Editora:
Brasiliense
ISBN: 978-85-1101-023-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 88
“Dialética era, na
Grécia antiga, a arte do diálogo. Aos poucos, passou a ser a arte de, no
diálogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação capaz de definir e
distinguir claramente os conceitos envolvidos na discussão. (...)
Na acepção
moderna, entretanto, dialética significa outra coisa: é o modo de pensarmos as
contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade como
essencialmente contraditória e em permanente transformação.”
“No final do
século XVIII e no começo do século XIX, os conflitos políticos já não eram mais
abafados nos corredores dos palácios e estouravam nas ruas. As lutas que
precederam e desencadearam a Revolução Francesa envolveram muita gente,
entraram na vida de milhões de pessoas; as guerras napoleônicas também
mobilizaram as massas populares e os homens do povo foram obrigados a pensar
sobre questões políticas que antes eram discutidas apenas por uma elite
reduzida, mas que naquele período estavam invadindo a esfera da vida cotidiana
de quase todo mundo. Essa situação se refletiu na filosofia. Se refletiu até na
filosofia que se elaborava na longínqua cidade de Königsberg, na Prússia
oriental (hoje a cidade se chama Kaliningrado e fica na atual Rússia), onde
nasceu, viveu, escreveu e morreu aquele que provavelmente é o maior dos
pensadores metafísicos modernos:
Immanuel Kant (1724-1804).
Pessoalmente, Kant viveu na mais rigorosa rotina; até seus passeios tinham hora
marcada (o poeta Heine conta que os vizinhos do filósofo acertavam seus
relógios quando ele saía de casa, às 15h30, para dar uma volta). Ao seu redor,
porém, as rotinas estavam sendo quebradas, a história da Europa estava pondo a
nu muitas contradições e Kant não pôde deixar de pensar sobre a contradição, em
geral.
Kant percebeu que
a consciência humana não se limita a registrar passivamente impressões
provenientes do mundo exterior, que ela é sempre a consciência de um ser que
interfere ativamente na realidade; e observou que isso complicava extraordinariamente
o processo do conhecimento humano. Sustentou que todas as filosofias até então
vinham sendo ingênuas ou dogmáticas, pois tentavam interpretar o que era a
realidade antes de ter resolvido uma questão prévia: o que é o conhecimento?
O centro da filosofia,
para Kant, não podia deixar de ser a reflexão sobre a questão do conhecimento,
a questão da exata natureza e dos limites do conhecimento humano. Fixando sua
atenção naquilo que ele chamou de “razão pura”, o filósofo se convenceu, então,
de que na própria “razão pura” (anterior à experiência) existiam certas
contradições – as “antinomias” – que nunca poderiam ser expulsas do pensamento
humano por nenhuma lógica.
Outro filósofo
alemão, de uma geração posterior, demonstrou que a contradição não era apenas
uma dimensão essencial na consciência do sujeito do conhecimento, conforme Kant
tinha concluído; era um princípio básico que não podia ser suprimido nem da
consciência do sujeito nem da realidade objetiva. Esse novo pensador, que se
chamava Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), sustentava que a questão
central da filosofia era a questão do ser, mesmo, e não a do conhecimento.
Contra Kant, ele argumentou: “Se eu pergunto o que é o conhecimento, já na palavra é está em jogo uma certa
concepção de ser; a questão do conhecimento, daquilo que o conhecimento é, só
pode ser concretamente discutida a partir
da questão do ser”.
Hegel concordava
com Kant num ponto essencial: no reconhecimento de que o sujeito humano é
essencialmente ativo e está sempre interferindo na realidade. Na época da
Revolução Francesa, entusiasmado com a tomada da Bastilha pelo povo e com a
derrubada de instituições antiquíssimas (que pareciam eternas), Hegel – então com
19 anos – plantou uma “árvore da liberdade” em Tübingen, onde morava, em
homenagem à França. Naquele momento, o poder humano de intervir na realidade
lhe pareceu quase ilimitado; o sujeito humano lhe pareceu quase onipotente.
Logo, porém, a
vida se encarregou de jogar água fria no entusiasmo do filósofo. A Revolução
Francesa atravessou uma fase de terror, com a guilhotina cortando inúmeras
cabeças, e depois veio a ser controlada por Napoleão Bonaparte (mas o próprio
Napoleão foi derrotado e a Europa se viu dominada pela política
ultraconservadora da Santa Aliança). Além disso, a Alemanha, país onde o
pensador vivia, era tão atrasada que nem sequer tinha conseguido alcançar a sua
unidade como nação: estava dividida em governos regionais, cada um mais
reacionário que o outro. Hegel descobriu, então, com amargura, que o homem
transforma ativamente a realidade, mas quem impõe o ritmo e as condições dessa
transformação ao sujeito é, em última análise, a realidade objetiva.
Para avaliar de
maneira realista as possibilidades do sujeito humano, Hegel procurou estudar seus
movimentos no plano objetivo das atividades políticas e econômicas. Dedicou-se
à leitura e ao exame dos escritos de Adam Smith e dos teóricos da economia
política inglesa clássica. Lukács mostrou, em seu livro sobre O jovem Hegel, que na base do pensamento
de Hegel está não só uma reflexão aprofundada sobre a Revolução Francesa, como
também uma reflexão radical sobre a chamada revolução industrial, que vinha se
realizando na Inglaterra. Hegel percebe que o trabalho é a mola que impulsiona o desenvolvimento humano; é no trabalho que o homem se produz a si
mesmo; o trabalho é o núcleo a partir
do qual podem ser compreendidas as formas complicadas da atividade criadora do
sujeito humano. No trabalho se
encontra tanto a resistência do objeto (que nunca pode ser ignorada) como o
poder do sujeito, a capacidade que o sujeito tem de encaminhar, com habilidade
e persistência, uma superação dessa resistência.
Foi com o trabalho
que o ser humano “desgrudou” um pouco da natureza e pôde, pela primeira vez,
contrapor-se como sujeito ao mundo
dos objetos naturais. Se não fosse o trabalho, não existiria a relação
sujeito-objeto.
O trabalho criou
para o homem a possibilidade de ir além da pura natureza. “A natureza, como
tal, não cria nada de propriamente humano”,
observa o filósofo soviético Evald Iliênkov. O homem não deixa de ser um
animal, de pertencer à natureza; porém, já não pertence inteiramente a ela. Os
animais agem apenas em função das necessidades imediatas e se guiam pelos
instintos (que são forças naturais); o ser humano, contudo, é capaz de
antecipar na sua cabeça os resultados das suas ações, é capaz de escolher os
caminhos que vai seguir para tentar alcançar suas finalidades. A natureza dita
o comportamento aos animais; o homem, no entanto, conquistou certa autonomia
diante dela. O trabalho permitiu ao homem dominar algumas das energias da
natureza; permitiu-lhe, como escreveu o brasileiro José Arthur Giannotti, ter “parte
da natureza à sua disposição”.
O trabalho é o
conceito-chave para nós compreendermos o que é a superação dialética. Para expressar a sua concepção da superação dialética, Hegel usou a palavra alemã aufheben, um verbo que significa suspender. Mas esse suspender
tem três sentidos diferentes. O primeiro sentido é o de negar, anular, cancelar
(como ocorre, por exemplo, quando suspendemos
um passeio por causa do mau tempo, ou quando um estudante é suspenso das aulas e não pode comparecer
à escola durante algum tempo). O segundo sentido é o de erguer alguma coisa e
mantê-la erguida para protegê-la (como a gente vê, por exemplo, num poema de
Manuel Bandeira, quando o poeta fala do quarto onde morou há muitos anos e diz
que ele foi preservado porque ficou “intacto, suspenso no ar”). E o terceiro
sentido é o de elevar a qualidade, promover a passagem de alguma coisa para um
plano superior, suspender o nível.
Pois bem: Hegel emprega a palavra com os três sentidos diferentes ao mesmo
tempo. Para ele, a superação dialética é simultaneamente a negação de
uma determinada realidade, a conservação de algo de essencial que existe nessa
realidade negada e a elevação dela a um nível superior.
Isso parece
obscuro, mas fica menos confuso se observamos o que acontece no trabalho: a
matéria-prima é “negada” (quer dizer, é destruída em sua forma natural), mas ao mesmo tempo é “conservada”
(quer dizer, é aproveitada) e assume uma forma nova, modificada, correspondente
aos objetivos humanos (quer dizer, é “elevada” em seu valor). É o que se vê,
por exemplo, no uso do trigo para o fabrico do pão: o trigo é triturado, transformado
em pasta, porém não desaparece de todo, passa a fazer parte do pão, que vai ao
forno e – depois de assado – se torna humanamente comestível.
Boa parte da
obscuridade de Hegel resultava do fato de ele ser idealista. Hegel subordinava os movimentos da realidade material à
lógica de um princípio que ele chamava de Ideia Absoluta; como essa Ideia
Absoluta era um princípio inevitavelmente nebuloso, os movimentos da realidade
material eram, frequentemente, descritos pelo filósofo de maneira bastante
vaga.
No caminho aberto
por Hegel, entretanto, surgiu outro pensador alemão, Karl Marx (1818-1883),
materialista, que superou – dialeticamente – as posições de seu mestre. Marx
escreveu que em Hegel a dialética estava, por assim dizer, de cabeça para
baixo; decidiu, então, colocá-la sobre seus próprios pés.
Marx teve uma vida
muito atribulada: ligou-se bem cedo ao movimento operário e socialista, lutou
na política ao lado dos trabalhadores, viveu na pobreza e passou a maior parte
de sua vida no exílio (na Inglaterra). A solidariedade ativa que o ligou aos
trabalhadores contribuiu, certamente, para que ele tivesse do trabalho uma compreensão diferente
daquela que tinha sido exposta pelo velho Hegel, cuja existência transcorrera
quase toda entre as quatro paredes da biblioteca e da sala de aula.
Marx concordou
plenamente com a observação de Hegel de que o trabalho era a mola que
impulsionava o desenvolvimento humano, porém criticou a unilateralidade da
concepção hegeliana do trabalho, sustentando que Hegel dava importância demais
ao trabalho intelectual e não enxergava a significação do trabalho físico,
material. “O único trabalho que Hegel conhece e reconhece” – observou Marx em 1844
– “é o trabalho abstrato do espírito”. Essa concepção abstrata do trabalho
levava Hegel a fixar sua atenção exclusivamente na criatividade do trabalho,
ignorando o lado negativo dele, as deformações a que ele era submetido em sua
realização material, social. Por isso Hegel não foi capaz de analisar
seriamente os problemas ligados à alienação
do trabalho nas sociedades divididas em classes sociais (especialmente na
sociedade capitalista).”
“O trabalho –
admite Marx – é a atividade pela qual o homem domina as forças naturais,
humaniza a natureza; é a atividade pela qual o homem se cria a si mesmo. Como,
então, o trabalho – de condição natural para a realização do homem – chegou a
tornar-se o seu algoz? Como ele chegou a se transformar em “uma atividade que é
sofrimento, uma força que é impotência, uma procriação que é castração”?
Uma primeira causa
dessa deformação monstruosa se encontra na divisão
social do trabalho, na apropriação privada das fontes de produção, no
aparecimento das classes sociais. Alguns homens passaram a dispor de meios para
explorar o trabalho dos outros; passaram a impor aos trabalhadores condições de
trabalho que não eram livremente assumidas por estes. Introduziu-se, assim, um
novo tipo de contradição no interior da comunidade humana, no interior do
gênero humano.
A partir da divisão
social do trabalho, a humanidade passava a ter uma dificuldade bem maior para
pensar os seus próprios problemas e para encará-los de um ângulo mais
amplamente universal: mesmo quando eram sinceros, os indivíduos se deixavam
influenciar pelo ponto de vista dos exploradores do trabalho alheio, pela “perspectiva
parcial inevitável” das classes sociais (conforme a caracterização da ideologia por Lucien Goldmann).
“Divisão do
trabalho e propriedade privada” – escreveu Marx – “são termos idênticos: um diz
em relação à exploração do trabalho escravo a mesma coisa que o outro diz em
relação ao produto da exploração do trabalho escravo.” As condições criadas
pela divisão do trabalho e pela propriedade privada introduziram um
“estranhamento” entre o trabalhador e o trabalho, uma vez que o produto do
trabalho, antes mesmo de o trabalho se realizar, pertence a outra pessoa que
não o trabalhador. Por isso, em lugar de realizar-se no seu trabalho, o ser
humano se aliena nele; em lugar de
reconhecer-se em suas próprias criações, o ser humano se sente ameaçado por
elas; em lugar de libertar-se, acaba enrolado em novas opressões.”
“As leis do
mercado vão dominando a sociedade inteira: todos os valores humanos autênticos vão
sendo destruídos pelo dinheiro, tudo vira mercadoria, tudo pode ser
comercializado, todas as coisas podem ser vendidas ou compradas por um
determinado preço.”
“Qualquer objeto
que o homem possa perceber ou criar é parte de um todo. Em cada ação empreendida, o ser humano se defronta,
inevitavelmente, com problemas interligados. Por isso, para encaminhar uma
solução para os problemas, o ser humano precisa ter uma certa visão de conjunto deles: é a partir da
visão do conjunto que podemos avaliar a dimensão de cada elemento do quadro.
Foi o que Hegel sublinhou quando escreveu: “A verdade é o todo”. Se não
enxergarmos o todo, podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada (transformando-a
em mentira), prejudicando a nossa compreensão de uma verdade mais geral.
Exemplo disso:
alguém observa que o capitalista X é um homem generoso, progressista,
sinceramente preocupado com seus operários. Essa observação pode ser correta.
No entanto, é necessário entendê-la dentro de seus limites, para não perdermos
de vista o fato de que ela nunca pode ser usada para pretender invalidar outra observação
mais abrangente: a de que o sistema capitalista, por sua própria essência,
impele os capitalistas em geral, quaisquer que sejam as qualidades humanas
deles, a extraírem mais-valia do trabalho de seus operários.
A visão de
conjunto – ressalve-se – é sempre provisória e nunca pode pretender esgotar a realidade a que ele se refere.
A realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que temos dela. Há sempre
algo que escapa às nossas sínteses; isso, porém, não nos dispensa do esforço de
elaborar sínteses, se quisermos entender melhor a nossa realidade. A síntese é
a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da
realidade com que se defronta, numa situação dada. E é essa estrutura
significativa – que a visão de conjunto proporciona – que é chamada de totalidade.
A totalidade é
mais do que a soma das partes que a constituem. No trabalho, por exemplo, dez
pessoas bem entrosadas produzem mais do que a soma das produções individuais de
cada uma delas, isoladamente considerada. Na maneira de se articularem e de constituírem
uma totalidade, os elementos individuais assumem características que não
teriam, caso permanecessem fora do conjunto.”
“Para trabalhar
dialeticamente com o conceito de totalidade, é muito importante sabermos qual é
o nível de totalização exigido pelo conjunto de problemas com que estamos nos
defrontando; e é muito importante, também, nunca esquecermos que a totalidade é
apenas um momento de um processo de totalização (que, conforme já advertimos,
nunca alcança uma etapa definitiva e acabada). Afinal, a dialética – maneira de
pensar elaborada em função da necessidade de reconhecermos a constante emergência
do novo na realidade humana – negar-se-ia a si mesma, caso cristalizasse ou
coagulasse suas sínteses, recusando-se a revê-las, mesmo em face de situações
modificadas.
A modificação do
todo só se realiza, de fato, após um acúmulo de mudanças nas partes que o
compõem. Processam-se alterações setoriais, quantitativas, até que se alcança
um ponto crítico que assinala a transformação qualitativa da totalidade. E a
lei dialética da transformação da
quantidade em qualidade. Devemos sublinhar que a modificação do todo é mais
complicada que a modificação de cada um dos elementos que o integram. E devemos
sublinhar outra coisa: cada totalidade tem sua maneira diferente de mudar; as
condições da mudança variam dependendo do caráter da totalidade e do processo
específico do qual ela é um momento.”
Vejamos um
exemplo. Observemos a sociedade brasileira. Podemos analisá-la em três níveis
distintos. Num primeiro nível, podemos estudar seu regime jurídico-político,
suas leis, suas instituições, seu sistema administrativo, a estrutura do seu
Estado. Num segundo nível, podemos mergulhar mais fundo e procurar examinar a
história da sociedade brasileira, a relação existente entre sua vida política,
seus problemas sociais e sua economia; podemos encará-la como formação socioeconômica. E, finalmente,
num terceiro nível, mais geral e mais abstrato, podemos fixar nossa atenção no modo de produção que se acha na base da
formação socioeconômica existente.
Na prática, não é
possível separar inteiramente as questões que se apresentam num desses níveis das
questões que se manifestam nos outros dois; afinal, concretamente, elas são
elementos de uma mesma realidade global, que é a sociedade brasileira. No entanto,
focalizada no plano de cada uma das diversas totalizações mencionadas, essa
realidade nos revela aspectos distintos, que nos ajudam a compor sua verdadeira
fisionomia e a orientar de maneira mais realista nossa atividade tendente a
transformá-la.”
Um comentário:
Oiee, sei que esse post é antigo mas só queria agradecer essa ótima resenha, estou usando ela pra escrever um trabalho da facul!
Postar um comentário