quarta-feira, 17 de julho de 2019

Para a Crítica da Economia Política, de Karl Marx: Introdução de Jacob Gorender

Editora: Abril Cultural
Opinião: ★★★★☆
Páginas: XXIV

Introdução de Jacob Gorender

“A crise econômica não subverteu a ordem capitalista europeia, e Marx só conseguiu dar redação definitiva a uma reduzida parcela de suas investigações. Assim é que, em 1859, veio a público a Crítica da Economia Política. Seu texto está aqui precedido por dois documentos doutrinários primordiais no universo do marxismo: o Prefácio e a Introdução.
No Prefácio, além das informações curriculares já referidas, figura a mais condensada e famosa síntese do materialismo histórico. A prioridade metodológica atribuída a Economia Política tem sua explicação ontológica na conclusão de que nela reside a anatomia da sociedade civil, cujo conceito compreende a totalidade das relações materiais de vida. A dialética entre forças produtivas e relações de produção, bem como entre base econômica e superestrutura ideológica e institucional, determina a sucessão dos modos de produção e das formações sociais. A sociedade burguesa é declarada forma transitória de organização social – a última forma antagônica.
A Introdução não fez parte do livro publicado, o que Marx justificou no Prefácio por não querer antecipar resultados ainda pendentes de prova. Somente em 1903 viria a luz aquele texto inconcluso onde, no entanto, se encontra a mais extensa e a única exposição sistemática sabre a questão do método, na imensa literatura marxiana.
Podemos discernir três temas centrais nessa dissertação metodológica.
O primeiro diz respeito ao objeto da Economia Política. Costuma-se tomar por tal objeto a produção vista através de categorias supra-históricas, validas para todas as épocas. A produção, no entanto, é sempre social e sempre o resultado de um desenvolvimento histórico. Cada época tem categorias específicas e, por isso, as chamadas determinações gerais da produção, se abstraídas das categorias específicas, se reduzem a tautologias.
Segue-se uma argumentação contra a separação corrente entre produção e distribuição – a primeira considerada passível de estudo científico, pois submetida a leis “naturais”, enquanto a segunda seria o reino do arbítrio dos homens. Não obstante, produção, distribuição, circulação e consumo são momentos· ou fases de um processo único. Não que, à maneira de Hegel, devam ser reunidas numa identidade, em que tudo se confunde. Cumpre compreendê-las, isto sim, enquanto momentos distintos e pressupostos umas das outras, entrelaçadas e mutuamente determinantes. Se a produção é regida por leis independentes do que os homens pensem ou queiram, a distribuição implica que se distribui o que foi produzido e, por conseguinte, um modo de produção. Por sua vez, a produção não se dá sem que os meios e objetos de trabalho sejam apropriados e distribuídos de acordo com procedimentos, que só na aparência podem ser tidos por arbitrários. Assim também com a circulação – que é o prolongamento, no âmbito dos indivíduos, do que a distribuição realizou no domínio dos agrupamentos sociais – e com o consumo. Este último já se contém na produção como seu fim ideal, como seu acicate, mas, ao mesmo tempo, a produção modela o consumo, determina-lhe o caráter especificamente humano, na medida em que cria necessidades ao criar os objetos capazes de satisfazer tais necessidades.
Se produção, distribuição, circulação e consumo são pressupostos e determinantes umas das outras, cabe a produção a determinação fundamental. É ela o ponto de partida sempre recorrente do processo, sua razão de ser mais essencial, o resumo de todas as distintas fases. Por isso mesmo, Marx chamara de modo de produção a organização social da atividade econômica, criando um conceito axial para todo o seu sistema teórico.
O segundo tema da Introdução aborda o aspecto propriamente epistemológico da metodologia. O processo cognoscitivo é examinado numa sequência de três escalas, que já possuía tradição na história da filosofia. Tal sequência triescalar remonta, pelo menos, a Nicolau de Cusa, escolástico do século XV. Vamos reencontrá-la em Espinosa, com o teorema sobre os três gêneros do conhecimento. Seria retomada pela filosofia clássica alemã, principalmente por Kant, que a sistematizou numa concepção idealista subjetiva de categorias transcendentais a priori. Partindo de uma concepção também idealista, porém objetiva, Hegel rejeitou as categorias a priori e resolveu a sequência cognoscitiva numa dialética racional, que supera as antinomias kantianas. Foi de Hegel que Marx recebeu essa dialética do conhecimento e é com Hegel que polemiza, quando enfoca o processo cognoscitivo do ponto de vista do materialismo.
Não se trata de mera inversão de sinais, da substituição sumária do idealismo pelo materialismo, porém de uma visão profundamente inovadora. O concreto pensado não é o concreto real caótico inicialmente captado pela intuição e pela representação, mas a unidade do diverso, a sistematização de múltiplas abstrações unilaterais previamente refinadas e elaboradas a partir da intuição empírica. O concreto-totalidade supera o abstrato unilateral, do qual parte de modo imediato (e não do empírico). No entanto, ao contrário de Hegel, para o qual o concreto pensado é autocriação do conceito, de fora e por cima da intuição e da representação, Marx insiste em que o ponto de partida do processo cognoscitivo está no concreto real. Este constitui o objeto sobre o qual o pensamento exerce sua atividade criadora específica, que é a atividade teórica. Assim, o conhecimento percorre escalas necessárias do intuitivo empírico ao abstrato e deste ao concreto pensado, que retorna, enquanto totalidade de múltiplas determinações, ao concreto real.
O terceiro tema diz respeito a organização expositiva. Qual a ordem em que devem ser expostas as categorias para que formem um sistema explicativo e estruturado? Essa ordem não pode ser histórica, porém lógica. Ou seja, as categorias não se situam na exposição sistemática conforme sua sucessão na história, mas de acordo com as conexões internas determinadas por sua essência conceitual, no quadro da sociedade burguesa. Marx, contudo, é taxativo na afirmação da relação imanente entre o histórico e o lógico, constituindo cada qual uma perspectiva diferente do mesmo processo real. Por vezes extremamente sutil, revelando a delicadeza com que enfrenta o assunto, sua argumentação, se afirma tal relação, dirige-se também contra a identificação tão redutora do lógico ao histórico. Justamente a identificação redutora em que incorreria Engels, ao escrever uma de suas resenhas sobre a Crítica da Economia Política, dando ao pensamento marxiano uma interpretação historicista certamente inadequada.”


“Marx apresenta, pela primeira vez, sua descoberta acerca da diferença entre valor do trabalho e valor da força de trabalho. Descoberta crucial para o sistema da Economia Política marxista, uma vez que permitirá resolver as contradições discursivas legadas pelos clássicos e que os ricardianos de esquerda não conseguiram superar.
Ao contrário da aparência suscitada pelo funcionamento do regime capitalista, e que adquire a consistência de dogma ideológico tanto para os patrões quanta para os operários, o que o salário paga não é o valor do trabalho, mas o valor da força de trabalho. O valor da força de trabalho se determina como o das demais mercadorias, ou seja, pelo tempo de trabalho socialmente necessária para sua produção. Ora, a produção da força de trabalho se dá mediante o conjunto de bens que o operário precisa consumir a fim de restabelecer, a cada dia, suas aptidões físicas e intelectuais e ainda sustentar sua família, que inclui uma fração da futura geração de operários. Contratado pelo capitalista para trabalhar determinado número de horas por dia, o operário reproduz, numa parte da jornada, o valor da sua força de trabalho, valor que o patrão lhe retribui sob forma de salário. Mas o restante da jornada constitui trabalho excedente sem retribuição, criador de sobrevalor ou mais-valia, da qual o patrão se apropria. A apropriação da mais-valia – da qual o lucro industrial e comercial, os juros e a renda da terra representam formas particulares – não se processa mediante violação da lei do valor, sob o aspecto de determinante da troca de equivalentes, porém no seu estrito cumprimento.”


