Editora: Zahar
ISBN: 978-85-378-1924-1
Tradução: Marcus
Penchel
Opinião: ★★★☆☆
Análise em
vídeo: Clique
aqui
Link para compra: Clique aqui
Páginas: 152
Sinopse: Ver Parte I
“A hierarquia global da mobilidade
Lembremos
mais uma vez o que Michel Cozier assinalou muitos anos atrás no seu pioneiro
estudo sobre O fenômeno burocrático: toda dominação consiste na busca de
uma estratégia essencialmente semelhante — deixar a máxima liberdade de manobra
ao dominante e impor ao mesmo tempo as restrições mais estritas possíveis à liberdade
de decisão do dominado.
Essa
estratégia foi outrora aplicada com sucesso por governos estatais, que agora no
entanto se encontram do outro lado do processo. Agora é a conduta dos
“mercados” — primordialmente das finanças mundiais — a principal fonte de
surpresa e incerteza. Não é difícil portanto ver que a substituição dos Estados
territoriais “fracos” por algum tipo de potências legislativas e policiais
globais seria prejudicial aos interesses dos “mercados mundiais”. E assim é
fácil suspeitar que, longe de agirem em contradição e guerra uma com a outra, a
fragmentação política e a globalização econômica são aliados íntimos e
conspiradores afinados.
A
integração e a divisão, a globalização e a territorialização, são processos
mutuamente complementares. Mais precisamente, são duas faces do mesmo
processo: a redistribuição mundial de soberania, poder e liberdade de agir
desencadeada (mas de forma alguma determinada) pelo salto radical na tecnologia
da velocidade. A coincidência e entrelaçamento da síntese e da dispersão, da
integração e da decomposição são tudo, menos acidentais; e menos ainda
passíveis de retificação.
É
por causa dessa coincidência e desse entrelaçamento das duas tendências
aparentemente opostas, ambas desencadeadas pelo impacto divisor da nova
liberdade de movimento, que os chamados processos “globalizantes” redundam na
redistribuição de privilégios e carências, de riqueza e pobreza, de recursos e
impotência, de poder e ausência de poder, de liberdade e restrição.
Testemunhamos hoje um processo de reestratificação mundial, no qual se
constrói uma nova hierarquia sociocultural em escala planetária.
As
quase soberanias, as divisões territoriais e a segregação de identidades
promovidas e transformadas num must pela globalização dos mercados e da
informação não refletem uma diversidade de parceiros iguais. O que é opção
livre para alguns abate-se sobre outros como destino cruel. E uma vez que esses
“outros” tendem a aumentar incessantemente em número e afundar cada vez mais no
desespero, fruto de uma existência sem perspectiva, é melhor falar em “glocalização”
(termo adequado de Roland Robertson que expõe a inquebrantável unidade entre as
pressões globalizantes e locais — fenômeno encoberto no conceito unilateral de
globalização) e defini-lo essencialmente como o processo de concentração de
capitais, das finanças e todos os outros recursos de escolha e ação efetiva,
mas também — talvez sobretudo — de concentração da liberdade de se mover
e agir (duas liberdades que para todos os efeitos práticos são sinônimas).
Comentando
a descoberta feita no último Informe da ONU sobre o Desenvolvimento de
que a riqueza total dos 358 maiores “bilionários globais” equivale à renda
somada dos 2,3 bilhões mais pobres (45 por cento da população mundial), Victor
Kee-gan14 chamou o reembaralhamento atual dos recursos mundiais de
“uma nova forma de roubo de estrada”. Com efeito, só 22 por cento da riqueza
global pertencem aos chamados “países em desenvolvimento”, que respondem por
cerca de 80 por cento da população mundial. E esse não é de forma alguma o
limite a que deve chegar a atual polarização, uma vez que a parcela da renda
global que cabe atualmente aos pobres é ainda menor: em 1991, 85 por cento da
população mundial recebiam apenas 15 por cento da renda global. Não admira que
os esquálidos 2,3 por cento da riqueza mundial possuídos por 20 por cento dos
países mais pobres trinta anos atrás caíram agora ainda mais no abismo: para
1,4 por cento.
