Editora: Loyola
ISBN: 978-85-15-00679-3
Tradução: Adail
Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 352
Sinopse: Ver Parte I
“Marx começa O Capital com uma análise da mercadoria, das coisas
cotidianas (comida, abrigo, roupa etc.) que consumimos no curso da nossa própria
reprodução. Mas a mercadoria é, adverte ele, “uma coisa misteriosa”, porque incorpora
simultaneamente um valor de uso (ela atende a um desejo ou necessidade particular)
e um valor de troca (posso usá-la como objeto de barganha para conseguir outras
mercadorias). Essa dualidade sempre torna a mercadoria ambígua para nós;
devemos consumi-la ou trocá-la? Mas, à medida que as relações de troca
proliferam e se formam os mercados de fixação de preços, uma mercadoria é
cristalizada tipicamente como dinheiro. Com o dinheiro, o mistério da
mercadoria assume uma nova dimensão, porque o valor de uso do dinheiro está em
sua representação do mundo do trabalho social e do valor de troca. O dinheiro
lubrifica a troca, mas, sobretudo, se torna o meio pelo qual comparamos e
avaliamos tipicamente, tanto antes como depois do fato da troca, o valor de
todas as mercadorias. Em suma, como a maneira pela qual atribuímos valor às
coisas é importante, uma análise da forma dinheiro e das consequências advindas
do seu uso tem interesse fundamental.
O advento de uma economia do dinheiro, alega
Marx, dissolve os vínculos e relações que compõem as comunidades “tradicionais”,
de modo que o “dinheiro se torna a verdadeira comunidade”. Passamos de uma
condição social em que dependemos de maneira direta de pessoas a quem
conhecemos pessoalmente para uma situação em que dependemos de relações
impessoais e objetivas com outras pessoas. Com a proliferação das relações de
troca, o dinheiro aparece cada vez mais como “um poder exterior aos produtores
e independente deles”, razão pela qual o que “originalmente surge como meio de
promoção da produção torna-se uma relação alheia” a eles. A preocupação com o
dinheiro domina os produtores. O dinheiro e a troca no mercado põem um véu, “mascaram”
as relações sociais entre as coisas. Essa condição é denominada por Marx “fetichismo
da mercadoria”. Trata-se de uma das mais importantes percepções marxianas,
porque apresenta o problema da interpretação das relações reais, mas mesmo
assim superficiais, que podemos observar prontamente no mercado em termos
sociais apropriados.
As condições de trabalho e de vida, a
alegria, a raiva ou frustração que estão por trás da produção de mercadorias,
os estados de ânimo dos produtores, tudo isso está oculto de nós ao trocarmos
um objeto (o dinheiro) por outro (a mercadoria). Podemos tomar o nosso café da
manhã sem pensar na miríade de pessoas envolvidas em sua produção. Todos os
vestígios de exploração são obliterados no objeto — não há impressões digitais
da exploração no pão de cada dia. Não podemos dizer, a partir da contemplação
de um objeto no supermercado, que condições de trabalho estiveram por trás de
sua produção. O conceito de fetichismo explica como, em condições de
modernização capitalista, podemos ser tão objetivamente dependentes de “outros”
cuja vida e aspirações permanecem tão totalmente opacas para nós. A metateoria
de Marx procura derrubar essa máscara fetichista e entender as relações sociais
que estão por trás dela. Ele por certo acusaria os pós-modernistas que
proclamam a “impenetrabilidade do outro” como seu credo de aberta cumplicidade
com o fato do fetichismo e de indiferença aos significados sociais subjacentes.
O interesse das fotografias de Cindy Sherman (ou, quanto a isso, qualquer
romance pós-moderno) é o fato de se concentrarem em máscaras sem um comentário
direto sobre sentidos sociais a não ser quanto à própria atividade de mascaramento.
Mas é possível aprofundar a análise do
dinheiro. Para realizar suas funções com eficácia, alega Marx, ele deve ser
substituído por meros símbolos de si mesmo (moedas, símbolos, papel-moeda,
crédito), o que o leva a ser considerado um mero símbolo, uma “ficção
arbitrária” sancionada pelo “consentimento universal da humanidade”. Mas é
através dessas “ficções arbitrárias” que todo o mundo do trabalho social, da
produção e do trabalho duro diário é representado. Na ausência do trabalho
social, o dinheiro de nada valeria; mas é somente através do dinheiro que o
trabalho social pode ser representado.
Os poderes mágicos do dinheiro recebem o
acréscimo da maneira como os proprietários “emprestam sua voz” às mercadorias
ao colarem uma etiqueta de preço nelas, apelando para “sinais cabalísticos” com
nomes como libras, dólares, francos. Logo, embora o dinheiro seja o
significante do valor do trabalho social, há o perigo perpétuo de que o
significante se torne o objeto da ambição e do desejo humanos (o entesourador,
o miserável avaro etc.). Essa probabilidade se torna certeza quando se
reconhece que o dinheiro, de um lado um “nivelador radical” de todas as outras
formas de distinção social, é ele mesmo uma forma de poder social que pode ser
apropriada como “o poder social de pessoas privadas”. A sociedade moderna,
conclui Marx, “logo depois do seu nascimento, puxou Plutão pelos cabelos da
cabeça, retirando-o das entranhas da terra, saudando o ouro como o seu Santo
Graal, como a encarnação brilhante do próprio princípio de sua própria vida”.
Será que o pós-modernismo assinala uma reinterpretação ou um reforço do papel
do dinheiro como o objeto próprio do desejo? Baudrillard descreve a cultura
pós-moderna como “cultura do excremento”, e dinheiro = excremento tanto em
Baudrillard como em Freud (alguns vestígios desse sentimento estão presentes em
Marx). As preocupações pós-modernas com o significante e não com o significado,
com o meio (o dinheiro) e não com a mensagem (o trabalho social), com a ênfase
na ficção e não na função, nos signos em vez das coisas, antes na estética do
que na ética, sugerem um reforço, e não uma transformação, do papel do dinheiro
descrito por Marx.
Contudo, na qualidade de produtores de mercadorias
em busca de dinheiro, dependemos das necessidades e da capacidade de compra dos
outros. Em consequência, os produtores têm um permanente interesse em cultivar “o
excesso e a intemperança” nos outros, em alimentar “apetites imaginários” a
ponto de as ideias sobre o que constitui a necessidade social serem
substituídas pela “fantasia, pelo capricho e pelo impulso”. O produtor
capitalista tem cada vez mais “o papel de alcoviteiro” entre os consumidores e
seu sentido de necessidade, excitando neles “apetites mórbidos, à espreita de
cada uma de suas fraquezas — tudo isso para que possa exigir o numerário pelo
seu serviço de amor”. O prazer, o lazer, a sedução e a vida erótica são
trazidos para o âmbito do poder do dinheiro e da produção de mercadorias. Portanto,
o capitalismo “produz, de um lado, a sofisticação das necessidades e dos seus
meios, e, de outro, uma bestial barbarização, uma completa, brutal e abstrata simplificação
da necessidade” (Marx, Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, 1964, p. 148). A propaganda e a comercialização destroem todos os
vestígios da produção em suas imagens, reforçando o fetichismo que surge
automaticamente no curso da troca no mercado.
Além disso, o próprio dinheiro, como
representação suprema do poder social na sociedade capitalista, se torna objeto
de luxúria, de ambição e de desejo. Mas também nesse plano deparamos com duplos
sentidos. O dinheiro confere o privilégio de exercer poder sobre outros — podemos
comprar seu tempo de trabalho ou os serviços que oferecem, e até criar relações
sistemáticas de domínio de classes exploradas apenas com o controle sobre o
poder do dinheiro. Na verdade, o dinheiro funde o político e o econômico numa
genuína economia política de avassaladoras relações de poder (um problema que
os microteóricos do poder como Foucault evitam sistematicamente e que os
teóricos macrossociais como Giddens — com a sua divisão estrita entre fontes
alocativas e autoritárias de poder — não conseguem apreender). As linguagens
materiais comuns do dinheiro e da mercadoria fornecem uma base universal no
capitalismo de mercado para ligar todos a um sistema idêntico de avaliação do
mercado e, assim, promover a reprodução da vida social através de um sistema
objetivo de ligação social. Mas, nessas restrições amplas, estamos “livres”,
por assim dizer, para desenvolver à nossa própria maneira nossa personalidade e
nossas relações, nossa “alteridade”, e até para forjar jogos de linguagem
grupais, desde, é claro, que tenhamos dinheiro bastante para viver
satisfatoriamente. O dinheiro é um “grande nivelador e cínico”, um poderoso
solapador das relações sociais fixas e um grande “democratizador”. Como poder
social passível de ser detido por pessoas individuais, ele forma a base de uma
liberdade individual muito ampla, uma liberdade que pode ser empregada no nosso
desenvolvimento como indivíduos livres-pensadores, sem referência aos outros. O
dinheiro unifica precisamente através de sua capacidade de acomodar o individualismo,
a alteridade e uma extraordinária fragmentação social.”
“Mas Marx avança ainda mais. A conversão do
trabalho em trabalho assalariado significa “a separação entre o trabalho e o
seu produto, entre a força de trabalho subjetiva e as condições objetivas do
trabalho” (Capital, 1: 3). Trata-se de um tipo bem distinto de troca de mercado. Os
capitalistas, ao comprar força de trabalho, tratam-na necessariamente em termos
instrumentais. O trabalhador é visto antes como uma “mão” do que como pessoa
inteira (para usar o comentário satírico de Dickens em Hard Times), e o
trabalho contribuído é um “fator” (observe-se a reificação) de produção. A
compra de força de trabalho com dinheiro dá ao capitalista certos direitos de
dispor do trabalho dos outros sem considerar necessariamente o que estes possam
pensar, precisar ou sentir. A onipresença dessa relação de domínio de classe,
compensada somente na medida em que os trabalhadores lutem ativamente para
afirmar seus direitos e exprimir seus sentimentos, sugere um dos princípios
fundadores sobre os quais a própria ideia de “alteridade” é produzida e
reproduzida de maneira contínua na sociedade capitalista. O mundo da classe
trabalhadora torna-se o domínio do “outro”, tornado necessariamente opaco e
potencialmente não conhecível em virtude do fetichismo da troca de mercado. Eu
ainda acrescentaria que, se já houver na sociedade membros (mulheres, negros,
povos colonizados, minorias de todo tipo) que possam ser conceituados prontamente
como o outro, a união da exploração de classe com o sexo, a raça, o
colonialismo, a etnicidade etc. pode produzir toda espécie de resultados
desastrosos. O capitalismo não inventou “o outro”, mas por certo fez uso dele e
o promoveu sob formas dotadas de um alto grau de estruturação.”
“A burguesia “rompeu impiedosamente os
vínculos feudais heterogêneos que ligavam o homem aos seus ‘superiores naturais’
e não deixou outro nexo entre o homem e o homem além do Insensível ‘pagamento
em dinheiro’. ... [Ela] privou do seu halo toda ocupação até então honrada e
encarada com reverência. Ela converteu o médico, o advogado, o sacerdote, o
poeta, o homem de ciência em seus trabalhadores assalariados” (O Manifesto comunista, 45).
Como é então que a “burguesia não pode
existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, portanto,
as relações de produção?” A resposta que Marx dá em O Capital é completa e convincente. As “leis coercitivas”
da competição de mercado forçam todos os capitalistas a procurar mudanças
tecnológicas e organizacionais que melhorem sua lucratividade com relação à
média social, levando todos os capitalistas a saltos de inovação dos processos
de produção que só alcançam seu limite sob condições de maciços superávits de
trabalho. A necessidade de manter o trabalhador sob controle na fábrica e de
reduzir o seu poder de barganha no mercado (particularmente sob condições de
relativa escassez de trabalho e ativa resistência de classe) também estimula o
capitalista a inovar. O capitalismo é por necessidade tecnologicamente
dinâmico, não por causa das míticas capacidades do empreendedor inovador (como
Schumpeter viria a alegar), mas por causa das leis coercitivas da competição e
das condições de luta de classes endêmicas no capitalismo.
O efeito da inovação contínua é, no entanto,
desvalorizar, senão destruir, investimentos e habilidades de trabalho passados.
A destruição criativa está embutida na própria circulação do capital. A
inovação exacerba a instabilidade e a insegurança, tornando-se, no final, a
principal força que leva o capitalismo a periódicos paroxismos de crise. Não
somente a vida da indústria moderna passa a ser uma série de períodos de
atividade moderada, prosperidade, excesso de produção, crise e estagnação, “mas
a incerteza e a instabilidade a que as máquinas sujeitam o emprego e, em
consequência, as condições de existência, dos operadores se tornam normais”.
Além disso:
Todos os meios de desenvolvimento da produção se transformam em meios de
domínio sobre os produtores e de exploração deles; eles mutilam o trabalhador, tornando-o
um fragmento de homem, degradam-no ao nível de um apêndice da máquina, destroem
todos os resquícios de encanto do seu trabalho, que passa a ser uma labuta
odiosa; eles o alienam das potencialidades intelectuais do processo de trabalho
na mesma proporção em que a ciência é incorporada neste como força
independente; eles distorcem as condições nas quais ele trabalha, sujeitando-o,
durante o processo de trabalho, a um despotismo tanto mais odioso quanto mais
humilhante; eles transformam seu tempo de vida em tempo de trabalho, esmagando
sua esposa e filhos sob as engrenagens do capital (Capital, 1:604).
A luta pela manutenção da lucratividade
apressa os capitalistas a explorarem todo tipo de novas possibilidades. São
abertas novas linhas de produto, o que significa a criação de novos desejos e
necessidades. Os capitalistas são obrigados a redobrar seus esforços para criar
novas necessidades nos outros, enfatizando o cultivo de apetites imaginários e
o papel da fantasia, do capricho e do impulso. O resultado é a exacerbação da insegurança
e da instabilidade, na medida em que massas de capital e de trabalho vão sendo
transferidas entre linhas de produção, deixando setores inteiros devastados,
enquanto o fluxo perpétuo de desejos, gostos e necessidades do consumidor se
torna um foco permanente de incerteza e de luta. Abrem-se necessariamente novos
espaços quando os capitalistas procuram novos mercados, novas fontes de
matérias-primas, uma nova força de trabalho e locais novos e mais lucrativos
para operações de produção. O impulso de realocação para locais mais vantajosos
(o movimento geográfico do capital e do trabalho) revoluciona periodicamente a
divisão territorial e internacional do trabalho, acrescentando à insegurança
uma dimensão geográfica vital. A resultante transformação da experiência do
espaço e do lugar é acompanhada por revoluções na dimensão do tempo, na medida
em que os capitalistas tentam reduzir o tempo de giro do seu capital a um “piscar
de olhos”. Em resumo, o capitalismo é um sistema social que internaliza regras
que garantem que ele permaneça uma força permanentemente revolucionária e
disruptiva em sua própria história mundial. Se, portanto, “a única coisa segura
sobre a modernidade é a insegurança”, não é difícil ver de onde vem essa
insegurança.
Contudo, insiste Marx, há um princípio
unitário que sustenta e dá forma a todo esse distúrbio revolucionário, à
fragmentação e à insegurança perpétua. O princípio reside no que ele denomina,
bem abstratamente, “valor em movimento”, ou, mais simplesmente, a circulação do
capital, incansável e eternamente em busca de novas maneiras de auferir lucros.
Do mesmo modo, há sistemas coordenadores de ordem superior que parecem ter o
poder — embora, no final, Marx insista ser ele transitório e ilusório — de
impor ordem a todo esse caos e de assentar os trilhos da modernização
capitalista num terreno mais aceitável. O sistema de crédito, por exemplo, tem
certo poder de regular os usos do dinheiro; os fluxos de dinheiro podem ser
revertidos para estabilizar relações entre produção e consumo, arbitrar entre
despesas correntes e necessidades futuras e transferir superávits de capital de
uma linha de produção ou região para outra de modo racional. Mas também aqui encontramos
logo uma contradição central, porque a criação do crédito e o desembolso nunca
podem estar separados da especulação. Segundo Marx, sempre se deve considerar o
crédito “capital fictício”, uma espécie de aposta em dinheiro numa produção que
ainda não existe. Disso decorre uma permanente tensão entre o que Marx denomina
“sistema financeiro” (cartas de crédito, capital fictício, instrumentos financeiros
de todo tipo) e sua “base monetária” (até recentemente vinculada a alguma
mercadoria tangível como o ouro ou a prata). Essa contradição se baseia num paradoxo
particular: o dinheiro tem de assumir alguma forma tangível (ouro, moedas,
notas, registro num livro etc.), embora seja uma representação geral de todo
trabalho social. A questão de saber qual das diversas representações tangíveis é
dinheiro “real” costuma surgir em épocas de crise. É melhor conservar ações e
certificados, notas, ouro ou latas de atum no meio de uma depressão? Disso também
decorre que aquele que controla a forma tangível mais “real” num dado momento
(os produtores de ouro, o governo, os bancos que dão crédito) tem enorme influência,
mesmo que, em última análise, sejam os produtores e trocadores de mercadorias,
juntos, que de fato definem “o valor do dinheiro” (termo paradoxal que todos
compreendemos, mas que em termos técnicos significa “o valor do valor”). Em
consequência, o controle das regras de formação do dinheiro é um terreno de luta
fortemente contestado que gera uma insegurança e uma incerteza consideráveis quanto
ao “valor do valor”. Em fases de expansão especulativas, um sistema financeiro
que parece um recurso saudável para regular as tendências incoerentes da
produção capitalista se torna “o principal elemento da superprodução e da superespeculação”.
O fato de a arquitetura pós-moderna considerar-se voltada para a ficção, e
não para a função, parece, à luz das reputações dos financistas,
empreendedores e especuladores que organizam a construção, mais do que
adequado.”
“A forte injeção de ficção e de função
na sensibilidade comum, por exemplo, deve ter consequências, talvez não
previstas, na ação social. Afinal, até Marx insistiu que o que distingue o pior
dos arquitetos da melhor abelha é o fato de o arquiteto erigir estruturas na
imaginação antes de lhes dar forma material. Mudanças na maneira como
imaginamos, pensamos, planejamos e racionalizamos estão fadadas a ter
consequências materiais. A ampla gama do pós-modernismo só pode fazer sentido
nesses termos bem amplos da conjugação entre mimese e intervenção estética.”
“As metanarrativas que os pós-modernistas
desdenham (Marx, Freud e até figuras ulteriores como Althusser) eram muito mais abertas, nuançadas e sofisticadas do que os críticos
admitem. Marx e muitos marxistas (penso em Benjamin, Thompson, Anderson, entre
outros) tinham olho para o detalhe, para a fragmentação e para a disjunção,
olho que com frequência é substituído por uma caricatura nas polêmicas
pós-modernas. O relato de Marx sobre a modernização é notavelmente rico em
percepções das raízes do modernismo e da possibilidade pós-moderna. (...)
Também concluo que há mais continuidade do
que diferença entre a ampla história do modernismo e o movimento denominado
pós-modernismo. Parece-me mais sensível ver este último como um tipo particular
de crise do primeiro, uma crise que enfatiza o lado fragmentário, efêmero e
caótico da formulação de Baudelaire (o lado que Marx disseca tão admiravelmente
como parte integrante do modo capitalista de produção), enquanto exprime um
profundo ceticismo diante de toda prescrição particular sobre como conceber,
representar ou exprimir o eterno e imutável.
Mas o pós-modernismo, com sua ênfase na
efemeridade da jouissance, sua insistência na impenetrabilidade do
outro, sua concentração antes no texto do que na obra, sua inclinação pela
desconstrução que beira o nilismo, sua preferência pela estética, em vez da
ética, leva as coisas longe demais. Ele as conduz para além do ponto em que
acaba a política coerente, enquanto a corrente que busca uma acomodação
pacífica com o mercado o envereda firmemente pelo caminho de uma cultura
empreendimentista que é o marco do neoconservadorismo reacionário. Os filósofos
pós-modernos nos dizem que não apenas aceitemos mas até nos entreguemos às
fragmentações e à cacofonia de vozes por meio das quais os dilemas do mundo
moderno são compreendidos. Obcecados pela desconstrução e pela deslegitimação
de toda espécie de argumento que encontra, eles só podem terminar por condenar
suas próprias reivindicações de validade, chegando ao ponto de não restar nada
semelhante a uma base para a ação racional. O pós-modernismo quer que aceitemos
as reificações e partições, celebrando a atividade de mascaramento e de
simulação, todos os fetichismos de localidade, de lugar ou de grupo social,
enquanto nega o tipo de metateoria capaz de apreender os processos
político-econômicos (fluxos de dinheiro, divisões internacionais do trabalho,
mercados financeiros etc.), que estão se tornando cada vez mais
universalizantes em sua profundidade, intensidade, alcance e poder sobre a vida
cotidiana.
Pior do que isso, enquanto abre uma
perspectiva radical mediante o reconhecimento da autenticidade de outras vozes,
o pensamento pós-moderno veda imediatamente essas outras vozes o acesso a
fontes mais universais de poder, circunscrevendo-as num gueto de alteridade
opaca, da especificidade de um ou outro jogo de linguagem. Por conseguinte, ele
priva de poder essas vozes (de mulheres, de minorias étnicas e raciais, de
povos colonizados, de desempregados, de jovens etc.) num mundo de relações de
poder assimétricas. O jogo de linguagem de um conluio de banqueiros
internacionais pode ser impenetrável para nós, mas isso não o torna equivalente
à linguagem igualmente impenetrável dos negros das adjacências dos centros das
cidades do ponto de vista das relações de poder.
A retórica do pós-modernismo é perigosa, já
que evita o enfrentamento das realidades da economia política e das
circunstâncias do poder global. A ingenuidade da “proposta radical” de Lyotard,
de franquear o acesso de todos aos bancos de dados como prólogo para uma
reforma radical (como se todos fôssemos ter igual poder de aproveitar essa
oportunidade), é instrutiva, porque indica que mesmo o mais resoluto dos
pós-modernistas no final tem de decidir se faz algum gesto universalizante
(como o apelo de Lyotard a algum conceito prístino de justiça) ou, alternativamente,
cai, como Derrida, no silêncio político total. Não é possível descartar a
metateoria; os pós-modernistas apenas a empurram para o subterrâneo, onde ela continua
a funcionar como uma “efetividade agora inconsciente” (Jameson, 1984b).”
“A celebrada “mão invisível” do mercado, de
Adam Smith, nunca bastou por si mesma para garantir um crescimento estável ao
capitalismo, mesmo quando as instituições de apoio (propriedade privada,
contratos válidos, administração apropriada do dinheiro) funcionam
adequadamente. Algum grau de ação coletiva — de modo geral, a regulamentação e
a intervenção do Estado — é necessário para compensar as falhas de mercado
(tais como os danos inestimáveis ao ambiente natural e social), evitar
excessivas concentrações de poder de mercado ou combater o abuso do privilégio
do monopólio quando este não pode ser evitado (em campos como transportes e
comunicações), fornecer bens coletivos (defesa, educação, infraestruturas
sociais e físicas) que não podem ser produzidos e vendidos pelo mercado e
impedir falhas descontroladas decorrentes de surtos especulativos, sinais de mercado
aberrantes e o intercâmbio potencialmente negativo entre expectativas dos
empreendedores e sinais de mercado (o problema das profecias autorrealizadas no
desempenho do mercado).
Na prática, as pressões coletivas exercidas
pelo Estado ou por outras instituições (religiosas, políticas, sindicais,
patronais e culturais), aliadas ao exercício do poder de domínio do mercado
pelas grandes corporações e outras instituições poderosas, afetam de modo vital
a dinâmica do capitalismo. Essas pressões podem ser diretas (como a imposição
de controles de salários e preços) ou indiretas (como a propaganda subliminar que
nos persuade a incorporar novos conceitos sobre as nossas necessidades e
desejos básicos na vida), mas o efeito líquido é moldar a trajetória e a forma
do desenvolvimento capitalista de modos cuja compreensão vai além da análise
das transações de mercado. Além disso, as propensões sociais e psicológicas,
como o individualismo e o impulso de realização pessoal por meio da
autoexpressão, a busca de segurança e identidade coletiva, a necessidade de
adquirir respeito próprio, posição ou alguma outra marca de identidade
individual, têm um papel na plasmação de modos de consumo e estilos de vida.
Basta considerar todo o complexo de forças implicadas na proliferação da
produção, da propriedade e do uso em massa do automóvel para reconhecer a vasta
gama de significados sociais, psicológicos, políticos, bem como mais propriamente
econômicos, que estão associados a um dos principais setores de crescimento do
capitalismo do século XX.”
“Em muitos aspectos, as inovações
tecnológicas e organizacionais de Ford eram mera extensão de tendências
bem-estabelecidas. A forma corporativa de organização de negócios, por exemplo,
tinha sido aperfeiçoada pelas estradas de ferro ao longo do século XIX e já
tinha chegado, em particular depois da onda de fusões e de formação de trustes
e cartéis no final do século, a muitos setores industriais (um terço dos ativos
manufatureiros americanos passaram por fusões somente entre os anos de 1888 e
1902). Ford também fez pouco mais do que racionalizar velhas tecnologias e uma
detalhada divisão do trabalho preexistente, embora, ao fazer o trabalho chegar
ao trabalhador numa posição fixa, ele tenha conseguido dramáticos ganhos de
produtividade. Os Princípios da Administração Científica, de F. W. Taylor
— um influente tratado que descrevia como a produtividade do trabalho podia ser
radicalmente aumentada através da decomposição de cada processo de trabalho em
movimentos componentes e da organização de tarefas de trabalho fragmentadas
segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do movimento —, tinham sido
publicados, afinal, em 1911. E o pensamento de Taylor tinha uma longa
ancestralidade, remontando, através dos experimentos de Gilbreth, na década de
1890, às obras de escritores da metade do século XIX como Ure e Babbage, que
Marx considerara reveladoras. A separação entre gerência, concepção, controle e
execução (e tudo o que isso significava em termos de relações sociais
hierárquicas e de desabilitação dentro do processo de trabalho) também já
estava bem avançada em muitas indústrias. O que havia de especial em Ford (e
que, em última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão,
seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de
massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política
de· controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia,
em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e
populista.
O líder comunista italiano Antonio Gramsci,
jogado numa das prisões de Mussolini umas duas décadas mais tarde, extraiu
exatamente essa implicação. O americanismo e o fordismo, observou ele em seus Cadernos do Cárcere, equivaliam ao “maior esforço coletivo até
para criar, com velocidade sem precedentes, e com uma consciência de propósito
sem igual na história, um novo tipo de trabalhador e um novo tipo de homem”. Os
novos métodos de trabalho “são inseparáveis de um modo específico de viver e de
pensar e sentir a vida”. Questões de sexualidade, de família, de formas de
coerção moral, de consumismo e de ação do Estado estavam vinculadas, ao ver de
Gramsci, ao esforço de forjar um tipo particular de trabalhador “adequado ao
novo tipo de trabalho e de processo produtivo”. Contudo, duas décadas depois
dos movimentos iniciais de Ford, Gramsci julgava que “sua elaboração ainda está
apenas em seu estágio inicial, sendo, portanto, (aparentemente) idílica”. Por
que, então, levou tanto tempo para que o fordismo se tornasse um regime de
acumulação adulto?
Ford acreditava que o novo tipo de sociedade
poderia ser construído simplesmente com a aplicação adequada ao poder
corporativo. O propósito do dia de oito horas e cinco dólares só em parte era
obrigar o trabalhador a adquirir a disciplina necessária à operação do sistema
de linha de montagem de alta produtividade. Era também dar aos trabalhadores
renda e tempo de lazer suficientes para que consumissem os produtos produzidos
em massa que as corporações estavam por fabricar em quantidades cada vez
maiores. Mas isso presumia que os trabalhadores soubessem como gastar seu
dinheiro adequadamente. Por isso, em 1916, Ford enviou um exército de
assistentes sociais aos lares dos seus trabalhadores “privilegiados” (em larga
medida imigrantes) para ter certeza de que o “novo homem” da produção de massa
tinha o tipo certo de probidade moral, de vida familiar e de capacidade de
consumo prudente (isto é, não alcoólico) e “racional” para corresponder às
necessidades e expectativas da corporação. A experiência não durou muito tempo,
mas a sua própria existência foi um sinal presciente dos profundos problemas sociais,
psicológicos e políticos que o fordismo iria trazer.
Era tal a crença de Ford no poder corporativo
de regulamentação da economia como um todo que a sua empresa aumentou os
salários no começo da Grande Depressão na expectativa de que isso aumentasse a
demanda efetiva, recuperasse o mercado e restaurasse a confiança da comunidade
de negócios. Mas as leis coercitivas da competição se mostraram demasiado
fortes mesmo para o poderoso Ford, forçando-o a demitir trabalhadores e cortar
salários. Foi necessário o New Deal de Roosevelt para salvar o capitalismo — fazendo,
através da intervenção do Estado, o que Ford tentara fazer sozinho. Ford tinha
se esforçado por antecipar-se aos acontecimentos, nos anos 30, fazendo seus
trabalhadores proverem a maior parte de suas próprias necessidades de
subsistência. Eles deveriam, alegava ele, cultivar legumes nas horas vagas nos
próprios jardins (uma prática seguida com grandes resultados durante a Segunda
Guerra Mundial na Inglaterra). Ao insistir em que “a autoajuda é a única
maneira de combater a depressão econômica”, Ford reforçou o tipo de utopia
controlada de volta à terra que caracterizou os planos de Frank Lloyd Wright
para Broadacre City. Mas, mesmo nesse caso, podemos detectar interessantes
sinais de futuras configurações, visto que foi a suburbanização e desconcentração
da população e da indústria (e não a autoajuda), implícitas na concepção
modernista de Wright, que se tornaria o principal elemento de estímulo da
demanda efetiva pelos produtos de Ford no longo período de expansão do
pós-guerra a partir de 1945.
O modo como o sistema fordista se estabeleceu
constitui, com efeito, uma longa e complicada história que se estende por quase
meio século. Isso dependeu de uma miríade de decisões individuais,
corporativas, institucionais e estatais, muitas delas escolhas políticas feitas
ao acaso ou respostas improvisadas às tendências de crise do capitalismo,
particularmente em sua manifestação na Grande Depressão dos anos 30. A
subsequente mobilização da época da guerra também implicou planejamento em
larga escala, bem como uma completa racionalização do processo de trabalho,
apesar da resistência do trabalhador à produção em linha de montagem e dos
temores capitalistas do controle centralizado. Era difícil, para capitalistas e
trabalhadores, recusar racionalizações que melhorassem a eficiência numa época
de total esforço de guerra. Além disso, as confusões entre práticas ideológicas
e intelectuais complicavam as coisas. A direita e a esquerda desenvolveram sua própria
versão de planejamento estatal racionalizado (com todos os seus atavios modernistas)
como solução para os males a que o capitalismo estava tão claramente exposto,
em particular na situação dos anos 30. Foi esse tipo de história intelectual e
política confusa que fez Lênin louvar a tecnologia de produção taylorista e fordista
enquanto os sindicatos da Europa Ocidental a recusavam; Le Corbusier aparecer
como apóstolo da modernidade enquanto se aliava a regimes autoritários (Mussolini
por algum tempo e o regime de Vichy na França); Ebenezer Howard forjar planos
utópicos inspirados no anarquismo de Geddes e Kropotkin — apenas para serem
apropriados por desenvolvimentistas capitalistas — e Robert Moses começar o
século como “progressista” político (inspirado pelo socialismo utópico apresentado
em Looking backwards, de Edward Bellamy) e terminar como o “corretor do
poder” que “levou o moedor de carne” para o Bronx em nome da automobilização da
América (ver, por exemplo, Caro, The
power broker, 1974).”
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