Editora: Abril Cultural
Opinião: ★★★★☆
Páginas: XXIV
Introdução de
Jacob Gorender
“A crise econômica não subverteu a ordem
capitalista europeia, e Marx só conseguiu dar redação definitiva a uma reduzida
parcela de suas investigações. Assim é que, em 1859, veio a público a Crítica
da Economia Política. Seu texto está aqui precedido por dois documentos
doutrinários primordiais no universo do marxismo: o Prefácio e a Introdução.
No Prefácio,
além das informações curriculares já referidas, figura a mais condensada e
famosa síntese do materialismo histórico. A prioridade metodológica atribuída a
Economia Política tem sua explicação ontológica na conclusão de que nela reside
a anatomia da sociedade civil, cujo
conceito compreende a totalidade das relações materiais de vida. A dialética
entre forças produtivas e relações de produção, bem como entre base econômica e
superestrutura ideológica e institucional, determina a sucessão dos modos de
produção e das formações sociais. A sociedade burguesa é declarada forma
transitória de organização social – a última forma antagônica.
A Introdução
não fez parte do livro publicado, o que Marx justificou no Prefácio por não querer antecipar resultados ainda pendentes de
prova. Somente em 1903 viria a luz aquele texto inconcluso onde, no entanto, se
encontra a mais extensa e a única exposição sistemática sabre a questão do
método, na imensa literatura marxiana.
Podemos discernir três temas centrais nessa
dissertação metodológica.
O primeiro diz respeito ao objeto da Economia
Política. Costuma-se tomar por tal objeto a produção vista através de
categorias supra-históricas, validas para todas as épocas. A produção, no
entanto, é sempre social e sempre o resultado de um desenvolvimento histórico.
Cada época tem categorias específicas e, por isso, as chamadas determinações
gerais da produção, se abstraídas das categorias específicas, se reduzem a
tautologias.
Segue-se uma argumentação contra a separação
corrente entre produção e distribuição – a primeira considerada passível de
estudo científico, pois submetida a leis “naturais”, enquanto a segunda seria o
reino do arbítrio dos homens. Não obstante, produção, distribuição, circulação
e consumo são momentos· ou fases de um processo único. Não que, à maneira de
Hegel, devam ser reunidas numa identidade, em que tudo se confunde. Cumpre
compreendê-las, isto sim, enquanto momentos distintos e pressupostos umas das
outras, entrelaçadas e mutuamente determinantes. Se a produção é regida por
leis independentes do que os homens pensem ou queiram, a distribuição implica
que se distribui o que foi produzido e, por conseguinte, um modo de produção.
Por sua vez, a produção não se dá sem que os meios e objetos de trabalho sejam
apropriados e distribuídos de acordo com procedimentos, que só na aparência
podem ser tidos por arbitrários. Assim também com a circulação – que é o
prolongamento, no âmbito dos indivíduos, do que a distribuição realizou no
domínio dos agrupamentos sociais – e com o consumo. Este último já se contém na
produção como seu fim ideal, como seu acicate, mas, ao mesmo tempo, a produção
modela o consumo, determina-lhe o caráter especificamente humano, na medida em
que cria necessidades ao criar os objetos capazes de satisfazer tais
necessidades.
Se produção, distribuição, circulação e
consumo são pressupostos e determinantes umas das outras, cabe a produção a
determinação fundamental. É ela o ponto de partida sempre recorrente do
processo, sua razão de ser mais essencial, o resumo de todas as distintas
fases. Por isso mesmo, Marx chamara de modo de produção a organização social da
atividade econômica, criando um conceito axial para todo o seu sistema teórico.
O segundo tema da Introdução aborda o aspecto propriamente epistemológico da
metodologia. O processo cognoscitivo é examinado numa sequência de três
escalas, que já possuía tradição na história da filosofia. Tal sequência
triescalar remonta, pelo menos, a Nicolau de Cusa, escolástico do século XV.
Vamos reencontrá-la em Espinosa, com o teorema sobre os três gêneros do
conhecimento. Seria retomada pela filosofia clássica alemã, principalmente por
Kant, que a sistematizou numa concepção idealista subjetiva de categorias
transcendentais a priori. Partindo de
uma concepção também idealista, porém objetiva, Hegel rejeitou as categorias a priori e resolveu a sequência
cognoscitiva numa dialética racional, que supera as antinomias kantianas. Foi
de Hegel que Marx recebeu essa dialética do conhecimento e é com Hegel que
polemiza, quando enfoca o processo cognoscitivo do ponto de vista do
materialismo.
Não se trata de mera inversão de sinais, da
substituição sumária do idealismo pelo materialismo, porém de uma visão
profundamente inovadora. O concreto pensado não é o concreto real caótico
inicialmente captado pela intuição e pela representação, mas a unidade do
diverso, a sistematização de múltiplas abstrações unilaterais previamente
refinadas e elaboradas a partir da intuição empírica. O concreto-totalidade
supera o abstrato unilateral, do qual parte de modo imediato (e não do
empírico). No entanto, ao contrário de Hegel, para o qual o concreto pensado é
autocriação do conceito, de fora e por cima da intuição e da representação,
Marx insiste em que o ponto de partida do processo cognoscitivo está no
concreto real. Este constitui o objeto sobre o qual o pensamento exerce sua
atividade criadora específica, que é a atividade teórica. Assim, o conhecimento
percorre escalas necessárias do intuitivo empírico ao abstrato e deste ao concreto
pensado, que retorna, enquanto totalidade de múltiplas determinações, ao
concreto real.
O terceiro tema diz respeito a organização
expositiva. Qual a ordem em que devem ser expostas as categorias para que
formem um sistema explicativo e estruturado? Essa ordem não pode ser histórica, porém lógica. Ou seja, as categorias não se situam na exposição
sistemática conforme sua sucessão na história, mas de acordo com as conexões
internas determinadas por sua essência conceitual, no quadro da sociedade
burguesa. Marx, contudo, é taxativo na afirmação da relação imanente entre o
histórico e o lógico, constituindo cada qual uma perspectiva diferente do mesmo
processo real. Por vezes extremamente sutil, revelando a delicadeza com que
enfrenta o assunto, sua argumentação, se afirma tal relação, dirige-se também
contra a identificação tão redutora do lógico ao histórico. Justamente a
identificação redutora em que incorreria Engels, ao escrever uma de suas
resenhas sobre a Crítica da Economia
Política, dando ao pensamento marxiano uma interpretação historicista
certamente inadequada.”
“Marx apresenta, pela primeira vez, sua
descoberta acerca da diferença entre valor
do trabalho e valor da força de
trabalho. Descoberta crucial para o sistema da Economia Política marxista,
uma vez que permitirá resolver as contradições discursivas legadas pelos
clássicos e que os ricardianos de esquerda não conseguiram superar.
Ao contrário da aparência suscitada pelo
funcionamento do regime capitalista, e que adquire a consistência de dogma
ideológico tanto para os patrões quanta para os operários, o que o salário paga
não é o valor do trabalho, mas o valor da força de trabalho. O valor da força
de trabalho se determina como o das demais mercadorias, ou seja, pelo tempo de
trabalho socialmente necessária para sua produção. Ora, a produção da força de
trabalho se dá mediante o conjunto de bens que o operário precisa consumir a
fim de restabelecer, a cada dia, suas aptidões físicas e intelectuais e ainda
sustentar sua família, que inclui uma fração da futura geração de operários.
Contratado pelo capitalista para trabalhar determinado número de horas por dia,
o operário reproduz, numa parte da jornada, o valor da sua força de trabalho,
valor que o patrão lhe retribui sob forma de salário. Mas o restante da jornada
constitui trabalho excedente sem retribuição, criador de sobrevalor ou
mais-valia, da qual o patrão se apropria. A apropriação da mais-valia – da qual
o lucro industrial e comercial, os juros e a renda da terra representam formas
particulares – não se processa mediante violação da lei do valor, sob o aspecto
de determinante da troca de equivalentes, porém no seu estrito cumprimento.”
“A grandeza do salário compõe-se de dois
elementos: o físico e o histórico-social. O primeiro diz respeito aos bens de
primeira necessidade imprescindíveis a sobrevivência do operário e da sua
família. O segundo inclui aqueles bens que, com variações para cada país, se
incorporaram por tradição ao padrão de vida dos trabalhadores, elevando-o acima
do limite físico mínimo. Embora com menos clareza e diversas restrições, isso
já fora dito por Ricardo. Este, porém, só considerou a incidência sobre o nível
dos salários das variáveis população, oferta e procura de mão-de-obra, preço
dos alimentos e valor do dinheiro. Marx incorporou a sua argumentação as três
últimas variáveis, deu a variável população um tratamento completamente diverso
e acrescentou variáveis como as diferenças entre as fases do ciclo econômico e,
fundamentalmente, a luta de classes. Sob este último aspecto, retomou, com uma
nova concepção do processo econômico, a linha seguida por Hodgskin e outros
ricardianos de tendência socialista.
Se o elemento físico do salário não pode ser
baixado, sob pena de incapacitação dos operários para o trabalho e até de sua
extinção, o elemento histórico-social é suscetível de alterações, que o
expandem ou contraem. Às vezes, tais alterações são espontâneas, acompanhando
as fases de auge ou de depressão do ciclo econômico, quando cresce ou definha a
demanda de mão-de-obra. Mas também derivam, a qualquer momento, da relação das
forças de classe, da disputa entre os interesses dos capitalistas contrapostos
aos interesses dos operários. Os primeiros tendem a diminuição do salário real
até reduzi-lo ao elemento físico, enquanto, simultaneamente, procuram prolongar
a jornada e aumentar a intensidade do trabalho até onde o permita a resistência
vital dos operários. Da sua parte, os operários lutam para aumentar seus
salários reais e obter reduções na duração da jornada e na intensidade do
trabalho. Baseado em estatísticas, Marx afirmou enfaticamente que essa luta dos
trabalhadores é capaz de alcançar e já alcançou êxitos, em especial na
Inglaterra; que a classe operária pode conquistar aumentos de salários e
melhorias das condições de vida ainda no regime capitalista. Enquanto Ricardo,
consequente com sua consciência burguesa, considerou indesejável a
interferência legislativa nas questões salariais e recomendou que se
resolvessem pela livre concorrência no mercado, Marx indicou à classe operária
a necessidade de se bater por essa interferência, de tal maneira que se
fixassem na legislação suas conquistas arrancadas ao capital.
Assim, não há uma férrea lei econômica dos
salários, que os empurra ao mínimo vital, nem a condição operária sob o
capitalismo implica a fatalidade da miséria cada vez mais acentuada. Não
obstante, o que a classe operária pode conquistar no regime capitalista se
submete as limitações e a precariedade impostas pelos mecanismos imanentes
desse regime. Os operários não devem iludir-se acerca de suas possibilidades
objetivas. A essa altura de sua argumentação, Marx apresentou, em termos
sucintos, sua tese sobre a superpopulação relativa ou exército industrial de
reserva como criação da dinâmica do próprio capitalismo, independendo da
ocorrência de crescimento vegetativo da população. Impelidos pela concorrência,
os empresários substituem operários por máquinas e elevam a composição orgânica
do capital. Daí resulta que aumenta continuamente a grandeza do capital em
relação a cada operário ocupado. Em consequência, a classe operária se vê em
situação cada vez mais desvantajosa diante do patronato, sob constante ameaça
de desemprego. O que a obriga a lutar com maior vigor ainda por melhores
condições de vida, sem o que não ganhará consciência de que seu objetivo
superior deve ser a reconstrução econômica da sociedade, com a abolição do
próprio sistema de trabalho assalariado.”
“Valendo-se do recurso metafórico, o conceito
de fetichismo representa uma versão concretizada do conceito de alienação, que
Marx, aliás, continuou a empregar, mas despido de conotações especulativas e em
raras passagens.
Uma vez lançada ao mercado, a mercadoria
adquire vida independente de seu criador. Ao contrário, o destino do criador
vai depender do que acontecerá à sua criação, a qual, embora coisa banal de uso
comum, assume a feição de fetiche com poderes misteriosos. Tanto pode trazer
felicidade, ao ser vendida com lucro, como encalhar no depósito e arruinar seu
produtor. No fetichismo da mercadoria já está latente o fetichismo do capital.
A análise do fenômeno começa pelo capital a
juros. Este aparece como a forma por excelência, a forma pura do capital: é
dinheiro que produz um rendimento específico – os juros – sem que o seu proprietário
precise assumir qualquer responsabilidade produtiva. Pode dar-se até que o
dinheiro seja emprestado a um mutuário que o gastará no consumo pessoal
improdutivo. Para o mutuante tanto faz, porque, assim mesmo, terá direito ao
recebimento de juros e o seu dinheiro funcionará para ele como capital,
conquanto não ingresse no processo produtivo. Os juros ganham a aparência de
criação do dinheiro como tal, sem qualquer relação com a produção efetiva de
mais-valia.
O fetichismo do capital a juros se prolonga
no fetichismo do capital industrial. Se o dinheiro rende juros sem exigir a
participação do seu proprietário em algum empreendimento produtivo, o lucro
industrial pode, então, dar a impressão de resultar do trabalho de
administração executado pelo empresário. Ora, Marx reconhece que o trabalho de
administração é um trabalho produtivo, só que, mesmo quando o exerce e não o
delega a um gerente, não é a esse título que o empresário embolsa o lucro
industrial. Já Adam Smith e Ricardo haviam afirmado expressamente não ter o
lucro outra fonte senão a do valor excedente criado pelos trabalhadores. Por
isso, tanto mais criticável a posição de J. S. Mill, que se desvia dos
fundamentos ricardianos para explicar o lucro industrial como remuneração do
trabalho de administração, rendendo-se a aparência fetichista do capital
industrial.
Se o lucro industrial adquire a aparência de
remuneração do trabalho do empresário, o lucro comercial pode ser, com
justificação não menos idônea, atribuído ao processo de circulação em si mesmo
e não a criação da mais-valia no processo de produção. Por fim, mistifica-se a
origem da renda da terra, cujo caráter de sobreproduto criado por trabalhadores
agrícolas é obscurecido para que seja vista como mero resultado da fecundidade
do solo, dádiva da natureza ao proprietário da terra. Surge daí uma categoria
como a de preço da terra, tão
irracional quanta a de preço do dinheiro, medido pela taxa de juros, e a de
preço do trabalho, medido pelo salário.
Completa-se, por conseguinte, um circuito de
enfeitiçamento, que imputa fantasticamente a coisas inertes – o dinheiro e a
terra – um poder de criação que lhes é alheio. Mas tal enfeitiçamento não é
arbitrário, não vem de invenção maliciosa, pois emana das próprias relações de
produção capitalistas, das quais constitui aparência ideológica necessária. Por
isso mesmo, essa aparência mistificadora é aceita com a maior naturalidade
pelos agentes econômicos práticos, que se guiam por ela na atividade cotidiana.
Semelhante naturalidade já não se justifica
no caso de economistas, com pretensões científicas. Os economistas clássicos –
Quesnay, Smith, Ricardo, Sismondi – empenharam-se em desvendar as relações de
classe inerentes a produção e a distribuição do produto social. Os seus
sucessores, que Marx crismou de vulgares – os Say, Bastiat e Roscher –,
assumiram a aparência fetichista como sendo, não o disfarce superficial da
realidade, porém sua essência. E, assim, por analogia com a religião cristã,
difundiram a fórmula trinitária do capital criador de juros, da terra criadora
de renda e do trabalho criador de salário. Ciência com os clássicos, a Economia
Política, ao se vulgarizar, converteu-se em exercício apologético.”
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