Também
a rede global de comunicação, aclamada como a porta de uma nova e inaudita
liberdade e, sobretudo, como o fundamento tecnológico da iminente igualdade, é
claramente usada como muita seletividade — trata-se na verdade de uma estreita
fenda na parede, não de um portal. Poucas (e cada vez menos) pessoas têm
autorização para passar. “Tudo o que os computadores fazem atualmente para o
Terceiro Mundo é a crônica mais eficiente da sua decadência”, diz Keegan. E
conclui: “Se (como observou um crítico americano) os 358 decidissem ficar cada
um com US$ 5 milhões para se manter e distribuir o resto, praticamente
dobrariam a renda anual de quase metade da população da Terra. E os porcos
voariam.”
Nas
palavras de John Kavanagh, do Instituto de Pesquisa Política de Washington,
A globalização deu mais oportunidades aos
extremamente ricos de ganhar dinheiro mais rápido. Esses indivíduos utilizam a
mais recente tecnologia para movimentar largas somas de dinheiro mundo afora
com extrema rapidez e especular com eficiência cada vez maior.
Infelizmente, a tecnologia não causa impacto nas
vidas dos pobres do mundo. De fato, a globalização é um paradoxo: é muito
benéfica para muito poucos, mas deixa de fora ou marginaliza dois terços da
população mundial.15
Como
rezaria o folclore da nova geração de “classes esclarecidas” geradas no
admirável novo mundo monetarista do capital nômade, abrir represas e dinamitar
todos os diques mantidos pelo Estado fará do mundo um lugar livre para todos.
Segundo essas crenças folclóricas, a liberdade (de comércio e a mobilidade de
capital, antes e acima de tudo) é a estufa na qual a riqueza cresceria mais
rápido do que nunca; e uma vez multiplicada a riqueza, haverá mais para todos.
Os
pobres do mundo — quer velhos ou novos, hereditários ou fruto da computação —
dificilmente reconheceriam sua angustiosa situação nessa ficção folclórica. Os
meios são a mensagem e os meios de comunicação através dos quais está sendo
criado o mercado mundial não facilitam, mas ao contrário impedem, o prometido
efeito de “gotejamento”. Novas fortunas nascem, crescem e florescem na
realidade virtual, firmemente isoladas das rudes e despachadas realidades fora
de moda dos pobres. A criação de riqueza está a caminho de finalmente
emancipar-se das suas perpétuas conexões — restritivas e vexatórias — com a
produção de coisas, o processamento de materiais, a criação de empregos e a
direção de pessoas. Os antigos ricos precisavam dos pobres para fazê-los e
mantê-los ricos. Essa dependência mitigou em todas as épocas o conflito de
interesses e incentivou algum esforço, ainda que débil, de assistência. Os novos-ricos
não precisam mais dos pobres. Finalmente a bem-aventurança da liberdade total
está próxima.
A
mentira da promessa do livre comércio é bem encoberta; a conexão entre a
crescente miséria e desespero dos muitos “imobilizados” e as novas liberdades dos
poucos com mobilidade é difícil de perceber nos informes sobre as regiões
lançadas na ponta sofredora da “glocalização”. Parece, ao contrário, que os
dois fenômenos pertencem a mundos diferentes, cada um com suas próprias causas
marcadamente diversas. Jamais se suspeitaria pelos informes que o rápido
enriquecimento e o rápido empobrecimento brotam da mesma raiz, que a
“imobilidade” dos miseráveis é um resultado tão legítimo das pressões
“glocalizantes” quanto as novas liberdades dos bem-sucedidos para os quais o
céu é o limite (como jamais se suspeitaria pelas análises sociológicas do
Holocausto e de outros genocídios que eles “combinam” perfeitamente com a
sociedade moderna, assim como o progresso econômico, tecnológico, científico e
do padrão de vida).
Como
explicou recentemente Ryszard Kapuscinski, um dos mais formidáveis cronistas da
vida contemporânea, o acoberta-mento daquela mentira é obtido por meio de três
expedientes inter-relacionados que os meios de comunicação utilizam de modo
consistente, com irrupções ocasionais e carnavalescas de interesse público pelo
sofrimento dos “pobres do mundo”.16
Primeiro,
o noticiário sobre uma epidemia de fome — supostamente a última razão que
restou para romper a indiferença rotineira — vem em geral acompanhado de um
enfático lembrete de que as terras distantes onde as pessoas “vistas na TV”
morrem de fome e doença são as mesmas dos “tigres asiáticos”, esses
beneficiários exemplares da nova maneira imaginativa e admirável de fazer as
coisas. Não importa que todos os “tigres” juntos reúnam apenas 1 por cento da
população da Ásia. Supõe-se que eles demonstram o que era preciso provar — que
o lamentável sofrimento dos famintos e indolentes é opção sui generis
deles próprios, que as alternativas estão disponíveis e podem ser alcançadas
mas não são adotadas por falta de diligência ou determinação. A mensagem
subentendida é que os próprios pobres são responsáveis por seu destino; que
eles poderiam, como fizeram os “tigres”, perceber que a presa fácil não
satisfaz o apetite dos tigres.
Segundo,
as notícias são pautadas e editadas de modo a reduzir o problema da pobreza e
privação apenas à questão da fome. Esse estratagema mata dois coelhos com uma
cajadada: a verdadeira escala da pobreza é omitida (800 milhões de pessoas são
permanentemente subnutridas, mas cerca de 4 bilhões — dois terços da população
mundial — vivem na pobreza) e a tarefa a enfrentar é limitada a arranjar comida
para os famintos. Mas, como assinala Kapuscinski, essa apresentação do problema
da pobreza (como exemplifica uma edição recente do The Economist que
analisa a pobreza mundial sob o título “Como alimentar o mundo”) “degrada
terrivelmente e praticamente nega a condição humana plena das pessoas a quem
supostamente queremos ajudar”. O que a equação “pobreza = fome” esconde são
muitos outros aspectos complexos da pobreza — “horríveis condições de vida e
moradia, doença, analfabetismo, agressão, famílias destruídas, enfraquecimento
dos laços sociais, ausência de futuro e de produtividade” —; aflições que não
podem ser curadas com biscoitos superproteicos e leite em pó. Kapuscinski
lembra que perambulou por vilas e aldeias africanas, encontrando crianças “que
imploravam não pão, água, chocolate ou brinquedos, mas uma esferográfica, pois
iam à escola e não tinham com que escrever as lições”.
Acrescentemos
que toda associação das horrendas imagens da fome apresentadas na mídia com a
destruição do trabalho e dos postos de trabalho (isto é, com as causas globais
da pobreza local) é cuidadosamente evitada. As pessoas são mostradas com sua
fome, mas, por mais que os espectadores agucem a visão, não verão um único
instrumento de trabalho, uma única faixa de terra arável ou uma só cabeça de
gado nas imagens, nem ouvirão qualquer referência a nada disso. Como se não houvesse
ligação entre o vazio das exortações rotineiras para que se “levantem e façam
alguma coisa”, dirigidas aos pobres num mundo que não precisa mais da força de
trabalho, pelo menos não nas terras onde as pessoas mostradas pela TV morrem de
fome, e o sofrimento de pessoas oferecidas como escoadouro carnavalesco, em
“feira de caridade”, para um impulso moral contido. As riquezas são globais, a
miséria é local — mas não há ligação causai entre elas, pelo menos não no
espetáculo dos alimentados e dos que alimentam.
