segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Globalização: as consequências humanas (Parte II), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-85-378-1924-1

Tradução: Marcus Penchel

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 152

Sinopse: Ver Parte I


A hierarquia global da mobilidade

Lembremos mais uma vez o que Michel Cozier assinalou muitos anos atrás no seu pioneiro estudo sobre O fenômeno burocrático: toda dominação consiste na busca de uma estratégia essencialmente semelhante — deixar a máxima liberdade de manobra ao dominante e impor ao mesmo tempo as restrições mais estritas possíveis à liberdade de decisão do dominado.

Essa estratégia foi outrora aplicada com sucesso por governos estatais, que agora no entanto se encontram do outro lado do processo. Agora é a conduta dos “mercados” — primordialmente das finanças mundiais — a principal fonte de surpresa e incerteza. Não é difícil portanto ver que a substituição dos Estados territoriais “fracos” por algum tipo de potências legislativas e policiais globais seria prejudicial aos interesses dos “mercados mundiais”. E assim é fácil suspeitar que, longe de agirem em contradição e guerra uma com a outra, a fragmentação política e a globalização econômica são aliados íntimos e conspiradores afinados.

A integração e a divisão, a globalização e a territorialização, são processos mutuamente complementares. Mais precisamente, são duas faces do mesmo processo: a redistribuição mundial de soberania, poder e liberdade de agir desencadeada (mas de forma alguma determinada) pelo salto radical na tecnologia da velocidade. A coincidência e entrelaçamento da síntese e da dispersão, da integração e da decomposição são tudo, menos acidentais; e menos ainda passíveis de retificação.

É por causa dessa coincidência e desse entrelaçamento das duas tendências aparentemente opostas, ambas desencadeadas pelo impacto divisor da nova liberdade de movimento, que os chamados processos “globalizantes” redundam na redistribuição de privilégios e carências, de riqueza e pobreza, de recursos e impotência, de poder e ausência de poder, de liberdade e restrição. Testemunhamos hoje um processo de reestratificação mundial, no qual se constrói uma nova hierarquia sociocultural em escala planetária.

As quase soberanias, as divisões territoriais e a segregação de identidades promovidas e transformadas num must pela globalização dos mercados e da informação não refletem uma diversidade de parceiros iguais. O que é opção livre para alguns abate-se sobre outros como destino cruel. E uma vez que esses “outros” tendem a aumentar incessantemente em número e afundar cada vez mais no desespero, fruto de uma existência sem perspectiva, é melhor falar em “glocalização” (termo adequado de Roland Robertson que expõe a inquebrantável unidade entre as pressões globalizantes e locais — fenômeno encoberto no conceito unilateral de globalização) e defini-lo essencialmente como o processo de concentração de capitais, das finanças e todos os outros recursos de escolha e ação efetiva, mas também — talvez sobretudo — de concentração da liberdade de se mover e agir (duas liberdades que para todos os efeitos práticos são sinônimas).

Comentando a descoberta feita no último Informe da ONU sobre o Desenvolvimento de que a riqueza total dos 358 maiores “bilionários globais” equivale à renda somada dos 2,3 bilhões mais pobres (45 por cento da população mundial), Victor Kee-gan14 chamou o reembaralhamento atual dos recursos mundiais de “uma nova forma de roubo de estrada”. Com efeito, só 22 por cento da riqueza global pertencem aos chamados “países em desenvolvimento”, que respondem por cerca de 80 por cento da população mundial. E esse não é de forma alguma o limite a que deve chegar a atual polarização, uma vez que a parcela da renda global que cabe atualmente aos pobres é ainda menor: em 1991, 85 por cento da população mundial recebiam apenas 15 por cento da renda global. Não admira que os esquálidos 2,3 por cento da riqueza mundial possuídos por 20 por cento dos países mais pobres trinta anos atrás caíram agora ainda mais no abismo: para 1,4 por cento.

Também a rede global de comunicação, aclamada como a porta de uma nova e inaudita liberdade e, sobretudo, como o fundamento tecnológico da iminente igualdade, é claramente usada como muita seletividade — trata-se na verdade de uma estreita fenda na parede, não de um portal. Poucas (e cada vez menos) pessoas têm autorização para passar. “Tudo o que os computadores fazem atualmente para o Terceiro Mundo é a crônica mais eficiente da sua decadência”, diz Keegan. E conclui: “Se (como observou um crítico americano) os 358 decidissem ficar cada um com US$ 5 milhões para se manter e distribuir o resto, praticamente dobrariam a renda anual de quase metade da população da Terra. E os porcos voariam.”

