sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI (Parte I), de István Mészáros

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-100-0

Tradução: Ana Cotrim e Vera Cotrim

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 400

Sinopse: Em tempos de reflexão minimalista, István Mészáros é um pensador fundamental. Em seu livro O desafio e o fardo do tempo histórico, o filósofo húngaro destrincha o caráter imperativo e destrutivo das positivações atuais do capital e aprofunda a análise do significado histórico de sua crise estrutural à luz de manifestações cada vez mais irracionais e perigosas para o futuro da humanidade. É a partir da análise de como a ‘ordem estabelecida’ do capital produz destruição – do tempo livre, da educação, das pessoas, da cultura, da natureza, da vida – que Mészáros reafirma a necessidade do socialismo no século XXI.

Dotado de erudição rara, István Mészáros domina filosofia, economia política e teoria social como poucos. Seus textos dialogam criticamente com os principais pensadores deste século e navegam dos clássicos aos contemporâneos, sempre com rigor e criatividade. Sua obra enfrenta com determinação os desafios e as dificuldades para a superação da vida regulada pelo capital, em direção a uma existência humana verdadeira e fundada na igualdade substantiva.

Na contracorrente dos niilistas e dos acomodados à ordem, que proclamam não existir alternativa para o sistema de domínio social do capital, esse filósofo que não se furta ao embate ideológico vaticina que não há arremedo capaz de mitigar a gravidade extrema de suas contradições, permanentemente criadas e insolventes.

A ‘não alternativa’ ao capital, denuncia, significa a ‘não alternativa’ para a sobrevivência da própria humanidade. Sendo assim, a disputa no planeta hoje não se daria mais entre socialismo ou barbárie, mas entre socialismo ou extinção.


“É preciso ter uma grande dose de humanidade, uma grande dose de sentido de justiça e verdade para não cair em dogmatismos extremos, em escolasticismos frios, no isolamento das massas. É preciso lutar todos os dias para que esse amor à humanidade viva se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplo de mobilização.” (Che Guevara)

 

 

“A aniquilação da história é o único curso de ação plausível, inseparável da cegueira do capital ao futuro dolorosamente tangível que deve ser enfrentado. Eis porque o capital não tem alternativa ao abuso do tempo histórico. Sua máxima impiedosa segundo a qual não há alternativa é somente uma variante propagandística da negação geral da história correspondente à natureza recôndita do capital no estágio atual de nosso desenvolvimento histórico. Essa determinação do capital nem sempre se verificou, mas se tornou inalteravelmente presente. Assim, a única maneira de o capital se relacionar com a história em nosso tempo é abusar violentamente dela. Temos aqui uma combinação óbvia de contingência histórica e necessidade estrutural. Se a humanidade tinha a sua disposição uma “infinidade de tempo”. então não se poderia falar de “abuso do tempo pelo capital”. A infinidade de tempo não pode ser abusada por nenhuma força historicamente dada. Sob tais circunstâncias, a contínua expansão do capital seria um conceito quantitativo inofensivo, sem fim à vista. Mas a humanidade não tem a sua disposição uma infinidade de coisa alguma, como as personificações complacentes do capital absurdamente presumem, e certamente não a tem de tempo. Ademais, falar de uma infinidade de tempo histórico seria uma grotesca contradição nos termos.

Só a força mais insensível, desprovida de toda consideração humana, poderia ignorar as limitações do tempo. É isso que testemunhamos hoje de um modo característico. Nossa contingência histórica dada é o que ativa os limites estruturais insuperáveis – absolutos – do capital. São limites estruturais absolutos do sistema do capital que se tornam determinações destrutivas inclinadas a obstruir o futuro da humanidade. Nessa conjuntura da história, o capital não pode, sob nenhum aspecto, ser diferente do que efetivamente é. Eis como a necessidade estrutural do capital se torna fundida de modo devastador com sua contingência histórica brutalmente – mas totalmente em vão – ignorada. Isso ocorre precisamente porque o capital não tem, e não pode ter, a consciência do tempo histórico. Apenas aos sistemas sociorreprodutivos estruturalmente ilimitados é possível tê-la. Consequentemente, não pode haver saída dessa armadilha destrutiva da humanidade sem erradicar o sistema do capital de seu controle há muito resguardado do processo sociometabólico.”

 

 

“Seria extremamente ingênuo imaginar que a passagem da ordem sociometabólica de reprodução do capital a uma alternativa historicamente viável poderia ter lugar sem dolorosas contradições, e mesmo reincidências. Pois nenhuma transformação social em todo o curso da história humana exigiu uma mudança qualitativa nem mesmo remotamente comparável. Isso ocorre não apenas em virtude da escala quase impeditiva e da magnitude da tarefa, que envolve uma grande variedade de grupos nacionais interrelacionados – com sua longa história e suas tradições profundamente arraigadas, bem como interesses diversos – em um cenário verdadeiramente global. O que, além disso, é radicalmente diferente de todas as mudanças historicamente testemunhadas de uma formação social para outra – isto é, o componente não negociável da exigida transformação socialista – é a absoluta necessidade de superar permanentemente todas as formas de dominação e subordinação estrutural, e não apenas a sua variedade capitalista. Em nosso tempo, nenhuma “mudança de pessoal”, por mais bem-intencionada no início, poderia sequer começar a cumprir a tarefa. Em outras palavras, a relação conflitual/adversa* entre os seres humanos –que foi demasiado óbvia em toda a história conhecida – é o que deve ser positivamente suplantada pela criação e consolidação firmemente assegurada da nova ordem social. Do contrário, as contradições e antagonismos incontroláveis começarão mais cedo ou mais tarde a se avolumar rapidamente sobre os novos fundamentos estabelecidos, como realmente ocorreu nas sociedades de tipo soviético, minando-os e destruindo-os ao final.

Somente um engajamento crítico – e autocrítico – genuíno no curso da transformação histórica socialista pode produzir o resultado sustentável, proporcionando os corretivos necessários conforme as condições se modificarem e demandarem a resolução de seu desafio. Marx o evidenciou com ampla clareza desde o início quando insistiu que as revoluções socialistas não deviam esquivar-se de criticar a si mesmas “com impiedosa consciência”11 para que fossem capazes de alcançar seus objetivos emancipatórios vitais.

O século XX transformou significativamente a maneira como se deve apreender a advertência de Marx. Pois à luz de sete décadas de experiência prática extremamente custosa, o aviso marxiano original quanto à necessária crítica prática da própria ação – uma advertência que não poderia, em meados do século XIX, ser mais do que uma exortação muito geral – adquiriu uma urgência inevitável no movimento socialista. Pois, por um lado, dada a crise estrutural cada vez mais profunda de nossa ordem sociometabólica estabelecida, a instituição bem fundada da alternativa socialista é mais urgente hoje do que nunca, a despeito do ataque propagandístico autocomplacente da ideologia dominante, visível por toda parte. Mas, ao mesmo tempo, por outro lado, devido à pesada evidência histórica do desenvolvimento de tipo soviético, e dos imensos sacrifícios que se tiveram de suportar em suas longas décadas, ninguém pode negar hoje a necessidade de confrontar “com impiedosa consciência” os problemas que tendem a aparecer. Pois apenas pelo reexame socialista plenamente consciente e autocriticamente comprometido dos passos tomados com intenção emancipatória – tanto no passado como no presente – será possível tornar os fundamentos do socialismo no século XXI mais seguros do que se verificaram no século XX.”

11: Ver Karl Marx, “O dezoito de Brumário de Luís Bonaparte“, em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas (São Paulo, Alfa-Ômega, s. d., v. 1), p. 206.

 

 

Nenhum resultado duradouro pode ser construído sobre a capitulação. Como os anais da história social, política e militar provam abundantemente, a capitulação jamais pode ser a base do desenvolvimento histórico sustentável. Só pode proporcionar um ganho unilateral e o correspondente intervalo temporário até que a próxima rodada de antagonismos irrompa no palco histórico, em uma escala crescente e afirmando-se com intensidade cada vez maior como uma regra. Uma vez que podia ser racionalmente mantida na formulação do general Carl von Clausewitz essa guerra era a continuação da política por outros meios”. Mas o outro lado da mesma equação – concernente à reciprocidade fatídica da política e da guerra – jamais foi explicitada no passado, porque suas penosas implicações para a destruição total da humanidade não eram claramente visíveis. A saber: que a política (baseada no antagonismo) era o arauto da guerra necessária, porque – em vista da natureza irresoluta dos próprios antagonismos – ela tinha de terminar na capitulação de um lado e em última instância na instabilidade explosiva do intervalo resultante.

Apenas uma racionalidade substancialmente fundada – em contraste com os “compromissos” efêmeros adquiridos em nome de “atos equilibrantes” violentamente impostos ou taticamente racionalizados – poderia indicar a saída desse círculo vicioso, pela eliminação permanente de todas as formas de conflitualidade/adversidade antagônica. O grande desafio e fardo do tempo histórico é que a conflitualidade/adversidade antagônica deve ser permanentemente consignada ao passado, a fim de deixar para trás, e para sempre também, o círculo vicioso fatídico em nosso tempo inevitavelmente fatal da guerra e da política, como é conhecido por nós até o presente. Isso significa a refundação radical da política sobre as bases de uma racionalidade substantiva e historicamente sustentável, para ser capaz de administrar conscientemente todos os assuntos humanos na escala global exigida. Eis porque a instituição viável do socialismo baseado no “tudo ou nada” do século XXI apareceu na agenda histórica com grande urgência, impondo a necessidade de confrontar os fracassos do passado “com impiedosa consciência”, bem como explorar todas as vias de cooperação positiva sobre a única base plausível da igualdade substantiva.

Nada se resolveu de maneira durável pela implosão do sistema de tipo soviético, tampouco, de fato, pelo colapso dos maiores e mais antigos partidos comunistas em todos os lugares do mundo. A tentação do trabalho de seguir a linha de menor resistência, favorecendo a ordem estabelecida do capital, sem dúvida desempenhou e continua a desempenhar um importante papel nesses desenvolvimentos. Isso ocorre porque o estabelecimento da ordem reprodutiva socialista, como uma alternativa viável à ordem existente, é um empreendimento histórico imenso. Mas a linha de menor resistência não assegurará o futuro do capital. Pois essa linha é incapaz de gerar algo que não sejam retornos cada vez mais exíguos ao trabalho, sob as circunstâncias presentes de nossa crise histórica cada vez mais profunda, e em última instância absolutamente nenhum retorno, conforme o componente destrutivo da ordem reprodutiva do capital se inclina a escapar do controle.

Quanto aos sucessos falsamente alegados do próprio capital em sua fase histórica de crise estrutural, vemos na realidade seus países dominantes engajados em guerras genocidas, enquanto pregam cinicamente a democracia e a liberdade. Com efeito, o que testemunhamos no Oriente Médio e em outros lugares são conflagrações em uma escala cada vez mais destrutiva, em lugar de soluções duráveis aos graves problemas internos e internacionais da ordem sóciometabólica de controle do capital.

Muitas das realizações fundamentalmente autodestrutivas do imperialismo foram construídas no passado com base no genocídio na América do Norte e Latina. Hoje, a situação é ainda mais grave pois o imperialismo hegemônico global está conduzindo a humanidade ao extermínio. Tem de haver outro caminho. Os exemplos implacáveis de Gramsci, József e Che nos mostram esse caminho.”

 

 

“A emancipação humana é plausível apenas com base em uma concepção histórica que rejeita não apenas a ideia do determinismo materialista mecânico, mas também o tipo de desfecho da história filosófico idealista que encontramos na monumental visão hegeliana do mundo. Pois, quando Hegel declara em um tom de resignação consentida que “o que é racional é real e o que é real é racional” (como vimos acima), para justificar sua aceitação da necessária reconciliação com o presente, identificando ao mesmo tempo a alegada “realidade racional” do existente com a positividade, ele conduz a própria dinâmica histórica a um desfecho arbitrário no presente eterno aprioristicamente antecipado de seu sistema especulativo, afastando-se portanto também de sua busca emancipatória original concebida no espirito do Iluminismo.

Em contraste tanto com o determinismo mecanicista quanto com o idealismo especulativo, a defesa socialista de emancipação real não faria sentido algum sem a afirmação do caráter radicalmente ilimitado da história. Pois qual seria o sentido de enfatizar o potencial emancipatório positivo do tempo livre produtivamente desenvolvido da humanidade, uma vez submetido ao uso criativo pelos indivíduos sociais no curso do desenvolvimento histórico, se o processo geral de transformação histórica estivesse fatalmente predeterminado pelos estreitos limites do determinismo mecanicista (ou determinismo naturalista), ou ainda, o que daria no mesmo, pelas grandiloquentes projeções a priori do “autorrealizado Espírito do Mundo”?

Eis porque Marx insiste, em sua concepção dialética do caráter radicalmente ilimitado da história, formulada contra toda forma de desfecho ideológico determinista, que todo processo e estágio específico levado a cabo pela determinação histórica é apenas histórico e, portanto, deve dar lugar no devido tempo a um estágio de desenvolvimento mais avançado – e, para os indivíduos, também potencialmente mais enriquecedor e realizador cada vez mais em sintonia com a emancipação produtivamente sustentada da humanidade. Assim, ao contrário das deturpações tendenciosas das visões Marx – falsamente condenadas por conta de seu pretenso “determinismo econômico”, que vem a ser de fato a abordagem teórica dos economistas políticos severamente criticados por Marx – quando sublinha o poder subjugador da base material, ele o faz com qualificações muito claras. Pois salienta que a base material da transformação social atinge seu domínio paradoxal sob as condições históricas determinadas da ordem social do capital, quando – graças ao desenvolvimento produtivo da humanidade – surgem no horizonte algumas potencialidades emancipatórias fundamentais, ainda que sejam frustradas e minadas pelos antagonismos internos destrutivos do capital. E, precisamente com o objetivo de libertar essas potencialidades produtivas positivas, Marx contrapõe às determinações estruturais antagônicas do capital a emancipatória alternativa socialista como um modo de controle sociometabólico voltado não apenas à substituição consciente do poder da base material historicamente específica do capital, articulada na forma das determinações universalmente reificadoras da sociedade de mercadorias, mas também à superação da antiquíssima preponderância da base material em geral. Eis o significado do discurso marxiano sobre a história real da humanidade e seu “reino da liberdade” em oposição ao “reino da necessidade” esmagadoramente dominante no que ele chama de pré-história da humanidade.

A tirania do imperativo do tempo do capital encontra sua completude apropriada com respeito à escala oniabrangente de desenvolvimento no arbitrário “fim da história”. Assim, não há como romper com o imperativo do tempo do capital sem obrigatoriamente asseverar – não apenas em concepções teóricas alternativas, mas sobretudo pela estratégia prática abrangente de transformação revolucionária – o caráter radicalmente ilimitado da história, desafiando conscientemente a conformação hierárquica estabelecida das relações sociais estruturalmente predeterminadas e arraigadas. Nesse sentido, a tirania do imperativo do tempo do capital, imposta praticamente no processo de reprodução societária por meio da alienante contabilidade do tempo do sistema, e a tirania do desfecho histórico do capital logram ou malogram juntas.

O caráter radicalmente ilimitado da história historicamente criada é inseparável da condição única de automediação da humanidade com a natureza ao longo da história. Isso é muito verdadeiro no sentido de que não há como predeterminar permanentemente as formas e as modalidades da automediação humana, precisamente porque ela é automediação. As complexas condições dialéticas dessa automediação pela atividade produtiva só podem satisfazer-se – uma vez que são constantemente criadas e recriadas – no curso dessa própria automediação. É por isso que todas as tentativas de produzir sistemas de explicação histórica nitidamente encerrados em si mesmos e convenientemente fechados resultam ou em alguma redução arbitrária da complexidade das ações humanas a simplicidade crua das determinações mecânicas ou na sobreposição idealista de um ou outro tipo de transcendentalismo a priori à imanência do desenvolvimento humano.”

 

 

“A “tendência universal do capital”, que transfere as condições objetivas de produção ao plano dos intercâmbios globais, no interior da estrutura de divisão internacional do trabalho e do mercado mundial, distingue o sistema do capital de todos os estágios de produção anteriores”19. No entanto, uma vez que as condições de produção como um resultado encontram-se fora das empresas industriais particulares – fora até mesmo das corporações transnacionais e monopólios estatais mais gigantescos – a “tendência universalizante” do capital acaba sendo de fato uma dádiva muito defeituosa. Pois, enquanto por um lado ela cria a genuína potencialidade de emancipação humana, por outro representa a maior de todas as complicações possíveis – já que implica até mesmo o perigo de conflitos totalmente destrutivos – no sentido de que as condições necessárias de produção e controle se encontram fora e, por conseguinte, em todos os lugares e em lugar nenhum, como em um pesadelo. Em vista disso, o pior pesadelo seria esperar que a “mão invisível” solucionasse todas as contradições caoticamente engrenadas e os antagonismos destrutivos do sistema do capital globalmente entrelaçado, quando já não fez o que supostamente deveria fazer, a despeito da ilimitada confiança que lhe conferiram Adam Smith, Kant, Hegel e muitos outros, em uma escala bem mais modesta, nos séculos passados.

A sóbria verdade é que a tendência universalizante do capital jamais pode chegar à fruição no interior de sua própria estrutura. Pois o capital deve decretar que as barreiras que não pode transcender – a saber, suas limitações estruturais recônditas – são limites intransponíveis de toda produção em geral. Ao mesmo tempo, o que se deve de fato reconhecer e respeitar como um limite inviolável e uma condição vital do desenvolvimento contínuo – isto é, a natureza em toda a sua complexidade como o fundamento da própria existência humana – é integralmente desconsiderado na sistemática subjugação, degradação e destruição última da natureza. Isso ocorre porque os interesses fundamentalmente cegos da expansão do capital têm de rejeitar até mesmo o fato de que as condições mais elementares da vida humana são diretamente enraizadas na natureza. Por conseguinte, em ambos os aspectos, isto é, tanto em relação àquilo que o capital se recusa a reconhecer – seus próprios limites estruturais quanto no que se refere ao seu impacto incorrigivelmente destrutivo sobre a natureza -o substrato vital da própria vida humana -, cumpre efetivar um rompimento consciente com as determinações autovantajosas do sistema do capital.

As mesmas considerações se aplicam à mitologia da “globalização”, promovida com zelo missionário pelos ideólogos do capital como uma versão mais palatável da “mão invisível” para o nosso tempo. Quando projetam os benefícios supostamente globais e onilaterais, em conjunção com o mundo do mercado, ignoram ou deliberadamente distorcem que aquilo que realmente existe – e existiu durante um longo tempo – está longe de ser universal e equitativamente benéfico, mas, ao contrário, é um mercado mundial imperialisticamente dominado. Estabeleceu-se como um conjunto das relações de poder mais iníquas, operando sempre em vantagem dos mais fortes e da cruel dominação – se necessário for, mesmo do subjugo militar direto – e exploração dos mais fracos. Uma ordem “globalizada” constituída sobre essa base, sob a estrutura geral de comando do Estado moderno, só poderia piorar as coisas. Eis porque, também a esse respeito, sem um rompimento consciente com o modo de controle sociometabólico do capital o potencial emancipatório positivo de longo alcance dos intercâmbios reprodutivos globais da humanidade não pode chegar à sua fruição real. Somente o uso criativo do tempo livre pelos indivíduos sociais, em busca dos objetivos livremente escolhidos por eles, pode levar a cabo o tão necessário resultado benéfico.”

19. Karl Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie (Marx-Engels-Werke, Berlim, Dietz Verlag, 1983, v. 42). p. 445

 

 

“Deveria ser ainda mais óbvio hoje do que jamais fora que o alvo da transformação socialista não pode ser somente o capitalismo, a fim de obter um êxito duradouro: cumpre que seja o próprio sistema do capital.

Esse sistema em todas as suas formas capitalistas ou pós-capitalistas é (e tem de permanecer) orientado à expansão e dirigido pela acumulação5. Naturalmente, o que está em questão a esse respeito não é um processo designado à crescente satisfação da necessidade humana. Antes, é a expansão do capital como um fim em si mesmo, servindo à preservação de um sistema que não poderia sobreviver sem afirmar constantemente seu poder como um modo ampliado de reprodução. O sistema do capital é antagônico até o mais fundo de seu âmago, por conta da subordinação estrutural hierárquica do trabalho ao capital, que usurpa totalmente – e deve sempre usurpar – o poder de decisão. Esse antagonismo estrutural predomina em todos os lugares, desde os menores “microcosmos” constitutivos até o “macrocosmo” que abarca as mais abrangentes estruturas e relações reprodutivas. E, precisamente porque o antagonismo é estrutural, o sistema do capital é – e deve sempre permanecer – irreformável e incontrolável. O fracasso histórico da socialdemocracia reformista fornece um testemunho eloquente da irreformabilidade do sistema; e a crise estrutural cada vez mais profunda, com seus perigos para a própria sobrevivência da humanidade, coloca em acentuado relevo a sua incontrolabilidade. Com efeito, é inconcebível introduzir as mudanças fundamentais exigidas para remediar a situação sem superar o antagonismo estrutural destrutivo tanto nos “microcosmos” reprodutivos como no “macrocosmo” do sistema do capital como um modo de controle sociometabólico oniabrangente. E isso só se pode alcançar se for colocada em seu lugar uma forma radicalmente diferente de reprodução sociometabólica, orientada ao redimensionamento qualitativo e ao aumento da satisfação da necessidade humana; um modo de intercâmbio humano controlado não por um conjunto de determinações materiais fetichistas, mas pelos próprios produtores associados.”

5 A crise crônica de acumulação como um grave problema estrutural foi salientada por Paul Sweety eHam Magdoff em diversas ocasiões.

 

 

Onde está hoje o proletariado e que papel ele desempenha na mudança social? Onde podemos encontrar hoje o agente?

István Mészáros: Penso que sua pergunta diz respeito realmente à questão do agente social da transformação. Pois é isso que a palavra “proletariado” resumo no tempo de Marx, e com esse vocábulo as pessoas frequentemente designavam o proletariado industrial. As classes operárias industriais constituem-se, em sua totalidade, de trabalhadores manuais, desde a mineração até os diversos ramos da produção industrial. Restringir o agente social da mudança aos trabalhadores manuais não é obviamente a posição do próprio Marx. Ele estava muito longe de pensar que o conceito de “trabalhador manual” proporcionaria uma estrutura adequada de explicação sobre aquilo que uma mudança social radical demanda. Devemos recordar que ele está falando de como, pela polarização da sociedade, um número cada vez maior de pessoas é proletarizado. Assim, é o processo de proletarização inseparável do desdobramento global do sistema do capital – que define e em última instância estabelece o problema. Ou seja, a questão é como a maioria esmagadora dos indivíduos cai em uma condição na qual perde todas as possibilidades de controle sobre sua vida e, nesse sentido, torna-se proletarizada. Portanto, novamente, tudo recai na questão de “quem detém o controle” do processo de reprodução social quando a maioria esmagadora dos indivíduos é proletarizada e degradada à condição de extrema impotência, assim como foram os membros mais vis da sociedade – os proletários – em uma fase anterior de desenvolvimento.”

 

 

“Existiram todos os tipos de fantasia, especialmente nas últimas décadas, de que a “revolução da informação” acabaria definitivamente com o trabalho e viveríamos felizes para sempre na “sociedade pós-industrial”. A ideia de o trabalho se tornar divertimento tem uma linhagem respeitável e remonta a Schiller. No entanto, suas recentes renovações apologéticas do capital constituem uma completa absurdidade. Pode-se abolir por decreto o trabalho assalariado. Mas isso está muito longe de resolver o problema da emancipação do trabalho, que só é concebível como a autoemancipação dos “produtores associados”. O trabalho humano como atividade produtiva sempre permanecerá a condição absoluta do processo de reprodução. O substrato natural da existência dos indivíduos é a própria natureza, que deve ser controlada racional e criativamente pela atividade produtiva – em oposição a ser dominada irresponsável e destrutivamente pelos imperativos irracionais, desperdiçadores e destrutivos da expansão do capital. O metabolismo social envolve o intercâmbio necessário entre os próprios indivíduos e entre a totalidade dos indivíduos e a natureza recalcitrante. No século XVIII, até mesmo a ideia original, não apologética, do trabalho como divertimento era inseparável da idealização da natureza: a ignorância ou negação de seu necessário caráter recalcitrante. Mas as recentes réplicas de apologia ao capital são uma afronta a toda crença, dada a esmagadora evidência da devassa destruição da natureza pelo capital, cinicamente ignorada pelos proponentes dessas teorias.”

 

 

“Independentemente das alegações da atual “globalização”, é impossível existir universalidade no mundo social sem igualdade substantiva. Evidentemente, portanto, o sistema do capital, em todas as suas formas concebíveis ou historicamente conhecidas, é totalmente incompatível com suas próprias projeções – ainda que distorcidas e estropiadas – de universalidade globalizante. E é enormemente mais incompatível com a única realização significativa da universalidade viável, capaz de harmonizar o desenvolvimento universal das forças produtivas com o desenvolvimento abrangente das capacidades e potencialidades dos indivíduos sociais livremente associados, baseados em suas aspirações conscientemente perseguidas.”

 

 

“O sistema do capital se articula numa rede de contradições que só se consegue administrar medianamente, ainda assim durante curto intervalo, mas que não se consegue superar definitivamente. Na raiz de todas elas encontramos o antagonismo inconciliável entre capital e trabalho, assumindo sempre e necessariamente a forma de subordinação estrutural e hierárquica do trabalho ao capital, não importando o grau de elaboração e mistificação das tentativas de camuflá-la.”

 

 

“A dimensão militar de tudo isso é grave. Portanto, não é exagero afirmar – tendo em vista também o antes inimaginável poder destrutivo dos armamentos acumulados ao longo da segunda metade do século XX – que entramos na fase mais perigosa do imperialismo em toda a história; pois o que está em jogo hoje não é o controle de uma região particular do planeta, não importando o seu tamanho, nem a sua condição desfavorável, por continuar tolerando as ações independentes de alguns adversários, mas o controle de sua totalidade por uma superpotência econômica e militar hegemônica, com todos os meios – incluindo os mais extremamente autoritários e violentos meios militares – à sua disposição. É essa a racionalidade última exigida pelo capital globalmente desenvolvido, na tentativa vã de assumir o controle de seus antagonismos inconciliáveis. A questão é que tal racionalidade – que se pode escrever sem aspas, pois ela corresponde genuinamente à lógica do capital no atual estágio histórico de desenvolvimento global – é ao mesmo tempo a forma mais extrema de irracionalidade na história, incluindo a concepção nazista de dominação do mundo, no que se refere às condições necessárias para a sobrevivência da humanidade. (...)

Os que sustentam que hoje o imperialismo não implica a ocupação militar de território não apenas subestimam os perigos que nos esperam, mas também aceitam as aparências mais superficiais e enganadoras como as características substantivas definidoras do imperialismo de nosso tempo, ignorando tanto a história quanto as tendências contemporâneas de desenvolvimento. Com suas bases militares, os Estados Unidos ocupam militarmente o território de nada menos que 69 países: um número que continua a crescer com a ampliação da Otan. Essas bases não existem para benefício das pessoas – a grotesca justificativa ideológica –, mas para benefício único do poder de ocupação, de forma a lhe dar condições de impor políticas que melhor atendam aos seus interesses. (...)

É evidente que as forças militares têm de ser economicamente sustentadas, o que as confina a empresas limitadas tanto no porte das máquinas militares empregadas como no período de operações. O registro histórico das aventuras imperialistas passadas mostra que, quando elas se tornam muito extensivas – como foi o caso da França, primeiro sobre a Indochina, depois sobre a Argélia, e mais tarde dos Estados Unidos sobre o Vietnã –, é inevitável enfrentar o fracasso, ainda que às vezes seja demorada a sua conclusão. Com relação às incontáveis operações militares imperialistas do passado, é preciso lembrar não apenas as que ocorreram nas Filipinas ou na fracassada guerra em grande escala de intervenção no Vietnã33, mas também as da Guatemala, da República Dominicana, da Guiana Inglesa, de Granada, do Panamá e do Congo, bem como outras operações militares em outros países, desde o Oriente Médio e dos Bálcãs até várias partes da África. Uma das formas favoritas de fazer prevalecer os interesses imperialistas dos Estados Unidos foi sempre a de depor governos desagradáveis, impor ditadores totalmente dependentes do novo senhor e governar os países em questão por meio desses ditadores bem controlados. Estamos falando aqui de Marcos e Pinochet, Suharto e os generais brasileiros, Somoza e os generais títeres dos Estados Unidos, sem esquecer os coronéis gregos (a quem Lyndon Johnson chamou de “filhos da puta34”) e Mobutu (chamado, num tipo esquisito de elogio, de o “nosso filho da puta35” por um alto funcionário do Departamento de Estado). É bastante evidente o desprezo com que membros do governo dos Estados Unidos tratavam seus serviçais nos países sob sua dominação militar, enquanto cinicamente os apresentavam, para consumo público, como defensores do “Mundo Livre”.”

33 Com relação ao desastroso envolvimento dos Estados Unidos no Vietnã, ver o livro fundamental de Gabriel Kolko, Vietnam: Anatomy of a War, 1940-1975, Londres, Allen & Unwin, 1986.

34 Andreas Papandreou me contou em 1973 como foi libertado da prisão dos coronéis. Um antigo membro do “tanque de cérebros” de Kennedy, John Kenneth Galbraith, numa atitude louvável, visitou o presidente Johnson e lhe pediu que intercedesse em favor do velho amigo de Harvard. Johnson chamou uma secretária e lhe mandou ligar para a Embaixada norte-americana em Atenas. Isso feito, Johnson disse ao embaixador: “Mande esses filhos da puta soltarem esse homem bom, Papandreou, imediatamente” – o que foi feito. Pois eles sabiam muito bem quem mandava de verdade na Grécia.

35 The Economist informou poucas semanas antes da derrubada do regime de Mobutu. A sentença completa citada pelo Economist foi: “Sabemos que ele é um filho da puta, mas é o nosso filho da puta”. Essa descrição de um aliado oportuno é do tempo de Roosevelt, embora haja controvérsia se foi o próprio Roosevelt ou Cordell Hull quem usou a expressão de Somoza.

Um comentário:

Doney disse...

Por conta do tamanho, foram citados apenas alguns trechos, mas faço um destaque das passagens entre as páginas 168 e 177.