Editora:
Brasiliense
ISBN: 978-85-1101-023-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 88
“A teoria é
necessária e nos ajuda muito, mas por si só não fornece os critérios
suficientes para estarmos seguros de agir com acerto. Nenhuma teoria pode ser
tão boa a ponto de nos evitar erros. A gente depende, em última análise, da
prática – especialmente da prática social
– para verificar o maior ou menor acerto do nosso trabalho com os conceitos (e
com as totalizações).”
“Na investigação
científica da realidade, começamos trabalhando com conceitos que são, ainda,
sínteses muito abstratas. Marx dá o exemplo da população. A população é um
todo, mas o conceito de população permanece vago se não conhecemos as classes
de que a população se compõe. Só podemos conhecer concretamente as classes,
entretanto, se estudarmos os elementos sobre os quais elas se apoiam, na
existência delas, tais como o trabalho assalariado, o capital etc. Tais
elementos, por sua vez, supõem o comércio, a divisão do trabalho, os preços
etc. “Se começo pela população, portanto, tenho uma representação caótica do
conjunto; depois, através de uma determinação mais precisa, por meio de
análises, chego a conceitos cada vez mais simples. Alcançado tal ponto, faço a
viagem de volta e retorno à população. Dessa vez, contudo, não terei sob os
olhos um amálgama caótico e sim uma totalidade rica em determinações, em
relações complexas.” Esse texto de Marx é de grande interesse para nós. O ponto
de partida – observemos – não é um conceito rudimentar: é uma expressão que
designa, ainda confusamente, uma realidade complicada. A análise, portanto, só
pode ser orientada com base em uma síntese (mesmo precária) anterior. Uma certa
compreensão do todo precede a própria possibilidade de aprofundar o
conhecimento das partes.
Mas o texto ainda
diz mais: por análise, eu decomponho e recomponho o conhecimento indicado na expressão
que me serviu de ponto de partida. No fim, realizada a viagem do mais complexo
(ainda abstrato) ao mais simples e feito o retorno do mais simples ao mais
complexo (já concreto), a expressão população passa a ter um conteúdo bem
determinado. O concreto, portanto, é o resultado
de um trabalho. “O concreto” – insiste Marx – “é concreto porque é a
síntese de várias determinações diferentes, é unidade na diversidade”.
A concepção de
Marx, segundo a qual o conhecimento não é um ato e sim um processo,
desenvolveu-se em polêmica contra a concepção irracionalista. Os irracionalistas consideram a intuição um instrumento privilegiado do
conhecimento humano; para eles, o que é “sacado” intuitivamente já possui valor
de verdade, de modo que não existe nenhum motivo para nós trilharmos o
trabalhoso caminho indicado por Marx: a impressão genérica obtida no ponto de
partida já nos basta. O irracionalismo desestimula o ser humano a realizar o
paciente esforço de ir além da aparência, em busca da essência dos fenômenos. E
as “totalidades” dos irracionalistas permanecem um tanto vazias, não têm um
“recheio” definido.
A dialética é
muito mais exigente do que o irracionalismo. Para reconhecer as totalidades em
que a realidade está efetivamente articulada (em vez de inventar totalidades e
procurar enquadrar nelas a realidade), o pensamento dialético é obrigado a um
paciente trabalho: é obrigado a identificar, com esforço, gradualmente, as
contradições concretas e as mediações específicas que constituem o “tecido” de
cada totalidade, que dão “vida” a cada totalidade.
“A dialética” –
observa Carlos Nelson Coutinho – “não pensa o todo negando as partes, nem pensa
as partes abstraídas do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes
(a diferença entre elas: o que faz de uma obra de arte algo distinto de um
panfleto político) como a união entre elas (o que leva a arte e a política a se
relacionarem no seio da sociedade enquanto totalidade).”
“Para que o nosso
conhecimento avance e o nosso laborioso (e interminável) descobrimento da
realidade se aprofunde – quer dizer: para podermos ir além das aparências e
penetrar na essência dos fenômenos – precisamos realizar operações de síntese e
de análise que esclareçam não só a dimensão imediata como também, e sobretudo,
a dimensão mediata delas. (...)
As mediações,
entretanto, obrigam-nos a refletir sobre outro elemento insuprimível da
realidade: as contradições. (...)
As conexões
íntimas que existem entre realidades diferentes criam unidades contraditórias. Em tais unidades, a contradição é
essencial: não é um mero defeito do raciocínio. Num sentido amplo, filosófico, que
não se confunde com o sentido que a lógica confere ao termo, a contradição é reconhecida pela dialética
como princípio básico do movimento pelo qual os seres existem. A dialética não
se contrapõe à lógica, mas vai além da lógica, desbravando um espaço que a
lógica não consegue ocupar.
Para desbravar
esse novo espaço, a dialética modifica os instrumentos conceituais de que
dispõe: passa a trabalhar, frequentemente, com determinações reflexivas e procura promover uma “fluidificação dos
conceitos”.”
“Engels chegou à
conclusão de que as leis gerais da dialética (comuns tanto à história humana
como à natureza) podiam ser reduzidas, no essencial, a três:
1) lei da passagem
da quantidade à qualidade (e vice-versa);
2) lei da
interpenetração dos contrários;
3) lei da negação
da negação.
A primeira lei se
refere ao fato de que, ao mudarem, as coisas não mudam sempre no mesmo ritmo; o
processo de transformação por meio do qual elas existem passa por períodos
lentos (nos quais se sucedem pequenas alterações quantitativas) e por períodos
de aceleração (que precipitam alterações qualitativas, isto é, “saltos”,
modificações radicais). Engels dá o exemplo da água que vai esquentando, até
alcançar cem graus centígrados e ferver, quando se precipita a sua passagem do
estado líquido ao estado gasoso.
A segunda lei é
aquela que nos lembra que tudo tem a ver com tudo, os diversos aspectos da
realidade se entrelaçam e, em diferentes níveis, dependem uns dos outros, de
modo que as coisas não podem ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem
levarmos em conta a conexão que cada uma delas mantém com coisas diferentes.
Conforme as conexões (quer dizer, conforme o contexto em que ela esteja situada), prevalece, na coisa, um lado
ou o outro da sua realidade (que é intrinsecamente contraditória). Os dois
lados se opõem e, no entanto, constituem uma unidade (e por isso essa lei já
foi também chamada de unidade e luta dos contrários).
A terceira lei dá
conta do fato de que o movimento geral da realidade faz sentido, quer dizer, não é absurdo, não se esgota em
contradições irracionais, ininteligíveis, nem se perde na eterna repetição do
conflito entre teses e antíteses, entre afirmações e negações. A afirmação
engendra necessariamente a sua negação, porém a negação não prevalece como tal:
tanto a afirmação como a negação são superadas e o que acaba por prevalecer é
uma síntese, é a negação da negação.”
“O húngaro Georg
Lukács (1885-1971) advertiu: “Não é a predominância dos motivos econômicos na explicação
da história que distingue decisivamente o marxismo da ciência burguesa: é o
ponto de vista da totalidade”. Somente o ponto de vista da totalidade, segundo
Lukács, permite à dialética enxergar, por trás da aparência das “coisas”, os processos e inter-relações de que se compõe a realidade. Somente o ponto de vista
da totalidade permite que se veja no real um “jorrar ininterrupto de novidade
qualitativa”.
O italiano Antonio
Gramsci (1891-1937) caracterizou o marxismo como um “historicismo absoluto”. Para
ele, o fatalismo determinista pode se tornar uma força de resistência moral,
pode ajudar o revolucionário a perseverar na luta, pode ajudar a organização
revolucionária a manter a sua coesão interna nos períodos marcados por uma
sucessão de graves derrotas. Nesse sentido, Gramsci se dispõe até a fazer-lhe
um “elogio fúnebre”, reconhecendo a função histórica do determinismo, porém
“enterrando-o com todas as honras”, pois se o determinismo persistir
dificultará sempre o desenvolvimento do espírito crítico e da criatividade entre
os revolucionários.
O materialismo
histórico de Marx e Engels é constatativo e não normativo: ele reconhece que,
nas condições de insuficiente desenvolvimento das forças produtivas humanas e
de divisão da sociedade em classes, a economia tem imposto, em última análise,
opções estreitas aos homens que fazem a história. Isso não significa que a
economia seja o sujeito da história, que a economia vai dominar eternamente os
movimentos do sujeito humano. Ao contrário: a dialética aponta na direção de
uma libertação mais efetiva do ser humano em relação ao cerceamento de
condições econômicas ainda desumanas.”
O alemão Walter
Benjamin (1892-1940), aliás, lembrou que a história, tal como ela veio se
desenrolando até o presente, está impregnada de violência, de opressão, de
barbárie; e é exatamente por isso que a tarefa do teórico do materialismo
histórico não pode ser pensar uma espécie de prolongamento “natural” dessa história,
não pode ser promover a continuidade daquilo que essa história produziu,
limitando-se a transmitir seus produtos de mão em mão. Um espírito dialético – escreveu
Benjamin, através de uma sugestiva imagem – insiste em “escovar a história a
contrapelo”.”
“Mesmo os
indivíduos mais empenhados na luta pela transformação da sociedade se
confundem, com frequência, quando falta coesão à unidade deles. A falta de coesão diminui, para eles, as
possibilidades de fazerem história de
modo consciente. Diminui as possibilidades de se organizarem e de se reconhecerem
na ação da comunidade organizada a que se integraram.
O indivíduo
isolado, normalmente, não pode fazer história: suas forças são muito limitadas.
Por isso, o problema da organização capaz de levá-lo a multiplicar suas
energias e ganhar eficácia é um problema crucial para todo revolucionário. É
preciso que a organização não se torne opaca para o indivíduo, que ele não se
sinta perdido dentro dela; é preciso que ela não o reduza a uma situação de
impotência contemplativa ou a um ativismo
cego. Se não, o indivíduo fica impossibilitado de atuar revolucionariamente
e se sente alienado na atividade coletiva.
A organização deixa de ser o lugar onde suas forças se multiplicam e passa a
ser um lugar onde elas são neutralizadas ou instrumentalizadas por outras forças,
orientadas em função de outros objetivos. (Lembremos a frase de Sartre colocada
como epígrafe no começo deste livrinho: “A dialética, como lógica viva da ação,
não pode aparecer a uma razão contemplativa. [...] No curso da ação, o
indivíduo descobre a dialética como transparência racional enquanto ele a faz,
e como necessidade absoluta enquanto ela lhe escapa, quer dizer, simplesmente,
enquanto os outros a fazem”.)”
“A vida social,
nos tempos atuais, já pressupõe a existência de indivíduos que alcançaram um razoável
grau de autonomia. Algumas comunidades alienadas ainda conseguem, em
determinadas circunstâncias, absorver e diluir grande número de indivíduos (fanatizados)
no interior delas; mas já avançou bastante nas pessoas a consciência de que
cada uma delas tem responsabilidades em relação às outras (e à sociedade em
geral), porém possui igualmente responsabilidades em relação a si mesma.
A experiência vem
ensinando a um número cada vez maior de indivíduos que há problemas que
dependem da pessoa e somente dela e cuja solução não pode ser transferida para
nenhuma organização social. Como escreveu o marxista tcheco Karel Kosik em sua Dialética do concreto: “Cada indivíduo –
pessoalmente e sem que ninguém possa substituí-lo – tem de formar uma cultura e
viver a sua vida”.
Essa compreensão
que os indivíduos estão adquirindo cada vez mais concretamente do seu valor intrínseco
não enfraquece neles o reconhecimento da necessidade de se associarem, mas cria
importantes exigências, novas, quanto ao caráter das associações.
Por um lado, há um
número crescente de indivíduos com maior riqueza e complexidade interior; e esses
indivíduos experimentam uma necessidade mais imperiosa de superar seus limites
como indivíduos, uma necessidade mais imperiosa de se completarem em alguma forma
de existência comunitária, que os
aproxime uns dos outros (sem prejuízo da individualidade deles). Por outro
lado, a “racionalização” utilitária do capitalismo e o espírito exageradamente
competitivo estimulado pelo mercado agravam muito as contradições entre os
homens, diminuem a importância das velhas formas tradicionais de comunidade
(família, vizinhança antiga), criam situações de solidão, desenvolvem
frustrações, espalham muita agressividade e insegurança.
A falta de uma
compreensão dialética desses problemas e a avidez dos indivíduos pela comunidade (por formas de convivência
mais profundas) levam as pessoas, com frequência, a aderirem, apaixonadamente, a
sucedâneos de formas de existência autenticamente comunitárias (quer dizer,
levam-nas a se integrarem em pseudocomunidades,
em caricaturas de comunidades). É o
que acontece, por exemplo, com algumas pessoas que passam a militar
fanaticamente em organizações de tipo fascista, que se tornam propagandistas em
tempo integral de seitas religiosas “salvacionistas”, que viram “formigas” num
“formigueiro” qualquer. E é também um fenômeno que se manifesta, com gravidade
bem menor, no caso de certos grupos de jovens que se irmanam na “curtição” de
uma mesma diversão ou de uma moda passageira intensamente vivida.
A falta da
dialética e o anseio pela comunidade,
combinados, podem igualmente influir – e com frequência influem mesmo – no comportamento
dos revolucionários. Antes de poder transformar a sociedade na qual nasceu e
atua, o revolucionário é em boa parte formado por ela, de modo que seria
ingenuidade supor que ele possa permanecer completamente imune aos seus
venenos. Muitas, muitíssimas vezes, as ideias revolucionárias se combinam, na
mesma pessoa, com sentimentos bastante reacionários e com preconceitos surpreendentemente
conservadores. Por isso, não são raros os casos de revolucionários que tendem a
transformar a organização em que desenvolvem suas atividades políticas numa
espécie de ídolo sagrado, que não
pode ser submetido a críticas profundas e que deve merecer todos os
sacrifícios. Essa atitude, alienada, causa
graves prejuízos tanto aos indivíduos como à organização: os revolucionários
que “fetichizam” a organização em que atuam deixam de contribuir para que ela
se renove e acabam facilitando o agravamento de suas deformações. Na medida em
que não aprofundam suficientemente nem o espírito crítico nem a luta permanente
pela democratização de todas as relações humanas, esses indivíduos mostram ser,
em última análise, maus revolucionários.”
“A dialética não
dá “boa consciência” a ninguém. Sua função não é tornar determinadas pessoas
plenamente satisfeitas com elas mesmas. O método dialético nos incita a
revermos o passado à luz do que está acontecendo no presente; ele questiona o
presente em nome do futuro, o que está sendo em nome do que “ainda não é”
(Ernst Bloch). Um espírito agudamente dialético como o poeta Bertolt Brecht
disse uma vez: “O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar “tal como
está”. Essa consciência da inevitabilidade da mudança e da impossibilidade de
escamotear as contradições incomoda os beneficiários de interesses constituídos
e os dependentes de hábitos mentais ou de valores cristalizados.
A dialética
intranquiliza os comodistas, assusta os preconceituosos, perturba
desagradavelmente os pragmáticos ou utilitários. Para os que assumem,
consciente ou inconscientemente, uma posição de compromisso com o modo de
produção capitalista, a dialética é “subversiva”, porque demonstra que o
capitalismo está sendo superado e incita a superá-lo. Para os revolucionários românticos
de ultraesquerda, a dialética é um elemento complicador utilizado por
intelectuais pedantes, um método que desmoraliza as fantasias irracionalistas, desmascara
o voluntarismo e exige que as mediações do real sejam respeitadas pela ação
revolucionária.
Para os
tecnocratas, que manipulam o comportamento humano (mesmo em nome do
socialismo), a dialética é a teimosa rebelião daquilo que eles chamam de
“fatores imponderáveis”: o resultado da insistência do ser humano em não ser
tratado como uma máquina.
É verdade que, em
muitos casos, o que tem sido apresentado como dialética não tem passado de mera
instrumentalização de algumas ideias de Hegel ou de Marx, mal assimiladas e
ainda mais mal utilizadas. Mas a reação potencialmente mais eficaz contra essa
deformação é a que provém da autêntica dialética, que está sempre alerta para
enfrentar as imposturas cometidas em seu nome, com o espírito rebelde que lhe é
peculiar. A dialética – observa o filósofo brasileiro Gerd Bornheim – “é
fundamentalmente contestadora”. Ninguém conseguirá jamais domesticá-la. Em sua
inspiração mais profunda, ela existe tanto para fustigar o conservadorismo dos
conservadores como para sacudir o conservadorismo dos próprios revolucionários.
O método dialético não se presta para criar cachorrinhos amestrados. Ele é,
como disse o argentino Carlos Astrada, “semente de dragões”.
Os dragões
semeados pela dialética vão assustar muita gente pelo mundo afora, talvez
causem tumulto, mas não são baderneiros inconsequentes; a presença deles na
consciência das pessoas é necessária para que não seja esquecida a essência do
pensamento dialético, enunciada por Marx na décima primeira tese sobre Feuerbach:
“Os filósofos têm se limitado a interpretar
o mundo; trata-se, no entanto, de transformá-lo.”
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