Editora:
Imago
ISBN:
978-85-3120-985-7
Tradução:
Christiano Monteiro Oiticica e Vera Ribeiro
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 72
“A civilização humana, expressão pela qual quero
significar tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição
animal e difere da vida dos animais – e desprezo ter que distinguir entre
cultura e civilização –, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador.
Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o
fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a
satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos
necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e,
especialmente, a distribuição da riqueza disponível. As duas tendências da
civilização não são independentes uma da outra; em primeiro lugar, porque as relações
mútuas dos homens são profundamente influenciadas pela quantidade de satisfação
instintual que a riqueza existente torna possível; em segundo, porque,
individualmente, um homem pode, ele próprio, vir a funcionar como riqueza em
relação a outro homem, na medida em que a outra pessoa faz uso de sua
capacidade de trabalho ou o escolha como objeto sexual; em terceiro, ademais,
porque todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, embora se suponha
que esta constitui um objeto de interesse humano universal. É digno de nota
que, por pouco que os homens sejam capazes de existir isoladamente, sintam, não
obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a civilização deles espera, a
fim de tornar possível a vida comunitária. A civilização, portanto, tem de ser
defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos, instituições e ordens
dirigem-se a essa tarefa. Visam não apenas a efetuar uma certa distribuição da
riqueza, mas também a manter essa distribuição; na verdade, têm de proteger
contra os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui para a conquista da
natureza e a produção de riqueza. As criações humanas são facilmente
destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram, também podem ser
utilizadas para sua aniquilação.”
“Pensar-se-ia ser possível um reordenamento das
relações humanas, que removeria as fontes de insatisfação para com a
civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos instintos, de sorte que,
imperturbados pela discórdia interna, os homens pudessem dedicar-se à aquisição
da riqueza e à sua fruição. Essa seria a idade de ouro, mas é discutível se tal
estado de coisas pode ser tornado realidade. Parece, antes, que toda
civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto; sequer
parece certo se, caso cessasse a coerção, a maioria dos seres humanos estaria
preparada para empreender o trabalho necessário à aquisição de novas riquezas.
Acho que se tem de levar em conta o fato de estarem presentes em todos os
homens tendências destrutivas e, portanto, antissociais e anticulturais, e que,
num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para
determinar o comportamento delas na sociedade humana.
Esse fato psicológico tem importância decisiva para
nosso julgamento da civilização humana. Onde, a princípio, poderíamos pensar
que sua essência reside no controle da natureza para o fim de adquirir riqueza,
e que os perigos que a ameaçam poderiam ser eliminados por meio de uma
distribuição apropriada dessa riqueza entre os homens, parece agora que a
ênfase se deslocou do material para o mental. A questão decisiva consiste em
saber se, e até que ponto, é possível diminuir o ônus dos sacrifícios
instintuais impostos aos homens, reconciliá-los com aqueles que necessariamente
devem permanecer e fornecer-lhes uma compensação. É tão impossível passar sem o
controle da massa por uma minoria, quanto dispensar a coerção no trabalho da
civilização, já que as massas são preguiçosas e pouco inteligentes; não têm
amor à renúncia instintual e não podem ser convencidas pelo argumento de sua
inevitabilidade; os indivíduos que as compõem apoiam-se uns aos outros em dar
rédea livre a sua indisciplina. Só através da influência de indivíduos que
possam fornecer um exemplo e a quem reconheçam como líderes, as massas podem
ser induzidas a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias de que a
existência depende. Tudo correrá bem se esses líderes forem pessoas com uma
compreensão interna superior das necessidades da vida, e que se tenham erguido
à altura de dominar seus próprios desejos instintuais. Há, porém, o perigo de
que, a fim de não perderem sua influência, possam ceder à massa mais do que
esta a eles; por conseguinte, parece necessário que sejam independentes dela
pela posse dos meios de poder à sua disposição. Expressando-o de modo sucinto,
existem duas características humanas muito difundidas, responsáveis pelo fato
de os regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através de certo grau
de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente amantes do trabalho
e que os argumentos não têm valia alguma contra suas paixões.”