Victor
Hugo faz uma de suas personagens, Enjolras; exclamar com tristeza
pouco antes de morrer numa das muitas barricadas do século XIX: “O século XX
será feliz.” Sucedeu, comenta René
Passet, que “as mesmas tecnologias
imateriais que sustentaram essa promessa implicam simultaneamente a sua
negação”, em especial quando “combinadas com a frenética liberalização
planetária das trocas e movimentos de capital”. Tecnologias que efetivamente se
livram do tempo e do espaço precisam de pouco tempo para despir e empobrecer o
espaço. Elas tornam o capital verdadeiramente global; fazem com que todos
aqueles que não podem acompanhar nem deter os novos hábitos nômades do capital
observem impotentes a degradação e desaparecimento do seu meio de subsistência
e se indaguem de onde surgiu a praga. As viagens globais dos recursos
financeiros são talvez tão imateriais quanto a rede eletrônica que percorrem,
mas os vestígios locais de sua jornada são dolorosamente palpáveis e reais: o
“despovoamento qualitativo”, a destruição das economias locais outrora capazes
de sustentar seus habitantes, a exclusão de milhões impossíveis de serem
absorvidos pela nova economia global.
Em
terceiro lugar, o espetáculo dos desastres apresentado nos meios de comunicação
também sustenta e reforça de outra maneira a indiferença ética rotineira,
cotidiana, além de descarregar as reservas acumuladas de sentimentos morais.
Seu efeito a longo prazo é que “a parte desenvolvida do mundo cerca-se de um
cinturão sanitário de descompromisso, erguendo um Muro de Berlim global; toda
informação que vem ‘de fora’ são imagens de guerra, assassinatos, drogas,
pilhagem, doenças contagiosas, refugiados e fome; isto é, de algo ameaçador
para nós”. Só raramente, e invariavelmente num tom abafado e sem qualquer conexão
com as cenas de guerras civis e massacres, ouvimos falar das armas mortíferas
usadas para esse fim. Ainda menos frequente é nos lembrarem, quando o fazem,
daquilo que sabemos mas preferimos não ouvir: que todas essas armas usadas para
transformar lares distantes em campos de morticínio foram fornecidas por nossas
indústrias bélicas, ávidas de encomendas e orgulhosas de sua produtividade e
competitividade global — essa seiva vital da nossa amada prosperidade. Uma
imagem sintética da brutalidade auto-infligida vai se sedimentando na
consciência pública — uma imagem de “ruas sórdidas”, “zonas proibidas”
ampliadas, versão aumentada de uma terra de bandidos, um mundo estranho,
subumano, para além da ética e de toda salvação. Tentativas de salvar esse
mundo das piores consequências de sua própria brutalidade só podem produzir
efeitos momentâneos e estão fadadas ao fracasso a longo prazo; todas as cordas
lançadas aos náufragos podem ser facilmente retrançadas em novos laços.
Há
outro papel importante desempenhado pela associação dos habitantes “locais
distantes” com o assassinato, a epidemia e a pilhagem. Dada a sua
monstruosidade, só se pode agradecer a Deus por fazer deles o que são —
habitantes locais distantes — e rezar para que continuem assim.
O
desejo dos famintos de ir para onde a comida é abundante é o que naturalmente
se esperaria de seres humanos racionais; deixar que ajam de acordo com esse
desejo é também o que parece correto e moral à consciência. É por sua inegável
racionalidade e correção ética que o mundo racional e eticamente consciente se
sente tão desanimado ante a perspectiva da migração em massa dos pobres e
famintos; é tão difícil negar aos pobres e famintos, sem se sentir culpado, o
direito de ir onde há abundância de comida; e é virtualmente impossível propor
argumentos racionais convincentes provando que a migração seria para eles uma
decisão irracional. O desafio é realmente espantoso: negar aos outros o
mesmíssimo direito à liberdade de movimento que se elogia como a máxima
realização do mundo globalizante e a garantia de sua crescente prosperidade...
As
imagens de desumanidade que dominam as terras onde vivem possíveis migrantes
vêm portanto a calhar. Elas reforçam a determinação que não dispõe de argumentos
éticos e racionais a apoiá-la. Ajudam os habitantes locais a permanecerem
locais, ao mesmo tempo que permitem aos globais viajar com a consciência limpa.”
14.
Ver Victor Keegan, “Highway robbery by the super-rich”, The Guardian, 22
de julho de 1996.
15.
Citado por Graham Balls e Milly Jenkins, “To much for them, not enough for us”,
Independent on Sunday, 21 de julho de 1996.
16.
Ver Ryszard Kapuscinski, Lapidarium HI (Varsóvia, 1996).
“No mundo que habitamos, a distância não parece importar muito. Às vezes
parece que só existe para ser anulada, como se o espaço não passasse de um
convite contínuo a ser desrespeitado, refutado, negado. O espaço deixou de ser
um obstáculo — basta uma fração de segundo para conquistá-lo.
Não
há mais “fronteiras naturais” nem lugares óbvios a ocupar. Onde quer que
estejamos em determinado momento, não podemos evitar de saber que poderíamos
estar em outra parte, de modo que há cada vez menos razão para ficar em algum
lugar específico (e por isso muitas vezes sentimos uma ânsia premente de
encontrar — de inventar — uma razão). O espirituoso adágio de Pascal revelou-se
uma profecia confirmada: de fato vivemos num estranho círculo cujo centro está
em toda parte e a circunferência em parte alguma (ou, quem sabe, exatamente o contrário?).
E assim, pelo menos espiritualmente, somos todos
viajantes. Ou, como diz Michael Benedikt, “a importância mesma da localização
em todas as escalas começa a ser questionada. Tornamo-nos nômades que estão
sempre em contato.”1 Mas estamos também nos movendo em outro sentido
mais profundo, seja com o pé na estrada ou saltando entre os canais e quer
gostemos ou não disso.
A
ideia do “estado de repouso”, da imobilidade, só faz sentido num mundo que fica
parado ou que assim fosse percebido: num lugar com paredes sólidas, estradas
fixas e placas de sinalização bastante firmes para enferrujar com o tempo. Não
se pode “ficar parado” em areia movediça. Nem nesse nosso mundo moderno final
ou pós-moderno — um mundo com pontos de referência sobre rodas, os quais têm o
irritante hábito de sumir de vista antes que se possa ler toda a sua instrução,
examiná-la e agir de acordo. O professor Ricardo Petrella, da Universidade Católica de Louvain, recentemente
resumiu isso muito bem: “A globalização arrasta as economias para a produção do
efêmero, do volátil (por meio de uma redução em massa e universal da
durabilidade dos produtos e serviços) e do precário (empregos temporários,
flexíveis, de meio expediente).”2
Para
abrir caminho na mata densa, escura, espalhada e “des-regulamentada” da
competitividade global e chegar à ribalta da atenção pública, os bens, serviços
e sinais devem despertar desejo e, para isso, devem seduzir os possíveis
consumidores e afastar seus competidores. Mas, assim que o conseguirem, devem
abrir espaço rapidamente para outros objetos de desejo, do contrário a caça
global de lucros e mais lucros (rebatizada de “crescimento econômico”) irá
parar. A indústria atual funciona cada vez mais para a produção de atrações e
tentações. E é da natureza das atrações tentar e seduzir apenas quando acenam
daquela distância que chamamos de futuro, uma vez que a tentação não pode
sobreviver muito tempo à rendição do tentado, assim como o desejo nunca
sobrevive a sua satisfação.
