Editora: Brasiliense
ISBN: 978-85-1101-206-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 90
Sinopse: Como
podemos explicar os fatos ocorridos no nosso dia-a-dia? Em geral partimos da
nossa experiência concreta e imaginamos que nossas ideias são objetivas. Mas
será que tudo se passa na nossa cabeça desta forma mesmo? O materialismo
dialético mostra porque o pensamento popular vive mergulhado no solo ingênuo
das aparências. O mesmo pensamento – das massas oprimidas – pelo qual devem
passar as ideias capazes de entender a natureza e a dinâmica da sociedade em
que vivemos.
O livro faz parte da coleção “Primeiros Passos” da
editora Brasiliense.
“Como se deu esse processo pelo qual de um
lado surgem os burgueses e de outro o proletariado? Trata-se de mera
coincidência ou de um desenvolvimento natural?
Nem uma coisa nem outra. Ambos são produtos
da própria sociedade feudal, anterior ao capitalismo. De um lado, as
manufaturas de lã da Holanda e da Bélgica, que funcionavam na base das oficinas
artesanais, provocaram um aumento da demanda de lã, sua matéria-prima
principal. Os senhores feudais da Inglaterra viram aí uma oportunidade de
aumentar suas rendas, arrendando as antigas terras de agricultura para
pastagens de ovelhas. Passaram então a cercar as terras coletivas dos
camponeses e a expulsá-los de suas tradicionais parcelas, transformando a terra
em propriedade privada.
Uma vez expulsos em massa do campo e
destruídas as bases de sua lavoura e de sua indústria doméstica foram
conduzidos inevitavelmente para vilas e cidades, onde passam a viver como
mendigos. Aí encontraram, à sua espera, o novo mestre, dono do capital, que os
introduziu na manufatura e os transformou em operários assalariados.
A liberdade e a igualdade pregadas pelo
mestre industrial-capitalista contra os privilégios e regulamentos feudais
acabaram logo na porta da manufatura. A fraternidade passava a ser assunto para
a polícia, encarregada de “domesticar os vagabundos” que não aceitassem os
novos regulamentos: trabalhar dezesseis horas ou mais por dia, a troco de um
prato de sopa! E não só os homens adultos, mas todos: mulheres, crianças e
velhos são incorporados ao trabalho na manufatura.
A sociedade burguesa faz desmoronar os
regulamentos feudais e adota para si o regulamento da manufatura, mais tarde
transformada em sistema fabril. Este sistema desconhece as diferenças entre as
pessoas quanto à origem social, parentesco etc., mas divide as pessoas em
vendedores da força de trabalho (os operários assalariados) e compradores desta
força, que são também os donos dos meios de produção (os capitalistas). E
enquanto os primeiros recebem um pagamento que lhes permite apenas reproduzir a
sua força, os últimos ficam com o resultado do seu trabalho, acumulando ainda
mais as riquezas.
A transformação por que passou a figura do
simples mercador e usureiro até a figura do mestre, dono da manufatura, foi
grande. O comerciante já não é a figura principal; na verdade, transformou-se
num proprietário de “capital”. Isto porque não é mais um simples possuidor de
dinheiro e de riquezas, com os quais podia atuar no comércio, comprando e
vendendo mercadorias, e obtendo um lucro comercial. Agora ele avançou sobre a
produção. Com o dinheiro comprou meios de produção e assalariou os produtores.
O capital não é, portanto, apenas dinheiro ou uma riqueza como outra qualquer:
é um dinheiro que tem a capacidade de gerar mais dinheiro.
Para que isso fosse possível, todas as
instituições da sociedade tiveram que ser transformadas e subordinadas aos
interesses do novo mestre capitalista. No lugar do antigo direito das ordens
feudais impôs-se o código civil. Tanto as novas leis instituídas quanto os
tribunais e juízes devem ser transformados em meios de defesa da propriedade
privada capitalista.
A mesma coisa ocorreu na política: a
burguesia primeiramente arrebata o poder das ordens aristocráticas e subordina
as dinastias reais aos seus interesses. Depois elimina o sistema monárquico, ou
transforma-o num elemento decorativo, e instala o sistema republicano. Através
desse sistema, em geral baseado formalmente na distinção dos três poderes –
Judiciário, Legislativo e Executivo –, ela criou formas de garantir o controle
político da sociedade, através dos partidos políticos, do Parlamento, do
Exército e da burocracia.”