Nas palavras de John Kavanagh, do Instituto de Pesquisa Política de Washington,

A globalização deu mais oportunidades aos extremamente ricos de ganhar dinheiro mais rápido. Esses indivíduos utilizam a mais recente tecnologia para movimentar largas somas de dinheiro mundo afora com extrema rapidez e especular com eficiência cada vez maior.

Infelizmente, a tecnologia não causa impacto nas vidas dos pobres do mundo. De fato, a globalização é um paradoxo: é muito benéfica para muito poucos, mas deixa de fora ou marginaliza dois terços da população mundial.15

Como rezaria o folclore da nova geração de “classes esclarecidas” geradas no admirável novo mundo monetarista do capital nômade, abrir represas e dinamitar todos os diques mantidos pelo Estado fará do mundo um lugar livre para todos. Segundo essas crenças folclóricas, a liberdade (de comércio e a mobilidade de capital, antes e acima de tudo) é a estufa na qual a riqueza cresceria mais rápido do que nunca; e uma vez multiplicada a riqueza, haverá mais para todos.

Os pobres do mundo — quer velhos ou novos, hereditários ou fruto da computação — dificilmente reconheceriam sua angustiosa situação nessa ficção folclórica. Os meios são a mensagem e os meios de comunicação através dos quais está sendo criado o mercado mundial não facilitam, mas ao contrário impedem, o prometido efeito de “gotejamento”. Novas fortunas nascem, crescem e florescem na realidade virtual, firmemente isoladas das rudes e despachadas realidades fora de moda dos pobres. A criação de riqueza está a caminho de finalmente emancipar-se das suas perpétuas conexões — restritivas e vexatórias — com a produção de coisas, o processamento de materiais, a criação de empregos e a direção de pessoas. Os antigos ricos precisavam dos pobres para fazê-los e mantê-los ricos. Essa dependência mitigou em todas as épocas o conflito de interesses e incentivou algum esforço, ainda que débil, de assistência. Os novos-ricos não precisam mais dos pobres. Finalmente a bem-aventurança da liberdade total está próxima.

A mentira da promessa do livre comércio é bem encoberta; a conexão entre a crescente miséria e desespero dos muitos “imobilizados” e as novas liberdades dos poucos com mobilidade é difícil de perceber nos informes sobre as regiões lançadas na ponta sofredora da “glocalização”. Parece, ao contrário, que os dois fenômenos pertencem a mundos diferentes, cada um com suas próprias causas marcadamente diversas. Jamais se suspeitaria pelos informes que o rápido enriquecimento e o rápido empobrecimento brotam da mesma raiz, que a “imobilidade” dos miseráveis é um resultado tão legítimo das pressões “glocalizantes” quanto as novas liberdades dos bem-sucedidos para os quais o céu é o limite (como jamais se suspeitaria pelas análises sociológicas do Holocausto e de outros genocídios que eles “combinam” perfeitamente com a sociedade moderna, assim como o progresso econômico, tecnológico, científico e do padrão de vida).

Como explicou recentemente Ryszard Kapuscinski, um dos mais formidáveis cronistas da vida contemporânea, o acoberta-mento daquela mentira é obtido por meio de três expedientes inter-relacionados que os meios de comunicação utilizam de modo consistente, com irrupções ocasionais e carnavalescas de interesse público pelo sofrimento dos “pobres do mundo”.16

Primeiro, o noticiário sobre uma epidemia de fome — supostamente a última razão que restou para romper a indiferença rotineira — vem em geral acompanhado de um enfático lembrete de que as terras distantes onde as pessoas “vistas na TV” morrem de fome e doença são as mesmas dos “tigres asiáticos”, esses beneficiários exemplares da nova maneira imaginativa e admirável de fazer as coisas. Não importa que todos os “tigres” juntos reúnam apenas 1 por cento da população da Ásia. Supõe-se que eles demonstram o que era preciso provar — que o lamentável sofrimento dos famintos e indolentes é opção sui generis deles próprios, que as alternativas estão disponíveis e podem ser alcançadas mas não são adotadas por falta de diligência ou determinação. A mensagem subentendida é que os próprios pobres são responsáveis por seu destino; que eles poderiam, como fizeram os “tigres”, perceber que a presa fácil não satisfaz o apetite dos tigres.

Segundo, as notícias são pautadas e editadas de modo a reduzir o problema da pobreza e privação apenas à questão da fome. Esse estratagema mata dois coelhos com uma cajadada: a verdadeira escala da pobreza é omitida (800 milhões de pessoas são permanentemente subnutridas, mas cerca de 4 bilhões — dois terços da população mundial — vivem na pobreza) e a tarefa a enfrentar é limitada a arranjar comida para os famintos. Mas, como assinala Kapuscinski, essa apresentação do problema da pobreza (como exemplifica uma edição recente do The Economist que analisa a pobreza mundial sob o título “Como alimentar o mundo”) “degrada terrivelmente e praticamente nega a condição humana plena das pessoas a quem supostamente queremos ajudar”. O que a equação “pobreza = fome” esconde são muitos outros aspectos complexos da pobreza — “horríveis condições de vida e moradia, doença, analfabetismo, agressão, famílias destruídas, enfraquecimento dos laços sociais, ausência de futuro e de produtividade” —; aflições que não podem ser curadas com biscoitos superproteicos e leite em pó. Kapuscinski lembra que perambulou por vilas e aldeias africanas, encontrando crianças “que imploravam não pão, água, chocolate ou brinquedos, mas uma esferográfica, pois iam à escola e não tinham com que escrever as lições”.

Acrescentemos que toda associação das horrendas imagens da fome apresentadas na mídia com a destruição do trabalho e dos postos de trabalho (isto é, com as causas globais da pobreza local) é cuidadosamente evitada. As pessoas são mostradas com sua fome, mas, por mais que os espectadores agucem a visão, não verão um único instrumento de trabalho, uma única faixa de terra arável ou uma só cabeça de gado nas imagens, nem ouvirão qualquer referência a nada disso. Como se não houvesse ligação entre o vazio das exortações rotineiras para que se “levantem e façam alguma coisa”, dirigidas aos pobres num mundo que não precisa mais da força de trabalho, pelo menos não nas terras onde as pessoas mostradas pela TV morrem de fome, e o sofrimento de pessoas oferecidas como escoadouro carnavalesco, em “feira de caridade”, para um impulso moral contido. As riquezas são globais, a miséria é local — mas não há ligação causal entre elas, pelo menos não no espetáculo dos alimentados e dos que alimentam.

Victor Hugo faz uma de suas personagens, Enjolras; exclamar com tristeza pouco antes de morrer numa das muitas barricadas do século XIX: “O século XX será feliz.” Sucedeu, comenta René Passet, que “as mesmas tecnologias imateriais que sustentaram essa promessa implicam simultaneamente a sua negação”, em especial quando “combinadas com a frenética liberalização planetária das trocas e movimentos de capital”. Tecnologias que efetivamente se livram do tempo e do espaço precisam de pouco tempo para despir e empobrecer o espaço. Elas tornam o capital verdadeiramente global; fazem com que todos aqueles que não podem acompanhar nem deter os novos hábitos nômades do capital observem impotentes a degradação e desaparecimento do seu meio de subsistência e se indaguem de onde surgiu a praga. As viagens globais dos recursos financeiros são talvez tão imateriais quanto a rede eletrônica que percorrem, mas os vestígios locais de sua jornada são dolorosamente palpáveis e reais: o “despovoamento qualitativo”, a destruição das economias locais outrora capazes de sustentar seus habitantes, a exclusão de milhões impossíveis de serem absorvidos pela nova economia global.

Em terceiro lugar, o espetáculo dos desastres apresentado nos meios de comunicação também sustenta e reforça de outra maneira a indiferença ética rotineira, cotidiana, além de descarregar as reservas acumuladas de sentimentos morais. Seu efeito a longo prazo é que “a parte desenvolvida do mundo cerca-se de um cinturão sanitário de descompromisso, erguendo um Muro de Berlim global; toda informação que vem ‘de fora’ são imagens de guerra, assassinatos, drogas, pilhagem, doenças contagiosas, refugiados e fome; isto é, de algo ameaçador para nós”. Só raramente, e invariavelmente num tom abafado e sem qualquer conexão com as cenas de guerras civis e massacres, ouvimos falar das armas mortíferas usadas para esse fim. Ainda menos frequente é nos lembrarem, quando o fazem, daquilo que sabemos mas preferimos não ouvir: que todas essas armas usadas para transformar lares distantes em campos de morticínio foram fornecidas por nossas indústrias bélicas, ávidas de encomendas e orgulhosas de sua produtividade e competitividade global — essa seiva vital da nossa amada prosperidade. Uma imagem sintética da brutalidade auto-infligida vai se sedimentando na consciência pública — uma imagem de “ruas sórdidas”, “zonas proibidas” ampliadas, versão aumentada de uma terra de bandidos, um mundo estranho, subumano, para além da ética e de toda salvação. Tentativas de salvar esse mundo das piores consequências de sua própria brutalidade só podem produzir efeitos momentâneos e estão fadadas ao fracasso a longo prazo; todas as cordas lançadas aos náufragos podem ser facilmente retrançadas em novos laços.

Há outro papel importante desempenhado pela associação dos habitantes “locais distantes” com o assassinato, a epidemia e a pilhagem. Dada a sua monstruosidade, só se pode agradecer a Deus por fazer deles o que são — habitantes locais distantes — e rezar para que continuem assim.

O desejo dos famintos de ir para onde a comida é abundante é o que naturalmente se esperaria de seres humanos racionais; deixar que ajam de acordo com esse desejo é também o que parece correto e moral à consciência. É por sua inegável racionalidade e correção ética que o mundo racional e eticamente consciente se sente tão desanimado ante a perspectiva da migração em massa dos pobres e famintos; é tão difícil negar aos pobres e famintos, sem se sentir culpado, o direito de ir onde há abundância de comida; e é virtualmente impossível propor argumentos racionais convincentes provando que a migração seria para eles uma decisão irracional. O desafio é realmente espantoso: negar aos outros o mesmíssimo direito à liberdade de movimento que se elogia como a máxima realização do mundo globalizante e a garantia de sua crescente prosperidade...

As imagens de desumanidade que dominam as terras onde vivem possíveis migrantes vêm portanto a calhar. Elas reforçam a determinação que não dispõe de argumentos éticos e racionais a apoiá-la. Ajudam os habitantes locais a permanecerem locais, ao mesmo tempo que permitem aos globais viajar com a consciência limpa.”

14. Ver Victor Keegan, “Highway robbery by the super-rich”, The Guardian, 22 de julho de 1996.

15. Citado por Graham Balls e Milly Jenkins, “To much for them, not enough for us”, Independent on Sunday, 21 de julho de 1996.

16. Ver Ryszard Kapuscinski, Lapidarium HI (Varsóvia, 1996).

 

 

No mundo que habitamos, a distância não parece importar muito. Às vezes parece que só existe para ser anulada, como se o espaço não passasse de um convite contínuo a ser desrespeitado, refutado, negado. O espaço deixou de ser um obstáculo — basta uma fração de segundo para conquistá-lo.

Não há mais “fronteiras naturais” nem lugares óbvios a ocupar. Onde quer que estejamos em determinado momento, não podemos evitar de saber que poderíamos estar em outra parte, de modo que há cada vez menos razão para ficar em algum lugar específico (e por isso muitas vezes sentimos uma ânsia premente de encontrar — de inventar — uma razão). O espirituoso adágio de Pascal revelou-se uma profecia confirmada: de fato vivemos num estranho círculo cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte alguma (ou, quem sabe, exatamente o contrário?).

E assim, pelo menos espiritualmente, somos todos viajantes. Ou, como diz Michael Benedikt, “a importância mesma da localização em todas as escalas começa a ser questionada. Tornamo-nos nômades que estão sempre em contato.”1 Mas estamos também nos movendo em outro sentido mais profundo, seja com o pé na estrada ou saltando entre os canais e quer gostemos ou não disso.

A ideia do “estado de repouso”, da imobilidade, só faz sentido num mundo que fica parado ou que assim fosse percebido: num lugar com paredes sólidas, estradas fixas e placas de sinalização bastante firmes para enferrujar com o tempo. Não se pode “ficar parado” em areia movediça. Nem nesse nosso mundo moderno final ou pós-moderno — um mundo com pontos de referência sobre rodas, os quais têm o irritante hábito de sumir de vista antes que se possa ler toda a sua instrução, examiná-la e agir de acordo. O professor Ricardo Petrella, da Universidade Católica de Louvain, recentemente resumiu isso muito bem: “A globalização arrasta as economias para a produção do efêmero, do volátil (por meio de uma redução em massa e universal da durabilidade dos produtos e serviços) e do precário (empregos temporários, flexíveis, de meio expediente).”2

Para abrir caminho na mata densa, escura, espalhada e “des-regulamentada” da competitividade global e chegar à ribalta da atenção pública, os bens, serviços e sinais devem despertar desejo e, para isso, devem seduzir os possíveis consumidores e afastar seus competidores. Mas, assim que o conseguirem, devem abrir espaço rapidamente para outros objetos de desejo, do contrário a caça global de lucros e mais lucros (rebatizada de “crescimento econômico”) irá parar. A indústria atual funciona cada vez mais para a produção de atrações e tentações. E é da natureza das atrações tentar e seduzir apenas quando acenam daquela distância que chamamos de futuro, uma vez que a tentação não pode sobreviver muito tempo à rendição do tentado, assim como o desejo nunca sobrevive a sua satisfação.

Não há linha de chegada óbvia para essa corrida atrás de novos desejos, muito menos de sua satisfação. A própria noção de “limite” precisa de dimensões espaço-temporais. O efeito de “tirar a espera do desejo” é tirar o desejo da espera. Uma vez que toda demora pode em princípio ser nivelada na instantaneidade, de forma que uma infinidade de eventos temporais possa se comprimir na duração de uma vida humana, e uma vez que toda distância parece ajustar-se à compressão em co-presença, de modo que nenhuma escala espacial é em princípio grande demais para o explorador de novas sensações, que significado possível poderia ter a ideia de “limite”? E sem sentido, sem um significado expresso, não há como a roda mágica da tentação e do desejo perder o impulso. As consequências, para os altivos e para os humildes, são enormes — como expressou Jeremy Seabrook de forma convincente:

A pobreza não pode ser “curada”, pois não é um sintoma da doença do capitalismo. Bem ao contrário: é evidência da sua saúde e robustez, do seu ímpeto para uma acumulação e esforço sempre maiores ... Mesmo os mais ricos do mundo se queixam sobretudo de todas as coisas de que se devem privar ... Mesmo os mais privilegiados são compelidos a carregar dentro de si a urgência de lutar para adquirir ...3

1. Michael Benedikt, “On cyberspace and virtual reality”, Man and Information Technology (Estocolmo, IVA, 1995), p.42.

2. Ricardo Petrella, “Une machine infernale”, Le Monde Diplomatique, junho de 1997, p.17.

3. Jeremy Seabrook, The Race for Riches: The Human Cost of Wealth (Basingstoke, Marshall Pickering, 1988), p. 15, 19.

 

 

Idealmente, todos os hábitos adquiridos deveriam recair nos ombros desse novo tipo de consumidor, exatamente como se esperava que as paixões vocacionais e aquisitivas de inspiração ética recaíssem, como disse Max Weber repetindo Baxter, nos ombros do santo protestante: “como um leve manto, pronto para ser posto de lado a qualquer momento”.4 E os hábitos são, de fato, contínua, diariamente e na primeira oportunidade postos de lado, nunca tendo a chance de se tornarem as barras de ferro de uma gaiola (exceto um meta-hábito que é o “hábito de mudar de hábitos”). Idealmente, nada deveria ser abraçado com força por um consumidor, nada deveria exigir um compromisso “até que a morte nos separe”, nenhuma necessidade deveria ser vista como inteiramente satisfeita, nenhum desejo como último. Deve haver uma cláusula “até segunda ordem” em cada juramento de lealdade e em cada compromisso. O que realmente conta é apenas a volatilidade, a temporalidade interna de todos os compromissos; isso conta mais que o próprio compromisso, que de qualquer forma não se permite ultrapassar o tempo necessário para o consumo do objeto do desejo (ou melhor, o tempo suficiente para desaparecer a conveniência desse objeto).”

4. Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, trad. Talcott Parsons (Londres, George Allen & Unwin, 1976), p. 181.

 

 

A necessária redução do tempo é melhor alcançada se os consumidores não puderem prestar atenção ou concentrar o desejo por muito tempo em qualquer objeto; isto é, se forem impacientes, impetuosos, indóceis e, acima de tudo, facilmente instigáveis e também se facilmente perderem o interesse. A cultura da sociedade de consumo envolve sobretudo o esquecimento, não o aprendizado. Com efeito, quando a espera é retirada do querer e o querer da espera, a capacidade de consumo dos consumidores pode ser esticada muito além dos limites estabelecidos por quaisquer necessidades naturais ou adquiridas; também a durabilidade física dos objetos do desejo não é mais exigida. A relação tradicional entre necessidades e sua satisfação é revertida: a promessa e a esperança de satisfação precedem a necessidade que se promete satisfazer e serão sempre mais intensas e atraentes que as necessidades efetivas.

Aliás, a promessa é tanto mais sedutora quanto menos familiar for a promessa em questão; é um bocado divertido viver uma experiência que não se sabia que existia e um bom consumidor é um aventureiro amante da diversão. Para os bons consumidores não é a satisfação das necessidades que atormenta a pessoa, mas os tormentos dos desejos ainda não percebidos nem suspeitados que fazem a promessa ser tão tentadora.”

 

 

““O consumismo é assim o análogo social da psicopatologia da depressão, com seus sintomas gêmeos em choque: o nervosismo e a insônia.” (John Carroll)

Para os consumidores da sociedade de consumo, estar em movimento — procurar, buscar, não encontrar ou, mais precisamente, não encontrar ainda — não é sinônimo de mal-estar, mas promessa de bem-aventurança, talvez a própria bem-aventurança. Seu tipo de viagem esperançosa faz da chegada uma maldição. (Maurice Blanchot notou que a resposta é o azar da pergunta; podemos dizer que a satisfação é o azar do desejo.) Não tanto a avidez de adquirir, de possuir, não o acúmulo de riqueza no seu sentido material, palpável, mas a excitação de uma sensação nova, ainda não experimentada — este é o jogo do consumidor. Os consumidores são primeiro e acima de tudo acumuladores de sensações; são colecionadores de coisas apenas num sentido secundário e derivativo.

Mark C. Taylor e Esa Saarinen resumem: “O desejo não deseja satisfação. Ao contrário, o desejo deseja o desejo.”5 Pelo menos assim é o desejo de um consumidor ideal. A perspectiva de dissipação e fim do desejo, de ficar sem nada para ressuscitá-lo ou num mundo sem nada desejável, deve ser o mais sinistro dos horrores para o consumidor ideal (e, claro, para os negociantes de pesadelos de bens de consumo).

Para aumentar sua capacidade de consumo, os consumidores não devem nunca ter descanso. Precisam ser mantidos acordados e em alerta sempre, continuamente expostos a novas tentações, num estado de excitação incessante — e também, com efeito, em estado de perpétua suspeita e pronta insatisfação. As iscas que os levam a desviar a atenção precisam confirmar a suspeita prometendo uma saída para a insatisfação: “Você acha que já viu tudo? Você ainda não viu nada!”

É dito com frequência que o mercado de consumo seduz os consumidores. Mas para fazê-lo ele precisa de consumidores que queiram ser seduzidos (assim como para comandar os operários o dono da fábrica precisava de uma equipe com hábitos disciplinadores, com a obediência às ordens firmemente estabelecida). Numa sociedade de consumo que funcione de forma adequada os consumidores buscam com todo empenho ser seduzidos. Seus avós, os produtores, viviam de uma volta da correia transmissora para a seguinte, idêntica. Eles próprios, para variar, vivem de atração em atração, de tentação em tentação, do farejamento de um petisco para a busca de outro, da mordida numa isca à pesca de outra — sendo cada atração, tentação, petisco ou isca uma coisa nova, diferente e mais atraente que a anterior.

Agir assim é uma compulsão, um must, para os consumidores amadurecidos, formados; mas esse “must”, essa pressão internalizada, essa impossibilidade de viver a vida de qualquer outra forma, revela-se para esses consumidores sob o disfarce de um livre exercício da vontade. O mercado pode já tê-los selecionado como consumidores e assim retirado a sua liberdade de ignorar as lisonjas; mas a cada visita a um ponto de compra os consumidores encontram todas as razões para se sentir como se estivessem — talvez até eles apenas — no comando. Eles são os juízes, os críticos e os que escolhem. Eles podem, afinal, recusar fidelidade a qualquer das infinitas opções em exposição. Exceto a opção de escolher entre uma delas, isto é, essa opção que não parece ser uma opção.

É essa combinação dos consumidores, sempre ávidos de novas atrações e logo enfastiados com atrações já obtidas, e de um mundo transformado em todas as suas dimensões — econômicas, políticas e pessoais — segundo o padrão do mercado de consumo e, como o mercado, pronto a agradar e mudar suas atrações com uma velocidade cada vez maior; é essa combinação que varre toda sinalização fixa — de aço, de concreto ou apenas cercada de autoridade — dos mapas individuais do mundo e dos projetos e itinerários de vida. Com efeito, viajar esperançosamente é na vida do consumidor muito mais agradável que chegar. A chegada tem esse cheiro mofado de fim de estrada, esse gosto amargo de monotonia e estagnação que poria fim a tudo aquilo pelo que e para que vive o consumidor — o consumidor ideal — e que considera o sentido da vida. Para desfrutar o melhor que este mundo tem a oferecer, você deve fazer todo tipo de coisa, exceto uma, que é declarar como o Fausto de Goethe: “O, momento, você é belo, dure para sempre!”

O consumidor é uma pessoa em movimento e fadada a se mover sempre.”

5. Mark C. Taylor e Esa Saarinen, Imagologies: Media Philosophy (Londres, Routledge, s.d.), Telerotics 11.

 

 

““Os ricos que costumavam ser exibidos como heróis para adoração universal e como padrões de emulação universal eram outrora os “self-made men” cujas vidas resumiam os efeitos benignos da ética do trabalho e do apego estrito e obstinado à razão. Mas já não é assim. O objeto de adoração é agora a própria riqueza — a riqueza como garantia de um estilo de vida mais extravagante e pródigo. O que importa é o que se pode fazer, não o que deve ser feito ou o que foi feito. Universalmente adorada nas pessoas ricas é a sua maravilhosa capacidade de escolher como levar a vida, os lugares onde viver, os companheiros para partilhar esses lugares e de mudar tudo isso à vontade e sem esforço — o fato de que nunca parecem alcançar pontos sem retorno, de que não há um fim visível para suas reencarnações, de que seu futuro parece sempre mais rico em conteúdo e mais atraente que o seu passado e, por fim mas não menos importante, de que a única coisa que parece interessar-lhes é a gama de perspectivas que sua riqueza abre para elas. Essas pessoas parecem de fato guiadas pela estética do consumo; é a exibição de um gosto estético extravagante e mesmo frívolo, não a obediência à ética do trabalho ou o seco e puritano preceito da razão, o know-how e não o mero sucesso financeiro, que está no coração da grandeza a elas atribuída e que lhes dá direito à admiração universal.

“Os pobres não habitam uma cultura separada dos ricos”, assinala Seabrook; “eles têm que viver no mesmo mundo ideado em benefício dos que têm dinheiro. E sua pobreza é agravada pelo crescimento econômico, assim como é intensificada pela recessão e o não crescimento.” Com efeito, recessão significa mais pobreza e menos recursos; mas o crescimento leva a uma exibição ainda mais frenética de maravilhas de consumo e assim prenuncia um abismo ainda maior entre o desejado e o real.”

 

 

Em O mal-estar da pós-modernidade argumento que, se Sigmund Freud estava certo ou errado ao sugerir que a troca de uma boa parcela de liberdade pessoal por uma certa medida de segurança coletivamente garantida era a principal causa das aflições e sofrimentos psíquicos no período “clássico” da civilização moderna, hoje, no estágio derradeiro ou pós-moderno da modernidade, é a tendência oposta, de trocar um bocado de segurança pela crescente remoção de restrições que tolhem o exercício da livre escolha, que gera os sentimentos amplamente difundidos de medo e ansiedade. São esses sentimentos que buscam descarregar-se (ou são canalizados) nas preocupações com a lei e a ordem.”

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