Não
há linha de chegada óbvia para essa corrida atrás de novos desejos, muito menos
de sua satisfação. A própria noção de “limite” precisa de dimensões
espaço-temporais. O efeito de “tirar a espera do desejo” é tirar o desejo da
espera. Uma vez que toda demora pode em princípio ser nivelada na
instantaneidade, de forma que uma infinidade de eventos temporais possa se
comprimir na duração de uma vida humana, e uma vez que toda distância parece
ajustar-se à compressão em co-presença, de modo que nenhuma escala espacial é
em princípio grande demais para o explorador de novas sensações, que
significado possível poderia ter a ideia de “limite”? E sem sentido, sem um
significado expresso, não há como a roda mágica da tentação e do desejo perder
o impulso. As consequências, para os altivos e para os humildes, são enormes —
como expressou Jeremy Seabrook de forma convincente:
A
pobreza não pode ser “curada”, pois não é um sintoma da doença do capitalismo.
Bem ao contrário: é evidência da sua saúde e robustez, do seu ímpeto para uma
acumulação e esforço sempre maiores ... Mesmo os mais ricos do mundo se queixam
sobretudo de todas as coisas de que se devem privar ... Mesmo os mais
privilegiados são compelidos a carregar dentro de si a urgência de lutar para
adquirir ...3”
1.
Michael Benedikt, “On cyberspace and virtual reality”, Man and Information
Technology (Estocolmo, IVA, 1995), p.42.
2.
Ricardo Petrella, “Une machine infernale”, Le Monde Diplomatique, junho
de 1997, p.17.
3.
Jeremy Seabrook, The Race for Riches: The Human Cost of Wealth
(Basingstoke, Marshall Pickering, 1988), p. 15, 19.
“Idealmente, todos os hábitos adquiridos deveriam recair nos ombros desse
novo tipo de consumidor, exatamente como se esperava que as paixões vocacionais
e aquisitivas de inspiração ética recaíssem, como disse Max Weber repetindo Baxter, nos ombros do santo protestante: “como um leve manto,
pronto para ser posto de lado a qualquer momento”.4 E os hábitos
são, de fato, contínua, diariamente e na primeira oportunidade postos de lado,
nunca tendo a chance de se tornarem as barras de ferro de uma gaiola (exceto um
meta-hábito que é o “hábito de mudar de hábitos”). Idealmente, nada deveria ser
abraçado com força por um consumidor, nada deveria exigir um compromisso “até
que a morte nos separe”, nenhuma necessidade deveria ser vista como
inteiramente satisfeita, nenhum desejo como último. Deve haver uma cláusula
“até segunda ordem” em cada juramento de lealdade e em cada compromisso. O que
realmente conta é apenas a volatilidade, a temporalidade interna de todos os
compromissos; isso conta mais que o próprio compromisso, que de qualquer forma
não se permite ultrapassar o tempo necessário para o consumo do objeto do
desejo (ou melhor, o tempo suficiente para desaparecer a conveniência desse
objeto).”
4.
Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, trad.
Talcott Parsons (Londres, George Allen & Unwin, 1976), p. 181.
“A necessária redução do tempo é melhor alcançada se os consumidores não
puderem prestar atenção ou concentrar o desejo por muito tempo em qualquer
objeto; isto é, se forem impacientes, impetuosos, indóceis e, acima de tudo,
facilmente instigáveis e também se facilmente perderem o interesse. A cultura
da sociedade de consumo envolve sobretudo o esquecimento, não o aprendizado.
Com efeito, quando a espera é retirada do querer e o querer da espera, a
capacidade de consumo dos consumidores pode ser esticada muito além dos limites
estabelecidos por quaisquer necessidades naturais ou adquiridas; também a
durabilidade física dos objetos do desejo não é mais exigida. A relação
tradicional entre necessidades e sua satisfação é revertida: a promessa e a
esperança de satisfação precedem a necessidade que se promete satisfazer e
serão sempre mais intensas e atraentes que as necessidades efetivas.
Aliás,
a promessa é tanto mais sedutora quanto menos familiar for a promessa em
questão; é um bocado divertido viver uma experiência que não se sabia que
existia e um bom consumidor é um aventureiro amante da diversão. Para os bons
consumidores não é a satisfação das necessidades que atormenta a pessoa, mas os
tormentos dos desejos ainda não percebidos nem suspeitados que fazem a promessa
ser tão tentadora.”
““O consumismo é assim o análogo social da
psicopatologia da depressão, com seus sintomas gêmeos em choque: o nervosismo e
a insônia.” (John Carroll)
Para
os consumidores da sociedade de consumo, estar em movimento — procurar, buscar,
não encontrar ou, mais precisamente, não encontrar ainda — não é sinônimo de
mal-estar, mas promessa de bem-aventurança, talvez a própria bem-aventurança.
Seu tipo de viagem esperançosa faz da chegada uma maldição. (Maurice Blanchot
notou que a resposta é o azar da pergunta; podemos dizer que a satisfação é o
azar do desejo.) Não tanto a avidez de adquirir, de possuir, não o acúmulo de
riqueza no seu sentido material, palpável, mas a excitação de uma sensação
nova, ainda não experimentada — este é o jogo do consumidor. Os consumidores
são primeiro e acima de tudo acumuladores de sensações; são
colecionadores de coisas apenas num sentido secundário e derivativo.
Mark
C. Taylor e Esa Saarinen resumem: “O desejo não deseja satisfação. Ao
contrário, o desejo deseja o desejo.”5 Pelo menos assim é o desejo
de um consumidor ideal. A perspectiva de dissipação e fim do desejo, de ficar
sem nada para ressuscitá-lo ou num mundo sem nada desejável, deve ser o mais
sinistro dos horrores para o consumidor ideal (e, claro, para os negociantes de
pesadelos de bens de consumo).
Para
aumentar sua capacidade de consumo, os consumidores não devem nunca ter
descanso. Precisam ser mantidos acordados e em alerta sempre, continuamente
expostos a novas tentações, num estado de excitação incessante — e também, com
efeito, em estado de perpétua suspeita e pronta insatisfação. As iscas que os
levam a desviar a atenção precisam confirmar a suspeita prometendo uma saída
para a insatisfação: “Você acha que já viu tudo? Você ainda não viu nada!”
É
dito com frequência que o mercado de consumo seduz os consumidores. Mas para
fazê-lo ele precisa de consumidores que queiram ser seduzidos (assim
como para comandar os operários o dono da fábrica precisava de uma equipe com
hábitos disciplinadores, com a obediência às ordens firmemente estabelecida).
Numa sociedade de consumo que funcione de forma adequada os consumidores buscam
com todo empenho ser seduzidos. Seus avós, os produtores, viviam de uma volta
da correia transmissora para a seguinte, idêntica. Eles próprios, para variar,
vivem de atração em atração, de tentação em tentação, do farejamento de um
petisco para a busca de outro, da mordida numa isca à pesca de outra — sendo
cada atração, tentação, petisco ou isca uma coisa nova, diferente e mais
atraente que a anterior.
Agir
assim é uma compulsão, um must, para os consumidores amadurecidos,
formados; mas esse “must”, essa pressão internalizada, essa impossibilidade
de viver a vida de qualquer outra forma, revela-se para esses consumidores sob
o disfarce de um livre exercício da vontade. O mercado pode já tê-los
selecionado como consumidores e assim retirado a sua liberdade de ignorar as
lisonjas; mas a cada visita a um ponto de compra os consumidores encontram
todas as razões para se sentir como se estivessem — talvez até eles apenas — no
comando. Eles são os juízes, os críticos e os que escolhem. Eles podem, afinal,
recusar fidelidade a qualquer das infinitas opções em exposição. Exceto a opção
de escolher entre uma delas, isto é, essa opção que não parece ser uma opção.