“A filosofia moderna, ao mesmo tempo que
fazia uma crítica impiedosa ao mundo feudal e às suas bases religiosas, criava
as bases do individualismo, da propriedade particular e da defesa do interesse
capitalista, em detrimento do interesse coletivo de toda a comunidade. Mas na
crítica que fazia à sociedade feudal acabou criando as condições iniciais para
uma crítica da própria sociedade burguesa. A tarefa do materialismo dialético
consistirá no desenvolvimento dessa crítica até as últimas consequências.”
“Segundo o materialismo dialético, tanto nós
mesmos quanto as próprias coisas existimos na natureza e na história. A
natureza e a história constituem, na verdade, o sujeito (isto é, o autor) de um
processo, ao longo do qual se desenvolvem a espécie humana, as sociedades, as
classes etc.
No entanto, os sábios e os filósofos haviam
entendido a história humana sempre de forma abstrata; às vezes, eles
interpretavam as ações humanas como emanações da própria consciência
filosófica; outras vezes consideravam os problemas humanos como uma questão
exclusiva da atividade filosófica especulativa. Em geral, suas formulações
destinavam-se a um círculo restrito de pessoas.
Era preciso superar esse modo de pensar
abstrato, desligado dos fatos e da maioria das pessoas. Já em seus últimos
trabalhos sobre filosofia, Marx escreveu a célebre frase: “Os filósofos até
hoje não fizeram outra coisa senão interpretar o mundo de formas diferentes, o
importante – a partir de agora – é transformá-lo”.
Para que o pensamento não se comporte
especulativamente é preciso que ele passe da teoria para a prática, do
pensamento para a ação. É preciso portanto dirigir-se diretamente para a classe
social que pode dar validade histórica a essa descoberta científica.”
“É própria do materialismo dialético a
afirmação de que uma verdade universal não pode coincidir com um ponto de vista
particular, seja de um indivíduo ou de uma classe. Mas o proletariado, mesmo
como classe específica do capitalismo e, portanto, como classe particular de
uma formação social específica, não tem um ponto de vista histórico particular.
Primeiro, porque seus interesses históricos não são interesses particulares,
restritos à sua classe. Segundo, porque suas tarefas históricas de
transformação da sociedade são tarefas históricas do conjunto da sociedade.”
“Todavia a burguesia assume pouco a pouco, no
palco da história, um papel totalmente diferente daquele que desempenhou na
Idade Moderna. Pelas mesmas razões históricas, que a levaram a ser no passado
progressista e revolucionária, hoje se apresenta imbuída tão-somente de seu
interesse particular de preservar eternamente as estruturas sociais e políticas
da ordem vigente, defendendo ferrenhamente privilégios e benefícios
particulares em detrimento da exigência de direitos e condições de vida das
grandes massas da população assalariada e camponesa.
O proletariado, junto com outros setores
oprimidos da sociedade, como o campesinato, os desempregados e subempregados,
apresentam um interesse objetivo e historicamente universal de superar o
caráter limitado desta formação social e avançar para uma outra forma de vida
coletiva do homem.
Portanto, a universalidade do materialismo
dialético é possível justamente porque ele escapa de um vício comum de ver a
sociedade a partir de um prisma de interesses particulares. O caráter universal
desse conhecimento provém do esforço de compreender o conjunto do movimento, a
totalidade da vida das sociedades, ou seja, o passado, o presente e suas
tendências para o futuro.
Na sociedade capitalista estão presentes
diversas classes e frações de classe, mas nem todas imbuídas do mesmo interesse
no conhecimento e no prosseguimento do desenvolvimento histórico. O
materialismo dialético, ao elaborar a teoria dessa sociedade, descobre o choque
existente entre as classes e seus efeitos sobre o futuro da mesma sociedade.
Identifica também o papel que cada classe pode e deve ter no processo
histórico. Identifica, ademais, entre as classes presentes no cenário social e
político, qual delas poderá ter um interesse autêntico na transformação social
e na própria teoria da história. Essa classe é o proletariado.”
“Como explicamos, corriqueiramente, os fatos
e os problemas que surgem na sociedade em que vivemos? Façamos uma rápida
coleta das opiniões das pessoas a nossa volta, perguntando-lhes, por exemplo,
as causas dos problemas da sociedade brasileira. Eis o que conseguimos: “a
colonização portuguesa”, “o brasileiro é uma raça indolente” ou “submissa”, “no
Brasil há uma mistura de raças”, “o brasileiro perdeu o apego à religião” ou,
então, “falta ordem no país”, “os políticos não prestam”, “o brasileiro é
acomodado”, “está sempre conformado com tudo” etc. Outros afirmam que o
problema do país está no fato de o brasileiro não ter “cultura” ou então chegam
ao absurdo de afirmar que o mal está no excesso de liberdade.
Algumas pessoas nos dão uma versão mais
elaborada: mencionam o “imperialismo americano” ou o “capital estrangeiro”, ou
o exagerado poder dos bancos, da burguesia e dos latifundiários. No entanto, a
maioria, buscando entender os fatos, acaba pegando os aspectos que lhe parecem
mais aparentes. Em outras palavras, pegam o trem andando, mas não sabem de onde
ele vem, nem para onde ele vai.
E pelo rádio ou televisão escutamos as
asneiras costumeiras. De repente, ouvimos algumas versões com aparência de
seriedade: “o povo civilizado vive melhor”, “o governo não dá conta de tudo”,
pois “o país é grande e tem muitos problemas”, mas felizmente “Deus é
brasileiro”.
Costuma-se ouvir também frases de efeito, do
tipo: “a população cresce num ritmo muito mais rápido do que a riqueza do país”
ou “as oportunidades estão abertas a todos, os mais esforçados chegarão lá”.
São muito comuns as afirmações que reduzem as questões sociais a um problema de
ordem individual ou pessoal. O repórter ou o entrevistador pergunta: “o que
você (ou o senhor) pensa disso?”. E a resposta, invariavelmente, do político,
do ator de tevê ou de outro personagem público, é: “no meu ponto de vista...”
ou, então, “pela minha formação cristã, penso que...”.
Os meios de comunicação prestam-se, portanto,
muito mais à divulgação de pontos de vista individuais (em geral de pessoas que
não estão sujeitas aos mesmos problemas enfrentados pela maioria da população)
do que ao aprofundamento de qualquer questão, o que permitiria chegar às causas
reais de determinado problema.
Mas não é porque “o povo em geral não tem
cultura” ou porque os profissionais de comunicação de massa não possuem
formação sociológica (o que aliás não deixa de ser um fato lastimável) que se
ouve tanta “abobrinha”. Na realidade, toda pessoa que quiser refletir
seriamente sobre os problemas que afligem a nossa sociedade acabará se defrontando
com a seguinte dificuldade: por onde começar? Em outras palavras: onde
conseguir um “gancho” que explique as causas e as razões dos problemas de uma
sociedade como a minha?
Estamos diante da seguinte questão: em uma
dada sociedade, o que se deve tomar como princípio para explicar os fatos?
Quais os fatores da vida social que são “fortes”, isto é, que, depois de
explicados, podem explicar o restante? O que explica o quê?
O mesmo problema foi enfrentado por Marx aos
24 anos, quando trabalhava como jornalista na cidade de Colônia, Alemanha. As
assembleias do Parlamento local obrigaram-no a escrever artigos sobre o roubo
de madeira pelos camponeses do vale do rio Mosela e sobre o parcelamento da
propriedade fundiária.
Marx deparou-se então com o seguinte: quais
as causas que levariam as pessoas a roubar lenha? Sua má-educação, sua falta de
religião ou sua origem racial? Ou seriam as necessidades materiais que as
obrigavam a roubar lenha, para cozer seus alimentos, aquecer-se no inverno e
munir-se de utensílios indispensáveis para a vida? Nesse caso, como chegaram à
situação de perder o direito do usufruto dos bosques de onde podiam retirar a
lenha e a madeira necessárias, situação desconhecida pelos seus antepassados? E
por que não se encontrava uma solução para o problema?
Essas questões levaram-no a iniciar um
intenso e paciente estudo sobre a natureza dos atos humanos. No prefácio da sua
primeira obra sobre economia, dezesseis anos depois, escreve ele: “Minha
investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais como as
formas do Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas nem a
partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano; pelo
contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi
resumida por Hegel sob o nome de ‘sociedade civil’, seguindo os franceses e
ingleses do século XVIII; mas a anatomia da sociedade civil deve ser buscada na
economia política”.
Enfim, para entender os atos jurídicos, as
leis (que proibiam o corte da madeira e a retirada da lenha), as formas de
governo e os regimes políticos, deve-se procurar a explicação nas “relações
materiais de vida”, isto é, nas relações diretamente ligadas aos interesses,
vantagens e necessidades materiais dos indivíduos e dos grupos sociais. Esses “interesses
materiais” constituem os fatores que explicam o movimento social como um todo,
porque estão na base das decisões jurídicas, políticas, culturais etc.
Os interesses materiais estão presentes na
consciência dos indivíduos, de forma clara ou velada, mas estão na base da vida
da sociedade, porque dividem as pessoas em “classes”. As classes são grupos
sociais de indivíduos que têm interesses materiais idênticos.
Entretanto, os indivíduos estão em relação
uns com os outros, independentemente de pertencerem a uma dada classe social.
Entre si acertam um tipo de relacionamento. Por exemplo: um relacionamento de
trabalho assalariado, no qual um indivíduo fornece a sua jornada de trabalho e
o outro lhe paga um salário. Nesse caso, não se trata de simples relacionamento
entre indivíduos isolados, mas de uma relação de classe, de uma “relação de
produção”. Além de relações de produção, a sociedade também desenvolve
determinadas relações de distribuição e de consumo. O conjunto destas relações
de produção, distribuição e consumo constitui o “modo de produção”.
Assim, a relação entre capitalista e operário
caracteriza e constitui o modo de produção capitalista.
Mas o modo de produção é algo mais amplo,
pois envolve, além das relações de produção, a articulação entre os diversos
ramos da produção (agricultura, pecuária, mineração, indústrias metalúrgica,
têxtil, químico-farmacêutica etc.) bem como as diversas frações do capital
(industrial, financeiro, comercial, agrário).
O modo de produção tanto define o conjunto da
estrutura econômica, a base da produção social, como condiciona a
superestrutura social, jurídica, política onde se inserem a Constituição e toda
a legislação, os tribunais, os regimes políticos e governos, a luta
parlamentar, os movimentos sociais e sindicais, culturais etc.”
“Podemos reduzir todas essas diferenças entre
o operário assalariado e o patrão capitalista a uma diferença pessoal, entre
dois indivíduos? Como se tudo isso não bastasse, há ainda uma diferença
fundamental: para um, o único meio de ativar a sua força é colocá-la à
disposição do outro; e uma vez que este outro só pode sobreviver explorando a
força de trabalho alheia, os interesses de ambos são “contraditórios”, ou
melhor, antagônicos, irreconciliáveis. Não há como compatibilizar o interesse
de um com o interesse do outro. Dessa forma, a sociedade é uma sociedade de
crises e de conflitos.
Uma vez que operário assalariado e patrão
capitalista são indivíduos de dois grupos sociais divergentes e que essa
divergência se expressa em interesses materiais próprios de seu grupo,
interesses estes que são contraditórios, chamamos a esses grupos sociais de “classes”.
Classes sociais são, portanto, grupos com interesses materiais próprios e
antagônicos aos interesses de outra ou de outras classes sociais.
Os interesses de uma classe acabam, mais cedo
ou mais tarde, se chocando com os interesses da outra, e sobrevêm então uma
época de convulsão social. Mas podemos considerar isso como um mal em si mesmo?
Considere-se como se queira: o materialismo dialético aponta para a sua
existência, um fato do qual nenhuma sociedade de classe pode escapar.
Vários defensores do status quo atual têm insistido na ideia de que Marx teria “pregado”
a luta de classes. Esses apologetas do paraíso burguês fazem crer que a
sociedade atual é, em si, boa, mas alguns revolucionários e subversivos querem
retirar-lhe a paz natural. Face a essa hipocrisia, Marx só faz apontar uma
história infindável de violências praticadas e institucionalizadas pela
burguesia. Naturalmente não foi a burguesia – a classe dominante no capitalismo
– quem inventou a violência na história. Mas a mesma não teve escrúpulos em
usá-la, não apenas contra as classes da antiga ordem feudal como,
principalmente, contra seus opositores de classe modernos, os operários urbanos
e rurais, os camponeses e todas as frações de classe que, em qualquer momento,
se insurgiram contra a sua dominação.
Além da violência policial e militar há a
violência econômica. Para que o capitalista pudesse vir ao mundo, ambos os
tipos de violência foram empregados como métodos de rotina. A expropriação
violenta do campesinato na Europa, as pilhagens sistemáticas aos povos da Ásia,
África e América, o tráfico negreiro são apenas alguns capítulos de uma longa
história em que se inclui todo tipo de violência.
Uma vez implantado o capitalismo, mudam-se os
métodos do exercício da violência. Se antes eram feitos “ao arrepio da lei”,
agora a lei tem que se adaptar aos interesses de classe. Constitui-se uma
legislação que inviabiliza ao oprimido reagir contra a opressão, e os juízes e
tribunais, recrutados entre as classes dominantes, são aparelhados para o
exercício de uma justiça de classe.
Esta situação acaba levando a classe
operária, junto com as demais classes oprimidas pelo capitalismo, ao
esgotamento da sua capacidade de suportar a opressão. Intensifica-se na classe
oprimida o desejo de liberar-se do jugo que pesa sobre seus ombros.”
“A força de trabalho, enquanto força ou
capacidade humana, é algo naturalmente inerente ao homem e, nesse sentido, tão
natural quanto o próprio homem.
Mas o fato de essa capacidade natural do
homem ser considerada uma “mercadoria” é algo absolutamente estranho à
natureza. Na verdade, a força de trabalho como mercadoria só existe numa
determinada sociedade, e é, nesse aspecto, o produto de uma época histórica
específica. Nesse particular, esta época histórica específica difere de todas
as demais épocas da história da humanidade, anteriores ou posteriores.
Afirmar que a mercadoria força de trabalho é algo
que existe “naturalmente” equivale a dizer que servos da gleba, ou escravos,
são produtos da natureza. E que relógios de ponto, vigias, supervisores, tanto
quanto pelourinhos, capitães-do-mato são igualmente produtos da natureza.
Qual é o procedimento de Marx? A própria
análise do capital obriga o teórico a reconhecer que o capital, para passar da
esfera da circulação para a esfera da produção, precisa controlar os fatores de
produção. Estes fatores precisam ser “fatores do capital”. A força humana deve
necessariamente existir como “mercadoria”. E para isso são necessárias duas
condições históricas: primeiro, para poder vender sua própria força de trabalho,
tem que ser um indivíduo livre, não pode ser escravo ou servo, pois dessa forma
não seria dono de sua própria força de trabalho; segundo, este indivíduo nada
deve possuir, pois se possuísse alguma coisa que funcionasse como meios de
produção, ou pudesse ser trocada por eles, trabalharia para si mesmo, e não
para outros.
“Entretanto, uma coisa é clara: a natureza
não produz dois lados, de um lado os possuidores do dinheiro ou de mercadorias,
e, do outro lado, meros possuidores da própria mercadoria força de trabalho.
Esta relação não é um processo histórico natural, e muito menos um processo
social que fosse comum a todas as épocas históricas. Evidentemente, é, ele
próprio, resultado de um desenvolvimento histórico prévio, o produto de muitas
mudanças econômicas, da decadência de toda uma série de velhas formações da
produção social”.”
“A análise lógico-histórica tem uma diferença,
com relação à análise histórico-evolutiva ou histórico-genética: uma diferença
na forma e no conteúdo. Na forma, porque não se preocupa em examinar os
momentos particulares dessa evolução histórica, mas apenas a lógica do próprio
processo, tal como existe na atualidade. A forma de O Capital não é, portanto, a de uma exposição de uma evolução
histórica, mas de uma exposição lógica do movimento do capital.
Do ponto de vista do conteúdo, porque se
tomássemos o capital como um produto do “capital comercial” (que é a forma
histórica que precedeu o capital, tal como o conhecemos hoje), então teríamos o
próprio capitalismo como produto do mercado, ou seja, o capitalismo, um aspecto
da economia mercantil. Dentro do sistema capitalista desenvolvido, o capital
comercial não é senão uma das formas de capital. E o mercado, uma esfera
subordinada do capitalismo. Seu tratamento sistemático, na obra de Marx,
aparece apenas no volume III. Se, porém, derivamos o próprio capitalismo do
capital comercial, então teremos um elemento parcial e subordinado como o
elemento dominante do capitalismo. (Eis novamente por que o mais desenvolvido explica
o menos desenvolvido, e não o contrário.)
Mas fica igualmente claro que o método lógico
é também histórico, porque ele indica muito precisamente as condições
históricas da existência do próprio sistema capitalista, como foi visto no caso
da emergência histórica ao trabalhador assalariado, duplamente “livre”. Ele é
histórico, não porque recorra ao passado para explicar o presente, mas porque
entende o presente como uma época histórica própria, que teve começo, duração e
encaminha-se para seu fim.
Não se pode recorrer ao passado para explicar
o presente, mesmo porque também o passado precisa ser explicado. Esse tipo de procedimento
exigiria um retorno infinito aos períodos passados da história.
Na exposição feita sobre o método usado em O Capital, a mercadoria se desdobra em
mercadoria e dinheiro. Por quê? Porque ela própria é uma unidade contraditória
entre valor de uso e valor de troca. Ou seja, porque existe uma contradição em
seu seio, ela passa de mercadoria a mercadoria e dinheiro. E o dinheiro é a
representação máxima do valor de troca.
Estamos diante de um exemplo da “dialética”. Em
breves palavras posso dizer que a dialética é o movimento pelo qual as
realidades sociais se desdobram e dão origem a novas realidades. É, portanto,
algo inerente ao movimento da história, à vida de qualquer sociedade. Mas “dialética”
é também a concepção metodológica que permite captar esse movimento da
história, não apenas no estudo do passado mas do próprio presente.”
“É importante considerar as noções do senso
comum e avançarmos pouco a pouco em direção às noções científicas, de modo que
seja possível desatar cada “nó” e desfazer o emaranhado de falsas evidências e
pseudo-conhecimentos, para o que, finalmente, a teoria do materialismo
dialético deve trazer uma contribuição decisiva.
O pensamento popular vive mergulhado no “solo
ingênuo” das aparências e da confusão dos termos. O jovem filósofo Karl Marx,
já em 1843, quando tinha 25 anos, havia atinado com esse fato, mas recusava-se
a tomar a mesma postura de seus colegas (Bruno Bauer e Arnold Ruge), que
desdenhavam o saber popular e faziam uma crítica filosófica da religião,
encerrada em si mesma. Para ele, “tão logo o raio de pensamento cair e se
aprofundar neste solo ingênuo do povo” terá lugar a emancipação dos oprimidos
em seres humanos.
Para o materialismo dialético, qual é então a
atitude correta diante do senso comum e da realidade social?
É preciso reconhecer inicialmente que as
noções populares, as ideias e concepções dos indivíduos comuns, não são “ideias
erradas”, inventadas não ao bel-prazer de cada indivíduo particular, mas ideias
invertidas da realidade, produzidas pela própria realidade. As formas de agir,
pensar e explicar as relações sociais são produzidas pelas próprias relações
sociais dos homens. Esta inversão é, portanto, um fato necessário na sociedade
capitalista.
O processo mais geral de inversão, produzido
em nossa sociedade, está demonstrado no capítulo primeiro de O Capital, no tópico sobre “o fetichismo
da mercadoria e seu segredo”.
