Editora: Boitempo
ISBN: 978-857559-469-8
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 192
Sinopse: Em oito
aulas temáticas, o guia de introdução Curso livre Marx-Engels atravessa as
principais obras do marxismo, do Manifesto
Comunista ao Capital,
apresentando os fundamentos do pensamento de Marx e Engels e esclarecendo a
origem de conceitos-chave como “fetichismo da mercadoria”, “luta de classes”,
“proletariado”, “alienação”, “ideologia”, “crítica da economia política”,
“materialismo histórico”, “ditadura do proletariado”, entre outros.
Coordenada por José Paulo Netto, a obra conta com textos
revisados e atualizados de alguns dos maiores pesquisadores do marxismo do
Brasil: Alysson
Leandro Mascaro, Antonio
Rago Filho, Jorge
Grespan, Mario Duayer,
Osvaldo Coggiola, Ricardo Antunes,
Ruy Braga e do próprio organizador.
O livro fornece um breve panorama didático de como ler, debater e refletir
sobre a obra e o legado de Marx e Engels hoje – um arcabouço teórico que se
reafirma, no atual cenário de crise global, como absolutamente incontornável
para compreender e transformar nossa modernidade.
Artigos: 1. A
crítica do Estado e do direito: a forma política e a forma jurídica –
Alysson Leandro Mascaro / 2. A crítica ao
idealismo: política e ideologia – Antonio Rago Filho / 3. O Manifesto Comunista: limites e grandeza
teórico-política – José Paulo Netto / 4.
Análises concretas da luta de classes – Osvaldo Coggiola / 5. A constituição do proletariado e sua práxis
revolucionária – Ricardo Antunes / 6. Crítica
ontológica em Marx – Mario Duayer / 7. Crítica
da economia política, por Karl Marx – Jorge Grespan / 8. Democracia,
trabalho e socialismo – Ruy Braga
1. A crítica do
Estado e do direito: a forma política e a forma jurídica – Alysson Leandro
Mascaro
“O problema do mundo é o capitalismo: o mundo
está dividido em classes sociais.
Surge, assim, esse grande conceito que
identifica um dos fundamentos do próprio marxismo. Há classes sociais. O
problema do mundo é que ele se divide por elas. A questão não é o partido, o
Estado, o governo, os poderes legislativos, executivos ou judiciários, a
democracia ou a eleição. Essas divisões que estão na órbita do Estado, para
nós, guardam problemas e não alcançam o fundamental. Ficar refém de seus termos
não ajuda a explicar a sociedade de um modo melhor. A chave para a compreensão
é entender que o mundo é capitalista e está fraturado em classes sociais. Com
isso, começa a florescer o próprio marxismo como nós o conhecemos.
É assim que o jovem Marx toma partido de uma
visão de mundo radical, de que até hoje boa parte das pessoas discorda, muitas
vezes com raiva. Mas por que muitos ficam revoltados quando o marxismo vem
ensinar que o mundo está cindido em classes? Porque a sociedade capitalista nos
estrutura e nos ensina, ao contrário, que cada um é um. Marx, no entanto,
aponta para os indivíduos em classes sociais. A verdade do mundo é a verdade
das classes. Contudo, até hoje não se aceita tal leitura de classe. O
formalismo jurídico individualista nos chama a todos de iguais, sem permitir
ver as divisões de classe que nos estruturam.
Na introdução da obra, Marx anuncia que
quando compreendermos as classes sociais entenderemos inclusive os movimentos
da política. E a política não é um acaso, mas suas mudanças se explicam a
partir e através das classes, que revelam o capitalismo. Então, Marx se volta
para outros questionamentos. Por que existem classes? Como elas se formam? Como
elas se alteram? Que classe comanda a outra? Por meio de que categorias a
burguesia comanda? É a arma na mão que torna a burguesia dominante? Ou é só
porque ela tem o capital na mão? Essa reflexão segue em contínuo avanço, até
chegar ao livro que fundamenta plenamente a compreensão da sociabilidade
capitalista, O capital. Mas o caminho
começou ali, na crítica
a Hegel, à medida que, com essas pedradas, Marx passou a construir o
próprio edifício.”
“Depois de muito tempo da Crítica da filosofia do direito de Hegel,
tendo já desenvolvido suas ideias e escrito várias outras obras, Marx se pôs a
analisar um fato insólito, muito peculiar, que se deu justamente na entrada da
década de 1850, na França. Tal análise deu origem a seu livro O 18 de brumário de Luís Bonaparte.
Mas, em primeiro lugar, o que é 18 de brumário? No calendário da Revolução
Francesa, que alterou os meses do ano para constar conforme a própria
narrativa, brumário era a nomenclatura de um mês, e, no dia 18 desse referido
mês, Napoleão deu um golpe na França. Marx, ironicamente, usou a velha data
como referência a um novo golpe, dado agora por Luís Bonaparte.
Logo vem também a pergunta sobre quem foi
Luís Bonaparte, porque o sobrenome Bonaparte conhecemos de Napoleão. Bem,
décadas depois de Napoleão, houve um golpe na França, e um sujeito, que muitos
consideram um dos mais esdrúxulos da história política francesa, o tal Luís
Bonaparte, sobrinho de Napoleão, que era então presidente, tomou ditatorialmente
o poder da França, acabando com o regime presidencialista local. Ele se
declarou imperador do país, autoproclamando-se Napoleão III – dado que seu tio
fora o primeiro e, naquele passado, nomeara seu irmão imperador para os
domínios franceses em outras plagas da Europa, o que o tornaria então o
segundo. Contudo, nesse quadro, os franceses gostaram do golpe! Especialmente
os ricos e a classe média, que eram muito ordeiros e esperavam um golpe
salvador para manter a ordem constante.
Diante disso, muitos analisaram o golpe pela
base do espanto. Victor Hugo, grande literário francês, escreveu um livro
exatamente no momento do golpe, acidamente contra Napoleão III – que chamava de
Napoleão, o Pequeno –, dizendo não ser possível que, em pleno tempo normal e
cristalino, com a Segunda República dada, com as instituições já assentadas, a
França, que cultivava o gosto democrático, tenha caído em um golpe de um
autoproclamado imperador. Só por conta do seguinte absurdo: o homem era tão
idiota que ninguém deu valor aos problemas que representava, com uma maioria
que inclusive o apreciava.
Como isso foi possível? Muitos afirmavam que
os franceses estavam desatentos ou que Luís Bonaparte teve sorte, mas Marx
rejeitou tudo isso. Escreveu seu livro, que, de início, era composto de artigos
para um jornal, com comentários sobre o fato. E, nesse ponto, deu um passo
fundamental em termos de análise política. Afinal, qualquer um que queira
entender a política de nossos tempos passa por esse livro e encontra um dos
monumentos da reflexão política.
O que Marx analisa, então, é como Luís
Bonaparte deu um golpe contra a burguesia, porque ela administrava a França
desde o começo da Revolução Francesa – tirando o episódio de Robespierre e do
povo no poder, o resto era sempre a burguesia no poder, mesmo com os monarcas
em algumas fases posteriores. E, em um Estado já burguês, como a burguesia
sofreu um golpe? Diz Marx que precisamos entender o que vem a ser o Estado, e
que a burguesia é uma classe econômica. De fato, os sujeitos dessa classe são
unidos por certos interesses, mas são agentes em concorrência.
Por exemplo, quando falamos da burguesia
comercial ou industrial, nos lembramos dos burgueses de portes variados e em
disputa, e pensamos: o que eles querem quando o assunto é o salário do
trabalhador? Querem um salário diminuto, porque aí lucram e têm a possibilidade
de explorar o trabalho em um nível maior. Isso os unifica. Há uma estratégia
geral. Mas, se nós pensarmos que eles são também concorrentes entre si,
eventualmente certo comerciante não quer que o outro seja o presidente da
República. E por quê? Muitas vezes são razões mesquinhas, relacionadas com
concorrência, inveja etc.
Assim, por conta dessas diferenças, Marx
afirma também que a burguesia pode ter momentos de não conseguir fazer o que
precisa para afirmar sua dominação geral de classe sobre a sociedade. Nessas
horas, disfuncionais, quando a administração do capitalismo não consegue mais
ser feita pela própria burguesia, porque seus setores se digladiam, vem o
golpe, conforme identificou Marx. No entanto, no momento em que a força externa
impõe outra ordem, ela acaba também sendo burguesa, porque não se tirou a
propriedade nem a indústria nem o comércio da burguesia. Ela opera no seio de
suas formas. Ou seja, por vezes, quando a classe burguesa não consegue
administrar a sociedade em benefício do capital, como foi o caso da França de
Luís Bonaparte, há um golpe contra a burguesia para salvar o capitalismo.
Marx diz que a classe que controla o Estado
não necessariamente lhe dá o talhe estrutural nem o muda. Mais que isso: que a
classe burguesa estrutura uma sociedade burguesa não porque controla o Estado.
O Estado poderia estar nas mãos de outros e, mesmo assim, a sociedade
continuaria burguesa. Muitos dizem que, se o pobre pegar o Estado na mão, então
o Estado será a favor do pobre, ou, se os trabalhadores dominarem o Estado,
então a sociedade será em prol dos trabalhadores. Mas o que Marx ensina é que a
sociedade continuaria a mesma, nós só mudaríamos seu administrador.
Por exemplo, pensando em uma fazenda, cujo
proprietário é o fazendeiro. Quando mora ali, o fazendeiro também administra
diretamente a própria fazenda. Mas, em certa ocasião, enfastiado quando percebe
que não dá mais conta de matar insetos, cobras e ratos, muda-se para a cidade.
E quem administra a fazenda? Um trabalhador dele. Podemos dizer, então, que a
fazenda ficou para os trabalhadores? Não, continua sendo do fazendeiro e tudo o
que o trabalhador fizer será em favor do fazendeiro.
É isso o que diz O 18 de brumário de Luís
Bonaparte. Luís Bonaparte não era um burguês típico, não queria lucrar com
aquilo que estava fazendo como imperador. Queria que as pessoas fizessem
vassalagem para ele, respeitassem sua coroa, beijassem sua mão. Tinha um
interesse de firmar-se como de tradição nobre. No entanto, tirou a burguesia do
Estado para que a sociedade continuasse burguesa. Se a burguesia continuasse no
poder do Estado, diria Marx, os trabalhadores, que já haviam organizado uma
revolta de Paris na Primavera dos Povos, em 1848, estruturar-se-iam de modo
ainda melhor e tomariam o poder. Assim, veio um louco e tomou o poder pela
burguesia, apeou a burguesia do poder, para o mundo ser burguês.
A conclusão de Marx é que o Estado tem algo
em si mesmo que não é só a administração do dia a dia. Pode-se trocar o
administrador que o Estado continuará o mesmo. Isso nos ensina que a
transformação da sociedade não se faz somente mediante a tomada de poder do
Estado, pois isso não muda a ordem social. Marx entende, então, que não foi o
Estado que criou a sociedade, e sim que ele é resultante de determinada
estrutura social. Foi o capitalismo, na verdade, que estruturou essa forma
política específica. Portanto, se alguém domina o Estado, domina o produto, não
o produtor. Diferente disso é o fim das próprias relações capitalistas, que são
as mais difíceis de serem dominadas e transformadas.
É interessante notar que, até hoje, a maior
parte do mundo da esquerda ainda insiste no contrário, de que a luta é por
tomar o Estado e o administrar de forma diferente. Mas o que Marx diz é que o
coração da sociedade capitalista não é o Estado, são as relações de produção
capitalista. Essas são as difíceis de serem tomadas. Por isso, há muitos casos
no mundo de trabalhadores que tomaram o poder político e não mudaram a
sociedade capitalista. Reformaram, melhoraram e tentaram resistência, mas não
mudaram. Salvador Allende, no Chile, é um exemplo disso.
Inclusive, essa é a explicação ipsis
litteris do Brasil de 1964. Já que a burguesia se digladiava e uma parte da
população estava a favor do presidente João Goulart, uma vez que o quadro se
reputava pelos conservadores como uma balbúrdia, tirou-se a burguesia do poder
e vieram os militares para ocupar esse posto. Os militares, na verdade, não são
burgueses. Tanto é assim que, até hoje, muitas vezes se pergunta como é
possível que um policial militar bata em um professor de escola pública. Esse
policial militar não ganha o mesmo salário que o professor? O mesmo se deu no
caso do golpe militar de 1964, que foi em proveito civil, burguês. O que
acontece é que as estruturas do Estado podem ser dominadas até pelo militar que
ganha um salário baixíssimo, só que ele opera em uma máquina que está em favor
do capital. Há uma estrutura política capitalista, na qual quase sempre a
burguesia domina o poder nos Estados. Mas, nas poucas vezes em que estão em tal
posto militares, figuras incidentais como Luís Bonaparte ou trabalhadores,
também não conseguem mudar muito o cenário, para o lado que for, porque o
Estado é uma forma necessária do capitalismo. Sobre esse tema, aliás,
debruço-me no livro Estado e forma política, em que digo que o Estado
está amarrado a uma âncora, uma forma política terceira aos agentes da produção
que é espelho da forma-mercadoria – forma de relações sociais da qual não
depende simplesmente uma vontade para dominá-la e modificá-la.
Além disso, em O 18 de brumário Marx
analisa, ainda, o que acontece depois que a burguesia deixa o poder. Afirma,
inclusive, que ela se fortalece. Porque volta recuperada, pode explorar melhor
seus trabalhadores. Foi o que se passou na França: quando a burguesia retornou,
havia aprendido como fazer para não perder mais o posto. Mais ainda: todos os
franceses riam de Luís Bonaparte, fora e dentro do poder, dizendo se tratar de
um idiota, um louco, uma excepcionalidade. Alguns até afirmavam,
preconceituosamente, que ele não era sobrinho de Napoleão, porque sua mãe seria
uma prostituta e não se sabia quem era o pai. Contudo, para Marx, nada disso
era importante; a questão central era como as contradições sociais permitiram
que um louco tomasse o poder.
Nesse longo trajeto ele avança em sua
análise, até chegar ao apogeu, que é O capital, belíssimo livro que é
uma obra de arte da compreensão da sociedade capitalista. Em suas páginas, Marx
estabelece os alicerces para entendermos como funciona essa própria
sociabilidade de nossos tempos. Nela, tudo tem a forma social de mercadoria,
tudo está moldado para ser vendido – educação, estética, roupa, comida, saúde e,
principalmente, o trabalho, o trabalhador. O trabalhador não ganha pela
dignidade de si, pois, ao se vender, ganha o que o mercado está disposto a
pagar por ele. Isto é o fundamental: as pessoas recebem um valor de mercado,
são exploradas economicamente. É o que diz O capital, que representa
algo como o cume de uma montanha em relação a essa compreensão teórica sobre a
sociedade.”
“A esquerda lato sensu é reformista, ao passo que o marxismo é revolucionário.”
“É preciso que entendamos que o Estado não é
uma peça isolada, sem lastro estrutural com a realidade, que poderíamos tomar
nas mãos e conferir os aspectos que quiséssemos. Marx ensina que na política o
fundamental, o estrutural, são as formas da sociabilidade capitalista – a
mercadoria, o valor de troca, a lógica que faz com que todos os trabalhadores
do mundo sejam pessoas que se vendem à exploração do capital, a separação,
portanto, do capital em relação aos trabalhadores. Tudo isso é o fundamental do
capitalismo, e o Estado, em geral, administra esses aspectos todos, mas não no
sentido de ter rédeas gerais da determinação social: está talhado
estruturalmente para funcionar conforme o capital.”
“O marxismo necessariamente compreende uma
relação interna entre forma estatal – terceira aos agentes econômicos – e o
capital. Só o capitalismo tem Estado porque o feudalismo não tem forma política
apartada, tem um senhor feudal que manda diretamente. O político e o econômico
estão unidos nas mãos do senhor feudal, assim como acontecia na sociedade
escravista do passado: o senhor de escravos também dava a sorte do escravo, no
plano econômico e no plano político. Portanto, o Estado, em termos estritos, é
capitalista. No máximo se pode dizer que há várias formas de organização
política em toda a história. Há políticas no plural na história, mas o Estado é
uma política específica do capitalismo.
Olhando não para o passado, mas para o
futuro, Marx e Engels insistem em dizer que o termômetro do socialismo não será
quando o Estado passar a dominar tudo. O termômetro se revelará quando o
capitalismo, em sua base produtiva, em suas relações de produção, estiver
perecendo, junto com o perecimento do próprio Estado como seu correlato. Por
isso, por exemplo, a União Soviética, nos tempos de auge do stalinismo, não
gostava muito de uma leitura fina de Marx, porque Stalin precisava fortalecer o
Estado soviético no meio de um concerto de outros Estados capitalistas do
mundo. E o índice do socialismo não é um Estado socialista forte, nem 5, nem
14, nem 27 Estados socialistas no globo terrestre, mas o fim das relações de
produção capitalistas e, por decorrência, o fim do Estado e do direito tal como
o conhecemos. A União Soviética, ao invés de um sólido Estado socialista – cuja
existência estável é virtualmente uma impossibilidade –, foi apenas uma
variante do capitalismo de Estado.
Dessa crítica decorre apontar um horizonte
mais belo: uma sociedade sem domínio, na qual os trabalhadores possam inclusive
fazer valer sua vontade, o que até hoje é chocante. Por isso pouca gente é
marxista. E, em um mundo que é altamente explorado, quando perguntamos às
pessoas se elas acham possível que o mundo exista sem exploração ou sem
opressão política, as pessoas dizem que não. E, daí, se indagarmos qual a
opinião a respeito dos passos estruturais para o mundo ser melhor, dirão as
opiniões mais abalizadas: pegar o Estado na mão. Esse é o horizonte político
imediato das pessoas e da maioria das lutas: controlar o Estado. Mas o campo
material da superação é muito mais que isso. É a transformação das relações de
produção capitalistas.
Tais reflexões, dos livros de Marx, Engels e
do marxismo, permitem vislumbrar passos e estratégias. As lutas sociais
existem. São condicionadas e dependem das formas, da ordem, das circunstâncias,
das estruturas e das relações que este mundo apresenta. Volto a dizer que o
Estado e a política são elementos fundamentais para a manutenção da ordem e da
exploração existentes. Nossa luta, então, não é por jogar melhor nas formas
políticas já existentes: é por transformar as formas da sociabilidade
capitalista. O socialismo não é um arranjo melhor nesse campo. É outro campo.”
“Como abrir para pessoas da universidade –
alunos, docentes e aqueles que estão vinculados ao mundo acadêmico – o
interesse por uma perspectiva crítica de mundo? A questão é que nosso tempo tem
uma estrutura ideológica de fabricação das subjetividades. Temos constituições
de horizonte de mundo que nos forjam a todos: televisão, jornais, internet etc.
Um desses pontos da ideologia, que para os que são da universidade é
praticamente nocivo, é dizer que não há verdade. Pois justamente o marxismo é
um dos baluartes da luta pela verdade, pela ciência, não é apenas mais uma
interpretação de mundo, ele se pretende buscar efetivamente a descoberta da
realidade concreta da sociedade capitalista e de sua sociabilidade. Portanto,
temos um horizonte para o qual não estamos fazendo esboços da realidade;
estamos agindo objetivamente na concretude do mundo.
Desse modo, quando eu quero entender o que é
uma classe social, não é para fazer dissertação de mestrado, é para lutar por
uma sociedade transformada, na qual não haja mais classe exploradora e classe
explorada. Para o marxismo, o conhecimento teórico não se basta na teoria
simplesmente, carrega em si uma implicação prática. Ocorre que o mundo de hoje
é bem assentado. E a pessoa acaba por ser somente teórica porque é mais
confortável, não dá tanto trabalho, não há erro nem culpa por tudo o que
acontece.
Então a grande questão é: como animamos uma
nova geração para o pensamento crítico? A dificuldade fundamental é que a
universidade é de classe média, tem as esperanças e as tragédias da classe
média. Algumas vezes visita o pobre, chora com o pobre, mas volta para casa. É
um mundo peculiar.
Mas a grande questão do marxismo e de sua
crítica de mundo é a transformação das estruturas sociais, das formas da
sociabilidade do capitalismo. Para tanto, como estabelecer uma luta dos
explorados do mundo que se dê tanto no avanço do plano teórico, de uma ciência
rigorosa da sociedade, quanto no plano prático? Como estabelecer essa junção de
teoria e prática? Como sensibilizar as pessoas e mobilizar classes, grupos e
multidões? Caso haja espaços de abertura às ideias, o caminho é mostrar a
crítica.
Para que a sociedade de exploração
capitalista possa, em algum momento, ultrapassar o limite de sua própria
indigência interpretativo-ideológica, é preciso combater esse horizonte
estruturalmente criado pelas grandes máquinas da ideologia. Elas são, por sua
vez, materialidades da reprodução capitalista, de sua própria forma de
sociabilidade.”
“O que leva as pessoas a lutarem por um mundo
transformado e justo? Tantos por cento das pessoas o fazem por causa da
religião. Outros chegam à transformação pelo humanitarismo, devido ao incômodo
de que nós somos todos irmãos na teoria, mas, na prática do mundo, não. Nesse
sentido, a grande trajetória do humanitarismo não é apenas cristã. Essa
contraditória e peculiar energia esteve presente em muitos setores e momentos
da história. O primeiro grande filósofo que falou da família universal é
Platão, que, aliás, foi preso. Porque é assim: toda pessoa que falar que o
mundo deve ter outro padrão de justiça será presa. Mas, claro, mesmo com a
beleza da sensibilidade religiosa, humanista, revela a tragédia de mundo de
estarmos ainda no primitivismo de explicação teológica, social e teórica. Não
saímos do lenitivo e do ópio do povo.
O marxismo é mais rigoroso, exigente e
difícil. Luta contra estruturas e formas de sociabilidade. Mas, ao mesmo tempo,
quero insistir no fato de que nós não falamos o absurdo, o absurdo é o que o
mundo fala. O absurdo é 1% serem donos de 70% da riqueza. E para que toda esta
máquina absurda do mundo exista temos Estado, direito, jurista, militar, policial,
estados, relações internacionais, intelectuais etc.
Então, volto a dizer: nossa luta é bonita e
histórica. Se nós achamos que todos hão de comer do mesmo pão e hão de se
albergar sob o mesmo teto, nossa mensagem é a melhor! É a mais simples, inclusive.
De nossa parte, hoje, é sabermos chegar ao mundo e passar essa mensagem, para
engendrar a luta – como se tudo estivesse encharcado de álcool e pudéssemos
riscar o fósforo. Tragédia e beleza! Não foi assim com a Primavera Árabe de
poucos anos atrás? Quarenta anos de ditadura que caíram em uma semana.
Derrubaram líderes do Estado. Mas, um dia, derrubaremos o próprio Estado,
porque derrubaremos a sociedade capitalista. Este é nosso sonho, esta é nossa
luta!”
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2. A crítica ao
idealismo: política e ideologia – Antonio Rago Filho
“Marx publicou a “Crítica da filosofia do direito de Hegel –
Introdução” em uma revista, que, infelizmente, só lançou um número.
Nesse trabalho, inseriu várias formulações marcantes, a começar pela primeira,
em que dizia que a crítica da religião já estava feita porque Feuerbach
cumprira o que devia. Assim, com elementos teológicos, idealistas ou que
pressupõem uma abstração externa, como é possível compreender o mundo na sua
imanência histórica? É isso que Marx se propõe. No entanto, em pouco tempo, vai
alçar a função do trabalho, que já aparece ali em seu elemento negativo. Por
outro lado, em Hegel, o trabalho é visto com uma afirmação positiva[7] –
e é muito interessante quando descreve um moinho que está a girar suas pás com
a água de um rio, observado de longe pelos trabalhadores que o construíram;
porém, Hegel afirma se tratar de um engano, pois o moinho é uma produção do
espírito, um trabalho da atividade ideal, histórico, que não foi executado
apenas naquele momento.
Marx destaca essa ideia, compreende sua
lógica e avança, porque diz que o trabalho tem um aspecto positivo e um
negativo. O positivo é o fato de ser engendrador da riqueza genérica humana.
Marx expõe, dessa maneira, a natureza do trabalho alienado e estranhado da
sociedade regida pelo capital, a relação social de produção, na qual o trabalho
morto se apodera do trabalho vivo. Trata-se da expressão objetiva da alienação,
a separação dos produtores diretos com relação à natureza, a atividade vital, a
riqueza genérica e sua própria humanidade, é a exploração do homem sobre o
homem, a luta de classes. Nos Manuscritos econômico-filosóficos,
de 1844, transparecem essas novas conquistas[8] . Assim, qualquer
produção de qualquer trabalhador – manual, intelectual etc. – é a extensão de
nós mesmos, nossas capacidades subjetivas estendidas para o mundo,
exteriorizadas, que potencializam na sua ação a hora que eu a recomponho em
mim. Marx e Engels, como Hegel, têm a capacidade de reconhecer que o trabalho é
criação e potência humana. Contudo, Hegel não vê seu aspecto negativo.”
[7]
“Hegel se coloca no ponto de vista dos modernos economistas nacionais. Ele
apreende o trabalho como a essência, como a essência do homem que
se confirma; ele vê somente o lado positivo do trabalho, não seu [lado]
negativo. O trabalho é o vir-a-ser para si (Fürsichwerden)
do homem no interior da exteriorização ou como homem exteriorizado.
O trabalho que Hegel unicamente conhece e reconhece é o abstratamente
espiritual. O que forma, assim, a essência da filosofia em geral, a exteriorização
do homem que se sabe (wissender Mensch), ou a ciência exteriorizada
que se pensa, isto Hegel toma como sua essência, e por isso pode, frente à
filosofia precedente, reunir seus momentos isolados, e apresentar sua filosofia
como a filosofia”, Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos
(trad. Jesus Ranieri, São Paulo, Boitempo, 2004), col. Marx-Engels, p. 124.
[8]
“O engendrar prático de um mundo objetivo, a elaboração da
natureza inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico consciente,
isto é, um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou
[se relaciona] consigo enquanto ser genérico”, ibidem, p. 85.
“Então, nesse ponto, Marx já tem clareza de
que o ser social tem uma missão que lhe cabe cumprir. Porque o trabalhador não
pode repor os pilares da escravidão do capital, e Marx descreve o capital e as
relações sociais como formas de taras e males sociais. Afirma também que
vivemos a escravidão do trabalho assalariado, alienado e estranhado, vendido
como qualquer mercadoria, que engendra uma riqueza desefetivadora dos
trabalhadores. Afinal, quanto mais se cria riqueza e quanto mais a produção se
expande, mais o trabalhador se desefetiva, por não ter o controle social do
universo produtivo[16].”
[16] “O trabalhador se
torna mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta
em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata
quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt)
aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt).
O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao
trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de
fato, mercadorias em geral”, Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos,
cit., p. 80.
“No âmbito da sociedade classista, a classe
que controla os meios de produção material também controla os meios
espirituais. Assim, as ideias dominantes são a expressão ideal da dominação
burguesa. O Estado dos proprietários se apresenta, então, como comunidade ilusória, que necessita das
representações ideológicas para impor às maiorias seus interesses particulares
como “universalidade”.
Fato é que qualquer indivíduo age por
interesses pessoais. Todavia, se estou condicionado e determinado por uma
classe, meus limites vão até certo ponto. Já quando tenho dada burguesia
contraditando outra, tenho interesses burgueses em luta. As frações burguesas, às
vezes, lutam para ter o controle e a regência do Estado. No entanto, quando a
classe trabalhadora se une, não têm dúvidas: as tropas, os golpes e as
ditaduras se impõem.”
“Não acredito que tenha havido comunismo até
hoje[32]. Aceito a tese de István Mészáros e de José Chasin, aqui do
Brasil, nos anos 1980. O filósofo Chasin dizia que havia uma forma social
imprevista no Leste Europeu, nas sociedades que tentaram a transição, e que,
pelo baixo nível das suas forças produtivas, engendraram monstros, sociedades
estatizadas, como diz o Mészáros[33], para além do capital.
Ultrapassaram o capital privado das sociedades pós-revolucionárias, mas não o
estatal, o capital coletivo não apropriado socialmente, como diz Chasin,
repondo, naquele mundo, outras formas do capital[34].
Uma das figuras que considero mais
extraordinárias, e que captou alguns pontos importantes antes de todos, é
Trotski. Nos anos 1930, quando ele estava no exílio, na Turquia, escreveu que
“uma guerra se divisava tendo a Alemanha como centro, e que os judeus seriam
exterminados”[35]. Aliás, um trotskista maravilhoso é o professor
Osvaldo Coggiola, com quem aprendo muito sobre o assunto. Trotski também
produziu um livro, em 1936, que se chamava Para onde vai a Rússia,
mas se tornou A revolução traída depois. Ali, tenta avaliar o que era a
União Soviética, e afirma que um dos problemas é que, quando há salário, há
extração de mais-valor. Ou seja, havia, ali, espoliação da classe trabalhadora,
o lado negativo do trabalho – a “vampirização”, como dizia Marx. Desse modo, o
capital vampiriza o sangue do trabalho, por sua vez, o trabalho é a
exteriorização das capacidades genéricas que se objetivam nas coisas, e as
coisas nos potencializam. Mas esses seres que fazem a exteriorização são
desefetivados, porque não têm o controle social de suas vidas.
Fato é que nós temos uma luta contínua na
classe trabalhadora. O comunismo não é uma idealização. Contudo, Marx nunca fez
previsões sobre o futuro, sempre afirmou que os indivíduos concretos iriam
construí-lo. Desse futuro, apenas sabia que são os obstáculos que impedem os
indivíduos de se tornarem livres.
Sobre isso, Mészáros cita, em um trabalho
publicado há muitos anos na revista Ensaio[36], com tradução
de José Paulo Netto, o seguinte: “Os proletários, caso venham a se impor como
indivíduos, terão de abolir a condição da existência que tem prevalecido até o
momento, especificamente trabalho alienado, estranhado”. É o que Marx fala em A
ideologia alemã: “Assim, eles se encontram diretamente opostos à forma
na qual até hoje os indivíduos nos quais consiste a sociedade se deram
expressão coletiva, isto é, o Estado. Portanto, para que se imponham como
indivíduos, eles devem pôr abaixo o Estado”[37]. No entanto, isso
não ocorreu, ao contrário: as formas sociais imprevistas, regidas pelo capital
coletivo e não apropriadas socialmente, engendraram uma forma de Estado tão
perversa como qualquer outra, porque, para Marx, Estado é ditadura de classe, é
opressão, usurpação das energias sociais.
Desse modo, se isso é verdadeiro, não há
forma de conquista pela luta dos trabalhadores. A Revolução Russa foi
maravilhosa, a Revolução Cubana também, quando se vê engendrada pelo movimento
social. Contudo, muito diferente é construir um gulag, fazer milhões e
milhões de trabalhadores escravos para construir pontes, ruas e hidrelétricas,
como fez o general Francisco Franco. O franquismo, aliás, pegou seus
prisioneiros e construiu as belas pontes que estão em Córdoba e em Toledo. E o
mesmo aconteceu na União Soviética: milhões de pessoas foram mortas e
despejadas. Há cartas de Stalin, inclusive, pedindo para exterminar determinado
trabalhador porque ele não estava cumprindo seu dever.
Enfim, não se trata de idealização[38],
mas da concretude de um modo perverso de outra forma estatal. Seguindo a linha
de Marx, o que visualizamos é uma forma real e concreta, mas em que o Estado
vem abaixo.”
[32] “O comunismo
distingue-se de todos os movimentos anteriores porque revoluciona os
fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio precedentes e
porque pela primeira vez aborda conscientemente todos os pressupostos naturais
como criação dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu
caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados”, Karl Marx
e Friedrich Engels, A
ideologia alemã, cit., p. 67.
[33] “Este é o momento em
que devemos salientar a importância das considerações de Marx sobre a relação
entre indivíduo e classe, já que, na ausência de uma adequada compreensão desta
relação, a transformação da forma política transitória em uma ditadura exercida
também contra o proletariado (apesar da intenção democrática original)
permanece profundamente envolvida em mistério. István Mészáros, “Poder político
e dissidência nas sociedades pós-revolucionárias”, Ensaio, São Paulo,
Ensaio, n. 14, 1985, p. 39. “O capital mantém o seu – de forma alguma restrito
– domínio nas sociedades pós-revolucionárias”, ibidem, p. 45.
[34] “Nesta acumulação
pós-capitalista, que é formação e incremento do capital industrial, interditadas
as formas privada e social da propriedade do capital, emerge uma
‘apropriação’ coletiva/ não social, que tem seu ponto de
inflexão, arranque e reiteração numa gestão igualmente coletiva/não
social. Sui generis, essa gestão/ ‘apropriação’ coletiva/ não
social tem por corpo um complexo dispositivo partidário/ estatal/
administrativo, que funcionalmente mantém e reitera nesta formação
pós-capitalista a regência do capital”, José Chasin, “Da razão do mundo
ao mundo sem razão”, Ensaio, São Paulo, Escrita, ano V, n. 11-12; Marx
Hoje, São Paulo, 1983, p. 24-5.
[35] “Trotski foi a
primeira liderança mundial a alertar os riscos do ascenso nazista, a
possibilidade de nova guerra mundial e o extermínio físico dos judeus. O histórico
bolchevique propõe a necessidade de novos partidos e orgânica internacional
contra a sociabilidade do capital e uma segunda revolução contra o absolutismo
burocrático”, Osvaldo Coggiola, “1938-2008: Setenta anos da fundação da IV
Internacional. Em defesa de Leon Trotski”, Projeto História, São Paulo,
n. 36, jun. 2008, p. 159-97.
[36] István Mészáros,
“Poder político e dissidência nas sociedades pós-revolucionárias”, em Ensaio.
Filosofia/Política/Ciência da História, n. 14, São Paulo, 1985, versão
publicada da intervenção feita no Convegno del Manifesto sobre “Poder e
Oposição nas Sociedades Pós-Revolucionárias”, Veneza, 11-13 nov. 1977, trad. e
rev. da versão inicial de Pedro Wilson Leitão e José Paulo Netto, rev. Ester
Vaisman a partir da versão ampliada fornecida pelo autor.
[37] “Quais são as
estruturas de dominação sobre cuja base se ergue a nova forma política que deve
ser descartada, sob o risco de tornar-se obstáculo permanente para a realização
do socialismo? Nas discussões da crítica do Estado de Marx [...] a seguinte
citação é bastante clara: ‘Os proletários, caso venham a se impor como indivíduos,
terão que abolir a condição de existência que tem prevalecido até o momento
(que tem sido, ademais, a das sociedades conhecidas) especificamente o trabalho.
Assim, eles se encontram diretamente opostos à forma na qual, até hoje, os
indivíduos, nos quais consiste a sociedade, se deram expressão coletiva,
isto é, o Estado. Portanto, para que se imponham como indivíduos, eles
devem pôr abaixo o Estado’”, ibidem, p. 40.
[38] “O comunismo não é
para nós um estado de coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um Ideal
para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento
real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento [devem
ser julgadas segundo a própria realidade efetiva. (suprimido do manuscrito)]
resultam dos pressupostos atualmente existentes. [anotação de Marx]”, Karl Marx
e Friedrich Engels, A
ideologia alemã, cit., p. 38.
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