Editora: Boitempo
ISBN: 978-857559-469-8
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 192
Sinopse: Ver Parte
I
3. O Manifesto
Comunista: limites e grandeza teórico-política – José Paulo Netto
“A primeira inovação do Manifesto
Comunista, a meu juízo, é a consideração das lutas de classes como
força-motriz da dinâmica sociopolítica da sociedade capitalista. Se os
historiadores românticos da Revolução Francesa já a haviam interpretado à luz
do confronto entre classes, é no Manifesto... que elas são tomadas como centrais
nos processos de transformação social. E mais: o documento de 1848 foi o primeiro
texto elaborado a partir da perspectiva de classe do proletariado como
dinamizadora da ação política vocacionada para promover transformações
estruturais.
A segunda inovação introduzida é que, pela
primeira vez, o programa anticapitalista da classe revolucionária é proposto
não como a expressão de vontades e desejos generosos e, menos ainda, como um
receiturário formulado por visionários ou profetas. O programa da Liga dos
Comunistas, resumido nos dez pontos apresentados no Manifesto...,
vem embasado nas tendências de desenvolvimento inferíveis da realidade da
sociedade burguesa: é da análise dessa sociedade que Marx e Engels extraem a
viabilidade do programa que propõem. Não há em sua proposição o lastro
voluntarista/subjetivista que até então marcava as propostas dos grandes
reformadores sociais; a inspiração e o espírito utópicos são deslocados pela
investigação teórica de tendências reais e pela prospecção das alternativas
concretas nelas contidas – muitos anos depois, Engels observará que esse deslocamento
corresponde ao trânsito do “socialismo utópico ao socialismo científico”.
Aliás, já antes de redigir o Manifesto..., nos Manuscritos
econômico-filosóficos, Marx afirmara que:
O comunismo é [...] o momento efetivo
necessário da emancipação e da recuperação humanas para o próximo
desenvolvimento histórico. O comunismo [...] não é, como tal, o termo do
desenvolvimento humano – a figura da sociedade humana.[1]
Depois, nas anotações ao manuscrito de A
ideologia alemã, pontuou:
O comunismo não é para nós um estado de
coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um Ideal para o
qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real
que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento [...]
resultam dos pressupostos atualmente existentes. [...][2]
Tais ideias são inequivocamente retomadas no Manifesto...:
As proposições teóricas dos comunistas não se
baseiam, de modo algum, em ideias ou princípios inventados ou descobertos por
este ou aquele reformador do mundo. São apenas a expressão geral das condições
efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se
desenvolve diante dos olhos.[3]
De fato, até seus últimos anos de vida, Marx
e Engels recusaram claramente qualquer veleidade utópica – dando-se a utopia
o sentido comum de devaneio, fantasia, sonho ou projeção subjetiva, sem suporte
em tendências operantes na realidade; se, todavia, pensarmos a utopia
tal como ela foi reconceptualizada pelo marxista Ernst Bloch (isto é: como algo
que ainda não é, que ainda não chegou a ser, como algo que se
constitui em uma possibilidade concreta), então o profundo senso
de realidade de Marx e Engels aparece fecundado pelo ativo papel da
subjetividade dos sujeitos sociais concretos.
Estreitamente vinculada a esse realismo
político próprio do pensamento de Marx e Engels – realismo que contempla o
papel ativo e criador dos sujeitos sociais concretos – está uma terceira
inovação que faz do Manifesto... um texto verdadeiramente revolucionário.
Antes do documento de 1848, os reformadores sociais e os revolucionários
procuravam sustentar suas propostas em um determinismo histórico que
imaginava que a humanidade marchava inexoravelmente rumo ao progresso ou
em uma concepção voluntarista que supunha que a vontade dos homens
atuaria livremente, sem quaisquer limites objetivos.
Marx e Engels superaram esses dois pontos de
partida tradicionais. De um lado, rechaçaram o “determinismo do progresso”:
recusaram nitidamente a ideia de que a revolução proletária e/ou a nova
sociedade (comunista) seriam necessariamente vitoriosas – basta ler o que, logo
nos primeiros parágrafos do capítulo I do Manifesto..., ambos
escreveram: as lutas de classes terminaram sempre “ou por uma
transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição
das duas classes em conflito”[4] (atenção para os itálicos,
introduzidos por mim). Mais claro, impossível: a resultante das lutas de
classes pode ser um avanço social, mas igualmente pode redundar
na mútua destruição dos antagonistas.
De outro lado, também abandonaram qualquer
concepção apoiada na ideia da onipotência da vontade humana – é visível no
texto de 1848, especialmente no seu capítulo primeiro, que o movimento operário
e sua fração revolucionária atuam a partir do desenvolvimento objetivo do modo
de produção capitalista (o nível alcançado pelas forças produtivas, a
constituição do mercado mundial etc.). A vontade revolucionária se
constitui nos marcos e limites reais postos pelas condições vigentes
na sociedade capitalista (seus coveiros são também produto da burguesia), mas a
vontade organizada dos trabalhadores, conhecendo aqueles marcos e
limites, pode conceber um factível projeto de transformação social radical e
estrutural. Alguns anos depois da publicação do Manifesto..., em um
texto de 1852, Marx sintetizou em fórmula célebre as ideias subjacentes a essa
concepção da relação entre os limites e as possibilidades dos sujeitos
políticos:
Os homens fazem a sua própria história; contudo,
não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as
circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas
assim como se encontram. [5]
Assim, a peculiar relação que o Manifesto...
atribui aos homens e suas circunstâncias (a sua posição de autores/atores) tem
direta conexão com o caráter do documento: simultaneamente, é expressão teórica
do movimento operário e convocação para sua organização (no caso específico,
via Liga dos Comunistas) – é tanto construção de natureza cognitiva quanto
apelo à ação revolucionária.
Enfim, cumpre destacar outro traço pertinente
e definidor do Manifesto...: a concepção internacionalista que
satura sua teoria revolucionária. Com Marx e Engels, a demanda da revolução
transcende os espaços nacionais – emerge das contradições postas na sociedade
burguesa pelo modo de produção capitalista em macroescala. É evidente que tal
concepção não desonera os revolucionários de suas tarefas nacionais; no
documento, lê-se que “é natural que o proletariado de cada país deva, antes de
tudo, liquidar a sua própria burguesia”[6]. Entretanto, a própria
dinâmica capitalista promove o desaparecimento “[d]os isolamentos e [d]as
oposições nacionais dos povos” e “o domínio do proletariado fá-los-á
desaparecer ainda mais depressa”, porque, mediante a revolução que liquidará o
antagonismo das classes no interior das nações, desaparecerá a hostilidade
entre elas. Por isso, o Manifesto... insiste em que “a ação comum do
proletariado, pelo menos nos países civilizados, é uma das primeiras condições
para sua emancipação”[7].”
[1] Karl Marx, Manuscritos
econômico-filosóficos (trad. Jesus Ranieri, São Paulo, Boitempo, 2004),
col. Marx-Engels, p. 114.
[2] Karl Marx e
Friedrich Engels, A
ideologia alemã (trad. Rubens Enderle et al., São Paulo, Boitempo,
2007), col. Marx-Engels, p. 38, nota a.
[3] Idem, Manifesto
Comunista (trad. Álvaro Pina, São Paulo, Boitempo, 1998), col.
Marx-Engels, p. 51-2.
[4] Ibidem, p. 40.
[5] Karl Marx, O
18 de brumário de Luís Bonaparte (trad. Nélio Schneider, São Paulo,
Boitempo, 2011), col. Marx-Engels, p. 25.
[6] Karl Marx e
Friedrich Engels, Manifesto
Comunista, cit., p. 50.
[7] Ibidem, p. 56.
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5. A constituição
do proletariado e sua práxis revolucionária – Ricardo Antunes
“Marx se pergunta, então, em que ponto existe
a possibilidade positiva da emancipação alemã, e responde: “Na formação de uma
classe que tenha cadeias radicais, de uma classe na sociedade civil que não
seja uma classe da sociedade civil, de um estamento...”[1].
Nesse ponto, inclusive, é possível ver a terminologia marxiana ainda juvenil: o
estamento é uma primeira percepção empírica e, mais adiante, no mesmo
texto, Marx dirá que uma classe, um estamento será a dissolução de todos os
estamentos. Em suas palavras: “É preciso uma classe que seja aquela capaz
de dissolver todas as classes, de uma esfera que possua um caráter universal,
porque os seus sofrimentos são universais, e que esta classe não exija uma
reparação particular...”[2].
O pensador aponta, ainda, que o proletariado
é esse “estamento”, a classe dos trabalhadores, que não deseja recuperar um
privilégio perdido, como a nobreza gostaria depois da Revolução Francesa, ou como
a burguesia depois da Revolução Socialista. O proletariado – e esta é uma ideia
seminal em Marx – é uma classe potencialmente revolucionária porque não
tem nada a perder, porque já perdeu tudo e o mal que lhe é feito
não é um particular, mas geral.
Está aqui a primeira ideia de proletariado do
jovem Marx:
[...] uma esfera que não pode emancipar-se a si
mesma, nem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade, sem
emancipá-las a todas – o que é, em suma, a perda total de humanidade.
Portanto, ela só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do homem.
A dissolução da sociedade como classe particular é o proletariado.
E acrescenta:
Na Alemanha, o proletariado está apenas
começando a se formar, como resultado do movimento industrial. Nós sabemos que
a região da Renânia era uma região industrializada. As demais áreas da Alemanha
eram ainda de tale, muito ligada à propriedade fundiária, à terra. Então é uma
classe que está apenas começando a se formar, como resultado do movimento
industrial, pois o que constitui o proletariado não é a pobreza que
naturalmente existe – não é isto o proletariado –, mas a pobreza produzida
artificialmente. Não é a massa do povo mecanicamente oprimida pelo peso da
sociedade, mas a massa que provém da desintegração aguda da sociedade, e, acima
de tudo, da desintegração da classe média.[3]
E acrescenta: “Desnecessário se torna dizer,
contudo, que os números do proletariado foram também engrossados pelas vítimas
da pobreza natural e da servidão germano-cristã”. Afirmando, por fim:
Assim como a filosofia encontra as armas
materiais no proletariado, assim o proletariado tem as suas armas intelectuais
na filosofia. E logo que o relâmpago do pensamento tenha penetrado
profundamente no solo virgem do povo, os alemães emancipar-se-ão e tornar-se-ão
homens.[4]
Marx ainda usa uma bela metáfora para se
contrapor ao seu mestre anterior: “Para Hegel, a coruja é a árvore de minerva,
e ela alça voo ao entardecer”. É a filosofia explicando o mundo. Só que a metáfora
que Marx apresenta não é a da coruja, mas a do galo: “O cantar do galo, que
canta ao amanhecer, é transformador do mundo”. Assim, a coruja interpreta o
mundo, o galo o transforma. Por isso, Marx conclui: “quando forem cumpridas
todas as condições internas, o dia da ressurreição da Alemanha será anunciado
com o cantar do galo gaulês”[5].”
[1] Karl Marx, “Crítica da filosofia do direito de
Hegel – Introdução”, em Crítica da filosofia do direito de
Hegel
(trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus, São Paulo, Boitempo, 2005), col.
Marx-Engels, p. 155.
[2] Idem.
[3] Ibidem, p. 156.
[4] Idem.
[5] Idem.
“Assim, a noção de classe trabalhadora
adquire, na obra da maturidade de Marx, seu sentido mais profundo, por meio da
inter-relação ineliminável entre classe e consciência de classe – classe,
organização e solidariedade frente aos interesses dos capitalistas. É por isso
que Marx afirma que a classe trabalhadora tem de buscar sua consciência para
si (uma complexa construção que em geral é negligenciada ou desprezada por
seus críticos, e também pela dogmática que é responsável pela vulgarização da
obra marxiana).
Nesse ponto, Marx retoma uma ideia de Hegel,
que é muito difícil de ser explicada rapidamente e que, por isso, costuma ser
muito simplificada. Diz que a consciência de classe tem um movimento em-si
e para-si. Sua obra Miséria da filosofia é de certo modo
responsável por essa simplificação. Mas, se adicionarmos seus trabalhos desse
período, como os Manuscritos
econômico-filosóficos, A
sagrada família, dentre outras, podemos assim tentar resumir: a
consciência em-si é a percepção que a classe trabalhadora tem de seu
interesse imediato, de sua imediaticidade, de buscar sua sobrevivência. Para
usar uma expressão feliz de István Mészáros, é o espaço da consciência
contingente.
Contudo, em alguns momentos da história, essa
consciência defronta-se com contradições radicais, viscerais e com momentos
abertamente revolucionários. Em 1917, na Revolução Russa, as palavras de ordem
dos marxistas eram pão, terra e paz, questões vitais na
concretude russa pré-revolucionária. Lukács tem uma passagem em Para uma
ontologia do ser social, que lembro aqui de memória e que remete ao fundo
da questão: Em alguns momentos excepcionais, de crise (pré)revolucionária,
uma infinitude de “se” e “mas” se condensam em poucas e decisivas questões que
tocam a humanidade. Então, quando isso ocorre, a classe trabalhadora se
aproxima de uma consciência mais totalizante e universal, aproxima-se da consciência
para-si.
Enfim, o que Marx diz pode ser resumido da
seguinte forma, com o risco evidente de certa simplificação: se a classe
trabalhadora cria valor, ela centralmente pode travar a criação do valor e do
capital. Mas, para isso, é preciso que tenha consciência de seu ser, porque é
um processo relacional entre objetividade e subjetividade. O indivíduo é
singular, a classe é uma particularidade. Por exemplo, e sempre de modo
resumido, a classe proprietária dispõe dos meios fundamentais de riqueza; já a
classe trabalhadora não dispõe de riquezas, senão uma única: sua força de
trabalho, sua possibilidade de transformação social. Por outro lado, as classes
médias compreendem aquela gama heterogênea que vai da pequena burguesia
industrial e rural, dos pequenos proprietários, até as profissões liberais –
médicos, advogados etc. –, funcionários de escritório, funcionários públicos e
os assalariados em função de gestão.
No entanto, tudo isso sofreu uma convulsão no
século XXI. Muitos autores, inclusive, sepultaram Marx, cometendo um equívoco
grande, porque ele nunca defendeu a ideia de que a classe trabalhadora era
apenas o operário manual e industrial (ainda que esse fosse seu núcleo mais
importante). Aliás, as rebeliões que estamos vendo no mundo atualmente,
especialmente na Europa, têm direta conexão com o trabalho – em suas complexas
inter-relações com gênero, geração, etnia, imigração, precarização,
terceirização e informalidade etc.
Por certo, hoje estamos desafiados a
compreender o que venho chamando de uma nova morfologia do trabalho, o
caráter heterogêneo, fragmentado e complexificado da classe trabalhadora. Um
otimismo da vontade nos faz olhar para o século XXI com mais ânimo, e talvez a
história possa ser generosa a ponto de tornar Marx também um autor do século
XXI. Afinal, basta olhar o mundo contemporâneo para entender que rebelião e
convulsão estão presentes em várias partes, desencadeadas por jovens, homens e
mulheres, que trabalham e vivem de seu salário – é sempre imprescindível, além
disso, destacar que a classe trabalhadora tem dois sexos, algo de que os
marxistas de hoje não podem se “esquecer”, visto que nem os marxistas
originais, ainda que em certa medida prisioneiros de seu tempo, ignoraram esse
ponto; por exemplo, basta ver as tantas indicações de Marx nos Manuscritos,
em que a mulher é apresentada como presa do homem, e de Engels, em A
origem da família, da propriedade privada e do Estado, em que a mulher
aparece como a primeira forma de propriedade privada.”
“Pouco a pouco a obra de Marx se tornou
propriedade coletiva. E, em nossa opinião, trata-se da mais espetacular, mais
rebelde, mais libertária, mais revolucionária e mais densa, que floresceu pela
vitalidade e a impulsão do movimento operário de seu tempo. Por certo
nosso século XXI é diferente em incontáveis dimensões. E o nosso desafio hoje é
saber quais são as questões que atam os nós (um tanto desatados) da classe
trabalhadora. Para enfrentar esse desafio vital, a obra de Marx é o ponto de
partida insubstituível, para todos e todas que querem mudar o mundo.”
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6. Crítica
ontológica em Marx – Mario Duayer
“É exclusivamente no capitalismo que o
indivíduo aparece nessa nudez de outras relações sociais, as quais só pode propriamente
experimentar se, antes, for trabalhador. É somente na sociedade capitalista que
os indivíduos, para usar outra passagem dos Grundrisse, carregam no
bolso seu nexo, seu vínculo com a sociedade, com os outros indivíduos. O que
carregam no bolso – dinheiro – é o resultado da venda de seus produtos, mesmo
que a mercadoria vendida seja sua força de trabalho. Segue-se que somente nessa
sociedade, por seu caráter mercantil, os sujeitos se relacionam como meros
trabalhadores. Por isso, como sublinha Marx na passagem reproduzida
anteriormente, somente nessa sociedade a existência objetiva dos indivíduos tem
por pressuposto sua existência como trabalhadores. A troca generalizada,
portanto, específica do capitalismo, plasma a sociabilidade dos sujeitos como trabalhadores,
sociabilidade que se apresenta para eles como algo fora deles. E, nessas
ocasiões, Marx sempre recorda que não se trata de um problema cognitivo; a
coisa assim se apresenta: estranha e estranhada.
O trabalho, por isso mesmo, só é central nessa
sociedade. Só nela os sujeitos se relacionam indiferentemente à sua atividade
vital especificamente humana, ao conteúdo e finalidade de seu trabalho, que
para cada um deles só interessa enquanto meio de acesso às condições de vida
produzidas pelos outros. Ou seja, o caráter mercantil de nossa sociedade faz
com que nós só pensemos o trabalho como meio de compra de todas as outras
coisas, meio de acesso à riqueza produzida por todos. Em razão disso, não temos
nenhuma relação qualitativa com o produto de nosso trabalho; só quantitativa.
E, em consequência, racionalmente os sujeitos encaram o próprio trabalho e seu
respectivo produto como pura quantidade, ou seja, de maneira unidimensional. O
resultado desse modo muito particular de os produtores se relacionarem com seu
produto é um modo de produção, uma produção das condições materiais de vida com
um dispositivo interno, exclusivo dessa sociedade, que a faz necessariamente
produção crescente. E crescentemente estranhada. O capital sendo trabalho
morto, passado, objetivado, pode-se sugerir que, na análise marxiana, é a
contradição fundamental desse modo de produção, a saber, os sujeitos estão
subsumidos, escravizados à dinâmica incontrolada do produto de seu trabalho.
Sujeitos, portanto, à dominação abstrata do produto de seu trabalho como
capital.
Não é por outra razão que Marx afirma que o
bicho-da-seda seria um perfeito trabalhador assalariado se fiar não fosse
condição de sua existência, manifestação de sua vida, mas atividade como
simples meio de garantir sua subsistência como lagarta. Pois o mesmo sucede com
o trabalhador assalariado, que produz para si unicamente o salário, mero meio
de sobrevivência, e, por isso, não pode experimentar o período durante o qual
trabalha “como vida, como manifestação de sua vida. [...] Ao contrário. A vida
para ele começa ali onde termina essa atividade, na mesa, no bar, na cama”[13].”
[13] Karl Marx,
“Lohnarbeit und Kapital”, MEW, Band 6 (Berlim, Dietz, 1959), p. 401.
“A ciência pode capturar objetividade, verdades,
conhecimentos objetivos? Não, defendem os céticos de plantão. E isso alcança
também as ciências sociais. O que esses autores que mencionei antes afirmam é
que toda ciência, em qualquer disciplina, está fundada em uma ontologia, uma
figuração do mundo. O fundamental, então, é a figuração de mundo, porque, por
ela, eu capturo a realidade a partir de suas premissas estruturantes. E quanto
mais esse sistema teórico for capaz de abarcar, sob sua descrição, novos e
maiores territórios empíricos, mais válido é o sistema, o que não quer dizer
que seja ontologicamente objetivo, mas sim que é eficaz.
No caso de Marx, como crítico das formas de
consciência geradas e necessitadas por esta sociedade, constrói outra figuração
de mundo, na qual existe história e sujeito – sujeito que não é só mero
reprodutor das relações sociais correntes. Em nossas práticas cotidianas, nós
reproduzimos as relações e estruturas da sociedade em que vivemos, é claro, mas
não só. Há outras formas de consciência e prática que emergem e derivam das
próprias contradições, lutas, infâmias etc. das relações e estruturas sociais.
A partir dos Grundrisse, Marx elabora de forma sistemática essa crítica
ontológica, outra figuração do mundo, que deu origem a várias lutas sociais
convergentes para a possibilidade de construir uma sociedade diferente no
futuro, mesmo sem serem marxistas.
Claro que é preciso criticar o caminho que
essas lutas tomaram, mas fato é que existiam alternativas. O problema hoje é
que elas não existem. Por isso é preciso reconstruí-las. E a reconstrução não
pode consistir de uma atualização da história empírica da exploração. A
insistência na exploração não resulta em uma explicação, mas consiste em uma
reprovação moral, uma queixa. Na análise marxiana do capital, ela está subordinada
a outras categorias, em particular ao estranhamento.
Enfim, é necessário refigurar o mundo, criar
uma figuração na qual uma nova prática transformadora seja pensada, não a que
heroicizava os trabalhadores (operários). Se isso não acontecer, não há
solução. Žižek afirma que agora já sabemos o que não queremos, de modo que é a
hora de saber o que queremos. Temos de reconstruir coordenadas ideológicas
contra-hegemônicas, o que significa reconstruir outra ontologia, práticas de
dissenso que vão para algum lugar, não que morrem na repressão ou ganham uma ou
outra migalha, sem alterar a vida e a sociedade.”
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7. Crítica da
economia política, por Karl Marx – Jorge Grespan
“Ao redigir as últimas anotações dos Grundrisse
sobre o valor, Marx conclui que o dinheiro também é um resultado, e não um
ponto de partida, então pressupõe uma forma social mais simples que o determina
– a mercadoria. Marx decide, então, começar com a mercadoria, depois passar
para o dinheiro e, por fim, para o capital. Essa concepção nova aparece
formulada com muita precisão na frase inicial de Para a crítica da economia política,
uma frase tão feliz que é conservada na primeira e na segunda edição do Livro I
de O capital, em 1867 e 1872, respectivamente. Vale a pena lembrá-la
aqui:
A riqueza nas sociedades onde
reina o modo de produção capitalista aparece como uma “enorme coleção de
mercadorias”, e a mercadoria individual como sua forma elementar. Nossa
investigação começa, por isso, com a análise da mercadoria.[1]
É importante frisar que Marx se refere ao
modo de produção capitalista, e não a qualquer sociedade que produza
mercadorias, como algumas da Antiguidade, o mundo muçulmano clássico ou o do
Renascimento europeu. O que pretende na investigação sobre a forma de
mercadoria é apontar que ela é a “forma elementar” não só de todos os produtos
do capital industrial, mas também da própria força de trabalho. O trabalhador,
no mundo capitalista, não é um escravo. O nexo fundamental desse sistema,
contudo, é obter excedente econômico na forma de valor. É necessário que o
trabalhador receba um valor determinado, para que seja possível calcular, a
partir disso, a magnitude do que será extraído do seu trabalho pelo
capitalista. Também é necessário que seja sempre possível baixar ao máximo o
salário, para obter uma taxa maior de mais-valor; que o trabalhador possa ser
demitido, para zerar os custos da produção em épocas de crise; e, enfim, que o
trabalhador seja livre, um comprador e consumidor dos produtos que ele mesmo
produz e dos quais não tem propriedade. Portanto, Marx começa com o estudo da
mercadoria porque a própria força de trabalho que a cria, o valor e toda a
riqueza no mundo capitalista tornou-se uma mercadoria. É nesse sentido que ela
é a “forma elementar” das relações sociais no capitalismo.
De fato, quando o capitalismo penetrou pelas
regiões do mundo onde ainda prevaleciam formas de produção anteriores, a
estratégia dos países industrializados era começar vendendo mercadorias a
preços baixos, produzidos já por máquinas. Em seguida, transformava os produtos
daquelas sociedades pré-capitalistas também em mercadorias, para, finalmente,
tornar a mão de obra existente em mercadoria, convertendo os trabalhadores em
assalariados.
Dada essa importância histórica e, em
especial, a importância na constituição do sistema de relações sociais dentro
do capitalismo, Marx só pode começar a apresentação dos conceitos que
correspondem às formas sociais pelo conceito de mercadoria. Para compreendermos
o que ela significa, nós, que falamos um idioma latino, até temos mais
facilidade, pois a palavra “mercadoria” vem de “mercado”, evidenciando que se
trata de todo produto destinado ao mercado, todo bem que pode ser objeto de
compra e venda. Por isso, como vimos, quando o trabalhador dispõe de sua força
de trabalho e a vende no mercado, está vendendo essa força como mercadoria. E a
análise da mercadoria feita no primeiro capítulo de O capital revela os
dois elementos que a compõem, formando uma oposição – o valor de uso e o valor
de troca. É pela exteriorização dessa oposição interna que a mercadoria se
desdobra em outras oposições, levando, por fim, à forma de dinheiro, isto é, à
oposição entre mercadoria e dinheiro.
Assim, Marx mostra de que modo o dinheiro
aparece como uma forma universal de equivalência do valor de todas as
mercadorias; e também como, no jogo dessas formas, ocorre uma inversão, pela
qual parece que o dinheiro atribui valor às mercadorias, às coisas em geral,
quando, na verdade, são as mercadorias que, ao serem produzidas para serem
trocadas, ensejam a criação do dinheiro e a ele atribuem valor. Tudo se passa
como se o valor de troca existisse em função do dinheiro, porque ele tem o
monopólio da função de equivalente, só que, na verdade, concentra esse
monopólio e o adquire, porque são as mercadorias, em suas trocas, que
determinam essa função.”
[1] Karl Marx, O capital: crítica da economia
política, Livro I: O processo de produção do capital (trad.
Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), col. Marx-Engels, p. 113.
“O trabalho, em geral, é o outro lado da
moeda do mundo do capital, contraposto por Marx às “metamorfoses” operadas e
chamado justamente de “metabolismo”. Em vez da passagem de uma forma a outra,
temos a mudança de matéria, a relação do homem com a natureza que lhe garante a
sobrevivência. Mas o metabolismo é dominado pela metamorfose; a relação
material, pela relação formal que traduz o domínio do trabalho pelo capital; a
subordinação do interesse humano pela vida ao interesse do capital em se
acumular e reproduzir. Esse é o sentido da “crítica à economia política” de
Marx, uma discussão do mundo contemporâneo, caracterizado pelo domínio do
trabalho pelo capital e, daí, do metabolismo pela metamorfose. O trabalhador
não trabalha como quer, ao contrário das aparências; mas trabalha sob as
condições impostas por uma forma social historicamente específica que é o
capital, cujas formas e metamorfoses predominam sobre a materialidade do
trabalho e condicionam o metabolismo.
Apesar de todo esse domínio e esse poder de
impor suas condições e finalidades, o capital tem limites estruturais e
históricos intransponíveis, que aparecem de modo recorrente nas crises
econômicas, como a que estamos vivendo hoje. Essas crises são determinadas de
modo necessário, e não como uma simples possibilidade que poderia ser evitada,
porque se enraízam na forma profunda da relação do capital com o trabalho, como
acabamos de examinar. Marx explica que o capital não tem barreira nenhuma fora
de si, que ultrapassa todos os obstáculos externos, mas não os que põe para si
mesmo, por causa de sua estrutura contraditória. O poder dele é baseado na
formalidade de excluir o trabalhador da propriedade dos meios de produção e,
daí, do comando sobre as metamorfoses sociais. No entanto, é um poder formal,
porque quem cria a “substância” e a matéria da riqueza é o trabalho. O capital
não tem, portanto, substância alguma, tendo de se limitar a pôr o trabalho para
produzir substância para ele.
Por seu turno, substancialmente, o trabalho é
tudo, mas não é proprietário de si. O trabalhador é proprietário de sua força
de trabalho, mas atua dentro de condições que lhe são impostas; portanto,
formalmente, não é nada. Enquanto, com o capital, se passa o contrário: a
substância dele é composta pelo trabalho – precisa usurpar a energia do
trabalho e a matéria gerada para ele, precisa subordinar o metabolismo ao
interesse da metamorfose. Em suma, o capital é tudo formalmente, mas não tem
substância; por isso, substancialmente, não é nada. Temos aqui uma contradição,
o que Marx apontou claramente em sua obra. Conseguiu formular essa proposta nos
Grundrisse e depois desenvolvê-la e elaborá-la em O capital: é
por causa da contradição que surgem as crises, a desvalorização do valor como
destino fatal do sistema.”
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8. Democracia,
trabalho e socialismo – Ruy Braga
“A burocratização acontece quando os
funcionários dos trabalhadores, por exemplo, o partido político ou sindicato,
deixam de se submeter ao controle das massas, transformando-se em uma camada
social dominante com interesses hostis a eles.
“Nicos Poulantzas, um sociólogo político
grego que morou na França por muitos anos, dizia que o Estado capitalista tinha
uma única função: organizar e unificar os dominantes, fragmentando e
desorganizando os dominados.”
“Sempre há possibilidades de emancipação, mas
é preciso atuar, construir, lutar, se engajar: esse é o desafio para todos nós.
O socialismo é uma construção política e social, e todos nós que nos
preocupamos com isso estamos convocados a nos posicionar.”
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