É
essa combinação dos consumidores, sempre ávidos de novas atrações e logo
enfastiados com atrações já obtidas, e de um mundo transformado em todas as
suas dimensões — econômicas, políticas e pessoais — segundo o padrão do mercado
de consumo e, como o mercado, pronto a agradar e mudar suas atrações com uma
velocidade cada vez maior; é essa combinação que varre toda sinalização fixa —
de aço, de concreto ou apenas cercada de autoridade — dos mapas individuais do
mundo e dos projetos e itinerários de vida. Com efeito, viajar esperançosamente
é na vida do consumidor muito mais agradável que chegar. A chegada tem esse
cheiro mofado de fim de estrada, esse gosto amargo de monotonia e estagnação
que poria fim a tudo aquilo pelo que e para que vive o consumidor — o
consumidor ideal — e que considera o sentido da vida. Para desfrutar o melhor
que este mundo tem a oferecer, você deve fazer todo tipo de coisa, exceto uma,
que é declarar como o Fausto de Goethe: “O, momento, você é belo, dure para
sempre!”
O
consumidor é uma pessoa em movimento e fadada a se mover sempre.”
5.
Mark C. Taylor e Esa Saarinen, Imagologies: Media Philosophy (Londres,
Routledge, s.d.), Telerotics 11.
““Os ricos que costumavam ser exibidos como heróis para adoração universal
e como padrões de emulação universal eram outrora os “self-made men”
cujas vidas resumiam os efeitos benignos da ética do trabalho e do apego
estrito e obstinado à razão. Mas já não é assim. O objeto de adoração é agora a
própria riqueza — a riqueza como garantia de um estilo de vida mais
extravagante e pródigo. O que importa é o que se pode fazer, não o
que deve ser feito ou o que foi feito. Universalmente adorada nas
pessoas ricas é a sua maravilhosa capacidade de escolher como levar a vida, os
lugares onde viver, os companheiros para partilhar esses lugares e de mudar
tudo isso à vontade e sem esforço — o fato de que nunca parecem alcançar pontos
sem retorno, de que não há um fim visível para suas reencarnações, de que seu
futuro parece sempre mais rico em conteúdo e mais atraente que o seu passado e,
por fim mas não menos importante, de que a única coisa que parece
interessar-lhes é a gama de perspectivas que sua riqueza abre para elas. Essas
pessoas parecem de fato guiadas pela estética do consumo; é a exibição de um
gosto estético extravagante e mesmo frívolo, não a obediência à ética do
trabalho ou o seco e puritano preceito da razão, o know-how e não o mero
sucesso financeiro, que está no coração da grandeza a elas atribuída e que lhes
dá direito à admiração universal.
“Os
pobres não habitam uma cultura separada dos ricos”, assinala Seabrook; “eles
têm que viver no mesmo mundo ideado em benefício dos que têm dinheiro. E sua
pobreza é agravada pelo crescimento econômico, assim como é intensificada pela
recessão e o não crescimento.” Com efeito, recessão significa mais pobreza e
menos recursos; mas o crescimento leva a uma exibição ainda mais frenética de maravilhas
de consumo e assim prenuncia um abismo ainda maior entre o desejado e o real.”
“Em O mal-estar da pós-modernidade argumento que, se Sigmund Freud estava certo ou
errado ao sugerir que a troca de uma boa parcela de liberdade pessoal por uma
certa medida de segurança coletivamente garantida era a principal causa das
aflições e sofrimentos psíquicos no período “clássico” da civilização moderna,
hoje, no estágio derradeiro ou pós-moderno da modernidade, é a tendência
oposta, de trocar um bocado de segurança pela crescente remoção de restrições
que tolhem o exercício da livre escolha, que gera os sentimentos amplamente
difundidos de medo e ansiedade. São esses sentimentos que buscam descarregar-se
(ou são canalizados) nas preocupações com a lei e a ordem.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário