sexta-feira, 8 de maio de 2020

A sagrada família (Parte I) – Karl Marx e Friedrich Engels

Título completo: A sagrada família ou Crítica da Crítica crítica: contra Bruno Bauer e consortes
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-032-4
Tradução e notas: Marcelo Backes
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 288
Sinopse (orelha): Depois de ter tido certa desconfiança em relação a Engels, Marx tornou-se seu amigo. E juntos eles escreveram, em Paris, de setembro a novembro de 1844, A sagrada família. Na Alemanha, liderado por Bruno Bauer, emergia um grupo de intelectuais ambiciosos, hipercríticos, que se consideravam críticos dos críticos, ou Críticos críticos. Marx e Engels deram ao livro um título que aludia ironicamente à família Bauer e um subtítulo não menos irônico: “A crítica da Crítica crítica”.
As qualidades literárias do texto de Marx e Engels, as estocadas sarcásticas, contribuíram muito para a repercussão da obra. Eles precisavam acertar contas com os pretensos “herdeiros” de Hegel.
O mais importante, porém, é a elaboração pioneira – feita por eles durante a polêmica – de conceitos novos, que viriam a esclarecer a dialética da concepção materialista da História.
O conceito de “consciência de classe”, por exemplo, distingue o que os trabalhadores acham que querem, num dado momento, daquilo que os trabalhadores vão sendo levados a querer, necessariamente, em função de seu próprio ser.
O conceito de ideologia ajuda a desmascarar o superdimensionamento do poder das ideias, advertindo que elas só se traduzem em ação transformadora quando os homens se empenham em usar a força prática que possuem.
E a nascente concepção materialista da história nos previne que a história não é um sujeito metafísico que manipula os indivíduos como se fossem marionetes; na realidade, são as pessoas vivas que, agindo, lutando, perseguindo os seus objetivos, fazem a história.
Felizes os leitores brasileiros que podem agora se divertir vendo Marx e Engels debocharem da família dos Críticos críticos e, ao mesmo tempo, podem acompanhar a gênese de concepções que vieram a ter tanta importância na história das ideias. (Leandro Konder)
  


“O humanismo real não tem, na Alemanha, inimigo mais perigoso do que o espiritualismo – ou idealismo especulativo –, que, no lugar do ser humano individual e verdadeiro, coloca a “autoconsciência” ou o “espírito” e ensina, conforme o evangelista: “O espírito é quem vivifica, a carne não presta”. Resta dizer que esse espírito desencarnado só tem espírito em sua própria imaginação.”


“A economia política que aceita as relações da propriedade privada como se fossem relações humanas e racionais move-se em uma constante contradição contra sua premissa fundamental, a propriedade privada, numa contradição análoga à do teólogo que interpreta constantemente as noções religiosas a partir de um ponto de vista humano e justamente através disso atenta sem cessar contra sua premissa fundamental, o caráter sobre-humano da religião. Assim, na economia política o salário se apresenta no princípio como a parte proporcional que corresponde ao trabalho gasto no produto. O salário e o lucro do capital mantêm relações mútuas de amizade, aparentemente humanas, condicionado-se mutuamente. Mais tarde, porém, fica claro que a relação entre ambos é a mais hostil que possa existir, que se acham em relação inversa um com o outro. O valor parece ser determinado racionalmente no princípio, através dos custos de produção de uma coisa e através de sua utilidade social. Mais tarde, todavia, fica claro que o valor é uma determinação puramente casual, que não precisa guardar a menor relação nem com os custos da produção nem com a utilidade social da coisa produzida. O tamanho do salário é determinado no início através do acordo livre entre o trabalhador livre e o capitalista livre. Mais tarde fica claro que o trabalhador é obrigado a deixar que determinem o salário como quiserem, assim como o capitalista é obrigado a estipulá-lo em um patamar tão baixo quanto possível. O lugar da liberdade das partes contratantes é ocupado pela coação. E o mesmo ocorre com o comércio e com todas as outras relações da economia política. Os economistas políticos por vezes se dão conta, eles mesmos, dessas contradições, e o desenvolvimento delas constitui o conteúdo fundamental de suas lutas recíprocas. Mas, quando tomam consciência dessas contradições, eles próprios atacam a propriedade privada sob uma forma parcial qualquer, declarando-a falseadora do salário racional em si – ou seja, conforme a sua noção de salário racional em si, de valor racional em si e de comércio racional em si. Dessa maneira, Adam Smith polemiza com os capitalistas de quando em vez, Destutt de Tracy com os banqueiros, Simonde Sismondi contra o sistema fabril, Ricardo contra a propriedade do solo e quase todos os economistas políticos modernos contra os capitalistas não industriais, para os quais a propriedade se manifesta como simples consumidora.
Os economistas fazem valer, portanto, ora – ainda que em momentos de exceção, nomeadamente quando atacam um abuso específico qualquer – a aparência do humano nas relações econômicas, ora – e essa é a regra geral – concebem essas relações justamente no aspecto em que se diferenciam aberta e declaradamente do humano, ou seja, em seu sentido estritamente econômico. Nessa contradição eles cambaleiam por aí, inconscientes.
Proudhon pôs, de uma vez por todas, um fim a essa inconsciência. Ele levou a sério a aparência humana das relações econômico-políticas e confrontou-as abruptamente com sua realidade desumana. Obrigou-as a ser na realidade o que eram nas concepções que tinham a respeito de si mesmas ou, muito antes, obrigou-as a deixar de lado as concepções que tinham a respeito de si e a confessarem sua desumanidade real32. Consequentemente, ele não atacou este ou aquele modo da propriedade privada, conforme o fizeram os outros economistas políticos – de modo parcial –, mas simplesmente tomou a propriedade privada em seu modo universal, apresentando-a na condição de falsificadora das relações econômicas. Proudhon desempenhou tudo aquilo que a crítica da economia política podia desempenhar do ponto de vista econômico-político.”
32 Para Marx, o escrito de Proudhon é a prova definitiva da inconciliabilidade entre humanidade e economia política. A maneira como Marx pretende superar – e supera – Proudhon é absolutamente diferente da de Bauer, aliás. Enquanto Bauer ideologiza até mesmo as questões econômicas de Proudhon, Marx transforma até mesmo as questões ideológicas do pensador francês em problemas socioeconômicos. Se Bauer é incapaz de ver o mérito de Proudhon por ter criticado a economia política do ponto de vista da economia política, Marx supera inclusive o ponto de vista limitado da economia política. (N.T.)


“Proletariado e riqueza são antíteses. E nessa condição formam um todo. Ambos são formas do mundo da propriedade privada. Do que aqui se trata é da posição determinada que um e outra ocupam na antítese. Não basta esclarecê-los como os dois lados – ou extremos – de um todo.
A propriedade privada na condição de propriedade privada, enquanto riqueza, é obrigada a manter sua própria existência e com ela a existência de sua antítese, o proletariado. Esse é o lado positivo da antítese, a propriedade privada que se satisfaz a si mesma.
O proletariado na condição de proletariado, de outra parte, é obrigado a suprassumir a si mesmo e com isso à sua antítese condicionante, aquela que o transforma em proletariado: a propriedade privada. Esse é o lado negativo da antítese, sua inquietude em si, a propriedade privada que dissolve e se dissolve.
A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma autoalienação humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada nessa autoalienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana. Ela é, para fazer uso de uma expressão de Hegel, no interior da abjeção, a revolta contra essa abjeção, uma revolta que se vê impulsionada necessariamente pela contradição entre sua natureza humana e sua situação de vida, que é a negação franca e aberta, resoluta e ampla dessa mesma natureza.
Dentro dessa antítese o proprietário privado é, portanto, o partido conservador, e o proletário o partido destruidor. Daquele parte a ação que visa a manter a antítese, desse a ação de seu aniquilamento.
Em seu movimento econômico-político, a propriedade privada se impulsiona a si mesma, em todo caso, à sua própria dissolução; contudo, apenas através de um desenvolvimento independente dela, inconsciente, contrário a sua vontade, condicionado pela própria natureza da coisa: apenas enquanto engendra o proletariado enquanto proletariado, enquanto engendra a miséria consciente de sua miséria espiritual e física, enquanto engendra a desumanização consciente – e portanto suprassunsora – de sua própria desumanização31. O proletariado executa a sentença que a propriedade privada pronuncia sobre si mesma ao engendrar o proletariado, do mesmo modo que executa a sentença que o trabalho assalariado pronuncia sobre si mesmo ao engendrar a riqueza alheia e a miséria própria. Se o proletariado vence, nem por isso se converte, de modo nenhum, no lado absoluto da sociedade, pois ele vence de fato apenas quando suprassume a si mesmo e à sua antítese. Aí sim tanto o proletariado quanto sua antítese condicionante, a propriedade privada, terão desaparecido.
Se os escritores socialistas atribuem ao proletariado esse papel histórico-mundial, isso não acontece, de nenhuma maneira, conforme a Crítica crítica pretexta dizer que acontece, ou seja, pelo fato de eles terem os proletários na condição de deuses. Muito pelo contrário. Porque a abstração de toda humanidade, até mesmo da aparência de humanidade, praticamente já é completa entre o proletariado instruído; porque nas condições de vida do proletariado estão resumidas as condições de vida da sociedade de hoje, agudizadas do modo mais desumano; porque o homem se perdeu a si mesmo no proletariado, mas ao mesmo tempo ganhou com isso não apenas a consciência teórica dessa perda, como também, sob a ação de uma penúria absolutamente imperiosa – a expressão prática da necessidade –, que já não pode mais ser evitada nem embelezada, foi obrigado à revolta contra essas desumanidades; por causa disso o proletariado pode e deve libertar-se a si mesmo. Mas ele não pode libertar-se a si mesmo sem suprassumir suas próprias condições de vida. Ele não pode suprassumir suas próprias condições de vida sem suprassumir todas as condições de vida desumana da sociedade atual, que se resumem em sua própria situação. Não é por acaso que ele passa pela escola do trabalho, que é dura mas forja resistência. Não se trata do que este ou aquele proletário, ou até mesmo do que o proletariado inteiro pode imaginar de quando em vez como sua meta. Trata-se do que o proletariado é e do que ele será obrigado a fazer historicamente de acordo com o seu ser. Sua meta e sua ação histórica se acham clara e irrevogavelmente predeterminadas por sua própria situação de vida e por toda a organização da sociedade burguesa atual.”


“Na opinião do senhor Edgar, ter e não ter são, para Proudhon, categorias absolutas. A Crítica crítica vislumbra por tudo apenas categorias. Desse modo, o ter e o não ter, o salário e o soldo, a penúria e a necessidade, o trabalho por necessidade são, segundo o senhor Edgar, nada mais do que categorias.
Se a sociedade tivesse que se livrar apenas das categorias do ter e do não ter, quão fácil não seria a qualquer dialético, mesmo que fosse ainda mais fraco do que o senhor Edgar, alcançar a “superação” e a “suprassunção” dessas categorias! O senhor Edgar considera isso de uma pequenez tamanha que julga abaixo de sua dignidade dedicar esforço para dar a Proudhon um esclarecimento que fosse a respeito das categorias do ter e do não ter. Mas como o não ter não é apenas uma categoria, mas também uma realidade totalmente desconsoladora – uma vez que o homem que não tem nada não é nada hoje em dia, já que se acha à margem da existência de um modo geral e, mais ainda, à margem de uma existência humana, pois o estado de não ter é o estado de completo divórcio entre o homem e sua objetividade –, está perfeitamente justificado que o não ter constitua, para Proudhon, o mais alto tema de meditação, tanto mais pelo fato de ter sido meditado tão pouco acerca desse tema antes dele e dos escritores socialistas em geral. O não ter é o espiritualismo mais desesperado, uma irrealidade total do humano, uma realidade total do desumano, um ter assaz positivo, um ter fome, ter frio, ter doenças, crimes, humilhações, hebetismo, um ter todas as coisas desumanas e antinaturais.”


“A verdade é, tanto para o senhor Bauer quanto para Hegel, um autômato que se prova a si mesmo. O homem deve apenas segui-la. E, assim como em Hegel, o resultado da argumentação real no senhor Bauer não é outro que não a verdade demonstrada, quer dizer, a verdade levada à consciência. Por isso, a Crítica absoluta pode perguntar-se, conforme faz o mais tapado dos teólogos:
Para que serviria a História se não tivesse por missão demonstrar precisamente essas verdades, as mais simples de todas (como por exemplo o movimento da Terra em volta do Sol)?
Assim como os antigos teólogos estipularam que as plantas se encontravam na terra para servir de alimento aos animais, e os animais para servir de alimento ao homem, assim também a História existe para servir ao ato de consumo do alimento teórico, da demonstração. O homem existe para que exista a História, e a História existe para que exista a demonstração da verdade. Sob essa forma trivializada criticamente se repete a sabedoria especulativa de que o homem e a História existem para que a verdade chegue à autoconsciência.
A História torna-se, assim, uma persona à parte, um sujeito metafísico, do qual os indivíduos humanos reais não são mais do que simples suportes.”



A História não faz nada, “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não luta nenhum tipo de luta”! Quem faz tudo isso, quem possui e luta é, muito antes, o homem, o homem real, que vive; não é, por certo, a “História”, que utiliza o homem como meio para alcançar seus fins – como se se tratasse de uma pessoa à parte –, pois a História não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos.”


Reconhecimento da humanidade livre? A “humanidade livre”, cujo reconhecimento os judeus não pensavam ambicionar, mas de fato ambicionavam, é a mesma “humanidade livre” que encontrou seu reconhecimento clássico nos assim chamados direitos gerais do homem. O próprio senhor Bauer tratou da aspiração dos judeus pelo reconhecimento de sua humanidade livre de maneira expressa como sua aspiração a receber os direitos gerais do homem.
Nos “Anais franco-alemães” desenvolveu-se para o senhor Bauer a prova de que essa “humanidade livre” e seu “reconhecimento’ não são nada mais do que o reconhecimento do indivíduo burguês egoísta e do movimento desenfreado dos elementos materiais e espirituais que formam o conteúdo de sua situação de vida, o conteúdo da vida burguesa atual; que, portanto, os direitos humanos não liberam o homem da religião, mas apenas lhe outorgam a liberdade religiosa, não o liberam da propriedade, mas apenas lhe conferem a liberdade da propriedade, não o liberam da sujeira do lucro, mas, muito antes, lhe outorgam a liberdade para lucrar.
Demonstrou-se como o reconhecimento dos direitos humanos por parte do Estado moderno tem o mesmo sentido que o reconhecimento da escravatura pelo Estado antigo. Com efeito, assim como o Estado antigo tinha como fundamento natural a escravidão, o Estado moderno tem como base natural a sociedade burguesa e o homem da sociedade burguesa, quer dizer, o homem independente, entrelaçado com o homem apenas pelo vínculo do interesse privado e da necessidade natural inconsciente, o escravo do trabalho lucrativo e da necessidade egoísta, tanto da própria quanto da alheia. O Estado moderno reconhece essa sua base natural, enquanto tal, nos direitos gerais do homem. Mas não os criou. Sendo como é, o produto da sociedade burguesa, impulsionada por seu próprio desenvolvimento até mais além dos velhos vínculos políticos, ele mesmo reconhece, por sua vez, seu próprio local de nascimento e sua própria base mediante a proclamação dos direitos humanos. Portanto, a emancipação política dos judeus e a concessão a estes dos “direitos humanos” constitui um ato mutuamente condicionante. O senhor Riesser expressa acertadamente o sentido que encerra a aspiração dos judeus ao reconhecimento da humanidade livre, quando postula, entre outras coisas, a liberdade de movimentos e de residência, a liberdade de viajar, de exercer o comércio e a indústria etc. Essas manifestações da “humanidade livre” foram reconhecidas expressamente como tais na proclamação francesa dos direitos do homem. E o judeu tem, mesmo assim, mais direito a esse reconhecimento de sua “humanidade livre”, posto que a “sociedade burguesa livre” encerra uma essência absolutamente comercial e judaica e ele é, de antemão, parte necessária dela. E nos “Anais franco-alemães” desenvolveu-se, mais além, por que o membro par exellence da sociedade burguesa se chama “o homem” e por que os direitos humanos recebem o nome de “direitos inatos”.”

Um comentário:

Doney disse...

Este livro é uma espécie de prolegômeno à "Ideologia Alemã", e cabe o mesmo comentário que fiz a respeito da postagem deste livro:

"Como a literatura com a qual dialogam é precária e limitada, calha que os autores respondem bem, comentam com uma ironia machadiana inúmeras passagens (daquelas que lemos com um pequeno sorriso nos lábios), mas eles estão, no fim das contas, se revolvendo na lama. Não conseguem se desvencilhar suficientemente da camisa de força que é comentar escritos obtusos e estéreis. O livro cai de qualidade, portanto – e não é pouco."

Dito isso, quando conseguem se libertar um pouco mais, Marx e Engels escrevem nesta obra algumas das passagens mais brilhantes da história da filosofia.
Em outros termos, apesar de a nota dada não ser boa pelo motivo acima explicado, alguns dos trechos aqui selecionados são absolutamente imprescindíveis.