Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1378-1
Tradução: Maria Lúcia Machado
Organização: Georges
Duby
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 680
Sinopse: Ver Parte
I
4.
Problemas: Os arranjos do espaço privado nos séculos XIV-XV – Philippe Contamine
Se a mania de fechar,
verdadeiro habitus da mentalidade medieval nascido talvez de um profundo
sentimento de insegurança (que por certo o meio circunstancial vem justificar amplamente
e reforçar, na França da Guerra dos Cem Anos), era de vasta difusão no mundo rural,
o era do mesmo modo em meio urbano, pois que precisamente uma das características
da cidade era de ser limitada por portas e por uma muralha. Contudo, notemos que,
mesmo na França, autênticas e inegáveis cidades só se beneficiaram de uma muralha
num período bastante tardio, e que arrabaldes abertos, vulneráveis, subsistiram
ou se criaram, em especial no prolongamento e na vizinhança das vias de acesso.
De resto, desde que o perigo parecia afastar-se e a paz voltar, muitas cidades,
por simples razões de economia, tendiam a negligenciar suas muralhas que, a cada
vez, transformavam-se rapidamente em passadouros...
Mas talvez o traço maior
da cidade medieval e de suas relações com o espaço resida na relativa raridade dos
terrenos e das construções com caráter público. Sem dúvida as ruas e as praças eram
consideradas dependentes dos poderes municipais, senhoriais, leais. Sem dúvida também
os procedimentos de expropriação, mediante uma indenização, com vistas ao interesse
geral, não eram desconhecidos. Tem-se a impressão, apesar de tudo, de que o domínio
público era restrito, ou mesmo residual, e de que era, além disso, regularmente
ameaçado pelas usurpações dos particulares. Usurpações discretas, porque ilícitas,
mas por vezes também legalizadas por um ato oficial. Em 1437, mestre Jacques Jouvenel
queixou-se a Carlos VII das condenáveis atividades a que se entregavam, bem perto
de sua casa, na Île de la Cité, em Paris, “moças de prazer” instaladas em “várias
casinhas”. Ora, essas casinhas eram servidas por uma “pequena ruela e via pública
chamada Glatigny”, de resto bastante estreita, pois “dita ruela não é de modo algum
lugar onde cavalos nem carroças podem passar”, e de maneira nenhuma indispensável
à “coisa pública”, dado que outras vias paralelas asseguravam mais comodamente a
circulação no bairro. Rendendo-se a essas explicações interessadas, Carlos VII,
para fazer um gesto em relação a um membro de uma grande família que lhe permanecera
perfeitamente fiel durante todo o tempo das divisões, autorizou a junção
da ruela de Glatigny à propriedade de Jacques Jouvenel. Como o diz a carta real,
“a qual ruela que era via pública temos redigido e redigimos como coisa privada
em proveito do dito mestre Jacques Jouvenel e dos seus”.
Entre 1439 e 1447, em
Saint-Flour, um processo opôs os cônsules e habitantes da cidade aos cônegos da
colegiada de Notre-Dame. O objeto do litígio era uma pequena rua de quatro a cinco
pés de largura (de 1,20 metro a 1,50 metro), atravessando o cemitério do capítulo
e dando acesso, noite e dia, a um forno comum. O capítulo pretendia interditar a
passagem que o incomodava cercando o cemitério. Ao contrário, a municipalidade de
Saint-Flour sustentava não apenas que a via era comum, mas também que na região
de Auvergne os cemitérios eram “lugares públicos”, que não havia razão, portanto,
de fechar.
Um domínio público reduzido,
fragmentado: simples manifestação, na topografia urbana, da fraqueza persistente
do Estado em seus meios, seus recursos e suas ambições.
Bastará lembrar aqui a
singular estreiteza das ruas, a ponto de uma via de seis ou sete metros de largura
impressionar por suas dimensões, a sinuosidade dos traçados, a multidão dos pátios
e das ruas sem saída, a exiguidade dos cruzamentos, a raridade das perspectivas
e dos espaços livres, o engarrafamento permanente das vias carroçáveis. Nas cidades
bretãs do século XV, “muitas vias se identificaram com verdadeiros corredores, escurecidos
pelas sacadas das casas” (Jean-Pierre Leguay).