De modo geral, podemos dizer que o
relacionamento humano assume espontaneamente em seu desenvolvimento a forma de
um “mecanismo objetivo”, isto é, um mecanismo que provém dos próprios objetos e
que escapa ao controle dos sujeitos que o criaram. O homem produz a mercadoria
e por isso ela tem valor. Mas as mercadorias existem como se tivessem valor por
si mesmas, e os homens correm atrás desse valor como escravos, submissos às
ordens deste “senhor”. Este é o processo mais geral do “estranhamento” (Entfremdung) ou da “alienação” (Entäusserung) pelo qual se torna
estranho o que é próprio ao homem, ou este se aliena daquilo que criou.
Da mesma forma como perde o controle dos objetos
que cria (as mercadorias), perde também o controle das relações sociais que
desenvolve no convívio coletivo. O movimento das mercadorias, as relações
sociais de modo geral aparecem como coisas “objetivas”, isto é, externas,
dotadas de vida própria. Este modo de aparecer, este mundo de aparências é o “solo
ingênuo do povo”. Entretanto, essas aparências não são arbitrárias mas
necessárias, porque têm uma fonte na vida social, no relacionamento que os
indivíduos estabeleceram entre si. Por isso, não basta “mudar as aparências”,
nem tampouco o problema se resume em convencer o povo de que a aparência é
falsa. Trata-se, muito mais, de mudar a própria realidade que necessariamente
produz estas aparências.
Eis por que, para o materialismo dialético, o
processo de conhecimento da realidade social implica a transformação da própria
sociedade. Mas, para transformar a realidade, é necessário conhecê-la e, para
conhecê-la, é preciso estudá-la. A atitude correta, diante da realidade, deve
ser, portanto:
1) Em primeiro lugar, o materialista
dialético apresenta-se diante da realidade com uma percepção realista, mas não
no sentido de “conformismo”, ou, pior ainda, com a preocupação de valer-se dela
para obter benefícios pessoais e imediatos. O materialista dialético é
necessariamente um realista, na medida em que precisa investigar as relações
reais-efetivas da sociedade, aquilo que “existe de fato” e não o que gostaria
que existisse, ou pensa existir. Trata-se, em primeiro lugar, de uma atitude de
pesquisa, de esforço de conhecimento estrito da realidade efetiva. Uma atitude
científica, no bom sentido da palavra, ou seja, de profunda indagação da
realidade, sem rituais academicistas ou elitismo autoritário, mas também sem
glorificação do puro basismo.
2) Para não cair em uma postura conformista, a
atitude da pessoa que se identifica com o materialismo dialético não é a de
fazer puras constatações mas entender que o processo social é um processo (não
na forma de momentos parados sucessivos, que juntos produzem a ilusão do
movimento), em que a existência concreta do indivíduo tem certamente um lugar
reservado. Trata-se de um processo dialético, pois a realidade se transforma por
força das próprias contradições (das tensões) internas a essa realidade.
3) Dos dois pontos anteriores deriva um
terceiro: tomando uma atitude de busca de conhecimento e sendo um ser ativo,
deve “agir-com-conhecimento” e “conhecer-com-a-ação”. Conhecimento e
transformação do mundo são dois momentos de uma única síntese. Não há como
realizar plenamente uma coisa, sem realizar simultaneamente a outra. Como seria
possível ao homem – como indivíduo ou como classe – agir plenamente sem
conhecer plenamente? E como conheceria de fato, sem tornar consciente sua
própria inserção no mundo – como indivíduo ou como classe?
Enfim, o materialista dialético apresenta-se sempre
com um programa de mudanças das condições em que vive, da sociedade específica.
Isto porque ele compreende que a “existência prática do homem” é a situação
real de vida de cada indivíduo, que não está separado dos demais, pois vive em
sociedade. Sua “existência prática” ocorre dentro de condições “objetivas”,
que, com certeza, devem ser conhecidas empiricamente. Mas ao mesmo tempo essas
condições estão sendo alteradas diariamente pela própria “existência prática”
desse indivíduo e dos indivíduos em geral. Dessa sua “existência prática” e das
mudanças que ocorrem na sociedade, o indivíduo não tem senão um conhecimento
reflexivo das condições “objetivas”, puro reflexo.
Pelas características próprias do processo
social ao qual todos nós, como indivíduos, estamos submetidos, o indivíduo não
tem um conhecimento efetivo, uma vez que sua própria consciência não passa de
puro reflexo de coisas “objetivas”, isto é, externas. Sua consciência é
meramente reflexiva, uma vez que reproduz as aparências da realidade exterior.
Ele só adquire consciência de sua “existência
prática” quando se liberta das aparências reflexivas da realidade exterior e
toma conhecimento do próprio significado da sua existência prática. Compreende
então que as aparências reflexivas do real não passam da forma necessária em
que se manifestam as relações sociais alienadas, relações criadas pelos indivíduos,
mas sobre as quais não tem controle. O resultado do seu esforço de conhecimento
de sua vida e do mundo é, então, um programa de mudanças das condições em que
vive, enfim, de toda a sociedade. Eis por que, para o materialismo dialético, o
esforço de conhecimento se manifesta sempre na forma de uma “crítica”. Crítica
ao saber dominante, à ciência tradicional e às noções do senso comum.
Esse programa de mudanças representa, por um
lado, a consciência das condições existentes de fato, empiricamente observáveis
e cientificamente explicáveis. Sob esse aspecto, o materialista dialético se
comporta como um “realista” em sentido estrito. Mas a realidade efetiva existe “em
processo”, como um movimento. Nessa medida, não pode relacionar-se com a
realidade passivamente, como a antiga relação sujeito-objeto da filosofia clássica
dava a entender. Não deve tomar a realidade como algo dado, definitivo,
terminado. Sob esse outro aspecto, comporta-se como “idealista”, isto é, como
alguém que, do ponto de vista do senso comum, só pode ser visto como um
idealizador, porque é alguém que percebe na realidade uma força e um movimento
que os estreitos horizontes do senso comum não conseguem abarcar.
A percepção que o materialista dialético tem
da realidade efetiva expressa uma “carência” (isto é, algo que falta) e uma
riqueza não posta (algo que está por vir), e face a esse movimento não pode
limitar-se a olhar “objetivamente” o movimento, porque o indivíduo vive no
interior da sociedade. (Numa comparação simples: a sociedade é um trem, mas o
indivíduo está dentro do trem, e por isso não pode agir como uma pessoa que
estivesse vendo esse trem de longe, como uma coisa externa.)”
“Não se trata portanto de negar a
espiritualidade ou o pensamento nem a sua importância para a vida e para a
história humana. Trata-se de entender que o pensamento não flutua no ar, não
surge do vazio, da pura vontade de um indivíduo qualquer. Pensamento é
pensamento na história e pensamento da história. Pensamento é ação humana: como
resultado e como ponto de partida. Como resultado pois origina-se a partir de
necessidades materiais e práticas, que lhe antecedem. É ponto de partida,
porque o pensamento é atividade totalizadora e transformadora do real, na
medida em que predispõe o homem para a ação transformadora do mundo. Portanto,
o pensamento se estriba na realidade histórica em que vive, e essa realidade
histórica é um conjunto de relações sociais, de decisões técnicas e de atos de
produção material.
Em seu conjunto, como uma realidade diferente
de pensamento, ou seja, como uma realidade física, social, humana etc, esta
realidade constitui a materialidade do pensamento: ponto de partida e ponto de
chegada do pensamento, da teoria de toda formulação científica, artística,
religiosa etc. Nesse sentido, e apenas nesse sentido, o marxismo é um materialismo,
e a dialética de que tratamos é uma dialética materialista.
A formulação “materialismo dialético” só tem sentido
histórico-teórico como contestação das teses idealistas, aí incluídas as
formulações materialistas vulgares ou metafísicas. O materialismo dialético não
pode portanto ser confundido com uma declaração doutrinária e principialista absoluta
de uma crença do primado da matéria. Primeiro, porque para ele não existem
princípios metafísicos, e qualquer declaração doutrinária ou principialista é sempre
uma afirmação metafísica. Segundo, porque não existem verdades absolutas.
Terceiro, porque suas formulações são histórico-críticas. O materialismo
dialético é a negação do materialismo metafísico do século XVIII e a negação do
idealismo dialético do século XIX. Ao primeiro ele opõe a dialética da
transformação e da história. Ao segundo ele opõe o lado terreno do pensamento;
o fato de que o pensamento só existe junto com os homens práticos e reais
efetivos, que existem na história, com a história e para a história.”
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