“A grandeza do salário compõe-se de dois elementos: o físico e o histórico-social. O primeiro diz respeito aos bens de primeira necessidade imprescindíveis a sobrevivência do operário e da sua família. O segundo inclui aqueles bens que, com variações para cada país, se incorporaram por tradição ao padrão de vida dos trabalhadores, elevando-o acima do limite físico mínimo. Embora com menos clareza e diversas restrições, isso já fora dito por Ricardo. Este, porém, só considerou a incidência sobre o nível dos salários das variáveis população, oferta e procura de mão-de-obra, preço dos alimentos e valor do dinheiro. Marx incorporou a sua argumentação as três últimas variáveis, deu a variável população um tratamento completamente diverso e acrescentou variáveis como as diferenças entre as fases do ciclo econômico e, fundamentalmente, a luta de classes. Sob este último aspecto, retomou, com uma nova concepção do processo econômico, a linha seguida por Hodgskin e outros ricardianos de tendência socialista.
Se o elemento físico do salário não pode ser baixado, sob pena de incapacitação dos operários para o trabalho e até de sua extinção, o elemento histórico-social é suscetível de alterações, que o expandem ou contraem. Às vezes, tais alterações são espontâneas, acompanhando as fases de auge ou de depressão do ciclo econômico, quando cresce ou definha a demanda de mão-de-obra. Mas também derivam, a qualquer momento, da relação das forças de classe, da disputa entre os interesses dos capitalistas contrapostos aos interesses dos operários. Os primeiros tendem a diminuição do salário real até reduzi-lo ao elemento físico, enquanto, simultaneamente, procuram prolongar a jornada e aumentar a intensidade do trabalho até onde o permita a resistência vital dos operários. Da sua parte, os operários lutam para aumentar seus salários reais e obter reduções na duração da jornada e na intensidade do trabalho. Baseado em estatísticas, Marx afirmou enfaticamente que essa luta dos trabalhadores é capaz de alcançar e já alcançou êxitos, em especial na Inglaterra; que a classe operária pode conquistar aumentos de salários e melhorias das condições de vida ainda no regime capitalista. Enquanto Ricardo, consequente com sua consciência burguesa, considerou indesejável a interferência legislativa nas questões salariais e recomendou que se resolvessem pela livre concorrência no mercado, Marx indicou à classe operária a necessidade de se bater por essa interferência, de tal maneira que se fixassem na legislação suas conquistas arrancadas ao capital.
Assim, não há uma férrea lei econômica dos salários, que os empurra ao mínimo vital, nem a condição operária sob o capitalismo implica a fatalidade da miséria cada vez mais acentuada. Não obstante, o que a classe operária pode conquistar no regime capitalista se submete as limitações e a precariedade impostas pelos mecanismos imanentes desse regime. Os operários não devem iludir-se acerca de suas possibilidades objetivas. A essa altura de sua argumentação, Marx apresentou, em termos sucintos, sua tese sobre a superpopulação relativa ou exército industrial de reserva como criação da dinâmica do próprio capitalismo, independendo da ocorrência de crescimento vegetativo da população. Impelidos pela concorrência, os empresários substituem operários por máquinas e elevam a composição orgânica do capital. Daí resulta que aumenta continuamente a grandeza do capital em relação a cada operário ocupado. Em consequência, a classe operária se vê em situação cada vez mais desvantajosa diante do patronato, sob constante ameaça de desemprego. O que a obriga a lutar com maior vigor ainda por melhores condições de vida, sem o que não ganhará consciência de que seu objetivo superior deve ser a reconstrução econômica da sociedade, com a abolição do próprio sistema de trabalho assalariado.”


“Valendo-se do recurso metafórico, o conceito de fetichismo representa uma versão concretizada do conceito de alienação, que Marx, aliás, continuou a empregar, mas despido de conotações especulativas e em raras passagens.
Uma vez lançada ao mercado, a mercadoria adquire vida independente de seu criador. Ao contrário, o destino do criador vai depender do que acontecerá à sua criação, a qual, embora coisa banal de uso comum, assume a feição de fetiche com poderes misteriosos. Tanto pode trazer felicidade, ao ser vendida com lucro, como encalhar no depósito e arruinar seu produtor. No fetichismo da mercadoria já está latente o fetichismo do capital.
A análise do fenômeno começa pelo capital a juros. Este aparece como a forma por excelência, a forma pura do capital: é dinheiro que produz um rendimento específico – os juros – sem que o seu proprietário precise assumir qualquer responsabilidade produtiva. Pode dar-se até que o dinheiro seja emprestado a um mutuário que o gastará no consumo pessoal improdutivo. Para o mutuante tanto faz, porque, assim mesmo, terá direito ao recebimento de juros e o seu dinheiro funcionará para ele como capital, conquanto não ingresse no processo produtivo. Os juros ganham a aparência de criação do dinheiro como tal, sem qualquer relação com a produção efetiva de mais-valia.
O fetichismo do capital a juros se prolonga no fetichismo do capital industrial. Se o dinheiro rende juros sem exigir a participação do seu proprietário em algum empreendimento produtivo, o lucro industrial pode, então, dar a impressão de resultar do trabalho de administração executado pelo empresário. Ora, Marx reconhece que o trabalho de administração é um trabalho produtivo, só que, mesmo quando o exerce e não o delega a um gerente, não é a esse título que o empresário embolsa o lucro industrial. Já Adam Smith e Ricardo haviam afirmado expressamente não ter o lucro outra fonte senão a do valor excedente criado pelos trabalhadores. Por isso, tanto mais criticável a posição de J. S. Mill, que se desvia dos fundamentos ricardianos para explicar o lucro industrial como remuneração do trabalho de administração, rendendo-se a aparência fetichista do capital industrial.
Se o lucro industrial adquire a aparência de remuneração do trabalho do empresário, o lucro comercial pode ser, com justificação não menos idônea, atribuído ao processo de circulação em si mesmo e não a criação da mais-valia no processo de produção. Por fim, mistifica-se a origem da renda da terra, cujo caráter de sobreproduto criado por trabalhadores agrícolas é obscurecido para que seja vista como mero resultado da fecundidade do solo, dádiva da natureza ao proprietário da terra. Surge daí uma categoria como a de preço da terra, tão irracional quanta a de preço do dinheiro, medido pela taxa de juros, e a de preço do trabalho, medido pelo salário.
Completa-se, por conseguinte, um circuito de enfeitiçamento, que imputa fantasticamente a coisas inertes – o dinheiro e a terra – um poder de criação que lhes é alheio. Mas tal enfeitiçamento não é arbitrário, não vem de invenção maliciosa, pois emana das próprias relações de produção capitalistas, das quais constitui aparência ideológica necessária. Por isso mesmo, essa aparência mistificadora é aceita com a maior naturalidade pelos agentes econômicos práticos, que se guiam por ela na atividade cotidiana.
Semelhante naturalidade já não se justifica no caso de economistas, com pretensões científicas. Os economistas clássicos – Quesnay, Smith, Ricardo, Sismondi – empenharam-se em desvendar as relações de classe inerentes a produção e a distribuição do produto social. Os seus sucessores, que Marx crismou de vulgares – os Say, Bastiat e Roscher –, assumiram a aparência fetichista como sendo, não o disfarce superficial da realidade, porém sua essência. E, assim, por analogia com a religião cristã, difundiram a fórmula trinitária do capital criador de juros, da terra criadora de renda e do trabalho criador de salário. Ciência com os clássicos, a Economia Política, ao se vulgarizar, converteu-se em exercício apologético.”

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