“Se nos voltarmos para as restrições que só se
aplicam a certas classes da sociedade, encontraremos um estado de coisas que é
flagrante e que sempre foi reconhecido. É de esperar que essas classes
subprivilegiadas invejem os privilégios das favorecidas e façam tudo o que
podem para se liberarem de seu próprio excesso de privação. Onde isso não for
possível, uma permanente parcela de descontentamento persistirá dentro da
cultura interessada, o que pode conduzir a perigosas revoltas. Se, porém, uma
cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte e de seus participantes
depende da opressão da outra parte, parte esta talvez maior – e este é o caso
em todas as culturas atuais –, é compreensível que as pessoas assim oprimidas
desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura cuja existência elas
tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que
uma quota mínima. Em tais condições, não é de esperar uma internalização das
proibições culturais entre as pessoas oprimidas. Pelo contrário, elas não estão
preparadas para reconhecer essas proibições, têm a intenção de destruir a
própria cultura e, se possível, até mesmo aniquilar os postulados em que se
baseia. A hostilidade dessas classes para com civilização é tão evidente, que
provocou a mais latente hostilidade dos estratos sociais mais passíveis de
serem desprezados. Não é preciso dizer que uma civilização que deixa
insatisfeito um número tão grande de seus participantes e os impulsiona à
revolta, não tem nem merece a perspectiva de uma existência duradoura.”
“A satisfação narcísica proporcionada pelo ideal
cultural encontra-se também entre as forças que alcançam êxito no combate à
hostilidade para com a cultura dentro da unidade cultural. Essa satisfação pode
ser partilhada não apenas pelas classes favorecidas, que desfrutam dos benefícios
da cultura, mas também pelas oprimidas, já que o direito a desprezar povos
estrangeiros as compensa pelas injustiças que sofrem dentro de sua própria
unidade. Não há dúvida de que alguém pode ter sido um plebeu infeliz,
atormentado por dívidas e pelo serviço militar, mas, em compensação, não
deixava de ser um cidadão romano, com sua própria quota na tarefa de governar
outras nações e ditar suas leis. Essa identificação das classes oprimidas com a
classe que as domina e explora é, contudo, apenas uma parte de um todo maior.
Isso porque, por outro lado, as classes oprimidas podem estar emocionalmente
ligadas a seus senhores; apesar de sua hostilidade para com eles, podem ver
neles os seus ideais. A menos que tais relações de tipo fundamentalmente satisfatório
subsistam, é impossível compreender como uma série de civilizações sobreviveu
por tão longo tempo, malgrado a justificável hostilidade de grandes massas
humanas.”
“Tal como para a humanidade em geral, também para o
indivíduo a vida é difícil de suportar. A civilização de que participa
impõe-lhe uma certa quantidade de privação, e outros homens lhe trazem outro
tanto de sofrimento, seja apesar dos preceitos de sua civilização, seja por
causa das imperfeições dela. A isso se acrescentam os danos que a natureza
indomada – o que ele chama de Destino – lhe inflige. Poder-se-ia supor que essa
condição das coisas resultaria num permanente estado de ansiosa expectativa
presente nele e em grave prejuízo a seu narcisismo natural. Já sabemos como o
indivíduo reage aos danos que a civilização e os outros homens lhe infligem:
desenvolve um grau correspondente de resistência aos regulamentos da
civilização e de hostilidade para com ela. Mas, como se defende ele contra os
poderes superiores da natureza, do Destino, que o ameaçam da mesma forma que a
tudo mais?
A civilização o poupa dessa tarefa; ela a
desempenha da mesma maneira para todos, igualmente, e é digno de nota que,
nisso, quase todas as civilizações agem de modo semelhante. A civilização não
se detém na tarefa de defender o homem contra a natureza, mas simplesmente a
prossegue por outros meios. Trata-se de uma tarefa múltipla. A autoestima do
homem, seriamente ameaçada, exige consolação; a vida e o universo devem ser
despidos de seus terrores; ademais, sua curiosidade, movida, é verdade, pelo
mais forte interesse prático, pede uma resposta.
Muito já se conseguiu com o primeiro passo: a
humanização da natureza. De forças e destinos impessoais ninguém pode
aproximar-se; permanecem eternamente distantes. Contudo, se nos elementos se
enfurecerem paixões da mesma forma que em nossas próprias almas, se a própria
morte não for algo espontâneo, mas o ato violento de uma Vontade maligna, se
tudo na natureza forem Seres à nossa volta, do mesmo tipo que conhecemos em nossa
própria sociedade, então poderemos respirar livremente, sentir-nos em casa no
sobrenatural e lidar com nossa insensata ansiedade através de meios psíquicos.
Talvez ainda nos achemos indefesos, mas não mais desamparadamente paralisados;
pelo menos, podemos reagir. Talvez, na verdade, sequer nos achemos indefesos.
Contra esses violentos super-homens externos podemos aplicar os mesmos métodos
que empregamos em nossa própria sociedade; podemos tentar conjurá-los,
apaziguá-los, suborná-los e, influenciando-os assim, despojá-los de uma parte
de seu poder. Uma tal substituição da ciência natural pela psicologia não
apenas proporciona alívio imediato, mas também aponta o caminho para um
ulterior domínio da situação.
Porque essa situação não é nova. Possui um protótipo
infantil, de que, na realidade, é somente a continuação. Já uma vez antes, nos
encontramos em semelhante estado de desamparo: como crianças de tenra idade, em
relação a nossos pais. Tínhamos razões para temê-los, especialmente nosso pai;
contudo, estávamos certos de sua proteção contra os perigos que conhecíamos.
Assim, foi natural assemelhar as duas situações. Aqui, também, o desejar
desempenhou seu papel, tal como faz na vida onírica. Aquele que dorme pode ser
tomado por um pressentimento da morte, que ameaça colocá-lo no túmulo. A
elaboração onírica, porém, sabe como selecionar uma condição que transformará
mesmo esse temível evento uma realização de desejo: aquele que sonha vê-se a si
mesmo numa antiga sepultura etrusca a que desceu, feliz por satisfazer seus
interesses arqueológicos. Do mesmo modo, um homem transforma as forças da
natureza não simplesmente em pessoas com quem pode associar-se como com seus
iguais – pois isso não faria justiça à impressão esmagadora que essas forças
causam nele –, mas lhes concede o caráter de um pai. Transforma-as em deuses,
seguindo nisso, como já tentei demonstrar, não apenas um protótipo infantil,
mas um protótipo filogenético.
No decorrer do tempo, fizeram-se as primeiras
observações de regularidade e conformidade à lei nos fenômenos naturais, e, com
isso, as forças da natureza perderam seus traços humanos. O desamparo do homem,
porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes
mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os
homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na
morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em
comum lhes impôs.
Contudo, dentro dessas funções há um deslocamento
gradual de ênfase. Observou-se que os fenômenos da natureza se desenvolviam
automaticamente, de acordo com as necessidades internas. Indubitavelmente, os
deuses eram os senhores da natureza; haviam-na disposto para ser como era e
agora podiam deixá-la por sua própria conta. Apenas ocasionalmente, no que se
conhece como milagres, intervinham eles em seu curso, como para tornar claro
que não haviam abandonado nada de sua esfera original de poder. Com referência
à distribuição dos destinos, persistia a desagradável suspeita de que a
perplexidade e o desamparo da raça humana não podiam ser remediados. Era aqui
que os deuses se mostravam aptos a falhar. Se eles próprios haviam criado o
Destino, então seus desígnios deviam ser considerados inescrutáveis. Alvoreceu
a noção, no povo mais bem dotado da Antiguidade, de que Moira [o Destino]
alçava-se acima dos deuses e que mesmo estes tinham os seus próprios destinos.
E quanto mais autônoma a natureza se tornava e quanto mais os deuses se
retiravam dela, com mais seriedade todas as expectativas se dirigiram para a
terceira função deles, ou seja, mais a moralidade tornou-se o seu verdadeiro
domínio. Ficou sendo então tarefa dos deuses nivelar os defeitos e os males da
civilização, assistir os sofrimentos que os homens infligem uns aos outros em
sua vida em conjunto e vigiar o cumprimento dos preceitos da civilização, a que
os homens obedecem de modo tão imperfeito. Esses próprios preceitos foram
creditados com uma origem divina; foram elevados além da sociedade humana e
estendidos à natureza e ao universo.
Foi assim que se criou um cabedal de ideias,
nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e
construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e
da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse dessas
ideias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino,
e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade humana. Reside
aqui a essência da questão. A vida neste mundo serve a um propósito mais
elevado; indubitavelmente, não é fácil adivinhar qual ele seja, mas decerto
significa um aperfeiçoamento da natureza do homem. É provavelmente a parte
espiritual deste, a alma, que, no decurso do tempo, tão lenta e relutantemente,
se desprendeu do corpo, que constitui o objeto desta elevação e exaltação. Tudo
o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de uma
inteligência superior para conosco, inteligência que, ao final, embora seus
caminhos e desvios sejam difíceis de acompanhar, ordena tudo para o melhor –
isto é, torna-o desfrutável por nós. Sobre cada um de nós vela uma Providência
benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos
um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é
uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado inorgânico, mas o começo de
um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais
elevado. E, olhando na outra direção, essa visão anuncia que as mesmas leis morais
que nossas civilizações estabeleceram, governam também o universo inteiro, com
a única diferença de serem mantidas por uma corte suprema de justiça
incomparavelmente mais poderosa e harmoniosa. Ao final, todo o bem é
recompensado e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida,
pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos
os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer. A
vida após a morte, que continua a vida sobre a terra exatamente como a parte
invisível do espectro se une à parte visível, nos conduz à perfeição que talvez
tenhamos deixado de atingir aqui. E a sabedoria superior que dirige esse curso
das coisas, a bondade infinita que nela se expressa, a justiça que nela atinge
seu objetivo, são os atributos dos seres divinos que também nos criaram, e ao
mundo como um todo, ou melhor, de um ser divino no qual, em nossa civilização,
todos os deuses da Antiguidade foram condensados. O povo que pela primeira vez
alcançou êxito em concentrar assim os atributos divinos não ficou pouco
orgulhoso de seu progresso. Descerrara à vista o pai que sempre se achara
oculto por detrás de toda figura divina, como seu núcleo. Fundamentalmente,
isso constituía um retorno aos primórdios históricos da ideia de Deus. Agora
que este era uma figura isolada, as relações do homem com ele podiam recuperar
a intimidade e a intensidade do relacionamento do filho com o pai. Mas, já que
se fizera tanto pelo próprio pai, desejava-se obter uma recompensa, ou, pelo
menos, ser o seu filho bem amado, o seu Povo Escolhido. Muito mais tarde, a
piedosa América reivindicou ser o ‘Próprio País de Deus’, e, com referência a
uma das formas pelas quais os homens adoram a divindade, essa reivindicação é
indubitavelmente válida.”
“Transportemo-nos para a vida mental de uma
criança. Você se recorda da escolha de objeto de acordo com o tipo analítico
[ligação], de que fala a psicanálise? A libido segue aí os caminhos das
necessidades narcísicas e liga-se aos objetos que asseguram a satisfação dessas
necessidades. Desta maneira, a mãe, que satisfaz a fome da criança, torna-se
seu primeiro objeto amoroso e, certamente, também sua primeira proteção contra
todos os perigos indefinidos que a ameaçam no mundo externo – sua primeira
proteção contra a ansiedade, podemos dizer.
Nessa função [de proteção] a mãe é logo substituída
pelo pai mais forte, que retém essa posição pelo resto da infância. Mas a
atitude da criança para com o pai é matizada por uma ambivalência peculiar. O
próprio pai constitui um perigo para a criança, talvez por causa do
relacionamento anterior dela com a mãe. Assim, ela o teme tanto quanto anseia
por ele e o admira. As indicações dessa ambivalência na atitude para com o pai
estão profundamente impressas em toda religião, tal como foi demonstrado em Totem e Tabu. Quando o indivíduo em
crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre,
que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores,
empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria
para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não
obstante, confia sua própria proteção. Assim, seu anseio por um pai constitui
um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as consequências de sua
debilidade humana. É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas
feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de
reconhecer – reação que é, exatamente, a formação da religião.”
“Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão
quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e,
assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria
ilusão não dá valor à verificação.
Havendo estabelecido desse modo nossas coordenadas,
retornemos à questão das doutrinas religiosas. Podemos agora repetir que todas
elas são ilusões e insuscetíveis de prova. Ninguém pode ser compelido a
achá-las verdadeiras, a acreditar nelas. Algumas são tão improváveis, tão
incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do
mundo, que podemos compará-las – se consideramos de forma apropriada as
diferenças psicológicas – a delírios. Do valor de realidade da maioria delas
não podemos ajuizar; assim como não podem ser provadas, também não podem ser
refutadas. Conhecemos ainda muito pouco para efetuar sua abordagem crítica. Os
enigmas do universo só lentamente se revelam à nossa investigação; existem
muitas questões a que a ciência atualmente não pode dar resposta. Mas o
trabalho científico constitui a única estrada que nos pode levar a um
conhecimento da realidade externa a nós mesmos. É, mais uma vez, simplesmente
uma ilusão esperar qualquer coisa da intuição e da introspecção; elas nada nos
podem dar, a não ser detalhes sobre nossa própria vida mental, detalhes
difíceis de interpretar, nunca qualquer informação sobre as perguntas que a doutrina
religiosa acha tão fácil responder. Seria insolente permitir que nossa própria
vontade arbitrária ingressasse na questão e, de acordo com nossa estimativa
pessoal, declarasse esta ou aquela parte do sistema religioso como mais ou
menos aceitável. Tais questões são momentosas demais para isso; poderiam ser
chamadas de demasiadamente sagradas. Nesse ponto, é de esperar que se encontre
uma objeção. ‘Bem, então, se mesmos os céticos impenitentes admitem que as
asserções da religião não podem ser refutadas pela razão, por que não devo
acreditar nelas, já que possuem tanta coisa de seu lado – a tradição, a
concordância da humanidade, e todas as consolações que oferecem?’ De fato, por
que não? Assim como ninguém pode ser forçado a crer, também ninguém pode ser
forçado a descrer. Mas não nos permitamos ficar satisfeitos em nos enganarmos
que argumentos desse tipo nos conduzirão pela estrada do pensamento correto. Se
algum dia já houve um exemplo de desculpa esfarrapada, temo-lo aqui. Ignorância
é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela. Em
outros assuntos, nenhuma pessoa sensata se comportaria tão irresponsavelmente
ou se contentaria com fundamentos tão débeis para suas opiniões e para a
posição que assume. É apenas nas coisas mais elevadas e sagradas que se permite
fazê-lo. Na realidade, trata-se apenas de tentativas de fingir para nós mesmos
ou para outras pessoas que ainda nos achamos firmemente ligados à religião,
quando há muito tempo já nos apartamos dela. Quanto a questões de religião, as
pessoas são culpadas de toda espécie possível de desonestidade e mau
procedimento intelectual. Os filósofos distendem tanto o sentido das palavras,
que elas mal retêm algo de seu sentido original. Dão o nome de ‘Deus’ a alguma
vaga abstração que criaram para si mesmos e, assim, podem posar perante todos
como deístas, como crentes em Deus, e inclusive gabar-se de terem identificado
um conceito mais elevado e puro de Deus, não obstante significar seu Deus agora
nada mais que uma sombra sem substância, sem nada da vigorosa personalidade das
doutrinas religiosas. Os críticos insistem em descrever como ‘profundamente
religioso’ qualquer um que admita uma sensação da insignificância ou impotência
do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude
religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um
remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o
pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é,
pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.”
”Podemos insistir, tão frequentemente quanto
quisermos, em que o intelecto do homem não tem poder, em comparação com sua
vida instintual, e podemos estar certos quanto a isso. Não obstante, há algo de
peculiar nessa fraqueza. A voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto
não consegue uma audiência. Finalmente, após uma incontável sucessão de
reveses, obtém êxito. Esse é um dos poucos pontos sobre o qual se pode ser
otimista a respeito do futuro da humanidade, e, em si mesmo, é de não pequena
importância. E dele se podem derivar outras esperanças ainda.”
“A longo prazo, nada pode resistir à razão e à
experiência, e a contradição que a religião oferece a ambas é palpável demais.”
“Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não
nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário