Editora: Estampa
ISBN: 978-85-7559-548-0
Tradução: José
Saramago
Opinião: ★★★★★
Análise em vídeo: Clique aqui
Páginas: 316
Sinopse: Ver Parte
I
“Instaladas sobre um ideal monástico de
retiro, construídas noutro tempo para uma sociedade estagnada de camponeses e
de guerreiros, as estruturas da Igreja, com toda a evidência, não se adaptavam
já ao mundo presente e aos movimentos que o arrastavam. Era urgente rejuvenescê-las
e reconquistar a unidade. A Igreja endureceu, tomou decididamente forma
monárquica, totalitária, em redor da cadeira de S. Pedro e dum papa, Inocêncio
III.
Desde há cerca de dois séculos que o
pontífice romano alargava pacientemente o seu poder. Enfrentara com êxito os
imperadores. Os juristas da Cúria tinham forjado para seu uso uma doutrina
teocrática que lhe reservava neste mundo uma auctoritas superior a qualquer poder temporal. Pretendia ter
jurisdição moral sobre a terra inteira. Enviava legados a toda a parte. Sonhava
submeter à sua lei os bispos. Eleito papa em 1198, aos trinta e oito anos,
Inocêncio III levou a seu termo esse longo esforço. Este nobre romano era um
intelectual: estudara direito em Bolonha — ao estilo italiano — depois teologia
em Paris — ao estilo de França. Foi o primeiro papa a dizer-se claramente, não
só sucessor de S. Pedro, mas lugar-tenente de Cristo. Rei dos reis, portanto. Rex regum, sobrepondo-se aos príncipes e
julgando-os. No dia da coroação, proclamou: “Foi a mim que Jesus disse:
dar-te-ei as chaves do reino dos céus, e tudo o que tu ligares na terra será
ligado no céu. Vede pois o que é este servidor que manda sobre toda a família:
é o vigário de Jesus Cristo, o sucessor de Pedro. Está no meio, entre Deus e o homem,
menor que Deus, maior que o homem”. O papa esforça-se então por introduzir
todos os soberanos da Europa numa teia de submissões feudais que leva à sua
pessoa. Quase o consegue. Fortalecido pelos seus triunfos, reúne no fim do seu
reinado um concílio em Latrão, que desempenhou, na cristandade medieval e
perante problemas comparáveis, o papel do concílio de Trento na cristandade
moderna. No programa: “Eliminar a heresia e fortalecer a fé — mas também
reformar os costumes, extirpar os vícios, implantar as virtudes, conjurar os
excessos. E ainda apaziguar as discórdias, estabelecer a paz, repudiar a
tirania e fazer prevalecer por toda a parte a verdade”.
Reação. A Igreja congrega-se, fortalece-se,
expulsa os corpos estranhos. Um concílio anterior, em 1179, ordenara que se
encerrassem nas gafarias, afastados do povo de Deus, que viciavam, todos os
seres impuros, roídos de doenças purulentas, e os insensatos, possuídos do
demônio. Na mesma via, o concílio de Inocêncio III impõe aos judeus o uso da
estrela, uma marca distintiva, um sinal de exclusão. Depois, a Igreja ataca. Em
benefício da unidade católica, a cruzada é desviada do seu primeiro fim,
lançada contra os cismáticos — em 1204, o exército cruzado toma Constantinopla
—, mas sobretudo contra os heréticos, que são o perigo maior: em 1209, o papa
promete aos cavaleiros da Ilha-de-França as indulgências da Terra Santa,
convida-os a pilhar o Languedoc, a exterminar os Albigenses. Acrescentemos que,
nesta luta e no seu esforço feroz para se instalar em toda a parte, a Igreja
romana deixara há muito de contar com os monges.
As velhas ordens monásticas estavam
desacreditadas. Zombava-se delas nos banquetes da cavalaria. Os poemas
didáticos compostos na sua língua para os nobres de França, no limiar do século
XIII, estão cheios de críticas aos Beneditinos e aos Cartuxos, censuram-nos por
viverem retirados e viverem ricamente: “são verdadeiros mercadores na feira”.
De fato, o que se condenava neles era uma religião de recusa e de egoísmo
satisfeito. Os cavaleiros-monges do Templo e do Hospital tinham mais simpatia.
Ao menos, eles combatiam no seio do mundo, exaltavam o ideal de valentia e de
conquista da moral cortês e projetavam a imagem dum cristianismo de ação.
