Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1378-1
Tradução: Maria Lúcia Machado
Organização: Georges
Duby
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 680
Sinopse: Ver Parte
I
4.
Problemas: Os arranjos do espaço privado nos séculos XIV-XV – Philippe Contamine
A
emergência do indivíduo: A solidão nos séculos XI-XIII – Georges Duby
“O DESEJO DE ESTAR
SÓ: PROMISCUIDADE NECESSÁRIA
Proximidade, promiscuidade,
por vezes multidão — na época feudal, o espaço, com efeito, jamais estava previsto,
no interior das grandes moradas, para a solidão individual, senão no breve instante
do trespasse, da grande passagem para o outro mundo. Quando as pessoas se arriscavam
fora da clausura doméstica, era ainda em grupo. Todas as viagens eram feitas pelo
menos em dupla, e se os companheiros não eram parentes, ligavam-se pelos ritos da
fraternidade, constituindo, pela duração do deslocamento, uma família artificial.
Desde que, por volta dos sete anos, considerados desde então como sexuados, os meninos
da aristocracia saíam do universo das mulheres, eram lançados na aventura, mas permaneciam,
e por toda a sua vida, no sentido mais forte do termo, englobados — se estavam destinados
a servir a Deus, reunidos em uma escola, sob a condução de um mestre; senão, reunidos
em uma equipe de estrutura semelhante, imitando os gestos de um patrono, seu novo
pai, acompanhando-o quando deixava sua casa para defender seu direito pelas armas,
pela palavra, ou para perseguir a caça na floresta. Terminado o aprendizado, os
novos cavaleiros recebiam suas armas em grupo ainda, em enxame organizado como uma
família, já que geralmente o filho do senhor era sagrado cavaleiro em companhia
dos filhos dos vassalos. Eles não se deixavam mais, associados na glória ou na vergonha,
respondendo uns pelos outros, oferecendo-se como reféns uns pelos outros. Seu bando,
franqueado por uma criadagem e frequentemente por clérigos para as orações, corria
de um torneio ao outro, de uma querela, de uma escaramuça à outra, indissociável,
arvorando os sinais de sua coesão, cores ou um grito de reunião, o devotamento de
todos esses camaradas a envolver o corpo de seu chefe em uma vestimenta indispensável
de familiaridade doméstica: uma família itinerante. Assim, na sociedade feudal,
o espaço privado aparece, na realidade, desdobrado, constituído de duas áreas distintas:
uma fixa, em torno do lar, murada; a outra, deslocando-se no espaço público, não
menos coerente, apresentando em seu seio as mesmas hierarquias, reunida pelos mesmos
procedimentos de controle. No interior dessa célula móvel, a paz, a ordem encontravam-se
mantidas da mesma maneira, por um poder de mesma natureza, cuja missão era organizar
a defesa contra as agressões do poder público e que para isso erguia para o exterior
um muro invisível tão sólido quanto a cerca da casa. Esse poder encerrava, retinha
em seu interior os indivíduos, submetia-os à disciplina comum. Ele era coercitivo.
E se vida privada significa segredo, esse segredo, necessariamente partilhado por
todos os membros da família ampla, era frágil, logo descoberto; se vida privada
significa independência, também essa independência era coletiva. A investigação
deve, portanto, encerrar-se com esta pergunta: discerne-se, nos séculos XI e XII,
no seio do privado coletivo, um privado pessoal?
A sociedade feudal era
de estrutura tão granulosa, formada de grumos tão compactos que todo indivíduo que
tentasse se libertar do estreito e muito abundante convívio que constituía então
a privacy, isolar-se, erigir em torno de si sua própria clausura, encerrar-se
em seu jardim fechado, era imediatamente objeto, seja de suspeita, seja de admiração,
tido ou por contestador ou então por herói, em todo caso impelido para o domínio
do “estranho”, o qual, atentemos às palavras, era antítese do “privado”. Quem se
retirava a distância, com efeito, se não era deliberadamente para fazer o mal, estava
destinado, a despeito de si mesmo, a fazê-lo inevitavelmente, por seu próprio isolamento
que o tornava mais vulnerável aos ataques do Inimigo. Só se expunham desse modo
os desencaminhados, os possuídos, os loucos: segundo a opinião comum, um dos sintomas
da loucura era vaguear sozinho. Testemunha-o a atitude em relação aos homens e às
mulheres sem escolta com quem se cruzava pelos caminhos: eles próprios se haviam
oferecido como presa; tinha-se o direito de tomar-lhes tudo; em todo caso, era fazer
obra pia reintroduzi-los, embora se irritassem, em uma comunidade, restabelecê-los
à força no espaço ordenado, claro, gerido como apraz a Deus, dividido entre as cercas
do privado e as áreas intersticiais, públicas, onde as pessoas se deslocam em cortejo.
Isso explica o papel desempenhado, no vivido e no imaginário, por essa outra parte
do mundo visível, as extensões incultas onde já não se encontram nem famílias nem
casas, a charneca, a floresta, fora da lei, perigosas e sedutoras, locais dos encontros
insólitos, onde quem se aventura sozinho arrisca-se a se encontrar a sós diante
do homem selvagem ou da fada. Era nesses espaços da desordem, da angustia e do desejo
que se considerava que os criminosos, os heréticos fossem buscar refúgio, ou então
aqueles que a paixão transportava fora do senso, na desmedida. Como Tristão, arrastando
Isolda culpada, mergulhando com ela na selvageria: sem pão, sem sal, andrajos, covis
de ramagens. Mas quando o efeito do filtro, do “veneno” que os enlouquecera se dissipou,
quando voltaram à razão, esta ordenou--lhes retornar à ordem, sair do estranho,
isto é, do isolamento. A volta à cultura significou para eles retorno ao privado,
à corte, isto é, à vida gregária.
No entanto, eles a isso
retornaram renovados pela prova. Com efeito, atravessar, voluntariamente ou não,
o perigo, a tribulação maior que era a solidão, parecia, para os mais fortes, para
os eleitos, a ocasião de caminhar para o melhor. Foi assim que Godeliève, “desolada”,
abandonada pelo marido, privada de “companhia”, mas resistindo pela graça divina
às tentações, avançou passo a passo para a santidade. E aquele que escolhia livremente
se atracar sozinho com os maus, que conseguia sair vencedor do encontro, ganhava
um valor do qual se beneficiavam todos os da família da qual ele se afastara por
um momento. Aí está o que ocorria ao vencedor triunfante de um único adversário
em duelo, em combate singular na liça da batalha, ao pecador purgado de sua
falta pelo isolamento penitencial, aos reclusos voluntários, como aqueles dois de
Colônia dos quais se diz que “seu santo propósito de vida espalhava em toda a cidade
o mais doce odor de boa reputação”. Aí está o que ocorria aos heróis dos romances,
cavaleiros errantes, mas que escapavam ao habitual porque em princípio vagavam solitários
e não por loucura. Entretanto, se a literatura de evasão empenhava-se em retirar
suas figuras exemplares do inevitável convívio, não era porque alguns começavam,
no século XII, a considerá-lo por demais pesado? As pessoas não se abandonavam cada
vez mais naturalmente, na boa sociedade a que, por necessidade, o presente estudo
se limitou, ao sonho de evadir-se, enquanto o movimento geral da civilização levava
irresistivelmente a libertar pouco a pouco a pessoa do gregarismo doméstico?
DESEJO DE AUTONOMIA
As marcas evidentes das
conquistas de uma autonomia pessoal se multiplicam no decorrer do século XII, isto
é, no momento em que se acelera a distensão da economia, em que o crescimento agrícola
chega ao ponto, reanimando estradas, mercados, aldeias, de transportar pouco a pouco
para a cidade todos os sistemas de controle e os fermentos de vitalidade, em que
a moeda começa a desempenhar no mais cotidiano da vida um papel capital, em que
por toda parte se difunde o uso da palavra ganhar. É então que se descobrem, cada
vez mais numerosas, menções de arcas ou de bolsas nos documentos de arquivos, restos
de chaves nos canteiros de escavações, indícios de uma vontade manifesta de guardar
para si bens naturalmente móveis, de poupar e de tornar-se, assim, menos dependente
de seus familiares. Liberdade, espaço aberto aos empreendimentos individuais. Eles
se manifestam no povo, na frente dos arroteamentos e entre esses subúrbios urbanos
povoados de traficantes, de artesãos, alguns dos quais fazem rápida fortuna. Mas
eles se manifestam não menos vivamente, não o esqueçamos, na classe dominante onde
se veem fazer fortuna igualmente rápida certos clérigos que põem a serviço dos príncipes
sua perícia administrativa, certos cavaleiros que acumulam denários a mancheias,
na noite dos torneios, negociando suas presas. Tal movimento, a mobilização das
iniciativas e das riquezas, suscitou a valorização progressiva da pessoa.
Ela se manifesta por inúmeros
sinais. Assim, nas imagens que essa sociedade quis dar da perfeição humana. Parece
que, por volta de 1125-1135, no pórtico de Saint-Lazare d’Autun, por exemplo, os
entalhadores de imagens receberam dos idealizadores do programa iconográfico a instrução
de se libertar das abstrações, de animar cada personagem com uma expressão pessoal;
dez anos mais tarde, no pórtico real de Chartres, os lábios, os olhares se tornam
realmente vivos; depois são os corpos que vemos, por sua vez, libertar-se do caráter
hierático; enfim, muito mais tarde, no último terço do século XIII, uma nova etapa
é transposta, decisiva, quando irrompe na escultura o retrato, a busca da semelhança.
Essa evolução, na longa duração, dos procedimentos de figuração plástica aparece
em perfeita sincronia com todas as mudanças que se podem observar em outros níveis
do edifício cultural. No limiar do século XII opera-se, assim, na escola, a passagem
da lição magistral ao “debate”: uma justa, um duelo, um combate singular, duas pessoas
em confronto que rivalizam entre si como no torneio. No mesmo momento, enquanto
a vida penetra o rosto das estátuas-colunas, toma corpo, entre os sábios que meditam
sobre o texto da Escritura, a ideia perturbadora de que a salvação não é alcançada
apenas pela participação em ritos, numa passividade submissa, mas se “ganha” por
uma transformação de si mesmo. É um convite à introspecção, à exploração da própria
consciência, pois que a falta já não parece residir no ato mas na intenção, pois
se considera que ela se refugia na intimidade da alma. Para o interior do ser, em
um espaço privado que não tem mais nada de comunitário, transportam-se os procedimentos
de regulação moral. Lava-se a mácula pela contrição, pelo desejo sobretudo de se
renovar, por um esforço sobre si, de razão, diz Abelardo, de amor, diz são Bernardo,
ambos de acordo sobre a necessidade de uma emenda pessoal. Bastante paralelas se
mostram as reflexões conduzidas nas escolas urbanas a propósito do casamento; elas
fazem admitir pouco a pouco que a união conjugal é atada por consentimento mútuo,
portanto que o compromisso pessoal de cada um dos dois cônjuges prevalece sobre
a decisão tomada coletivamente no privado gregário pelos dirigentes das famílias.
O florescimento da autobiografia, no começo do século XII, é um outro sintoma; por
certo, um Abelardo, um Guibert de Nogent imitam modelos da Antiguidade; mas essas
obras literárias afirmam com brilho a autonomia da pessoa, senhora de suas próprias
lembranças, como o é de seu próprio pecúlio. O eu reivindica uma identidade no seio
do grupo, o direito de deter um segredo, distinto do segredo coletivo. Não é indiferente
que os heróis do embate espiritual, os santos, tenham sido muitas vezes celebrados
por sua habilidade em dissimular sua intenção, esquivando assim as pressões hostis
de seu círculo: a mentira como proteção de um privado mais íntimo, a mentira de
são Simão subtraindo à vista de seus familiares o cilício oculto sob sua couraça,
a mentira de santa Hildegonde mascarando sua feminilidade sob o hábito cisterciense.
Essa evolução coincide
exatamente com a dissociação progressiva das grandes “famílias”, atestada pelos
textos e pela prospecção arqueológica, com o arranjo de emprego para os cavaleiros
domésticos, a dissolução das comunidades de cônegos, isolando-se cada um em sua
casa particular no interior do claustro catedral, com a multiplicação dos casamentos
de caçulas na aristocracia. Ela coincide com os progressos de uma colonização intersticial
às margens das antigas regiões aldeãs. Em todas as categorias do edifício social,
a tendência contínua durante a época feudal foi para a fragmentação, a dispersão,
a desbastação das células da vida privada. Tal movimento, no entanto, conduzia a
individualizar famílias, não pessoas. Estas permaneceram por muito tempo prisioneiras.
Para apreender até o seu termo, até a liberação do indivíduo, os progressos incertos
da segmentação, é preciso concentrar novamente a atenção em dois setores estreitos
da sociedade. Antes do século XIV, esses progressos não são claramente visíveis
senão em dois níveis, o da instituição monástica e o dos sonhos e jogos da cavalaria.
A regra de são Bento se
apresentava como uma “pequena regra para principiantes”. Propunha a vida cenobítica
a homens que não eram considerados bastante fortes ainda para as provas do anacoretismo.
Mas ficava entendido que existia um grau superior de perfeição a que se chegava
na solidão, ponto extremo da ruga fora do mundo carnal a que o monge era
convidado, e a regra instituía as condições favoráveis aos primeiros passos na direção
desse ideal. Na verdade, tratava-se menos de circunscrever espaços do que tempos
que isolassem material e fisicamente a pessoa, a fim de que pudesse concentrar-se
em si. Assim, pela obrigação do silêncio, experiência de retiro, de encerramento,
o indivíduo rompendo as comunicações com o grupo, proposta como uma privação, mas
também como projeto de uma ascensão espiritual. Sem dúvida, para esses principiantes
que eram os monges beneditinos, a prova do silêncio sofria atenuações. Vivendo em
comunidade, precisavam trocar mensagens, e para isso elaborara-se em Cluny uma complexa
linguagem gestual. Por outro lado, a proibição de falar caía cotidianamente durante
a reunião capitular e em certos dias, no claustro, após a hora da sesta; no verão,
ela era retirada todos os dias depois da hora de noa e da distribuição de uma colação.
Contudo, as conversações “privadas”, como diziam os costumes clunisianos, eram suspensas
nos tempos fortes da penitência, durante as quaresmas, enquanto se via exaltado
o grande silêncio da noite, garantia, para são Bernardo, da mais alta elevação da
alma. Ademais, uma parte dos tempos de silêncio era ocupada pela leitura individual,
expressamente designada como “privada”, outro exercício de recolhimento em si mesmo,
diálogo místico com a Escritura, isto é, com Deus. Enfim, a regra de são Bento convidava
a orações “privadas”, intensas, breves, mas frequentes.
A bem dizer, a interpretação
clunisiana do propósito beneditino conduzira a reduzir os momentos de autonomia
individual em proveito da salmodia, o ato coletivo em que a comunidade se reunia
mais estreitamente no uníssono do cantochão gregoriano.
Entretanto, desde o começo
do século XI, como resultado da descompartimentação do mundo e de uma incitação
vinda das cristandades orientais, diante da concepção propriamente latina do monarquismo,
a de Bento de Núrsia, uma outra concepção era proposta, gabando a solidão e concentrando
o privado na pessoa. Propagado a partir da península italiana, o apelo à condução
da luta contra o demônio, não mais na segurança da companhia, mas a sós, no pleno
perigo, acabou por invadir o Ocidente inteiro nas últimas décadas do século XI.
Tal desejo de atingir mais perfeição no deserto, no isolamento, levou Robert de
Molesmes a afastar-se dos usos clunisianos. Ele fundou Citeaux. Os cistercienses
pretendiam retornar à letra das prescrições de são Bento; portanto, permaneceram
fiéis ao princípio da vida comunitária. Quiseram, contudo, afastar-se mais dos tumultos
do mundo, protegendo-se atrás de uma barreira mais estanque, essa auréola de solidão
rude cuja integridade defenderam ciosamente em torno de cada abadia; além disso,
exigiram ao menos do dirigente de cada equipe que levasse mais longe o retiro individual:
dando o exemplo, o abade cisterciense isolava-se no tempo do maior perigo, à noite,
em uma cela; ele escalava um degrau a mais na prova, sendo seu dever velar só, nos
postos avançados. Os cisterciences ativeram-se a isso. Os cartuxos foram mais longe:
não escolheram apenas retirar-se em um deserto mais escarpado, viver entre os animais
selvagens, na montanha, espaço simbólico da ascensão espiritual; sua regra limitou
para todos a vida comum a períodos muito curtos, alguns exercícios litúrgicos, algumas
refeições festivas; fora desses episódios, cada religioso encerrado no silêncio
de sua própria cabana devia orar e trabalhar como verdadeiro monge, isto é, sozinho.
A cartuxa representa a
forma menos anárquica de uma aspiração à solidão, cuja vaga de assalto, nos anos
que se seguiram à conversão de são Bruno, foi fulgurante: por toda parte, mais numerosos
talvez no Oeste da França, eremitas partiram para o retiro nas extensões selvagens.
Triunfando sobre todos os obstáculos, superando as reticências episcopais, o propósito
eremítico teve tal sucesso que se infiltrou no próprio cenobitismo.
Muito expressiva com relação
a isso é a atitude de Cluny, onde era muito firme a reserva no que diz respeito
ao individualismo (Guillaume de Volpiano a denunciara como uma forma de orgulho:
“o orgulho”, dizia ele, “nasceu quando alguém disse que se manteria secreto e não
se dignaria ver ou visitar seus irmãos”): no segundo quartel do século XII, um lugar
foi ali institucionalmente arranjado para experiências limitadas de anacoretismo.
Os mais avançados dos monges foram autorizados a estabelecer-se por um tempo em
cabanas no meio dos bosques, à distância da abadia; o próprio abade Pierre, o Venerável,
gostava de retirar-se por determinados períodos. Isolamento, portanto, mas escrupulosamente
dosado na medida da força respectiva de cada um desses atletas da redenção, pois
permanecia a inquietude. São Bernardo a exprimia, dirigindo-se, é verdade, a um
ser mais frágil, uma religiosa, uma mulher: “O deserto, a sombra da floresta e a
solidão dos silêncios oferecem em abundância a oportunidade de fazer o mal [...],
o Tentador se aproxima em segurança”. E para Elisabeth de Schonau: “Alguns amam
a solidão menos pela esperança de uma colheita de boas obras que pela liberdade
de sua própria vontade”. Com efeito, onde determinar o limite entre o propósito
dos eremitas tentados pela independência, como Adão, tomados pelo mesmo orgulho,
e o desses contestadores resolutos que eram ditos heréticos, também eles fugindo
para o deserto, levados pela esperança de um contato mais estreito, mais pessoal,
com o Espírito?
No último terço do século
XII, nas narrativas oferecidas ao divertimento cavalheiresco e cuja oficina mais
fecunda se situa então no Noroeste da França, o eremita desempenha um papel de primeiro
plano, e por duas razões principais: porque a floresta é um dos dois lugares maiores
da ação romanesca, o das provas da aventura, e o eremita tinha naturalmente, nessa
época e nessa região, seu lugar em um cenário silvestre; e porque, sobretudo, as
canções, os romances eram compostos para oferecer uma compensação onírica às frustrações
que amadureciam no seio do privado feudal, do qual se sabe a que ponto comprimia
as aspirações à liberdade da pessoa. Essas obras põem em cena no imaginário aquilo
de que, na realidade, os homens jovens que constituíam a parte mais receptiva do
auditório estavam privados, exaltando o desabrochar do indivíduo e celebrando sua
liberação em relação a todas as coerções. Coerções da moral religiosa, e ali está
o eremita, só, incontrolado, portador de um cristianismo pleno de indulgência e,
sobretudo, subtraído à constrição dos rituais. Coerções da promiscuidade doméstica,
e ali está o cavaleiro errante, solitário, levado só por seu desejo. Essa literatura
informa portanto, em primeiro lugar, sobre aquilo que ela renega e propõe esquivar;
mostra em negativo os poderes de sufocação do gregarismo doméstico. Mas o historiador
não pode duvidar de que tenha aguçado a necessidade de intimidade, de que tenha
ajudado a saciá-la ao apontar as fissuras pelas quais o indivíduo podia evadir-se,
convidando cada um a seguir o exemplo de seus heróis. O historiador deve também
considerar que, para ser cativante, a intriga romanesca não podia desprender-se
totalmente da realidade, por conseguinte, que o ideal que ela alimentava não era
inteiramente inacessível. Incontestavelmente, a sociedade cortês, como a sociedade
monástica, atribuía cada vez mais valor à experiência individual e conferia-lhe
os meios de se desenvolver.
Cumprindo uma função pedagógica,
a literatura cavalheiresca apelava à superação de si mesmo, propunha o itinerário
de uma formação progressiva pela travessia de uma sequência de tribulações, progredindo
a pessoa, por etapas, até a plenitude. Em paralelo com a mística cisterciense ou
cartusiana, ela convidava o indivíduo a provar-se sozinho, passo a passo, no silêncio.
A figura exemplar que ela projetava na frente da cena era então a do cavaleiro em
marcha, longe dos outros, no deserto selvagem, lugar do perigo, afrontando sozinho
a mulher inquietante, a fada. Contudo, longe dos olhares, quem então ia julgá-lo,
apreciar seu valor, conceder-lhe o prêmio? É por isso que a ação romanesca se desenvolve
em cenas sucessivas diante de dois cenários opostos, um solitário, o outro superpovoado:
a floresta, a corte. A literatura que utilizo é dita muito justamente cortês; ela
expõe com predileção o silvestre, mas o mostra como um avesso, o contravalor do
mundo real. Na realidade, a corte era o lugar dessa pedagogia da qual os romances
constituíam um dos instrumentos, e o da promoção cavalheiresca; ali, sob o olhar
do mestre, tratava-se de sobrepujar concorrentes; os cavaleiros viviam em comunidades
privadas tão fechadas quanto as clunisianas, mas onde, para os caçulas que não podiam
esperar herança, toda a dinâmica social se fundava na distinção. O que a literatura
de evasão evoca por meio da imagem da floresta são os procedimentos de seleção pelos
quais, no interior do grupo, alguns chegavam a distinguir-se. Destacando-se do rebanho
em que estavam perdidos, indistintos, afirmando sua própria valentia por uma proeza
individual assim como os heróis da santidade que a iconografia dos santuários dotava
no mesmo momento de um rosto personalizado, eles haviam, vitoriosos, mas de uma
vitória pública, notória, exibido sua façanha singular e colhido sozinhos a recompensa,
também ela singular.
Proezas de armas, mas
também proezas de amor. Convém avançar do lado do amor para alcançar aquilo que
corresponde, na sociedade cavalheiresca, a esses alojamentos florestais onde certos
monges clunisianos, em meados do século XII, faziam retiro longe da fraternidade,
para chegar até o mais íntimo, ao espaço do privado pessoal conquistado sobre o
território do privado coletivo. Na biografia que escreveu sobre Robert, o Piedoso,
no começo do século XI, o monge Helgaud relata uma anedota, na qual Hugo Capeto
lança de passagem seu manto sobre um casal que fornicava entre duas portas de seu
palácio: o mais privado de todos, o ato sexual, escandaloso se não era noturno,
devia, com efeito, necessariamente escapar aos olhares, dissimular-se na obscuridade,
no encerramento. Refiro-me, porque as informações, nesse ponto, são raríssimas,
aos depoimentos que fez diante do inquisidor a dama de Montaillou, Béatrice de Planissoles.
Ela confessa ter sido violada, durante a vida de seu primeiro marido, de dia, mas
em seu quarto, ao abrigo do tabique; que, viúva e livre em seu castelo, seu mordomo,
uma tarde, ao cair da noite, a esperava, escondido sob a cama e, apagadas as lareiras,
introduziu-se em seu leito furtivamente, enquanto ela punha ordem na casa, que ela
gritou, chamando as criadas que “dormiam perto dela, em outras camas, em seu quarto”
(nas trevas, a promiscuidade, como se vê, não era um obstáculo); que, casada de
novo, cedeu a um padre, de dia, mas na adega, ficando uma criada na espreita; que,
novamente viúva, atraiu para sua casa um outro padre, entregou-se a ele na entrada,
perto da porta, à noite, e que, quando repetiu o ato de dia, esperou que suas filhas
e suas criadas se tivessem afastado. Tal era o real da fornicação nessas casas povoadas,
abertas; os amores ilícitos acomodavam-se muito bem ao gregarismo familiar, e era
preciso que o amor fosse louco como o de Tristão e Isolda para que incitasse a fugir
no espaço da estranheza, da desrazão.
O amor que dizemos cortês,
o puro amor, tendia ao mesmo objetivo e se manifestava nos mesmos lugares. Contudo,
era um jogo, de sociedade, conduzido necessariamente no meio de um grupo e cujas
regras se ajustavam tão estreitamente às estruturas do privado doméstico que a busca
amorosa pode ser considerada como um dos procedimentos de seleção e de promoção
individual no concurso permanente de que a grande casa aristocrática era o local.
Tudo se passava como se o senhor dessa casa delegasse à sua esposa, a dama, o poder
de eleger o melhor, de isolar por sua escolha esse indivíduo do grupo no qual todos
os membros procuravam brilhar diante de seus olhos: pelo amor cortês, sem dúvida
mais do que pela competição esportiva, o desejo de autonomia pessoal foi exaltado
no seio da confusão comunitária. Tanto mais que uma das primeiras regras do jogo
de amor era a obrigação da discrição, do segredo. Os amantes deviam dissimular,
retirar-se a dois, não para uma dessas breves conjunções sexuais de que se acaba
de tratar, mas duradouramente no interior de uma clausura invisível, construindo
assim, em meio à balbúrdia dos familiares, como que uma célula mais privada, refúgio
para o amor constantemente ameaçado pelos invejosos. Bem jogado, o amor cortês era
necessariamente criador de intimidade, obrigando ao silêncio, a comunicar-se por
sinais, como em Cluny: gestos, olhares trocados, cores escolhidas, emblemas. Como
os santos cavaleiros escondiam seu cilício, os amantes deviam mascarar seus sentimentos.
Quando, voltando à razão, Tristão e Isolda perguntam ao eremita Ogrin como reintroduzir-se
nas ordenações sociais, este lhes aconselha em primeiro lugar purificar-se pela
contrição, o remorso íntimo, a resolução pessoal de resistir doravante à tentação,
e depois, quando estiverem de volta à corte, dissimular, muito simplesmente: “Para
a vergonha aliviar e o mal encobrir, convém um pouco mentir”. Doravante, a mentira
no meio dos outros. Para aqueles que não se evadiram nas liberdades da floresta,
que jogaram o jogo no palco amplamente aberto que lhe convém, na promiscuidade do
quarto e da sala, a lei de amor é calar-se. André, o Capelão, o prescreve em seu
tratado; “Aquele que deseja conservar seu amor por muito tempo intacto deve zelar
antes de tudo para que ele não seja divulgado a ninguém, e mantê-lo oculto
aos olhos de todos. Pois se várias pessoas começam a dele ter conhecimento,
ele deixa imediatamente de se desenvolver naturalmente e conhece o declínio”. Do
mesmo modo, “os amantes não devem de maneira nenhuma dirigir-se mutuamente sinais,
salvo se estiverem seguros de estar ao abrigo de toda cilada”. Os jogos amorosos
instituíram no interior da sociedade cortês as mais firmes estruturas do recolhimento,
impondo aos amantes viver a dois uma solidão oculta, como se nada tivesse acontecido,
no seio da família, envoltos em segredo, em uma clausura que os maldosos empenhavam-se
incessantemente em forçar. Foi aí talvez, nos refinamentos da relação do masculino
com o feminino e pela prova, difícil, da discrição e do silêncio, que se abriu desde
o fim do século XII, na sociedade profana, o primeiro botão do que se tornará para
nós a intimidade.”
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