Entretanto, o pitoresco
embaralhamento das cidades medievais, com o labirinto de suas sinuosidades e de
suas tortuosidades, a abundância de suas passagens abobadadas, a inclinação intempestiva
de suas rampas, não era necessariamente percebido como um quadro natural e, em suma,
suportável. As pessoas se adaptavam a ele, pela força das coisas, talvez se visse
nele uma proteção contra as intempéries, ou contra os intrusos de toda espécie.
Mas diferentes indícios sugerem que muitos, sobretudo os dirigentes, desejavam uma
melhoria e deploravam os múltiplos inconvenientes nascidos de um crescimento espontâneo
ou suscitados por iniciativas privadas. As cidades novas do século XIII, planejadas
pelas autoridades responsáveis, mostram ruas sensivelmente mais largas, até onze
metros, por exemplo, para a magna carreyra de Libourne, praças arejadas,
uma divisão quadriculada geométrica das linhas retilíneas. As raras operações de
urbanismo realizadas no final da Idade Média demonstram, por sua vez, um inegável
senso do espaço e da harmonia. Assim como as miniaturas que visam representar a
cidade ideal. Quando uma cidade tinha a possibilidade de possuir uma praça de boa
dimensão, esforçava-se em conservá-la resistindo aos apetites dos construtores e
dos “loteadores” e, se necessário, valorizando-a. O olhar dos viajantes exprime
eventualmente o que se podia apreciar em uma cidade. Diz Antonio de Beatis, a propósito
de Malines:
Cidade soberba, muito
grande e muito fortificada. Em parte nenhuma havíamos observado ruas mais espaçosas
e mais elegantes. Elas são pavimentadas com pequenas pedras, e os lados se inclinam
em declive leve, de tal modo que a água e a lama jamais permaneciam ali. Diante
da igreja, que é muito bela, encontra-se uma praça mais comprida e muito mais larga
que o Campo dei fiori de Roma, toda pavimentada da mesma maneira que as ruas. Um
grande número de canais, cujas águas seguem o movimento do oceano, atravessa a cidade.
Em 1484, a cidade de Troyes,
desejosa de obter do rei a sucessão das feiras de Lyon, que acabavam de ser abolidas,
apresenta-se, sem excesso de modéstia, como “uma bela e grande cidade com muitas
casas e guarnecida de belas e grandes ruas largas e espaçosas, com belas praças,
galpões públicos para conter feiras e mercados”.
Ordenações e regulamentos
municipais foram promulgados em diversos lugares, no século XV mais do que no século
XIV, para favorecer as necessidades da comunidade nos domínios da higiene pública,
da circulação dos homens e das mercadorias, e da segurança das pessoas e dos imóveis.
Com relação a isso, a França está, aliás, antes a reboque, acompanhando com lentidão
e sem muito entusiasmo um exemplo vindo de outras partes. Ao menos uma certa evolução
das mentalidades começa a se fazer sentir, quer se explique por uma degradação da
situação, a ponto de que se impunha tomar medidas, quer pela chegada de flagelos
inéditos, como a peste, ou pela emergência de um autêntico espírito municipal, do
qual o “corpo de cidade” era o depositário, com sua vontade de melhor dominar o
espaço público e mesmo de impor ao espaço privado um mínimo de coerções. Um pouco
por toda parte, edis se reúnem, deliberam. Eles têm sem dúvida meios financeiros
menos reduzidos que no passado, dispõem de um pessoal um pouco mais numeroso para
tentar fazer aplicar suas decisões. Por certo, os poderes que detêm, exercem-nos
no sentido de seus interesses e dos interesses de seu meio; mas não fica excluído
que se sintam igualmente responsáveis em relação ao conjunto de seus administradores
e mais ainda em relação à cidade cuja gestão reivindicam, não sem orgulho.
(...)
E, no entanto, por mais
estreita, ruidosa e mesmo malcheirosa que fosse, a rua conservava sua força de atração,
pois representava a comunicação, em todos os sentidos da palavra, a distração e
a ação. A vida. Para ela as casas voltavam regularmente sua fachada mais cuidada,
a mais ornada de “amabilidades”, suas aberturas mais amplas, e, naturalmente, suas
tabuletas, assim como a abertura de suas oficinas. Os quartos mais apreciados ficavam
do lado da rua, e não do lado do pátio, em particular o do “chefe da casa” e de
sua mulher, como levam a admitir alguns inventários. “Ao contrário das cidades do
Oriente, cuja estrutura em colmeia de abelha convida o clã, o grupo étnico ou confessional
a viver curvado sobre si mesmo”, tudo, nas boas cidades do Ocidente no final da
Idade Média, “impele para a rua os membros de uma sociedade urbana extrovertida”
(Bernard Chevalier).”
“O esforço conjugado dos
historiadores e dos arqueólogos já permitiu descobrir alguma coisa da evolução arquitetônica
da casa rural através da Idade Média. Em linhas gerais, ter-se-ia passado de uma
“infraconstrução”, de uma “casa para nada”, de um abrigo transitório, edificado
com os meios disponíveis (terra crua, madeira, ramagens e folhagens) para uma construção
“durável” que necessita técnicas elaboradas, representando um certo investimento,
mas destinada a durar. Nesse segundo tipo, afirmando-se progressivamente a partir
do século XII, a célula familiar se sente mais em casa, psicológica e materialmente;
beneficia-se de uma melhor proteção contra o frio, contra a água, contra o vento,
e pode conservar melhor seus instrumentos de trabalho e de casa, suas provisões,
tudo aquilo que a Idade Média classificava sob a expressão estorements d’hôtel.
Em certa medida mesmo, a família adere à sua casa, identifica-se com ela, como uma
linhagem nobre pode aderir e identificar-se com seu castelo. Simples esboço de um
fenômeno que se devia acentuar posteriormente e subsistir até em pleno século XX,
como no vale do Engadine.
“Trois choses sont, ce
dist ly sage,/ Que l’omme boutent du cotage/ Par fine force et par destresce:/ Ce
sont fumee et goute eauage/ Mais plus encore fait le rage/ Du male femme tenceresse.” Assim rima em seu jargão
anglo-normando John Gower, no século XIV, dispondo em versos um provérbio comum
sob várias formas: “Três coisas afastam o homem sensato de sua casa: casa aberta,
chaminé fumarenta e mulher briguenta”. Ou ainda: “Três coisas lançam o homem fora
de casa: a fumaça, a goteira e a mulher má”.
Se o historiador é desprovido
de meios para apreciar a evolução do último desses três aborrecimentos, pode estimar,
em compensação, que entre a Alta e a Baixa Idade Média os dois primeiros tiveram
tendência a diminuir de intensidade.
Por mais limitado que
tenha sido, semelhante melhoramento teve consequências enormes para os relacionamentos
humanos. Ele só se tornou possível por uma transformação das mentalidades, assim
como das realidades econômicas e sociais. Talvez tenha havido lenta difusão de um
modelo urbano (ao lado do modelo senhorial, já evocado), ao mesmo tempo quanto às
técnicas e às classes de trabalhadores empregadas e quanto ao uso social da morada.
Foi na cidade que se começou a construir por muito tempo, a investir nos bens imóveis
de qualidade corrente, a substituir as lareiras abertas pelas chaminés, os tetos
de colmo e de ripas pelos tetos de telha ou de ardósia.”
“Do mesmo modo que a casa
rural, a casa urbana apresenta toda espécie de contrastes. Aqui a pedra domina,
ali a madeira, a argila seca, o tijolo. Aqui a ardósia ou a lousa, ali a telha,
o que não significa que os telhados com cobertura vegetal tenham desaparecido. Os
problemas se colocam diferentemente, em função do clima, da dimensão das cidades,
da densidade do habitat, da natureza e da intensidade das atividades, da conjuntura
histórica. Cidades viram-se arruinadas ou anemizadas pela guerra, pelas epidemias,
pelas transformações econômicas, desde então incapazes de manter seu patrimônio
imobiliário, enquanto outras, em plena Guerra dos Cem Anos, souberam manter ou aumentar
a cifra de sua população, criar ou captar riquezas, conservar uma corrente regular
de construções novas. Em muitos lugares, a segunda metade do século XV, após a profunda
miséria do tempo do reino de Bourges, mas antes dos amontoamentos malsãos do século
XVI, foi um período feliz em que citadinos ainda não demasiadamente abundantes se
beneficiaram de um habitat em plena renovação. É significativo que dessa época datem
numerosas casas que ainda subsistem na França atual.
As cidades medievais comportavam
uma porcentagem não negligenciável de religiosos, de religiosas e de clérigos, vivendo
em comunidade ou separadamente. Palácios eram a residência, permanente ou temporária,
de nobres, de grandes senhores, de príncipes ou de reis. Outros podiam abrigar notabilidades:
homens de negócios e de lei, financistas, médicos de renome, todos aqueles
que os textos englobam com frequência sob o termo de burguês. Infinitamente mais
fornidas eram as camadas sociais alojadas de forma miserável ou precária: vagabundos
e mendigos “buscando seu pão, morando e permanecendo em toda parte, estendendo-se
sob os balcões” (François Villon), dormindo “pelas ruas”, e para os quais, em 1439,
em Tournai, a cidade mandou construir barracas cobertas; estudantes não admitidos
nos colégios; velhos e velhas; criados, servas e companheiros, quando não viviam
na casa de seu senhor. E verdade que o grupo mais representativo do meio urbano,
ainda que só participasse muito acessoriamente no governo e na administração da
cidade, era o dos homens de ofício — artesãos, lojistas —, organizados ou não em
corporações e confrarias, aos quais é preciso acrescentar todos aqueles que gravitavam
em torno deles e partilhavam sua existência. Talvez se trate de pelo menos a metade
da população urbana. E, sem dúvida, no seio do que se chamava o comum, havia pobres
e abastados, grandes e pequenos. Alguns tinham uma atividade mais prestigiosa, mais
habilidade, uma melhor clientela. Outros acumulavam as desvantagens: encargos de
família pesados demais, idade, doença, acidentes profissionais. Para além desses
contrastes, os homens de ofício habitavam normalmente, eles e os seus, casas
individuais, que ocupavam na totalidade ou em sua maior parte e que lhes serviam
conjuntamente de residência privada, de oficina de produção e de local de venda
dos produtos que fabricavam ou que transformavam. A maioria das 3 700 casas de Reims,
das 2400 casas de Arras (excluída a parte mais antiga da cidade), das 6 mil casas
de Lille correspondia, pode-se pensar, a essa destinação.”
“Para além de seu caráter
díspar, esses diferentes dados caminham aparentemente em uma mesma direção, sobretudo
se os aproximarmos da organização das mais belas mansões urbanas, dos castelos mais
importantes e dos palácios mais prestigiosos. Uma tendência parece ter-se manifestado
então, de um lado para fazer passar para o interior aquilo que outrora se desenrolava
mais facilmente no exterior, ao ar livre, de outro lado para substituir espaços
polivalentes, multifuncionais, por espaços dotados de uma destinação mais rigorosamente
definida.
Um lugar para o jogo,
um outro para o trabalho ou para a justiça, para a oração individual ou coletiva,
para o ensino ou para a cultura, provisoriamente um lugar para o teatro. Assim se
definiria no extremo final da Idade Média o ideal do espaço urbano. E não sem paralelismo
com aquilo que os poderes desejavam para o conjunto do corpo social: mais hierarquia,
segregação, um enquadramento mais estrito, uma vigilância mais estreita dos comportamentos.
O período dos séculos
XII-XVI viu também a lenta emergência, tanto na cidade como no campo, de um habitat
corrente de qualidade um pouco melhor. Talvez, paradoxalmente, os grandes distúrbios
do fim da Idade Média tenham sido a condição necessária ao estabelecimento desse
início de progresso. Por um movimento dialético, a vida privada, menos abandonada
a si mesma por poderes públicos de bom grado mais intervencionistas, ia redescobrir
sua respiração, suas dimensões, no interior de um “em casa” que se tornou mais acolhedor
e mais protegido.
Progresso do individualismo?
Talvez. A despeito de tudo, não esqueçamos que ainda na época da Renascença é o
habitat coletivo que permanece mais apreciado, quer esse habitat seja destinado
a comunidades de religiosos, de escolares, de doentes, de soldados, ou a indivíduos
cujos poder, prestígio e riqueza se traduzem em primeiro lugar pela importância
da humanidade que gravita permanentemente em torno deles.”
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A
emergência do indivíduo: A solidão nos séculos XI-XIII – Georges Duby
“O envoltório do corpo
é, assim, no mundo dos homens, a mais profunda das clausuras, a mais secreta, a
mais íntima, e as interdições mais rigorosas proíbem rompê-la. Casa forte, portanto,
fortaleza, ermitério, mas incessantemente ameaçado, sitiado, atacado como o é pelo
satânico o refúgio dos padres do deserto. Em consequência, é preciso velar sobre
esse corpo, e especialmente sobre as passagens que transpassam a muralha e por onde
o Inimigo pode infiltrar-se. Os moralistas convocam a montar guarda diante dessas
poternas, dessas janelas que são os olhos, a boca, as orelhas, as narinas, já que
por aí penetram o gosto pelo mundo e o pecado, a podridão: vigilância assídua, como
às portas do mosteiro ou do castelo.
Reflexo do corpo de Adão,
mas invertido, como em um espelho (especialmente no que se refere aos órgãos sexuais,
que são de mesma estrutura, mas revirados, introvertidos, mais secretos, portanto
mais privados, mas também, como aquilo que se oculta, suspeitos), o corpo feminino,
mais permeável à corrupção porque menos fechado, requer uma guarda mais atenta,
e é ao homem que cabe a sua vigilância. A mulher não pode viver sem o homem, deve
estar no poder de um homem. Anatomicamente, ela está destinada a ficar encerrada,
em uma cerca suplementar, a permanecer no seio da casa, a só sair dali escoltada,
enterrada em um invólucro de vestuário mais opaco. É preciso erguer diante de seu
corpo um muro, o muro, precisamente, da vida privada. Por natureza, pela natureza
de seu corpo, ela é obrigada ao pudor, ao retiro; deve preservar-se; deve, sobretudo,
ser posta sob o governo dos homens, desde o nascimento até a morte, porque seu corpo
é perigoso. Em perigo, e fonte de perigo: por ele, o homem perde sua honra, por
ele corre o risco de ser desencaminhado, por essa armadilha tanto mais perigosa
quanto está mais preparada para seduzir.”
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A
emergência do indivíduo: Abordagens da intimidade nos séculos XIV-XV – Philippe
Braunstein
“Um último obstáculo nos
espera, é a tentação da modernidade, que faria dos últimos séculos da Idade Média
um prefácio do futuro, pela única razão de que foram, como a Idade Moderna, mais
tagarelas sobre os segredos dos homens. A vida privada pertence sem dúvida ao campo
menos certo da história, aquele em que o estudo das estruturas econômicas, sociais,
culturais corre o risco de ser um instrumento bem pesado para abordar a diversidade
irredutível dos sujeitos individuais; os historiadores são formados nas ideias gerais
mais que na escuta das vozes do passado. Ser sensível à voz é deixar-se surpreender
pela liberdade de uma confidência, pela audácia de uma expressão, pela fantasia
que se desprende de um texto, pelo amor que exala de um queixume sobre uma criança
morta. Tudo o que nos aproxima do íntimo de alguns séculos atrás nos dá a tentação
de abolir as distâncias que nos separam irremediavelmente de um mundo que perdemos.
A armadilha da modernidade é a de descrever o que é velho como o mundo; os
homens, quando se exprimem privadamente, não falam a mesma língua através dos séculos?”
“O capital de memórias
só se gera e só se lega se estiver ordenado, e é efetivamente a partir de 1350 que
se percebe na loja, no escritório, no studiolo do palácio, a organização
progressiva de um material familiar feito de documentos contratuais e contábeis,
de listas de nascimentos e de óbitos, de receitas medicinais e propiciatórias, de
maços de correspondências, de reconstituições genealógicas. O núcleo original a
partir do qual se organizaram e se diversificaram os dossiês do chefe de família
foi, parece, no mais das vezes, o conjunto de fichas volantes (veem-se esses mementos
presos a um prego atrás dos retratos de comerciantes e de artesãos), depois cadernos
e registros, conservando a lembrança de obrigações e de prazos, transformando-se
em seguida em um diário de empresa em que a distinção entre o comercial e o doméstico,
entre o doméstico e o memorial levou algum tempo para se estabelecer.
As cidades do centro e
do Norte da Itália, depois as cidades da alta Alemanha a partir do fim do século
XIV foram os lugares onde se elaborou e se difundiu a organização escriturai mais
desenvolvida da empresa comercial e bancária; essa organização contábil, multiplicando
as remessas de um livro especializado ao outro, expulsou do registro todas as informações
que não tinham seu lugar no balanço comercial. Assim nasceram “livros secretos”,
“diários dos assuntos próprios”, “memoriais”, “livros domésticos”, diários de família
e de recordação que, qualquer que seja seu título, conservam ciosamente, para transmiti-las,
informações de natureza privada. Permanece até meados do século XVI ou mais, segundo
os níveis de organização intelectual, uma extrema variedade de conteúdo dessas escritas
familiares, que conservam, da lenta constituição do memorial a partir das notas
do dia-a-dia, a prática caprichosa da inserção mnemônica: desordem orgânica quando,
por exemplo, as cláusulas de contratos de casamento sucedem listas de nomes de filhos,
ou quando a transmissão de uma receita para curar os cavalos sucede a menção de
uma venda em feira. (...)
Na triagem necessária
operada a cada geração, dois critérios guiaram essencialmente os comerciantes escritores,
quando pretendiam transmitir uma experiência e um saber pelos quais se consideravam
responsáveis: a utilidade e a dignidade. Sentados em sua camera privata,
diante de seus contemporâneos, de seus descendentes e da posteridade, insistiram
no inalienável e no exemplar: de um lado, as decisões e as escolhas que, segundo
seu conhecimento, reforçaram ou enfraqueceram a sociedade ou o patrimônio — e a
insistência no exemplo pode transformar-se na exaltação de um ancestral ou na confissão
de seus próprios erros; e, do outro lado, o conjunto dos saberes necessários à vida
do grupo familiar, quer se trate de esvaziar a fossa sanitária da casa ou de conservar
de uma geração à outra a rede dos aparentados e das amizades de negócios. (...)
Por essas brechas do natural,
avalia-se o caminho percorrido desde o parcimonioso registro de notícias pessoais.
Para que se afirme definitivamente o romance de uma vida, para que as últimas reticências
em apresentar o íntimo em pintura sejam apagadas, era preciso que triunfasse o sentimento
de que o homem deve mais a seus próprios esforços do que às suas origens ou à proteção
divina. Para uma história da vida privada, apreendida em seu desenvolvimento orgânico,
concorrem poderosamente o orgulho do sucesso e o diálogo entre o passado e o presente
narrativo. Mas, à diferença do exame de consciência penitencial que ergue um homem
novo diante da desordem e do absurdo do tempo passado, é a história dos verdes anos
— a infância muitas vezes séria, por vezes difícil, os anos de formação profissional
— que dá à escrita sua sinceridade. Baseada em um diário, em documentos de primeira
mão, por vezes posta na perspectiva do curso dramático dos acontecimentos gerais,
a biografia não perdeu suas referências familiares, políticas, espirituais: ela
reúne todas as correntes que, desde meados do século XIV, conferem à voz individual,
à vida pessoal, à experiência, íntimo valor, prestígio, função social. Do mesmo
modo que o autorretrato ousa afirmar em um jogo de espelhos a eternidade de um olhar,
assim também o livro em que se condensa um destino individual exprime, muitas vezes
no declínio de uma vida, a energia criadora da consciência de si.
É esse olhar construtor,
por vezes severo, no mais das vezes reconciliado, que constitui o valor das aventuras
singulares redigidas no fim do século XV e no começo do século XVI, particularmente
no mundo germânico: sabe-se a fortuna que teve ao norte dos Alpes o tema dos anos
de aprendizagem e dos romances de formação. Assim, Johannes Butzbach, que terminou
sua carreira como prior de Laach, em Eifel, em 1505, insiste, em seu Livro das
peregrinações, na dureza de sua infância infeliz; vivendo com suas lembranças
sob o olhar de Deus, ele instaura um contraponto entre as tribulações passadas da
criança mártir e do órfão e o tranquilo retiro em que espera a morte: os caminhos
da Providência são impenetráveis.
Outro exemplo, o de Mattháus
Schwarz, de Augsburg, que concebe ainda criança, na idade em que o jovem Dürer faz
seu primeiro autorretrato conhecido, o projeto autobiográfico que realizará quinze
anos mais tarde. Tornando-se diretor financeiro da sede central da casa Fugger aos
25 anos, conduz conjuntamente o relato de sua vida privada, que intitula O curso
do mundo, e um livro feito de vinhetas aquareladas em que se mostra sozinho
em cena nos trajes que usou. Não se pode imaginar projeto mais narcísico, pois que
esse brilhante espírito, esse confidente de um dos homens mais poderosos de seu
tempo escolheu deliberadamente a aparência, a futilidade, o contentamento de si,
a despeito da vida cheia que leva. Um outro tempo chegou, o da provocação e do esnobismo,
e no entanto o olhar que o homem aprumado lança sobre sua primeira infância, os
comentários enternecidos ou picantes com que acompanha essas silhuetas condensam
todo o poder do sentimento que, após várias gerações de escrita sobre si, o homem
da Renascença demonstra por seu passado.”
“Se existe uma evolução
na descoberta do indivíduo no final da Idade Média, ela se deve aos procedimentos
de análise do real, aos instrumentos e ao vocabulário: a prática da dissecação,
o hábito da frequente confissão, o uso da correspondência privada, a difusão do
espelho, a técnica da pintura a óleo. Mas a multiplicação dos pontos de vista, o
virtuosismo na imitação, a decomposição dos mecanismos do corpo não bastam para
compreender o indivíduo em seu privado, assim como cubos de vidro colorido não bastam
para formar um mosaico.
Para além da descrição
realista, de um rosto ou de uma cena de interior, a grande pintura flamenga do século
XV fascina porque se inspira em um pensamento, em uma visão simbólica. Diante da
superfície lisa do quadro, cabe ao olhar do espectador redescobrir a chave, recompor
o indivíduo e traduzir-lhe o segredo.”
“As sociedades do fim
da Idade Média permaneceram fiéis ao esquema trifuncional, mas tornaram-no mais
complexo e menos legível. Entre os
trabalhadores e os poderosos, o desenvolvimento econômico urbano multiplicou os
estatutos; os mais ricos entre os produtores estão em condição de tomar a seu serviço
a espada que os defende, e se sentem mais próximos do poder de decidir que do labor
que escraviza. Ora, a ambição do sucesso, a ascensão social esfumam as divisões
nítidas e, de uma cidade a outra, os estatutos profissionais não estabelecem hierarquias
homogêneas: as artes desempenham em Florença, no século XIV, um papel determinante
na definição do corpo político e Social; não desempenham nenhum papel em Veneza.
Assim, a imagem que as sociedades apresentam de si mesmas reflete os particularismos
de sua história; os grupos no poder apreciam e canalizam a fluidez indispensável,
aqui ou ali, ao “bem comum”, mas, no final do século XIV, a codificação tende a
fixar definitivamente os contornos das classes dominantes na maior parte das cidades
da Europa que se governam.
O vestuário é uma das
marcas essenciais da conveniência social, tanto que o hábito das assembleias e das
procissões destina a cada parte do povo seu papel e seu lugar, localizável pela
forma e pela cor. Em consequência, o vestuário é a aposta de um surdo conflito entre
a ordem política e o movimento econômico; é o objeto de uma regulamentação
que, em nome do “bem comum”, tende a refrear todas as manifestações da arrogância
dos particulares; é incontável o número das cidades que publicaram leis suntuárias
e aumentaram o rigor, nos séculos XIV e XV, à medida que a abastança dos homens
de ofício e o luxo dos ricos faziam elevar-se a maneira de vestir. Mantido em seu
lugar, na posição que lhe é destinada pela Providência, cada indivíduo participa
da harmonia do corpo social, seja ele poderoso ou miserável: teoria de uma ordem
intangível sob o olhar divino, e da qual o vestuário é a expressão. É o que ressalta
do volume publicado, com as gravuras dos trajes correspondentes às profissões, por
Jost Ammann em Augsburg, em meados do século XVI, sociologia pitoresca fundada na
aparência.
Há várias gerações reconhece-se
o comerciante por seu aspecto, o senador veneziano pelo negro que ostenta, o judeu
por sua estrela, e a mulher de má vida pelo amarelo de seu vestido; um processo
veneziano do fim do século XIV evoca a infeliz sequestrada em uma pocilga e socorrida
graças aos gritos que lança quando compreende, pelos trajes que lhe vestem, a sorte
e a situação que lhe está destinada.
No caso das mulheres públicas,
assim como no dos reis, o estereótipo da função social impõe um filtro que reduz
a aparência ao signo, com variações. Desse modo, a questão levantada pela representação
do vestuário ao historiador é de saber se a vida privada não seria sempre a face
oculta das aparências. Do homem público, sabe-se que depõe em um momento ou em outro
seus atavios, e a vida privada é seu cotidiano, que só se apreende por acaso, atrás
da porta da história. Quanto ao homem de pouco valor, tem mesmo uma vida privada?
Em que seu traje pode ajudar-nos a imaginá-lo, já que com exceção dos dias festivos,
em que se empertiga, senta-se ou dança, ele usa aos olhos de todos uma roupa prática
com a qual trabalha? O trabalho ao ar livre é bem pouco compatível com a intimidade,
e quando o camponês se encontra no leito está, como o burguês, completamente nu.”
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