Todavia, os movimentos de espiritualidade suscitados nesse tempo pelo
nascimento de congregações novas obrigavam a uma vida religiosa que já não se
baseava no entrechocar das espadas e nas justas cavaleiras, mas no amor de Deus
e dos homens. Imitação de Jesus na sua preocupação pelos pobres, tal foi o estilo
novo da ordem do Espírito Santo, votada aos cuidados dos doentes, e da ordem
dos Trinitários, votada ao resgate dos cativos. Davam resposta ao evangelismo
difuso entre o povo laico. Só elas podiam enfrentar, com esperança de algum
êxito, as seitas heréticas. Inocêncio III sentia-o tão bem que ele próprio
conseguiu reintegrar na Igreja uma parte do Valdismo e das seitas de pobreza
heterodoxas: acolheu os Pobres católicos, os Humilhados; encorajou a penitência
laica. Mas a condução da marcha dos tempos novos caberia a dois apóstolos, aos
dois “príncipes” que a Providência, para reaproximar a Igreja de Cristo, seu
esposo, tinha
... Ordenado em seu favor
A fim de que além e aqui
Lhe servissem de guias
(Paraíso XI,
35-36.)
Francisco de Assis e Domingos.
Em 1205, os cavaleiros parisienses não
galopavam ainda em Languedoc para chacinar em nome de Cristo os heréticos e os
outros que o não eram. O papa Inocêncio III recebeu a visita do bispo de Osma,
de Espanha, acompanhado pelo subprior do seu capítulo, Domingos. Tinham atravessado
os domínios do catarismo triunfante e tinham encontrado em Montpellier os
legados cistercienses, desanimados. As razões da derrota católica tinham-lhes
parecido claras: um clero sem moral e demasiado rico. Disseram ao papa que “para
fechar a boca dos maus importava agir e ensinar segundo o exemplo do Bom
Mestre, apresentar-se com humildade, andar a pé, sem ouro e sem dinheiro, em
suma, imitar em tudo a forma de vida apostólica”. Este bispo e este cônego
propunham que se renunciasse ao fausto senhorial em que desde Carlos Magno
viviam todos os prelados do Ocidente, às cavalgadas, aos adornos, às insígnias
do poder temporal. Quiseram partir para os países de dissidência como
testemunhas de Cristo, verdadeiramente evangélicas, logo completamente pobres.
O papa abençoou-os, encorajou-os, e eles voltaram à região Narbonense. Em
Pamiers, em Lavaur, em Fanjeaux, enfrentaram publicamente os Perfeitos, mas desta
vez todos podiam ver que os defensores da Igreja de Roma estavam, como os seus
adversários, sem riquezas, sem mulher, sem armas, sem nada. Torneios de
eloquência: Domingos e os seus companheiros eram clérigos e intelectuais; a
heresia vencera a gente do claustro, a gente da escola entrava na liça;
preparavam de antemão os seus argumentos em memórias escritas; vinham combater
o catarismo no terreno dogmático, demonstrar que estava errado por razões de
teologia; expunham-nas na língua de oc,
que falavam; um auditório de senhores e de burgueses designava os vencedores
deste torneio. Domingos ficou só. Foi então que fundou em Prouille um mosteiro,
mas para mulheres, rival dos conventículos para onde as damas da terra se
retiravam para viver no ascetismo e na perfeição cátaros. Deu-lhe a regra de
Santo Agostinho, toda de pobreza. É preferível não saber o que fez nos
turbilhões sangrentos da cruzada; pelo menos retomou depois a obra de pregação.
O novo bispo de Toulouse chamou-o para seu lado com o grupo de discípulos,
nessa região que os bandos de Simão de Montfort tinham devastado, onde o catolicismo
se instalava pela força, como um tirano, sobre escombros e contra a resistência
muda dum povo dizimado, oprimido e hostil. A pequena comunidade de pregadores
esforçou-se por combater, por conquistar desta vez os espíritos e votou-se à
reconstrução espiritual. Viu-se Domingos no concílio de Latrão. Os padres, que
lutavam mesmo aqui contra a pululação das seitas, desconfiavam das congregações
novas. Domingos venceu as resistências deles. Mas obrigaram-no a não inventar a
sua própria regra, a escolher uma regra antiga. Ele tomou a que dera às irmãs
de Prouille, a regra dos cônegos agostinianos. Mas sobre ela, com pequenos
retoques decisivos, inovou, fundando a ordem dos Pregadores e as suas
constituições.
No cerne da vocação dominicana estabelece-se
a pobreza total. Não a de Cister, fictícia, mas a de Cristo. A riqueza
corrompia o mundo moderno: era preciso instalar neste terreno a vanguarda do
combate. No capítulo XXVI — “Da recusa de propriedade” — este preceito
fundamental: “Não receberemos de nenhuma maneira propriedade nem rendimento”. Numa
sociedade em que a terra já não constituía a única riqueza, estabelecia-se uma
congregação religiosa que, pela primeira vez, não se enraizava numa possessão
fundiária, que decidia não mais tirar dos seus próprios campos a subsistência,
mas mendigar o pão de porta em porta. O dominicano nada tem de seu, a não ser
livros. Mas esses são as suas ferramentas. Tem por missão espalhar a verdadeira
doutrina, lutar a pé firme contra os demônios da descrença, adversários sutis
que só as luzes do Espírito podem derrubar. Precisa, por consequência, de se
preparar, de formar a sua inteligência, de armar-se de razão, de ler e estudar.
Ora, só se estuda bem em grupo, como tinham demonstrado os mestres das escolas.
O dominicano vive pois em comunidade, como os cônegos catedrais, como os monges
beneditinos. Não, contudo, como estes, para cantar em coro, a todas as horas do
dia, os louvores do Senhor. Para ele, o enquadramento litúrgico torna-se
flexível, simplifica-se; os frades libertam-se rapidamente das orações rituais,
no momento mais oportuno, sem excessiva preocupação com as horas prescritas.
Não são já escravos dos ritmos cósmicos que durante séculos haviam regido, na
estabilidade dos tempos revolutos, as salmodias. A vocação do Frade pregador
leva-o às peripécias da ação: o combate não pode esperar. O inimigo não se encontra
na solidão, no deserto, nem sequer nos campos: está entre os homens. No seio
deste mundo novo, onde já não conta só o campo, é na cidade que é preciso
enfrentá-lo. O convento dominicano, por consequência, instala-se no coração das
massas urbanas que tem por missão esclarecer,
Mas o convento difere ainda do claustro em
não se fechar nele a vida dos religiosos. Não é mais do que um abrigo aonde os
frades, cumprida a tarefa, regressam para dormir e partilhar a comida esmolada
nos subúrbios. Entretanto, como o claustro das catedrais, o convento dominicano
afirma-se igualmente — e essa é a sua função principal — como um centro de
trabalho intelectual, como uma escola. Em cada um deles, um “leitor” expõe e
comenta a Escritura. As constituições impõem a cada religioso que tenha,
escritos por sua mão, uma Bíblia,
o Livro das Sentenças de Pedro
Lombardo, onde a ciência teológica se concentra, e a História de Pedro, o Comedor, onde se colhem os temas concretos da
pregação. Não se trata de livros pesados e ornamentados, como os que iam buscar
às bibliotecas monásticas para a celebração do ofício ou para as meditações pacientes.
São verdadeiros manuais, sempre prontos, que o Frade pregador leva consigo na
sacola para, se preciso for, a eles se referir, pois quanto à matéria já ele a
tem no espírito. “Não devem tomar por base dos estudos os escritos dos pagãos e
dos filósofos — a não ser consultando-os de passagem. Que não aprendam as
ciências seculares nem mesmo as artes ditas liberais — salvo quando,
ocasionalmente, o mestre da ordem ou o capítulo geral queiram dispor de outro
modo em relação a alguns. O superior pode conceder dispensa aos estudantes, de
modo que não se possa facilmente interromper-lhes os estudos nem prejudicá-los
com questões de ofício nem doutra coisa”. O que conta nesta passagem das
constituições da Ordem, o que marca a inovação decisiva, a intenção central e o
que compromete o futuro, não são as interdições formais e de tradição, mas
precisamente as dispensas, todas essas portas abertas à investigação
intelectual, prudente é certo, mas também vigorosa e ousada. Uma vez que os
frades são chamados a militar no combate doutrinal, convém-lhes apresentar-se a
ele bem armados, portanto serem hábeis na dialética, isto é, numa “ciência secular”,
e ter estudado as demonstrações racionais em Aristóteles, ao mesmo tempo
filósofo e pagão. Na verdade, a nova ordem instala-se em pleno centro das
estruturas escolares da época. Em todas as grandes cidades votadas ao estudo,
em Montpellier, em Bolonha, em Oxford, e primeiramente em Paris, na Rua
Saint-Jacques, os conventos dominicanos vieram agregar-se aos grupos de
investigação teológica. Depressa se tornaram vanguarda destes.
A ordem dos Pregadores vinda dum capítulo
catedral desligara-se dele para melhor adaptar às necessidades modernas as
missões docentes da catedral, para as pôr ao serviço da monarquia romana e sob
sua fiscalização. A ordem dos Franciscanos emanava, por sua vez, diretamente do
laicado das cidades e das suas frustrações espirituais. Filho dum homem de negócios
rico, nascido numa comuna que a si mesma dera um podestade cátaro, Francisco de
Assis, durante a juventude, entregara-se às alegrias da vida cortês. Compunha
canções de amor; meteu-se em aventuras cavaleirescas. Depois, as inquietações
que trabalhavam então as burguesias meridionais tocaram-no. Não o catarismo:
Cristo crucificado falava-lhe. E quando, reiterando o gesto de Pedro Valdo,
quis despojar-se de tudo, quando se apresentou nu diante do pai, lançando-lhe
aos pés os seus adornos e os seus dinheiros, foi o bispo da cidade quem o
cobriu com o seu manto. Permaneceu na Igreja, fiel. Também ele mendicante. Não deixou
de cantar, mas tornou-se jogral de Deus. Continuou, à moda dos trovadores, a
servir uma dama: Dona Pobreza. Pregava a penitência, ao mesmo tempo que a
beleza do mundo, irmão Sol e todas as estrelas. Rapazes seus amigos o seguiram.
Lançou os discípulos pelos grandes caminhos, como Jesus fizera aos seus,
vestidos com um saco e de mãos vazias. Que fossem viver entre os pobres, que
trabalhassem nas herdades e nas oficinas e que à noite cantassem aos seus
companheiros a alegria perfeita que a humildade proporciona. E se acontecesse
não encontrarem salário, fossem pedir o seu pão: Deus não os deixaria morrer.
Em 1209, o papa Inocêncio III, empenhado em
chamar a si as seitas da pobreza, autorizou a pregação de Francisco, aprovou a
sua regra muito simples, feita de alguns fragmentos do Evangelho. Logo os
Frades menores se espalharam por todas as cidades: os primeiros chegaram a
Paris em 1219. Foram mal vistos, ao princípio: tomavam-se estes mendicantes
apaixonados por heréticos; tiveram de mostrar cartas pontifícias. Mas, em 1233,
estavam instalados em todas as cidades da França do Norte. Nessa época, nos
meios aristocráticos, a condição das esposas e das filhas começava a melhorar. As
mulheres, pelo menos as mulheres ricas, formavam agora um grupo cujas
aspirações espirituais mereciam a atenção dos clérigos. Uma dama nobre de Assis,
Clara, fundou uma comunidade de irmãs à imitação dos fradinhos do seu amigo
Francisco. Não tardou a organizar-se uma ordem terceira que propunha, aos que
não queriam romper com o século, fórmulas de vida apostólica apropriadas ao seu
estado. Quanto a Francisco, encaminhava-se cada vez mais para a fraternidade
com Jesus. Acabou por se identificar com ele tão perfeitamente que, “na chama
do seu amor”, recebeu no corpo os estigmas da Paixão. As multidões veneravam-no
como a um santo. Nas cidades da Toscânia, via-se nele o modelo duma perfeição nova,
de acordo com o desejo de humildade da jovem sociedade urbana, com os seus
esforços de despojamento, de ação de lirismo alegre, de efusões sentimentais.
Francisco não combatia a heresia pela espada nem pela razão, mas por um impulso
do coração e pela vida que fazia. Melhor do que qualquer outro, tornava o
Evangelho presente no mundo, na sua simplicidade. Este homem foi, com Cristo, o
grande herói da história cristã, e pode-se dizer sem exagero que o que resta
hoje de cristianismo vivo vem diretamente dele.”
“No princípio do século, o panteísmo de
Amaury de Bène foi violentamente extirpado: importava não confundir Deus com as
criaturas e distinguir os valores particulares do corpo, da alma e do espírito,
sem no entanto condenar a matéria, sem a colocar à margem de Deus, nem a levantar
contra ele, como um princípio diferente e hostil: o dualismo maniqueu
continuava a ser o maior perigo. Prudentemente interpretada, a teologia de
Dinis, o Areopagita, oferecia um ponto de equilíbrio. Mostrava a natureza vinda
de Deus e retornando a ele, para o completar. Neste duplo movimento de amor, as
criaturas apareciam como substâncias distintas da divindade que existe
separadamente delas, mas o ser delas é conforme com um modelo exemplar que está
em Deus. Iluminadas, inteiramente cheias por ele, não apresentam, contudo, mais
do que um reflexo dele. Segundo o pensamento dionisino e segundo a teologia
ortodoxa que nele se inspira, a matéria participa no esplendor de Deus,
glorifica-o, leva ao conhecimento dele.
O otimismo jubilante de Francisco de Assis
assim a concebia. “Como exprimir o enternecimento que o tomava ao encontrar nas
criaturas o sinal, o poder e a bondade do Criador? Tal como noutro tempo os
três meninos na fornalha convidavam os elementos todos a louvar e a glorificar
o Criador do universo, assim Francisco, cheio do espírito de Deus, encontrava
em todos os elementos e em todas as criaturas tema para dirigir ao Criador e ao
Senhor do mundo glória, louvores e bênçãos... Se via um campo esmaltado de
flores, logo lhes pregava, como se elas fossem dotadas de razão, e as convidava
a louvar o Senhor. As searas e as vinhas, as águas correntes, as hortas
verdejantes, a terra e o fogo, o ar e os ventos, tudo isto ele exortava, com a
simplicidade mais sincera, a amar a Deus, a obedecer-lhe de boa vontade. Dava o
nome de irmão a todas as criaturas, e, por uma prerrogativa recusada aos
outros, o seu coração penetrava os segredos delas, como se, libertado do corpo,
vivesse já na gloriosa liberdade dos filhos de Deus”. Irmão de Jesus, Francisco
sente-se também irmão das aves do céu, do sol, do vento e da morte. Vai pelos
campos da Úmbria, e todas as belezas o acompanham em cortejo de alegria. Uma
tal comunhão com a alegria do mundo estava de acordo com os desejos de
conquista da juventude cortês. Era capaz de trazer a Deus os bandos de rapazes
e moças que iam florir a árvore de Maio. Era acolhendo a natureza, os animais
selvagens, a frescura do amanhecer e as vinhas maduras, que a Igreja das
catedrais podia esperar atrair a si os cavaleiros caçadores, os trovadores, as
velhas crenças pagãs no poder das forças agrestes. O asceta São Bernardo o
dissera já com veemência: “Vereis por vós próprios que se pode tirar mel das
pedras e azeite dos rochedos mais duros”.”
“Nas províncias donde brota a arte francesa,
o limiar do século XIII marca o despertar da atenção: os romances de Jean
Renart descrevem o real da vida, a cupidez dos burgueses, as gabarolices dos
matamouros. O Livro da Natureza do
mestre Tomás de Quantimpré quer ainda servir de guia nos rodeios duma
interpretação alegórica das coisas visíveis, mas não descreve apenas as
relações entre as virtudes e cada um dos seres criados, dedica-se igualmente a
definir a sua utilidade prática. Quanto às construções teológicas, todas
associam, a exemplo de Aristóteles, uma física à sua metafísica, e esta já não
se baseia em analogias, mas na experiência dos sentidos. Estas sumas do
conhecimento querem-se científicas e esforçam-se por assimilar os dados
colhidos nos sábios árabes e gregos. Com a geometria que implica, a ótica está
então na vanguarda das pesquisas. É na Europa o tempo dos astrônomos e das
primeiras medidas exatas do universo estelar. É também o tempo dos
naturalistas. Alberto Magno, que chega a Paris em 1240, apresenta imediatamente
aos seus alunos, apesar das proibições, a Filosofia
Natural, de Aristóteles. “Em matéria de fé e de costumes, devemos seguir Santo
Agostinho mais do que os filósofos, se estão em desacordo. Mas se falarmos
de medicina, entrego-me a Galeno e a Hipócrates, e se se tratar da natureza das
coisas, é a Aristóteles que me dirijo ou a qualquer outro entendido na matéria”.
Ele próprio redige uma Suma das Criaturas
em que descreve metodicamente os caracteres particulares da fauna das terras da
Alemanha, onde primeiro vivera. Porque os Dominicanos, como os outros homens,
gostavam de recrear-se nos bosques. As cidades não eram tão vastas nem tão
fechadas: sentia-se nelas o cheiro da Primavera. As suas muralhas novas cercavam
hortas, vinhedos, campos de trigo até. A civilização material não isolara do
cosmos o homem do século XIII. Era ainda um animal de ar livre e, para ele, o
tempo mudava de ritmo e de sabor ao correr das estações. Os intelectuais não
viviam em câmaras, mas mais frequentemente nos pomares, entre os prados, e
todos os claustros se ordenavam em redor dum jardim de pássaros e de flores.
Esta familiaridade com as coisas naturais, o sentimento de que elas não são
culpadas, antes têm o sinal de Deus e revelam o seu rosto, fazem com que, pouco
a pouco, a seiva, ao longo dos fustes de Notre-Dame de Paris, chegue até aos
capitéis e se insinue na sua coroa vegetal. Esta, no coro que foi concluído
cerca de 1170, é ainda construída num espírito formado na regularidade duma geometria
conceitual. Dez anos mais tarde, nos primeiros tramos da nave, a flora toma já
formas vivas: nenhuma simetria; o concreto mostra-se na sua diversidade;
pode-se identificar esta ou aquela folha, distinguir esta ou aquela espécie. No
entanto, estas plantas são ainda sinais. A vida só começa a penetrá-las
verdadeiramente nas partes do edifício que foram decoradas depois de 1220.”
“Que o artista, enfim, apresente de cada ser
uma imagem de plenitude: “Aquilo que se retira à perfeição das criaturas é à
própria perfeição de Deus que é retirado” (S. Tomás de Aquino).
Para essa perfeição tendem as leis da natureza.
Mas elas fatigar-se-iam para a atingir se o homem não interviesse para forçar o
progresso delas, para reduzir o que embaraça o livre jogo dos ritmos naturais.
Esse é o seu papel: Deus dotou-o de razão para isso. O homem gótico, como o
homem românico, vive no centro do cosmos. Adere a ele por “coordenações recíprocas”.
Recebe dele constantemente influências em toda a carne de que é feito. Os seus
humores vivem em correspondência com os elementos da matéria. O curso dos
astros orienta o curso da sua vida. Mas pelo menos não está, como o homem românico
esmagado pelo universo. Nem passivo. Ao colocá-lo no vértice das viaturas, no mais
alto grau das hierarquias do mundo visível, o artista supremo chama-o a
colaborar na sua obra. Ao criá-lo, concebeu-o como devendo ser ele próprio
agente da criação. Todo o impulso que faz progredir, em detrimento dos
maninhos, os prados, os campos e os vinhedos, que estende os subúrbios das
cidades, que impele os negociantes para as feiras, os cavaleiros ao combate e
os Franciscanos à conquista das almas, toda a alegria ativa que anima a idade
nova, é acompanhado e traduzido pela teologia das catedrais. Por suas obras, o
homem coopera. Assim é reabilitado, ao mesmo tempo que a matéria e o trabalho
manual. O pensamento dos mestres de Paris e Oxford condena o desprezo pelo
labor que as aristocracias professavam nas épocas de estagnação, e que Cluny, e
mesmo Cister, no fim das contas, professavam ainda. Enquanto os Perfeitos
cátaros recusavam pôr o esforço do corpo ao serviço da matéria, os Humilhados
da Lombardia, os irmãozinhos de S. Francisco, todos trabalharam com as mãos.
Transformaram o mundo c contribuíram segundo a sua força para a criação contínua
do universo — tanto como os desbravadores obscuros que, por essa mesma altura,
corrigiam os cursos das águas e substituam as moitas de espinhos pela ordenação
dos campos lavrados. Nos novos manuais dos confessores, toda profissão é justificada,
desde que assente no trabalho, e os moralistas põem-se a procura de razões que
legitimem o lucro. Às portas igrejas urbanas, as imagens dos trabalhos manuais
que figuram cada uma das estações ganham todo o seu sentido no crescimento econômico
do século XIII. E quando os mestres das corporações oferecem um vitral, querem
ver nele representadas em pormenor as técnicas do seu mester. Elogio, na
própria catedral, do trabalho conquistador.
No meio da criação, no meio da iconografia
das catedrais coloca-se pois a figura do homem. O homem gótico é também, por
sua vez, um tipo. Não se lhe veem as feições emaciadas dos ascetas, as feições
inchadas dos prelados que sofrem da bexiga e morrem de apoplexia. Escapa às deformações
que a idade, o trabalho ou o prazer imprimem. Nasce adulto do pensamento
divino, no ponto de realização aonde o crescimento o levará, donde o
envelhecimento o fará decair. Parece-se como um irmão com o Deus oleiro que,
nas arquivoltas de Chartres, o modela no barro. Deformar o seu corpo por um
excesso de realismo, ou, como faziam os imaginários românicos, para o submeter à
lei do quadro, seria diminuir a perfeição de Deus, seria um sacrilégio. As harmonias
racionais que o ligam à criação devem transparecer-lhe na efígie, pois governam
as suas formas específicas. A estatura, a face de Adão e Eva, inscrevem-se em
Bamberga nos acordos duma geometria perfeita. São seres redimidos, destinados a
ressuscitar na glória, lavados de todo o pecado. Já os raios de Deus os iluminam
e os aspiram para a alegria. Sobre os seus rostos de claridade esboça-se o
sorriso dos anjos.
O homem gótico, contudo, é também uma pessoa.
Em Reims — entre os santos, os apóstolos, junto da Virgem e não longe de Jesus
que com ela se parece —, surge na sua humildade a Servidora da Apresentação. Uma
pessoa livre, responsável pelos seus atos; uma consciência. A cristandade do
século XIII, que aprende a confessar-se todos os anos, a interrogar-se, a descobrir
as intenções das suas faltas, pratica essa introspecção que já Abelardo
propunha. Por isso, não são já símbolos de ou de mulheres que os doutores das escolas
colocam nas fachadas das igrejas, mas seres maiores, libertos das forças cegas,
senhores de si mesmos. Impregna-os o amor que permite, com a razão, aceder às luzes.
Eis por que os seus lábios fremem e o seu olhar, lugar de todas as permutas,
das comunicações universais, se abre aos esplendores do mundo. Por ele, a
iluminação divina penetra até ao coração do ser, para aí atear o fogo da
caridade. Está vivo. O olhar, que ganha valor essencial nas metáforas luminosas
da teologia, faz enfim do homem gótico um destino. Esta criatura nasceu,
morrerá; pecou; vive no tempo que o curso das estrelas ritma. Contudo, o
pensamento doutores vem arrancá-la dos acontecimentos, libertá-la das mudanças
ocasionais do mundo sublunar, subtraí-la às forças da corrupção, e vê-a de
acordo já, no movimento imóvel do celeste, com o seu exemplar eterno. Tal como
Jesus que tomou carne na história, que porém é, antes que Abraão tivesse sido,
e que vive e reina em todos os séculos dos séculos.”
“A imagem que os teólogos do século XIII têm
da criação e da encarnação releva o universo da sua culpabilidade, liberta-o
dos terrores. Para uma parte, pelo menos, da cristandade do Ocidente, aquela
que sai da rusticidade, o pecado já não se resgata com ritos, com regateios a
preço fixo, e não é já a intervenção mágica do poder divino que permite, nas provas
rituais da ordália, distinguir os criminosos das suas vítimas. O homem sabe
agora que ganha a salvação por atos — mais ainda pelas suas intenções, pelo amor e pela
razão que lhe revelam a sua identidade com Deus, que o levam a voltar a ele e a
imitá-lo mais perfeitamente. O pecado, contudo, mantém-se. Por ele a matéria se
obscurece. Torna a carne pesada e é obstáculo à luz incriada. Só Jesus o venceu
neste mundo. Só ele pode salvar o homem. Por isso deve-se seguir o Bom Mestre,
levar como ele a sua cruz.
Os campeões da fé renovada, todos os frades
mendicantes, espalham por toda a parte esta mensagem. “Não me faleis”, diz S.
Francisco de Assis, “de nenhuma outra forma de vida que não seja a que o
próprio Senhor misericordiosamente me mostrou e deu; a regra e a vida dos frades
menores consiste em observar os Santos Evangelhos de Nosso Senhor Jesus Cristo.”
Os Evangelhos na sua simplicidade, sine
glossa, sem comentário. E S. Domingos quis-se em primeiro lugar “homem
evangélico”. A pregação de verdade, que sabe acolher agora a alegria, põe por vezes
a tônica na penitência. No fim do caminho, convida a desposar os sofrimentos da
Paixão. S. Francisco consegue-o no Alverne. “Algum tempo antes da sua morte,
vimos o nosso irmão e pai no estado do Crucificado, tendo no corpo feridas que são
verdadeiramente os estigmas de Cristo.” Nas primeiras horas do dia, Francisco,
de joelhos, braços em cruz e olhos fitos no Oriente, dirige ao Salvador esta súplica:
“Ó Senhor Jesus, há duas graças que peço me concedas antes da minha morte. A
primeira é que, tanto quanto possível, eu sinta os sofrimentos que tu, meu doce
Jesus, tiveste de padecer na Paixão cruel. A segunda, que eu sinta no meu coração,
tanto quanto possível, o amor desmedido em que ardes, tu, Filho de Deus, e que te
levou a sofrer de bom grado tantas penas por nós, miseráveis pecadores.” E
quando, cinquenta anos mais tarde, o rei S, Luís quis seguir o mesmo caminho,
era, diz Joinville, porque “amava a Deus de todo o seu coração e imitava as
suas obras; isso viu-se porque, do mesmo modo que Deus morreu amor do seu povo,
o nosso santo rei pôs também o seu corpo em aventura de morte várias vezes por
amor do dele”. Para aqueles a quem cabe parte das riquezas novas, o século XIII
é o tempo das alegres conquistas. Avança na euforia dos seus êxitos. Mas a pregação
de penitência segue passo a passo esta marcha, para que ela se não desvie e
conduza o povo de Deus à Terra Prometida. Como os guias da cruzada, a escultura
da catedral é marcada pelo sinal da cruz. Ergue as imagens da Paixão. Não esqueçamos
que mostra nelas símbolos de vitória, afirmando que o Deus feito homem atravessou
a morte e que, no triunfo da ressureição, Cristo leva consigo toda a humanidade
para as verdadeiras alegrias que não são deste mundo.
Quando se pôs a meditar sobre os sofrimentos
de Deus, a cristandade latina desposava uma inclinação espiritual que, muito
antes dela, arrastara a do Oriente. Desde o século XI, o clero bizantino convidava
os fiéis a ver no ritual da missa uma representação concreta da morte, do sepultamento
e da ressurreição de Cristo; essa liturgia punha em cena todos os episódios da
vida do Salvador; a celebração eucarística tornava-se um resumo de todo o
Evangelho. Reunia as narrativas dele, de que rapidamente a iconografia dos
afrescos macedônios veio dar uma transcrição visível. Vemos os reflexos destas
imagens em Cefalu. Os cruzados viram essas figuras enquanto descobriam na Terra
Santa uma Jerusalém mais verdadeira do que os símbolos escatológicos cujas
miragens haviam desencadeado o grande impulso de 1095. E eis que no ano 1204
bandos de guerreiros francos tomaram Constantinopla. Foi um acontecimento decisivo:
julgou-se que ele ia abolir o cisma, trazer enfim à unidade as duas partes
divididas do corpo de Cristo. Em todo o caso, esta conquista foi para o
Ocidente ocasião para se apropriar das maravilhas, de todas as relíquias da
Paixão conservadas nos santuários de Bizâncio. Roberto de Clari fica
boquiaberto diante dos tesouros: dois pedaços da verdadeira cruz, o ferro da
lança, os dois pregos, a túnica, a coroa de espinhos. Assim, todos os aprestos
do suplício saíam do sonho, tornavam-se realidade. Peça a peça, os cavaleiros
saqueadores compraram-nos ou roubaram-nos, levaram-nos consigo: foi o caso do
conde Balduíno de Flandres que pôde levar para o seu castelo de Gand algumas
gotas do sangue de Cristo. Desde há séculos, a fé rústica do Ocidente encontrava
alimento em despojos duvidosos encerrados nas urnas-relicários das criptas
abaciais. Para as relíquias trazidas pelos aventureiros da cruz, e que pareciam
muito mais autênticas, era preciso um asilo digno da sua glória. Renovaram-se,
embelezaram-se as capelas e ergueram-se novas. “O rei S. Luís tinha a coroa de
espinhos de Nosso Senhor Jesus Cristo e um grande pedaço da santa cruz onde
Deus foi posto e a lança com que o lado de Nosso Senhor foi trespassado, e
muitas relíquias preciosas que adquiriu. Para elas mandou fazer a Sainte-Chapelle
de Paris, em que despendeu quarenta mil libras tornesas ou mesmo mais. Adornou
de ouro e prata e de pedras preciosas e outras joias os lugares e as
urnas-relicários onde as santas relíquias repousavam, e crê-se que estes
ornamentos valem bem cem mil libras mais”. Dispôs-se sobre os relicários um
ornamento figurativo demonstrando a origem, o sentido e as virtudes dos
despojos maravilhosos que o relicário tinha por missão abrigar. A febre
decorativa que se apossou do princípio do século XIII veio em linha reta do
saque de Constantinopla.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário