dos contratos exequíveis do ponto de vista capitalista,
no interesse das seções contratantes particulares do capital. Mas a função
principal do discurso sobre a igualdade – em seu sentido esmagadoramente
formalizado – era a apologética e a mistificação sociais.
Nada o ilustra melhor do que o ubíquo e cínico
discurso dedicado a excluir da ordem a igualdade de início. Pois
permitir a pressão por uma mudança significativa no início envolveria uma
interferência inconveniente nas relações de poder estabelecidas, que melhoraria
a capacidade dos indivíduos sociais de intervir efetivamente nos processos
substanciais de decisão societária. Eis porque a própria ideia de defender a
igualdade de início teve de ser descartada de maneira categórica em favor da
fórmula totalmente vazia que promete a condição irrealizável da “igualdade de
oportunidade”. Uma condição totalmente irrealizável porque, do modo como a
própria questão é definida, a proclamada “igualdade de oportunidade” não
poderia corresponder a nada mais do que a uma concha formal vazia. Pois
a fórmula em si mesma tem como premissa explícita a rejeição implacável e cínica
da “igualdade de início”. E é evidente que a “oportunidade” não pode ter nenhum
significado se aquele que espera por um “resultado” é, por definição, excluído
do início.”
3 Jean-Jacques Rousseau, A Discourse on Political Economy (Londres,
Everyman, 1963), p. 262-4. [Discurso sobre a economia política
e Do
contrato social (Petrópolis, Vozes, 1995)-N. T.]
“José Martí estava absolutamente certo quando
destacou o real significado de patriotismo, ao insistir que “patria es
humanidad”, a humanidade é nossa pátria. Pois esse tipo de pátria – caracterizada
pela identificação consciente dos indivíduos com os valores positivos de sua
comunidade – é a única ordem social permanentemente sustentável que não pode
ser dilacerada por antagonismos devastadores. Como tal, ela não é um ideal
remoto, mas o alvo, bússola e medida necessários ao êxito da estratégia
socialista de transformação, que visa a instituição do modo alternativo de
controle sociorreprodutivo em que não pode haver lugar para discriminação
nacional e as queixas concomitantes. Essa é a única ordem internacional
viável, na mais profunda acepção do termo, em contraste com todas as tentativas
de impor uma ordem internacional a partir de fora e de cima: fracassadas no
passado e destinadas a fracassar no futuro. O que a faz viável e sustentável é
que a pátria de Martí, definida em direta ligação com a humanidade, emerge das determinações
interiores positivas de suas partes constitutivas que harmonizam as
inúmeras manifestações particulares de patriotismo genuíno com as suas
condições globais de realização contínua. Essas duas dimensões são inseparáveis
na estratégia socialista, como seu alvo geral necessário e sua bússola
orientadora. Não pode haver intercâmbio global/internacional sustentável – essa,
também, é uma necessidade absoluta de nosso tempo – sem a união positiva das
grandes variedades de identificação patriótica das pessoas com as condições de
vida efetivas de sua comunidade. E vice-versa. Não pode haver patriotismo digno
desse nome sem instituir e fortalecer com êxito a pátria global/internacional
da humanidade, capaz de adaptação recíproca e harmonização cooperativa, a única
que pode conferir as necessárias características definidoras positivas do
próprio patriotismo. Nesse sentido, a complementaridade dialética do nacional e
do internacional permanece um princípio orientador vital dos intercâmbios
humanos no futuro próximo.”
“A negligência e a desconsideração da áspera
realidade das relações de poder conflituosas do capital, desde o primeiro
estágio da emergência do sistema até o presente democrático, e sobretudo
a transubstanciação da sujeição autoritária e da dominação implacável do
trabalho no interior dessas relações de poder na pretensa igualdade de
todos os indivíduos, eram inevitavelmente concomitantes à visão do mundo do
ponto de vista do capital, mesmo nos escritos das maiores e mais progressistas
personagens intelectuais da burguesia. O que tinha de ser suprimido pela adoção
do ponto de vista do capital, desde o início, era a história embebida em sangue
da “acumulação primitiva”50 pela qual a nova classe dominante
emergente continuou as práticas de exploração bem asseguradas da classe
precedente – a propriedade fundiária feudal – ainda que em uma nova forma,
colocando em relevo, novamente, a significativa continuidade histórica das
variedades das antiquíssimas opressão e exploração de classe.
No solo comum dessa afinidade, propriamente
redefinida de acordo com a natureza do capital, o pressuposto
permanentemente necessário da nova ordem produtiva do trabalho livre”: a propriedade
exclusiva dos meios de produção crucialmente importantes e controladores
por uma minúscula minoria, e a simultânea exclusão – em última instância politicamente
salvaguardada pelo Estado – da esmagadora maioria da sociedade desses
meios, tinha de ser perpetuada, apesar da crença professada de “liberdade e
igualdade”. Ao mesmo tempo, a realidade brutal da exclusão imposta tanto
material/reprodutivamente como política/ideologicamente da esmagadora maioria
das pessoas com relação às forças controladoras da ordem social – que não
poderia ser mais distante, em verdade diametralmente oposta, a qualquer “Estado
ético genuíno” – tinha de ser mantida sob o selo do profundo silêncio nos
autorretratos do novo modo de controle sociometabólico. Até mesmo nos melhores
autorretratos concebidos da perspectiva autovantajosa do capital. É dessa
maneira que a separação mistificadora da política com relação à dimensão da
reprodução material podia cumprir tanto sua função ideológica/cultural
conservadora como ser, ao mesmo tempo, celebrada como eternamente insuperável.
Assim Hegel, por exemplo, proporcionou em seu sistema, a separação mais
engenhosa e filosoficamente absolutizada entre a realidade material
autovantajosa da “sociedade civil” e o “Estado ético” político postulado como o
corretivo ideal aos defeitos inevitáveis da sociedade civil”. Invertendo a
ordem causal efetiva, Hegel retratou misticamente a determinação vital da autovantagem
como algo que emanava diretamente dos próprios indivíduos, embora na realidade
fosse imanente ao fundamento ontológico intransponível do capital, imposto aos
indivíduos que não podiam optar por não operar no interior da ordem
sociometabólica dada. Consequentemente, os indivíduos tiveram de internalizar
o imperativo autoexpansivo objetivo (isto é, sua determinação
inalteravelmente autovantajosa de dominar assim cada aspecto da sociedade) – sem
o qual o sistema do capital como tal não poderia sobreviver – como se o
autoengrandecimento brotasse do cerne de seus objetivos e propósitos pessoais
determinados pela natureza, tal como se supõe que Palas Atena brota da cabeça
de Zeus plenamente armado. Desse modo, Hegel foi capaz não apenas de produzir
um dualismo filosoficamente absolutizado da ordem social do capital, mas também
de glorificar ao mesmo tempo o desenvolvimento histórico correspondente à
suposta “realização da liberdade” nele como “a verdadeira teodiceia: a
justificação de Deus na história”51.
A crítica dessas concepções, em todas as suas
variedades, é altamente relevante hoje. Pois a manutenção da concepção dualista
da relação entre sociedade civil e Estado político só pode trazer estratégias
desorientadoras, independentemente do lado da visão dualista adotada a que se
dá precedência no curso de ação visado. A irrealidade das projeções
parlamentares se equipara nesse sentido à fragilidade absoluta das expectativas
vinculadas à ideia de resolver nossos maiores problemas por meio do anteparo
institucional ingenuamente postulado da sociedade civil.
A adoção de tal posição só pode resultar na
armadilha de uma concepção muito ingênua da natureza da própria “sociedade
civil” e de uma postura totalmente acrítica com relação à grande multiplicidade
de ONGS que, desmentindo sua autocaracterização como “organizações não
governamentais”, são muito bem capazes de coexistir com as instituições estatais
retrógradas dominantes das quais dependem para sua existência financeira. E
mesmo quando pensamos em algumas organizações de maior importância do que as
ONGs particulares, como os sindicatos, a situação a esse respeito não é muito
melhor. Por conseguinte, tratar os sindicatos, em oposição aos partidos
políticos, como de algum modo pertencentes apenas à “sociedade civil”, e por
isso passíveis de ser usados contra o Estado político para uma profunda transformação
socialista, não é mais que uma ilusão romântica. Pois, na realidade, o círculo
institucional do capital é feito das totalizações recíprocas de
sociedade civil/Estado político que se interpenetram profundamente e
sustenta-se vigorosamente. Não pode haver nenhuma estratégia realista de
transformação socialista sem que se busque de modo firme a realização da
unidade das dimensões da política e da reprodução material também no âmbito
organizacional. De fato, o grande potencial emancipador dos sindicatos consiste
precisamente em sua capacidade de assumir (ao menos em princípio) um papel
político radical – muito além do papel político conservador que agora tendem a
desempenhar como um todo – em uma tentativa consciente de superar a separação
fatal entre o braço industrial (eles mesmos) e o braço político
(os partidos parlamentares) do trabalho, apartados sob seu invólucro
capitalista pelo fato de a maior parte do movimento operário ter aceitado a
dominação parlamentar no curso dos últimos 130 anos.52
O aparecimento da classe trabalhadora no
cenário histórico foi apenas um pensamento posterior inconveniente para
o sistema parlamentar, constituído muito antes que as primeiras forças
organizadas do trabalho tentassem proclamar em público os interesses da sua
classe. Do ponto de vista do capital, a resposta imediata a esse “estorvo”
inconveniente, mas crescente, foi a rejeição e a exclusão bastante
insustentável dos grupos políticos concernidos. Mais tarde, entretanto, essa
resposta foi seguida pela ideia bem mais adaptável de domar de algum
modo as forças operárias – em primeiro lugar por meio do patrocínio parlamentar
paternalista de algumas demandas da classe trabalhadora pelos partidos
políticos burgueses progressistas e, mais tarde, pela aceitação da legitimidade
de alguns partidos da classe trabalhadora no próprio parlamento, embora, evidentemente,
em uma forma estritamente circunscrita, que os compelia a conformar-se
às “regras democráticas do jogo parlamentar”. Inevitavelmente, isso significou
a esses partidos nada menos do que o “livre consentimento” à sua própria acomodação
efetiva, mesmo se conseguissem manter por um período considerável a ilusão de
que com o passar do tempo seriam capazes reconformar radicalmente a situação
por meio da ação parlamentar em seu favor.
Eis como a força operária extraparlamentar
potencialmente alternativa transformou-se em uma organização parlamentar em
permanente desvantagem. Muito embora esse curso de desenvolvimento
pudesse ser explicado pela óbvia fraqueza do trabalho organizado no início,
esse argumento e justificativa do que efetivamente aconteceu simplesmente
pressupõe a questão em favor do beco sem saída da socialdemocracia parlamentar.
Pois a alternativa radical da obtenção de força pelas potências da
classe trabalhadora em sua organização e afirmação fora do parlamento – em
contraste com a estratégia seguida por muitas décadas, até a completa
privação de direitos e oportunidades da classe trabalhadora em nome da “obtenção
de força” – não pode ser descartada de maneira tão despreocupada, como se uma
alternativa verdadeiramente radical fosse uma impossibilidade a priori.
Especialmente uma vez que a necessidade de ação extraparlamentar sustentável é
absolutamente vital para o futuro de um movimento socialista radicalmente
rearticulado.”
50 Como afirma Marx, o curso da chamada
acumulação primitiva, o capital emerge “gotejando da cabe aos pés, de cada poro,
com sangue e pó. Ver Parte Sétima de capital de Marx, livro I. v. 2 “A chamada
acumulação primitiva”.
51 G.W. E. Hegel, Filosofia da história
(Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1995), p. 373.
52 Sobre essa questão, ver a seção 4.3 (“Os
desafios históricos diante do movimento socialista”), bem como o capítulo 18 de
Para além do capital, cit.
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